Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
159/07.6TVPRT-D.P1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: HÉLDER ROQUE
Descritores: ÓNUS DA PROVA
OBTENÇÃO DE PROVA
MEIOS DE PROVA
DIREITO A RESERVA SOBRE A INTIMIDADE
RESERVA DA VIDA PRIVADA
PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
CONTA BANCÁRIA
QUEBRA DO SIGILO BANCÁRIO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 12/17/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Legislação Nacional: CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: ARTIGO 519º; DL 298/92, 31 DE DEZEMBRO: ARTIGOS 78º E 79º
Sumário :
I - As regras do ónus da prova reconduzem-se a regras de decisão, porquanto tem o ónus da prova aquela parte contra a qual, na dúvida, o juiz sentenciará, desfavoravelmente.
II - Não implicando o direito subjectivo à prova a admissão de todos os meios de prova permitidos em direito, a parte só deve soçobrar na pretensão deduzida em juízo, por dificuldades inultrapassáveis de obtenção dos meios de prova que, por sua iniciativa pessoal, razoavelmente, sem o concurso de outra ou de terceiro, não esteja em condições de conseguir.
III - As informações pretendidas pela autora, relacionadas com o aprovisionamento e utilização de contas à ordem, de que eram titulares a ré e o marido da autora, não constituem violação do princípio da reserva da intimidade da vida privada.
IV - A exigência da divulgação dos elementos da conta bancária de uma das partes que permitam o apuramento da situação patrimonial da outra, em causa pendente, no âmbito do, estritamente, indispensável à realização dos fins probatórios visados por aquela, e com observância rigorosa do princípio da proibição do excesso, é garantia da justa cooperação das partes com o Tribunal, com vista à descoberta da verdade, à luz da doutrina da ponderação de interesses, sob pena de insanável comprometimento do direito da autora a produzir as provas que indicou e a alcançar uma tutela jurisdicional efectiva, com o consequente e inequívoco abuso de direito da parte que a tal se opõe.
V - O direito à reserva sobre a intimidade da vida privada tutela a esfera da vida íntima ou de segredo, compreendendo todos aqueles aspectos que fazem parte do domínio mais particular e íntimo que se quer manter afastado de todo o conhecimento alheio, com exclusão da vida normal de relação, ou seja, dos factos que o próprio interessado, apesar de pretender subtraí-los ao domínio do olhar público, isto é, da publicidade, não resguarda do conhecimento e do acesso dos outros.
VI - Ao contrário do que acontece no caso da violação da integridade física ou moral das pessoas, que se trata de direitos absolutos ou intangíveis, estando em causa os direitos fundamentais da não intromissão no sigilo bancário, trata-se de “direitos condicionais”, em que já não existe uma proibição absoluta da admissibilidade da prova que, em função das circunstâncias do caso concreto em que foi obtida e do estado de necessidade da situação, será ou não valorizada pelo Tribunal.
Decisão Texto Integral:

ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


AA interpôs recurso de agravo, para este Supremo Tribunal de Justiça, do acórdão de folhas 224 e seguintes, que negou provimento ao agravo, mantendo a decisão do Tribunal de 1ª instância que, por entender não haver violação de qualquer direito daquela, quer de intromissão na sua vida privada, quer do sigilo bancário, ordenou a notificação da Agência Abreu, TAP AIR Portugal, Portugália, SATA INTERNACIONAL, Hospital da Ordem da Trindade, Ourivesaria do Bolhão, Banco Barclays, Banco Santander Totta, Banco Pinto & Sotto Mayor, actualmente, incorporado no Millenium, Banco Borges & Irmão, actualmente, incorporado no BPI, e Banco Finibanco, para satisfazerem as informações solicitadas pela autora, BB, ambas, suficientemente, identificadas nos autos.
A ré finaliza as alegações do recurso de agravo com o pedido de revogação do decidido pelo acórdão da Relação e bem assim como de todos os actos subsequentes, formulando as seguintes conclusões que se transcrevem:
1ª - Viajar, ou não, de avião, entre duas cidades, utilizar os serviços de determinada companhia aérea, estar presente/ausente do seu posto de trabalho, quando e porquê, comprar ou não determinadas peças de joalharia, a quem, e como se paga, ter ou não conta bancária, quais os respectivos movimentos, suas datas, montantes e autores, é notoriamente matéria do direito à reserva da vida privada e familiar, acautelada pelos artigos 26°, n° 1 e 32°, n° 8, da CRP.
2ª - Logo, as informações solicitadas na notificação do tribunal de 1a instância, a requerimento da recorrida, às entidades a fls. 557, 558 e 559, reportam à vida privada da agravante.
3ª - Ditando o artigo 8o Convenção Europeia dos Direitos do Homem que "Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência" e que "Não pode haver ingerência da autoridade pública no exercício deste direito senão quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem-estar económico do país, a defesa da ordem e a prevenção das infracções penais, a protecção da saúde ou da moral, ou a protecção dos direitos e liberdades de terceiros”, não existindo lei aplicável no âmbito de uma acção cível na qual se discute a existência de várias doações de uma parte à outra que expressamente o dispense, é necessário o consentimento da parte em causa para que se obtenha, junto de terceiro, informação em poder deste, relativa a dados da sua esfera privada, tal como impõe, especialmente, o disposto nos artigos 1o a 7o da Lei 67/98 (Lei de Protecção de Dados Pessoais), e artigos 78° e 79° do DL 298/92 (Lei do Sigilo Bancário).
4ª - O dever de cooperação prescrito no artigo 519° do Código de Processo Civil está sujeito aos limites impostos genericamente pelo referido artigo 8o da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e, especialmente, pela Lei de Protecção de Dados e do Sigilo Bancário.
5ª - Logo, a decisão em crise da 1a instância, confirmada pelo Tribunal da Relação do Porto, resulta de uma errada aplicação do artigo 519° do Código de Processo Civil, ao considerar dispensável tal consentimento, e viola o artigo 202°, n°s 1 e 2 da CRP, por violação do artigo 8o da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e, por violação do disposto nos artigos 1o a 7o da Lei 67/98 (Lei de Protecção de Dados Pessoais), e artigos 78° e 79° do DL 298/92 (Lei do Sigilo Bancário).
6ª - De resto, a interpretação da decisão em causa que dita a sobreposição dos ditames do artigo 519° do Código de Processo Civil aos do artigo 8o da Convenção dos Direitos do Homem está, igualmente, ferida de inconstitucionalidade, já que pressupõe a vigência de norma (dispensa de consentimento in casu) que a verificar-se seria ilegal, atento o primado do sobre invocado Direito Internacional.
Nas suas contra-alegações, a autora sustenta que deve ser negado provimento ao agravo.
O Tribunal da Relação entendeu considerar demonstrados os seguintes factos, que este Supremo Tribunal de Justiça aceita, nos termos das disposições combinadas dos artigos 722º, nº 2 e 729º, nº 2, do Código de Processo Civil (CPC), mas reproduz:
1. BB intentou a presente acção declarativa de anulação e restituição, com processo ordinário, contra AA, pedindo que, na sua procedência, se declarem nulas as ofertas ou doações feitas à ré pelo marido da autora, referidas na petição inicial [a], se condene a ré a restituir, imediatamente, à autora e seu marido, os bens e dinheiros doados e referidos sob os itens 18 a 21 do cap. III (alguns dos quais já objecto de apreensão) [b], ou a pagar-lhe o correspondente valor em dinheiro, relativamente aos bens e valores doados, cuja apreensão ou restituição em espécie não for possível [c], e se ordene ainda o cancelamento do referido registo de propriedade, a favor da ré, da carrinha BMW, reconhecendo-se que a propriedade da mesma pertence à autora e a seu marido, CC, a quem a mesma deve ser entregue [d].
2. Notificada para os termos do disposto no artigo 512º, nº 1, do CPC, a autora formou um requerimento probatório, em que solicita, entre outras:
A - Se notifique a Agência Abreu para informar se CC e AA utilizaram os seus serviços, em deslocações por via aérea a Itália, Espanha, Madeira e Açores, entre 1998 e 2001, e para informar quem lhe pagou os custos dessas deslocações.
B - Se notifique a TAP AIR Portugal para que junte aos autos cópia dos bilhetes das viagens aéreas de Lisboa (ou do Porto) para Itália e vice-versa e para o Funchal e vice-versa, em nome de CC e AA, entre 1998 e 2001, com os nºs de série aí melhor indicados.
C - Se notifique a Portugália para juntar aos autos cópia dos bilhetes de viagens aéreas, em nome das mesmas pessoas, no dia 8 de Setembro de 1998 ou data próxima, de Lisboa para o Porto, com destino a Madrid e vice-versa.
D - Se notifique a SATA INTERNACIONAL para juntar cópia dos bilhetes das viagens aéreas, em 16 de Setembro de 2000 e 21 de Setembro de 2000, de Lisboa para Ponta Delgada e vice-versa.
E - Se notifique o Hospital da Ordem da Trindade para que informe se a sua recepcionista, AA, esteve ausente do serviço, nos dias 3 a 8 de Setembro de 1998 e de 5 a 9 de Outubro de 1999, nos dias 16 a 21 de Setembro de 2000 e nos dias 3 a 6 de Fevereiro de 2001 e, na afirmativa, qual a justificação apresentada.
F - Se notifique a Ourivesaria do Bolhão para que informe se, entre 1991 e 2005, vendeu artigos de ouro e jóias a CC e/ou AA.
G - Se notifique o Banco Barclays para que informe quem aprovisionou a conta à ordem nº 30120-001.807-5, da qual eram titulares CC e AA e por quem eram utilizados os respectivos saldos.
H - Se notifique o Banco Santander Totta para que informe quem depositou os primeiros 25.000$00 para a abertura de conta, em nome de DD.
I - Se notifique o Banco Pinto & Sotto Mayor, actualmente, incorporado no Millenium, para que informe quem aprovisionou a conta à ordem nº 4102/8175/001, em nome de CC e/ou AA, e por quem era utilizada essa conta.
J - Se notifique o Banco Borges e Irmão, actualmente, incorporado no BPI, para que informe quem aprovisionou a conta à ordem, em nome de CC e/ou AA, e por quem era utilizada essa conta.
L - Se notifique o Banco Finibanco para que informe quem aprovisionava a conta à ordem nº …./10/1, em nome de CC e/ou AA, e por quem era utilizada essa conta.
3. Na contestação, a ré negou o relacionamento amoroso com o marido da autora e as alegadas ofertas, não explicando a proveniência dos fundos que lhe permitiram a aquisição das jóias, de um apartamento, de uma carrinha BMW e de viagens de avião ao estrangeiro, à Madeira e aos Açores.

Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.
Porém, em primeiro lugar, impõe-se analisar a questão prévia da admissibilidade deste recurso de agravo, na dupla vertente em que a ré o coloca, ou seja, quanto à violação do direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar da ré, propriamente dita, e quanto à violação do direito ao sigilo bancário.
E isto porque, em princípio, “não é admitido recurso do acórdão da Relação sobre decisão da 1ª instância, salvo se o acórdão estiver em oposição com outro, proferido no domínio da mesma legislação pelo Supremo Tribunal de Justiça ou por qualquer Relação, e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 732º-A e 732º-B, jurisprudência com ele conforme”, nos termos do preceituado pelo artigo 754º, nº 2, do CPC, que é a situação que, no presente agravo continuado, importa considerar.
Então, tudo está em saber se o acórdão recorrido se encontra em oposição com algum dos acórdãos aludidos pela ré, no requerimento de interposição do recurso constante de folhas 242, desde que proferidos no domínio da mesma legislação, e no pressuposto de não ter sido fixada pelo Supremo jurisprudência com ele conforme.
Assim e, desde logo, é manifesto, como melhor se verá, em seguida, que nenhum deles se reporta à questão da violação do direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar da ré, a qual, consequentemente, nos termos do já citado artigo 754º, nº 2, do CPC, não pode ser objecto de conhecimento e decisão, por parte deste Supremo Tribunal de Justiça.
Porém, sendo certo que todos os acórdãos apontados contendem com a questão da violação do sigilo bancário, estarão os mesmos numa relação de oposição relevante com o acórdão recorrido?
Assim, o acórdão deste STJ, de 10-4-1980, diz que “o dever de segredo bancário, estabelecido e regulado expressamente pelo DL nº 2/78, de 9 de Janeiro, só poderá deixar de verificar-se nos casos em que uma lei imponha, sem sombra de dúvida, a sua revelação, sendo certo que não existe, entre nós, tal norma”(1).
Por outro lado, o acórdão deste STJ, de 21-5-1980, diz que “ O DL nº 2/78, de 9 de Janeiro, deu prevalência ao dever de sigilo sobre o dever de cooperação com as autoridades judiciárias e policiais, realçando, por parte dos estabelecimentos bancários, o segredo quanto aos nomes dos seus clientes, contas de depósito e seu movimento, salvo autorização do cliente transmitida à instituição”(2).
No acórdão da Relação do Porto, de 29-5-1995, diz-se que “o direito ao segredo bancário é emanação do direito à personalidade moral do depositante e, como tal, prevalece sobre o dever de cooperação com o tribunal consignado nos artigos 519, nºs 1 e 2, 528º e 531º, do C PC. Não pode, pois, ser imposta a um estranho a um processo de embargos de terceiro a obrigação de lhe juntar extractos da sua conta bancária”(3).
E, no acórdão da Relação do Porto, de 6-12-2004, diz-se que “há conflito de interesses, entre o dever de sigilo bancário e o da descoberta da verdade material, em processo judicial, se este contender com aquele. Havendo que ponderar entre o interesse, público ou colectivo do regular funcionamento da actividade bancária, e o interesse privado ou pessoal na prova de eventual crédito do autor, com recurso a informações cobertas pelo sigilo dos bancos, deve prevalecer o dever de sigilo bancário”(4).
Finalmente, o acórdão da Relação de Lisboa, de 19-3-2009, diz que “o bem jurídico tutelado pela protecção do segredo bancário, como segredo profissional, é, em primeira linha, o da confiança dos clientes, na discrição dos seus interlocutores nas informações familiares, pessoais e patrimoniais. Daí que os factos ou elementos das relações do cliente com a instituição bancária abrangidos pelo segredo bancário só podem ser revelados, sob autorização do primeiro ou de algum normativo que expressamente limite o dever de segredo”(5).
Assim e, desde logo, se os dois primeiros acórdãos foram proferidos, no quadro legal decorrente do DL nº 2/78, de 9 de Janeiro, quando é certo que o mesmo foi, entretanto, ultrapassado pelo regime instituído pelo DL nº 298/92, de 31 de Dezembro, com a redacção introduzida pelo DL nº 201/2002, de 26 de Setembro, e pela nova redacção dada ao artigo 519º, do CPC, através do DL nº 329/95, de 12 de Dezembro, o terceiro acórdão foi proferido, em momento anterior a esta última alteração da lei processual civil, enquanto que o último consagra a possibilidade de os elementos abrangidos pelo segredo bancário poderem ser revelados, sob autorização de algum normativo que, expressamente, limite o dever de segredo, como aconteceu na hipótese do acórdão recorrido.
Contudo, o acórdão da Relação do Porto, de 6-12-2004, já citado, coloca-se, manifestamente, em oposição com o acórdão recorrido, e no mesmo quadro legislativo, o que fundamenta a admissibilidade deste recurso de agravo para o STJ do acórdão proferido pela Relação sobre a decisão da 1ª instância, em conformidade com o disposto pelo artigo 754º, nº 2, do CPC, no que concerne, limitadamente, à questão da violação do direito ao sigilo bancário.

As questões a decidir, no presente agravo, em função das quais se fixa o objecto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3, 690º e 726º, todos do CPC, são as seguintes:
I – A questão da violação do sigilo bancário e sua repercussão na eventual violação do direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar da ré.
II – A questão da constitucionalidade do artigo 519º, do CPC.

I. DO SIGILO BANCÁRIO

Com a presente acção visa a autora a anulação de actos de alienação de móveis e dinheiro, enquanto bens comuns do casal que formou com o marido, autor desses actos, a favor de outrem, ou seja, a ora ré, sem o consentimento daquela.
A realidade dos factos alegados deve, em princípio, ser provada por aqueles que a invocam, nisto consistindo a função das provas, tal como vem definido pelo artigo 341º, do Código Civil (CC).
É que os factos carecidos de prova são elencados numa peça processual, hoje designada por base instrutória, onde se procede à selecção da matéria de facto relevante para o exame e decisão da causa, destinada a ser respondida pelo Tribunal, após a fase da instrução, em conformidade com o estipulado pelos artigos 511º, nº 1 e 513º, ambos do CPC.
Efectivamente, aquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado, que, em caso de duvida, devem considerar-se como constitutivos do mesmo, em conformidade com o disposto pelo artigo 342º, nºs 1 e 3, do CC, sob pena de, e tal é o significado essencial do ónus da prova, determinar o sentido em que o Tribunal deve decidir, no caso de se não fazer essa prova (6), incorrendo a parte a quem compete a demonstração do facto visado nas desvantajosas consequências de se ter como líquido o facto contrário, ou na necessidade de, em todo o caso, sofrer tais consequências se os autos não contiverem prova bastante desse facto (7).
Preceitua, aliás, o artigo 516º, do CPC, que “a dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita”.
E isto porque as regras do ónus da prova se reconduzem, afinal, a regras de decisão, porquanto tem o ónus da prova aquela parte contra a qual, na dúvida, o Juiz sentenciará, resolvendo, para o efeito, o «non liquet» num «liquet» desfavorável a essa parte (8).
Cabendo embora às partes o ónus de apresentar as testemunhas e de requerer quaisquer outras provas, de acordo com o estipulado nos artigos 512º, nº 1 e 793, nº 1, sem prejuízo dos casos em que o Tribunal dispõe de poderes respeitantes à actividade probatória, nos termos do preceituado pelo artigo 264º, nº 3, todos do CPC, isso não significa que este direito das partes possa ser exercido, através de meios de obtenção ou de formas de produção ilícitas das provas (9).
Prescreve, porém, o artigo 519º, nº 1, do CPC, que “todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspecções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os actos que forem determinados”.
Este dever jurídico de colaboração das partes para a descoberta da verdade tem limites que a lei impõe, no sentido de que, por vezes, torna inexigível o cumprimento desse dever de cooperação, ou seja, em que a recusa é legítima quando essa colaboração importar, nomeadamente, a violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, em conformidade com o estipulado pelo artigo 519º, nº 3, c), do CPC, citado.
Então, deve o Tribunal verificar a legitimidade da recusa invocada pela parte no sentido de obviar ao cumprimento do dever de cooperação para a descoberta da verdade, enquanto princípio matricial das últimas reformas do Processo Civil, sendo certo, outrossim, que, tão-só, em derradeiro limite, a parte pode vir a soçobrar na pretensão deduzida em juízo, por dificuldades inultrapassáveis de obtenção dos meios de prova que, por sua iniciativa pessoal, razoavelmente, sem o concurso da outra ou de terceiro, não esteja em condições de obter.
E se o direito de acesso à justiça comporta, indiscutivelmente, o direito à produção de prova (10) e o direito à cooperação na obtenção da prova, tal não significa, simultaneamente, que o “direito subjectivo à prova implique a admissão de todos os meios de prova permitidos em direito, em qualquer tipo de processo e relativamente a qualquer objecto do litígio”(11), muito embora a recusa de qualquer meio de prova deva ser, devidamente, fundamentada, na lei ou em princípio jurídico, não podendo o Tribunal fazê-lo, de modo discricionário.
Porém, a restrição incomportável da faculdade da apresentação de prova em juízo impossibilitaria a parte de fazer valer o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efectiva, tal como vem reconhecido pelo artigo 20º, da Constituição da República (CRP).
Com efeito, o direito à prova encontra-se consagrado, constitucionalmente, no artigo 20º, nº 1, do diploma fundamental, como componente do princípio geral do acesso ao direito e aos tribunais, que a todos é assegurado, para defesa dos seus direitos e interesses, legalmente, protegidos.
Assim sendo, se a defesa da inadmissibilidade da prova ilícita tem de apoiar-se, em alguma norma ou princípio jurídico, já a defesa da respectiva admissibilidade não carece de qualquer fundamentação suplementar (12).
Como assim, as informações solicitadas pela autora, relacionadas com os movimentos bancários das contas à ordem, de que eram titulares a ré e o marido daquela, constituirão violação do princípio do sigilo bancário?
A ré sustenta que o acórdão recorrido, ao determinar a aplicação do artigo 519°, do CPC, considerou, erradamente, dispensável o seu consentimento, violando, deste modo, também, os artigos 78° e 79°, do DL nº 298/92, de 31 de Dezembro (Lei do Sigilo Bancário).
Estipula, a este propósito, o artigo 78º, nº 1, do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo DL nº 298/92, de 31 de Dezembro, que “os membros dos órgãos de administração ou de fiscalização das instituições de crédito, os seus empregados, mandatários, comitidos e outras pessoas que lhes prestem serviços a título permanente ou ocasional não podem revelar ou utilizar informações sobre factos ou elementos respeitantes à vida da instituição ou às relações desta com os seus clientes cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços”, acrescentando o respectivo nº 2 que “estão, designadamente, sujeitos a segredo, os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias”, sendo certo, continuam os artigos 80º, nº 2 e 84º, do mesmo diploma legal, que “os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo só podem ser revelados mediante autorização do interessado, transmitida ao Banco de Portugal, ou nos termos previstos na lei penal e de processo penal”.
A isto acresce que, inexistindo autorização do cliente no sentido da instituição bancária divulgar os factos ou elementos das suas relações com esta, os mesmos só podem ser revelados, nomeadamente, que é a hipótese que aqui interessa considerar, “quando exista outra disposição legal que expressamente limite o dever de segredo”, por força do disposto pelo artigo 79º, nºs 1 e 2, e), do DL nº 298/92, de 31 de Dezembro.
Ora, o artigo 519º, nº 1, do CPC, já transcrito, ao consagrar o dever de cooperação para a descoberta da verdade, vem obrigar as partes a “facultar o que for requisitado”, sendo a recusa, porém, legítima se a obediência importar, designadamente, a violação do sigilo profissional, por força do disposto pelo nº 3, c), do aludido preceito legal.
E, sendo deduzida a escusa, com fundamento no sigilo bancário, que é uma modalidade atípica do segredo profissional, como o fez a ré, ao opor-se à obtenção dos elementos de informação requeridos pela autora, o Tribunal deve verificar a respectiva legitimidade, embora não esteja em causa o incidente a que aludem os artigos 519º, nº 4, do CPC, e 135º, do Código de Processo Penal.
Efectivamente, pode o Tribunal, oficiosamente ou a requerimento de alguma das partes, em despacho fundamentado, dispensar a simples confidencialidade de dados que se encontrem na disponibilidade de serviços administrativos, em suporte manual ou informático, e que permitam o apuramento da situação patrimonial de alguma das partes em causa pendente, determinando a prestação de informações, quando as considere essenciais ao regular andamento do processo ou a justa composição do litígio, nos termos do disposto pelo artigo 519º-A, nº 1, do CPC, sendo as informações obtidas, continua o respectivo nº 2, estritamente, utilizadas, na medida indispensável à realização dos fins que determinaram a sua requisição, não podendo ser, injustificadamente, divulgadas, nem constituir objecto de ficheiro de informações nominativas.
Assim sendo, a exigência da divulgação dos elementos da conta bancária da ré, no âmbito do, estritamente, indispensável à realização dos fins probatórios visados pela autora que determinaram a sua requisição e com observância rigorosa do princípio da proibição do excesso, na sua tripla vertente da necessidade, adequação e proporcionalidade, «stricto sensu», à luz da doutrina da ponderação de interesses, é garantia da justa cooperação das partes com o Tribunal, com vista à descoberta da verdade.
É que uma protecção sem limites de certos direitos fundamentais “deixaria em muitos casos sem efectiva tutela o próprio direito de acção” e os direitos fundamentais poderiam vir a ser invocados, em claro abuso de direito (13).
A isto acresce que, destinando-se o dever de sigilo a proteger os direitos pessoais, como o direito ao bom nome e reputação e o direito à reserva da vida privada, consagrados nos artigos 26º, da CRP, e 80º, do CC, bem como o interesse da protecção das relações de confiança entre as instituições bancárias e os seus clientes, enquanto que o dever de cooperação para a descoberta da verdade visa a satisfação do interesse público da administração da justiça, a contraposição dos dois interesses em jogo deve, no caso concreto, ser dirimida, atento o teor do pedido e da causa de pedir da acção, com prevalência do princípio do interesse preponderante, segundo um critério de proporcionalidade na restrição de direitos e interesses, constitucionalmente, protegidos, como decorre do artigo 18º, nº 2, da CRP, concedendo-se primazia ao último, ou seja, ao dever de cooperação para a descoberta da verdade, sobre o primeiro.
Efectivamente, a prevalência, no caso concreto, do dever de cooperação para a descoberta da verdade sobre o dever do sigilo bancário não colide com o disposto no artigo 26º, nº 1, da CRP, que estatui que “a todos são reconhecidos os direitos...à reserva da intimidade da vida privada e familiar...”.
Com efeito, estipula o artigo 80º, nº 1, do CC, que “todos devem guardar reserva quanto à intimidade da vida privada de outrem”, acrescentando o respectivo nº 2 que “a extensão da reserva é definida conforme a natureza do caso e a condição das pessoas”.
Assim sendo, a lei ordinária, talvez por ser anterior à lei constitucional, nada acrescenta à substância do direito à intimidade da vida privada, consagrado pelo texto fundamental, servindo, tão-só, para concretizar a lei constitucional, limitando-se a explicitar conceitos, interpretando-os e repetindo mais, claramente, o seu conteúdo.
E o legislador constitucional, também, não esclarece o intérprete, neste particular, continuando, por simples decalque, em relação à lei ordinária, a utilizar a expressão ambígua “guardar reserva”, em lugar do inequívoco e, indiscutivelmente, conceito mais simples de direito à intimidade (14).
O direito à reserva sobre a intimidade da vida privada, direito de resguardo [diritto alla reservatezza], como é designado pela doutrina italiana, ou direito a uma esfera de segredo [Geheimsphäre], para a teoria germânica, corresponde ao reconhecimento de uma merecida tutela quanto à natural aspiração da pessoa a uma esfera íntima de vida, ao direito de estar só [right to be let alone], na terminologia inglesa (15), consistindo no direito de qualquer pessoa a que os acontecimentos íntimos da sua vida privada, que só a ela se referem, não sejam divulgados, sem o seu consentimento, independentemente do carácter ofensivo da reputação (16).
É que a intimidade da vida privada de cada um, que a lei protege, só pode desenvolver-se, no âmago da casa ou do lar (17), compreendendo aqueles actos que, não sendo secretos em si mesmos, devem subtrair-se à curiosidade pública, por naturais razões de resguardo e melindre, tais como os sentimentos e afectos familiares, os costumes da vida e as vulgares praticas quotidianas, a vergonha da pobreza e as renúncias que ela impõe e, até, por vezes, o amor da simplicidade (18).
Para determinar a amplitude da reserva da intimidade da vida privada, o legislador ordinário manda atender, para além da condição das pessoas, elemento subjectivo que contende com a posição social do titular, igualmente, à natureza do caso, que deriva de caracteres objectivos, isto é, de traços específicos, identificadores de determinada situação concreta, que não dependem da qualidade do sujeito envolvido, como acontece, por exemplo, se o facto ou o acto ocorreu, em local público, onde pode ser conhecido por qualquer um, hipótese em que não será fundada a reacção contra quem o tenha apreendido, por o ter presenciado, excluindo, contudo, a intimidade da intromissão, ainda que não, necessariamente, a sua divulgação.
A natureza do caso constitui uma circunstância, de carácter objectivo, que delimita, nos termos da lei civil, a extensão do direito à reserva sobre a intimidade da vida privada, determinando, simultaneamente, a variabilidade deste (19).
Assim, o direito de reserva á intimidade da vida privada desdobra-se em dois direitos menores, sendo um o direito de impedir o acesso de estranhos a informações sobre a vida privada e o outro o direito a que ninguém divulgue as informações que tenha sobre a vida privada de outrem (20).
Porém, com vista a confinar o objecto do direito à reserva sobre a intimidade da vida privada, importa considerar que o texto da lei não se limita a referir a «intimidade», antes a reporta à «vida privada», o que exclui do âmbito da tutela desse direito tudo aquilo que possa considerar-se como pertencendo ao domínio da participação do cidadão na vida pública.
A este propósito, impõe-se trazer à colação a denominada «teoria das três esferas», segundo a qual é possível diferenciar na personalidade humana e de relação três dimensões, isto é, «a vida íntima» que compreende os gestos e factos que, em absoluto, devem ser subtraídos ao conhecimento de outrem, concernentes não apenas ao estado do sujeito, enquanto separado do grupo, mas, também, a certas relações sociais, totalmente, protegida, «a vida privada» que engloba os acontecimentos que cada indivíduo partilha com um número restrito de pessoas, tão-só, relativamente, protegida, e que pode ter de ceder, no caso concreto, perante outros interesses ou bens, e «a vida pública» que, correspondendo a eventos susceptíveis de ser conhecidos por todos, respeitam à participação de cada um na vida da colectividade (21).
O direito à reserva sobre a intimidade da vida privada tutela, assim, a esfera da vida íntima, aquele sector da vida que se desenvolve entre as paredes domésticas e, no âmbito da família (22), o que significa que compreenderá, por exemplo, os factos que decorrem dentro do lar, no interior do domicílio (23).
Os critérios atinentes à condição das pessoas e à natureza do caso são, eles próprios, elementos de explicitação da intimidade da vida privada e decorrem do próprio conceito de privacidade, tratando-se de limites impostos pela especificidade do bem que esse direito fundamental visa salvaguardar e, consequentemente, derivados do próprio objecto do direito, e não de forças exógenas ao mesmo.
Convirá, portanto, reconhecer que a tutela da intimidade da vida privada, compreendida pela esfera da intimidade, não inclui, no âmbito da sua protecção, a esfera da vida privada (24) e a esfera da vida normal de relação, ou seja, os factos que o próprio interessado, apesar de pretender subtraí-los ao domínio do olhar público, isto é, da publicidade, não resguarda do conhecimento e do acesso dos outros, mas abrange, ao invés, todos aqueles aspectos que fazem parte do domínio mais particular e íntimo que se quer manter afastado de todo o conhecimento alheio, porquanto a esfera privada ou individual representa uma realidade distinta da esfera íntima ou de segredo (25).
Assim sendo, os actos que a ré quer ver afastados do âmbito da prova que a autora pretende produzir contendem com a prestação de informações, por parte de entidades terceiras, a respeito do aprovisionamento de determinadas contas à ordem, de que eram titulares a ré e o marido da autora, por quem eram utilizados os respectivos saldos e quem efectuou o depósito inicial para a abertura de uma outra conta, em nome de DD.
Por isso, trata-se de actos excluídos da esfera da vida íntima, e, também, da vida pública, como é óbvio, para se situarem na área da vida privada e, portanto, não abrangidos pela tutela do direito à reserva quanto à intimidade da vida privada.
E isto é, assim, mesmo sendo verdade, igualmente, que a lei fundamental actual, desde a sexta revisão constitucional [Lei Constitucional nº 1/2004, de 24 de Julho], atento o teor do respectivo artigo 26º, nº 2, não requer já, conforme acontecia no passado, tão-só, a “utilização” ou “divulgação”, pois que se basta, agora, também, com a “obtenção”, ou seja, com a investigação sobre a vida privada, razão pela qual o direito à intimidade compreende não só o direito de oposição à divulgação da vida privada, mas, também, o direito ao respeito da vida privada, à não intromissão na mesma, isto é, a simples aquisição de conhecimentos sobre tais factos.
No mesmo sentido de que o direito à intimidade da vida privada proíbe, tanto a divulgação, como a indagação da vida privada alheia, aponta, aliás, a remissão estabelecida pelo artigo 16, nº 2, da CRP, ao estatuir que “os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem”, enunciando o respectivo artigo 12º o princípio de que “ninguém poderá ser objecto de ingerências arbitrárias na sua vida privada...”, posteriormente, reafirmado pelo artigo 8º, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que estatui, no seu nº 1, que “toda a pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada…” e, no seu nº 2, que "não pode haver ingerência da autoridade pública no exercício deste direito senão tanto quanto esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem-estar económico do país, a defesa da ordem e a prevenção das infracções penais, a protecção da saúde ou da moral, ou a protecção dos direitos e liberdades dos outros" e, finalmente, pelo artigo 17º, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, ao dispor que “ninguém poderá ser objecto de ingerências arbitrárias ou ilegais na sua vida privada...”.
Por outro lado, ao contrário do que defende a ré, não se verifica qualquer violação do texto da Lei nº 67/78, de 26 de Outubro, cujo artigo 4º, que define o correspondente âmbito de aplicação, estatui, no seu nº 1, que “a presente lei aplica-se ao tratamento de dados pessoais por meios total ou parcialmente automatizados, bem como ao tratamento por meios não automatizados de dados pessoais contidos em ficheiros manuais ou a estes destinados”, razão pela qual, com o devido respeito, em nada contende, no quadro da acção e da respectiva causa de pedir, com o princípio da reserva da intimidade da vida privada.
Ora, não se demonstrando que as informações pretendidas pela autora, respeitantes ao aprovisionamento e utilização das contas à ordem, de que eram titulares a ré e o marido daquela, se traduzam em actos abrangidos pela dimensão da vida íntima, não se encontram, consequentemente, a coberto da tutela do direito à reserva sobre a intimidade da vida privada, consagrado pelos artigos 26º, nºs 1 e 2, do CRP, e 80, nºs 1 e 2, do CC.
Aliás, mesmo que a concepção doutrinal ou jurisprudencial sobre o princípio da reserva da intimidade da vida privada fosse aquela que a ré sustenta, nas alegações de agravo, em aparente afinidade semântica com o princípio do «right to privacy» norte-americano, importa acrescentar que o artigo 8º, nº 2, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, citado e transcrito pela recorrente, não exclui a ingerência no exercício deste direito, quando a mesma estiver prevista na lei e constituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para, nomeadamente, garantir “…a protecção dos direitos e liberdades dos outros", e não de terceiros, como, por lapso, consta do teor das conclusões recursivas.
E que dizer, afinal, se a recorrida, em vez de solicitar ao Tribunal a obtenção das informações pretendidas, tivesse, ela própria, através de um golpe de engenho ou de sorte, apresentado esses mesmos meios de prova?!
Estaria, então, em causa a respectiva admissibilidade ou, apenas, a sua valoração?
As limitações quanto à admissibilidade dos meios de prova, em processo civil, são as que resultam do artigo 519º, mero afloramento do princípio do inquisitório, consagrado pelo artigo 265º, ambos do CPC, e não outras, face à inexistência de qualquer concretização das normas constitucionais respeitantes a direitos fundamentais, na área do processo civil, em que a garantia constitucional é menos intensa do que acontece no processo penal, onde já existe uma regulamentação completa das situações em que se concretiza a licitude na obtenção de determinados meios probatórios.
Doutro modo, a garantia constitucional constituiria a desprotecção dos meios de prova mais valiosos, em benefício dos mais falíveis, a verdade material ficaria à mercê das vicissitudes da prova testemunhal e o processo civil seria o parente pobre do dispositivo em via reduzida.
Enquanto que, no caso da violação da integridade física ou moral das pessoas, se está perante um tipo de prova, absolutamente, inadmissível, já quanto a outros direitos fundamentais, como seja, o da intromissão no sigilo bancário, não decorre da lei a proibição absoluta da admissibilidade da prova que, em função das circunstâncias do caso concreto como que foi obtida, será ou não valorizada pelo Tribunal.
Trata-se dos denominados «direitos condicionais» que, ao contrário dos direitos absolutos ou intangíveis, que são objecto de uma protecção inderrogável, apenas gozam de uma tutela relativa, porquanto admitem limitações, em caso de estado de necessidade (26).
Como assim, as informações solicitadas pela autora, relacionadas com o aprovisionamento e utilização das contas à ordem, de que eram titulares a ré e o marido da autora, não constituem violação do princípio da reserva da intimidade da vida privada e familiar e, consequentemente, meios de prova de obtenção e produção ilícitas.

II. DA CONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 519º DO CPC

Defende, por fim, a ré que a interpretação que dita a sobreposição dos ditames do artigo 519°, do CPC, aos do artigo 8º, da Convenção dos Direitos do Homem, está ferida de inconstitucionalidade, já que pressupõe a vigência de norma, isto é, a dispensa de consentimento que, a verificar-se, seria ilegal, atento o primado do Direito Internacional.
Para além da afirmada total compatibilidade entre o direito interno, consubstanciado na norma do artigo 519º, do CPC, e o Direito Internacional Convencional, nomeadamente, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, a divulgação dos elementos de informação solicitados pela autora, incluindo no que concerne aos movimentos da conta bancária da ré com o marida daquela, visa a realização de um bem, constitucionalmente, tutelado, e que representa a garantia da prevalência do princípio da cooperação para a descoberta da verdade, sob pena de insanável comprometimento do direito da autora a produzir as provas que indicou e a alcançar uma tutela jurisdicional efectiva, com o consequente e inequívoco abuso de direito da parte que a tal se opõe.
Não ocorre, portanto, qualquer violação dos princípios da reserva da intimidade da vida privada ou do sigilo bancário, não se mostrando violadas as normas legais, ordinárias ou constitucionais, invocadas pela ré ou outras de que, oficiosamente, importe conhecer.

CONCLUSÕES:

I - As regras do ónus da prova reconduzem-se a regras de decisão, porquanto tem o ónus da prova aquela parte contra a qual, na dúvida, o Juiz sentenciará, desfavoravelmente.
II – Não implicando o direito subjectivo à prova a admissão de todos os meios de prova permitidos em direito, a parte só deve soçobrar na pretensão deduzida em juízo, por dificuldades inultrapassáveis de obtenção dos meios de prova que, por sua iniciativa pessoal, razoavelmente, sem o concurso da outra ou de terceiro, não esteja em condições de conseguir.
III - As informações pretendidas pela autora, relacionadas com o aprovisionamento e utilização de contas à ordem, de que eram titulares a ré e o marido da autora, não constituem violação ao princípio da reserva da intimidade da vida privada.
IV - A exigência da divulgação dos elementos da conta bancária de uma das partes que permitam o apuramento da situação patrimonial da outra, em causa pendente, no âmbito do, estritamente, indispensável à realização dos fins probatórios visados por aquela, e com observância rigorosa do princípio da proibição do excesso, é garantia da justa cooperação das partes com Tribunal, com vista à descoberta da verdade, à luz da doutrina da ponderação de interesses, sob pena de insanável comprometimento do direito da autora a produzir as provas que indicou e a alcançar uma tutela jurisdicional efectiva, com o consequente e inequívoco abuso de direito da parte que a tal se opõe.
V - O direito à reserva sobre a intimidade da vida privada tutela a esfera da vida íntima ou de segredo, compreendendo todos aqueles aspectos que fazem parte do domínio mais particular e íntimo que se quer manter afastado de todo o conhecimento alheio, com exclusão da esfera da vida privada e da esfera da vida normal de relação, ou seja, dos factos que o próprio interessado, apesar de pretender subtraí-los ao domínio do olhar público, isto é, da publicidade, não resguarda do conhecimento e do acesso dos outros.
VI – Ao contrário do que acontece no caso da violação da integridade física ou moral das pessoas, que se trata de direitos absolutos ou intangíveis, estando em causa os direitos fundamentais da não intromissão no sigilo bancário, trata-se de «direitos condicionais», em que já não existe uma proibição absoluta da admissibilidade da prova que, em função das circunstâncias do caso concreto em que foi obtida e do estado de necessidade da situação, será ou não valorizada pelo Tribunal.
DECISÃO:

Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que constituem a 1ª secção cível do Supremo Tribunal de Justiça, em negar provimento ao agravo, confirmando o douto acórdão recorrido, na parte em que foi objecto de apreciação por este STJ, ou seja, em que ordenou a notificação do Banco Barclays, Banco Santander Totta, Banco Pinto & Sotto Mayor, actualmente, incorporado no Millenium, Banco Borges & Irmão, actualmente, incorporado no BPI, e Banco Finibanco, no sentido de satisfazerem as informações solicitadas pela autora, declarando-se que não pode ser objecto de conhecimento e decisão a questão da eventual violação do direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar da ré.

Custas deste agravo, a cargo da ré.

Notifique.

Lisboa, 17 de Dezembro de 2009
Hélder Roque (Relator)
Sebastião Povoas
Moreira Alves
______________________________________
(1) Processo nº 068708, BMJ nº 296, 190.
(2) Processo nº 035873, BMJ nº 297, 207.
(3) Processo nº 9550308, in www.dgsi.pt
(4) Processo nº 0456476, in www.dgsi.pt
(5) Processo nº 372/2009-8, in www.dgsi.pt
(6) Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 4ª edição, revista e actualizada, 1987, 306.
(7) Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, 195 e 196.
(8) Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, 198.
(9) Remédio Marques, A Acção Declarativa À Luz do Código Revisto, Coimbra Editora, 2007, 370.
(10) Miguel Teixeira de Sousa, As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa, Lisboa, 1995, 228 e ss; Isabel Alexandre, As Provas Ilícitas em Processo Civil, Almedina, 1998, 76.
(11) TC, Acórdão nº 209/95, Pº nº 133/93, 1ª secção, DR, IIª série, nº 295, de 23-12-1995, 15380.
(12) Isabel Alexandre, As Provas Ilícitas em Processo Civil, Almedina, 1998, 79.
(13) Salazar Casanova, Provas Ilícitas em Processo Civil. Sobre a Admissibilidade e Valoração de Meios de Prova Obtidos pelos Particulares, Direito e Justiça, Separata da Revista da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, XVIII, 2004, T1, 128.
(14) Paulo Cunha, Teoria Geral do Direito Civil, 1972, 136 e ss.
(15) Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição, por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, Coimbra Editora, Ldª, 2005, 212; Januário Gomes, O Problema da Salvaguarda da Privacidade antes e depois do Computador, BMJ nº 319, 31.
(16) Adriano De Cupis, Os Direitos da Personalidade, 1961, 129.
(17) Pierre Kayser, A Protecção da Vida Privada, Presses Universitaires D’ Aix-Marseille, 2ª edição, 1990, 3 e ss.
(18) Rodrigues Bastos, Das Relações Jurídicas Segundo o Código Civil de 1966, I, 12.
(19) Rita Amaral Cabral, O Direito à Intimidade da Vida Privada, Separa dos Estudos em Memória do Prof. Paulo Cunha, 1988, 28 e nota (2) e 30.
(20) Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP, Constituição da República Portuguesa Anotada, I, 4ª edição, revista, 2007, 467 e 468.
(21) Rita Amaral Cabral, O Direito à Intimidade da Vida Privada, Separa dos Estudos em Memória do Prof. Paulo Cunha, 1988, 30 e 31.
(22) Adriano De Cupis, Os Direitos da Personalidade, 1961, 129, 142, 144 e ss.
(23) Paulo Mota Pinto, O Direito à Reserva sobre a Intimidade da Vida Privada, BFDUC, 1993, nº 69, 526 e ss.
(24) Helena Moniz, Notas sobre a Protecção de Dados Pessoais perante a Informática, Separata da Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 7, 1997, 331 e ss.
(25) O direito à reserva sobre a intimidade da vida privada goza de um âmbito mais limitado do que o «right to privacy» norte-americano, François Rigaux, L’élaboration d’un “Right of Privacy” par la jurisprudence américaine, Révue Internationale de Droit Comparé, 1980, 727 e ss.
(26) Susana Almeida, O Respeito pela Vida (Privada e) Familiar na Jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem: A Tutela das Novas Formas de Família, Centro de Direito da Família da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, Ldª, 2008, 64 e nota (124) e 65.