Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
233/2000.C2.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: MARIA CLARA SOTTOMAYOR
Descritores: PROIBIÇÃO DE DECISÕES SURPRESA
EXCEPÇÃO DE CASO JULGADO
CASO JULGADO MATERIAL
IDENTIDADE DE SUJEITOS
ACESSO AO DIREITO
Data do Acordão: 06/17/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Indicações Eventuais: CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 3.º, 201.º, N.º 1, 497.º, 498.º, 655.º, N.º1, 659.º, N.º2, IN FINE, 668.º, N.º ALS. B), C) E D), 671.º, 712.º, 722.º, N.º3, 729.º, 771.º.
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / PROVAS.
DIREITO CONSTITUCIONAL - PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS - TRIBUNAIS.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - ACÇÃO - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / ARTICULADOS / SENTENÇA (NULIDADES) / RECURSOS.
Doutrina:
- Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume V, 3.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2012, pp. 160-164.
- Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 9.ª edição, 2009, p. 37.
- Antunes Varela/ Miguel Bezerra/Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra Editora, 1985, pp. 712, 714.
- Castro Mendes, Limites objectivos do caso julgado em processo civil, Edições Ática, 1968, p. 161.
- Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Artigos 1.º a 107.º, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, pp. 415-416.
- Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2008, anotação ao art. 3.º, p. 9; Introdução ao Processo Civil, Conceito e Princípios Gerais à Luz do Código Revisto, 3.ª edição, Coimbra Editora, 2013, pp. 124-125.
- Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, vol. III, p. 194.
- Rosenberg/Schwab/Gottwald, Zivilprozess-recht, 15. Auflage, München, 1983, pp. 456, 532.
- Rui Medeiros, «Anotação ao artigo 20.º da Constituição», in Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I – 2.ª edição, Coimbra Editora, 2010, pp. 436, 438-439.
- Schwab, Der Streitgegenstand, p. 148, apud Castro Mendes, Limites objectivos do caso julgado …ob. cit., pp. 161-162.
- Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, 2.ª edição, Lex, Lisboa, 1997, pp. 221, 575, 578-579; “O objecto da sentença e o caso julgado material (O estudo sobre a funcionalidade processual)”, BMJ,1983, Abril, n.º 325, pp. 105, 106.
-Lopes do Rego, «Acesso ao direito e aos tribunais», in Estudos sobre a jurisprudência do Tribunal Constitucional, 1993, p. 69; Comentários ao Código de Processo Civil, Volume I, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, 2004, p. 33.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 396.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 3.º, 201.º, N.º 1, 497.º, 498.º, 655.º, N.º1, 659.º, N.º2, IN FINE, 668.º, N.º ALS. B), C) E D), 671.º, 712.º, 722.º, N.º3, 729.º, 771.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 13.º, 18.º, N.º 2 E N.º 3, 20.º, 202.º, N.º2, 204.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:
-N.º 632/99, EM WWW.DGSI.PT .
-*-
ACÓRDÃO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO:
-DE 23-01-2008, PROCESSO 0574/07, EM WWW.DGSI.PT .
-*-
ACÓRDÃOS DESTE SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 10-07-97 – CJ/STJ – 2.º/165;
-DE 27-04-2004 – PROC. 04A1060, EM WWW.DGSI.PT ;
-DE 20-05-2004 – PROC. 04B281 EM WWW.DGSI.PT;
-DE 13-01-2005 – PROC. 04B4365 EM WWW.DGSI.PT;
-DE 05-07-2005 – PROC. 05ª008 EM WWW.DGSI.PT;
-DE 08-03-2007 – CJ/STJ – 1-º/98;
-DE 16-01-2007, AGRAVO N.º 3294/06 E DE 11.11.2008, REVISTA N.º 11.11.2008;
-DE 04-06-2009, PROCESSO N.º 09B0523, EM WWW.DGSI.PT ;
-DE 15-12-2011, PROCESSO N.º 2/08.9TTLMG.P1S1;
-DE 15-01-2013, PROCESSO N.º 816/09.2TBAGD.C1.S1.
Sumário :
I - O art. 3.º do CPC não introduz no nosso sistema o instituto da proibição de decisões surpresa tal como foi configurado no direito alemão, mas apenas como a possibilidade de, em plena igualdade, as partes influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objecto da causa e que apareçam como potencialmente relevantes para a decisão.

II - A excepção de caso julgado constitui uma excepção dilatória, que se traduz num pressuposto processual negativo cuja função consiste em impedir o prosseguimento do processo com o objectivo de evitar que o tribunal se veja na contingência de proferir decisão de mérito que contrarie ou repita uma outra, anterior e definitiva.

III - O caso julgado material tem força obrigatória dentro do processo e fora dele e, por isso, não pode ser alterado em qualquer acção nova que porventura se proponha sobre o mesmo objecto, entre as mesmas partes e com fundamento na mesma causa de pedir.

IV - Para averiguar o preenchimento do requisito da identidade de sujeitos, deve atender-se, não a critérios formais ou nominais, mas a um ponto de vista substancial, ou seja, ao interesse jurídico que a parte concretamente actuou e actua no processo.

V - A aplicação da excepção dilatória de caso julgado material não constitui um obstáculo arbitrário ou desproporcionado ao direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efectiva, justificando-se numa necessidade de segurança jurídica para a comunidade e na coerência das decisões judiciais, valores que contribuem para promover a paz jurídica e social e o respeito dos cidadãos pelos tribunais.
Decisão Texto Integral:

Acordam na 1.ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça:

            I - Relatório

AA e mulher BB intentaram no 1.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Alcobaça uma acção declarativa sob a forma de processo ordinário contra CC, DD, Lda, Banco EE S.A. como sucessor de Banco FF S.A., Banco GG S.A. e HH, pedindo a condenação de todos os Réus a reconhecer o seu direito de propriedade e posse sobre o imóvel identificado  no art. 1.º da petição inicial; e a ver anulada a venda do mesmo prédio que teve lugar no dia 20/09/2000, nos autos de execução sumária, que sob o n.º 219/94 penderam pelo 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Rio Maior.

Alegam, para tanto, e em resumo:

Que são donos e proprietários de determinado prédio urbano inscrito na matriz predial respectiva da freguesia da ..., do concelho de Alcobaça, cuja posse lhes foi transmitida por contrato promessa de compra e venda outorgado em 8 de Junho de 1974 com a então proprietária II, a quem pagaram a totalidade do preço acordado para o negócio; que até àquela data de 8 de Junho de 1974, por si e antepossuidores, sempre a dita II esteve na posse, pública, pacífica e ininterrupta, do imóvel, agindo como sua dona e com essa convicção, nele tendo inclusivamente implantado uma casa de habitação, hoje em ruínas; a partir da data em que celebraram o dito contrato promessa prosseguiram os AA tal conduta possessória, ininterruptamente, à vista de todos, também na convicção de exercerem um direito próprio, pelo que, “se outro título não existisse”, adquiriram o direito de propriedade sobre o prédio por usucapião, nos termos do art.º 1287 do CC; sucede, porém, que em execução sumária movida no Tribunal Judicial de Rio Maior pelo 3.º R. como exequente contra a 1.ª Ré como executada, em que foram credores reclamantes os 4.º e 5.º Réus, a 2.ª Ré adquiriu o dito imóvel por arrematação em hasta pública, obrigando os AA. a propor a competente acção de reivindicação para se verem restituídos ao seu legítimo direito de propriedade.

Citados apenas os Réus HH, Banco GG S.A. e Banco EE S.A. contestaram.

O primeiro excepcionou o caso julgado decorrente do julgamento definitivo e transitado operado nos embargos de terceiro oportunamente deduzidos na execução sumária em que o imóvel reivindicado pelos AA. foi vendido; e impugnou a aquisição derivada e os actos de posse do imóvel que estes invocam, concluindo pela procedência da excepção e improcedência da acção.

 

O segundo aduziu que, além de desconhecer os actos de posse invocados pelos AA., não se verificou inversão do título respectivo, pelo que aquela posse sempre foi em nome alheio, não podendo, por isso, conduzir à usucapião; que não tendo sido objecto de registo, a suposta aquisição pelos AA. sempre estaria arredada pela prioridade do registo da penhora que entretanto veio a ser lavrado.

Termina igualmente com a improcedência da acção.

Por último, contestou ainda o Réu Banco EE S.A., excepcionando o caso julgado formado pela decisão transitada proferida nos embargos de terceiro opostos pelos AA. na execução supra aludida; e, defendendo-se agora por impugnação quanto aos actos de posse que os AA. dizem haver praticado, afirma que estes nunca adquiriram por qualquer forma o imóvel em causa. Em consonância remata com a procedência da excepção de caso julgado ou, assim não se entendendo, com a improcedência da acção.

 

Os AA. replicaram sem, todavia, modificar o pedido e causa de pedir iniciais.

No despacho saneador foi dirimida e julgada improcedente a excepção do caso julgado.

Irresignado, desta decisão interpôs recurso o Réu BEE SA, recurso admitido como agravo, a subir com o primeiro que houvesse de subir imediatamente, com efeito meramente devolutivo.

A final foi a acção julgada totalmente improcedente e, em função disso, todos os Réus absolvidos dos pedidos.

 

Inconformados, desta sentença interpuseram novamente recurso os Autores, recurso este admitido como de apelação, com subida imediata, nos autos e efeito meramente devolutivo.   

O Tribunal da Relação de Coimbra decidiu da seguinte forma:

«Pelo exposto, acordam:

A – Conceder provimento ao agravo e, em função disso, julgar procedente a excepção de caso julgado e absolver todos os Réus da instância, nos termos conjugados os art.°s 494, al.ª i) e 493, n.°s l e 2 do CPC;

B – Julgar prejudicado o conhecimento da apelação».

Inconformados os Autores recorrem de revista, apresentando as conclusões exaradas a fls. 773 a 781, e que aqui se consideram integralmente reproduzidas.

         Sabido que, salvo as questões de conhecimento oficioso, o objecto do recurso é balizado pelas conclusões da Recorrente, as questões a decidir são as seguintes:

1 - Nulidade processual prevista no art. 201.º do CPC, por violação do direito ao contraditório previsto no art. 3.º do CPC;

2 - Nulidade do acórdão recorrido, nos termos das alíneas b), c) e d) do art. 668.º do CPC;

3 - Excepção peremptória do caso julgado;  

4 - Alteração da matéria de facto e das respostas dadas aos quesitos n.ºs 1 a 4, 7 e 9 a 17, ou, em alternativa, o reenvio do processo para o tribunal recorrido.

5 - Violação dos princípios constitucionais da igualdade e do acesso à justiça (arts 13.º e 20.º e 202.º, n.º 2 da CRP).

 

II - Fundamentação de facto

São os seguintes os factos dados como provados em 1ª instância:

1. No âmbito da execução sumária que, sob o n.º 219/94, correu termos no 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Rio Maior, em que é executada a 1.ª Ré CC, foi nomeado à penhora o seguinte prédio: - Prédio urbano sito em ..., freguesia de ..., concelho de Alcobaça, composto de rés-do-chão para habitação, com quatro divisões, com a superfície coberta de 57 m2, dependência com 42 m2 e quintal e logradouro com 800 m2, a confrontar do Norte com JJ, do Sul com KK, do Nascente com caminho Público, e do Poente com LL, inscrito na matriz predial urbana da freguesia da ... sob o artigo n.º 615, e omisso na Conservatória do Registo Predial de Alcobaça [A)].

2. A 2.ª Ré, DD, Lda, adquiriu por arrematação em praça o referido prédio, nos autos de Carta Precatória n.º 225/2000, do 3.º Juízo do Tribunal Judicial de Alcobaça, extraída da execução sumária referida em A) [B)].

3. O prédio descrito em A) foi nomeado à penhora no âmbito da identificada execução sumária pelo 3.º Réu Banco FF, SA [C)].

4. Tendo os 4.º e 5.º Réus, Banco GG, SA e HH, reclamado créditos na referida execução sumária [D)].

5. A habitação referida em A) encontra-se em ruínas desde data não apurada [3.º].

            III – Fundamentação de direito

            1) e 2) Nulidade processual por violação do princípio do contraditório (arts 3.º e 201.º do CPC) e nulidades do acórdão recorrido nos termos das alíneas b), c) e d) do n.º 1 do art. 668.º do CPC

            O acórdão recorrido concedeu provimento ao agravo intentado pelo Réu Banco EE, julgando procedente a excepção de caso julgado e considerando prejudicado, em consequência, o conhecimento da apelação interposta pelos autores.

            A questão do agravo prende-se com o problema de saber se com a decisão que julgou improcedentes os embargos de terceiro deduzidos pelos agora autores, na execução sumária para pagamento de quantia certa que no Tribunal Judicial de Rio Maior o então exequente Banco FF, S.A., hoje Banco EE, S.A., moveu à aqui Ré, CC, se formou caso julgado material. Este, como excepção dilatória, obstaria à prolação da decisão de mérito na presente acção, determinando a correspondente absolvição dos Réus da instância.

            Entendeu o acórdão recorrido que se verificava entre a decisão proferida nos embargos de terceiro, já transitada, e a presente acção, identidade de partes, de causa de pedir e de pedido, declarando a procedência da excepção de caso julgado material e não conhecendo do mérito da apelação.

No recurso de revista, alegam os recorrentes que o facto de o tribunal recorrido ter declarado a procedência da excepção de caso julgado e de não ter conhecido das questões colocadas na apelação constitui uma decisão surpresa susceptível de gerar uma nulidade processual por violação do direito ao contraditório (arts 3.º e 201.º do CPC) e nulidades do acórdão recorrido por falta de fundamentação, oposição entre os fundamentos e a decisão, bem como por omissão e excesso de pronúncia (alíneas b), c) e d) do art. 668.º do CPC).

Vejamos:

1. Nos termos do art. 201.º, n.º 1 do CPC, a prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.

Segundo o art. 3.º, n.º 3 do CPC, «O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo casos de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem».

 Os recorrentes invocam ter sido violado o princípio do contraditório, na vertente da proibição de decisões surpresa.

Deve esclarecer-se, em primeiro lugar, que se tem entendido que o art. 3.º do CPC não introduz no nosso sistema o instituto da proibição de decisões surpresa tal como foi configurado na Alemanha, país donde dimanou e tem longo historial, verificando-se importantes diferenças de regime entre o Código de Processo Civil português e o alemão.

O direito ao contraditório (Rechtliches Gehör), no direito alemão constitui um direito fundamental, baseado na dignidade da personalidade humana[1], e está consagrado no artigo 103.º, I, da Constituição Alemã, onde se afirma: «Perante o tribunal todos têm direito a ser ouvidos».

Este princípio constitucional tem seguimento nos §§139, n.º 2 e 278, n.º 3 da Zivilprozessordnung (Código de Processo Civil alemão), deles resultando que o legislador germânico confere ao direito ao contraditório uma dimensão que vai muito para além do que comporta, mesmo em interpretação extensiva, a lei portuguesa, até porque entre nós não existe preceito correspondente ao §139 da ZPO (cf. acórdão deste Supremo Tribunal, de 04-06-2009, processo n.º 09B0523, relatado pelo Conselheiro João Bernardo).

            A doutrina aceita, contudo, o princípio da proibição das decisões surpresa, enquanto proibição de decisão baseada em fundamento que não tenha sido previamente considerado pelas partes, entendendo que esta vertente do direito ao contraditório tem fundamentalmente aplicação às questões de conhecimento oficioso que as partes não tenham suscitado[2]. Neste sentido, antes de decidir com base em questão (de direito material ou de direito processual) de conhecimento oficioso que as partes não tenham considerado, o juiz deve convidá-las a sobre ela se pronunciarem, seja qual for a fase do processo em que tal ocorra.

Como refere Lebre de Freitas, do art. 3.º, n.ºs 3 e 4 do CPC resulta uma concepção moderna e mais ampla do princípio do contraditório, com origem na garantia constitucional do rechtilches Gehör germânico, entendida como uma garantia de participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objecto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão[3]. «O escopo principal do princípio do contraditório deixou assim de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à actuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo de direito de incidir activamente no desenvolvimento e no êxito do processo»[4].

 

Admitimos que se deu um avanço no entendimento do princípio do contraditório, na nossa lei processual, perdendo assim actualidade a concepção restrita do mesmo, segundo a qual o processo consistia numa discussão duma parte contra a outra, com o juiz, acima delas, a decidir. Mais do que uma discussão dialéctica entre as partes, está agora aberto o caminho para que estas “influenciem directamente” a decisão. Mas a mais a nossa lei não chega, pois a estrutura do nosso processo civil não prevê que o tribunal “discuta” com as partes o que quer que seja.

Note-se que, na redacção do preceito proveniente do DL n.º 329-A/95, estabelecia-se que a decisão pelo juiz de questões não suscitadas e debatidas pelas partes devia ser precedida da respectiva audição, quando as partes não tivessem tido a possibilidade de, “agindo com a diligência devida”, sobre elas se terem pronunciado durante o processo. Já na redacção do mesmo preceito legal, estabelecida pelo DL n.º 180/96 (e que se manteve nas reformas de 2007 e de 2013), foi alterada aquela formulação legal, passando a dispensar-se a audição prévia das partes sobre a questão nova suscitada pelo juiz na decisão, nos casos de “manifesta desnecessidade”. Ou seja, no regime de 1996, apela-se à necessidade ou utilidade da audição complementar das partes, dispensando-a quando tal audição se configurar como acto inútil[5].

O legislador, perante os princípios gerais que enformam o nosso Código de Processo Civil, não quis aliviar as partes de usarem a diligência devida para preverem as questões que vêm a ser, ou podem vir a ser, importantes para a decisão., residindo o cerne deste problema em saber se as partes tiveram, ou não, oportunidade processual para alegar quanto àquela questão e se a questão era ou não previsível para uma parte de diligência média.

Como esclarece Lopes do Rego, «a audição excepcional e complementar das partes, fora dos momentos processuais normalmente idóneos para produzir alegações de direito, só deverá ter lugar quando se trate de apreciar questões jurídicas susceptíveis de se repercutirem, de forma relevante e inovatória, no conteúdo da decisão e quando não for exigível que a parte interessada a houvesse perspectivado durante o processo, tomando oportunamente posição sobre ela»[6].

 

Esta orientação tem sido assumida por este Supremo Tribunal de Justiça (acórdãos de 16.1.2007, Agravo n.º 3294/06 e de 11.11.2008, Revista n.º 11.11.2008) e pelo STA, no acórdão de 23.1.2008, processo 0574/07: “O princípio do contraditório, na vertente que proíbe a decisão surpresa, não impõe ao tribunal de recurso que, antes de decidir questão proposta pelo recorrente, o alerte para a eventualidade de o fazer com base num quadro normativo distinto do por si invocado e até então não referido no processo”.

No presente caso, o facto de o Tribunal da Relação de Coimbra ter considerado procedente o agravo intentado pelo Banco e ter declarado a procedência da excepção de caso julgado não constitui uma decisão surpresa, pois esta questão já havia sido discutida no tribunal de 1.ª instância, conforme resulta dos articulados das partes e do despacho saneador, tendo os Recorrentes, noutros momentos processuais, nomeadamente na réplica, pugnado pela improcedência da excepção de caso julgado, bem como na alegação do recurso de apelação, em que reproduziram os argumentos invocados na réplica. Não constitui, assim, uma decisão surpresa que o Tribunal da Relação de Coimbra tenha revogado o despacho saneador que declarou a improcedência da excepção de caso julgado na sequência de recurso de agravo intentado pelo Banco, tanto mais que os autores foram notificados destas alegações conforme fls. 410, a fim de apresentarem contra-alegações, o que não fizeram.  

A questão da excepção dilatória de caso julgado era o objecto do agravo, não podendo os recorrentes deixar de antever a hipótese de o caso ser decidido com base nesta excepção, que já tinha sido anteriormente discutida e em relação à qual os autores tiveram oportunidade processual para se pronunciarem.

Sendo assim, não se verifica qualquer violação do direito ao contraditório nem qualquer nulidade processual, pelo que improcedem as conclusões n.ºs 14 a 21.

2. Se o objecto da decisão transitada for idêntico ao do processo subsequente, isto é, se ambas as acções possuírem a mesma causa de pedir e nelas for formulado o mesmo pedido, o caso julgado vale, no processo posterior, como excepção de caso julgado (arts 497.º, n.º1 in fine, e 498.º, n.ºs 3 e 4 do CPC).

            Esta excepção tem como finalidade evitar que o tribunal da acção posterior seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir a decisão transitada (art. 497.º, n.º 2 do CPC). Ou seja, esta excepção visa impedir que o tribunal incorra quer numa contradição com a decisão já transitada, quer numa repetição daquela decisão.

            Em coerência com a dupla proibição de contradição e de repetição, o tribunal da acção posterior deve abster-se de qualquer pronúncia sobre o mérito[7]. Esta abstenção de pronúncia sobre o mérito é, por isso, a única coerente com a dupla função da excepção de caso julgado.

            Os recorrentes, na apelação, pediram ao Tribunal da Relação de Coimbra a alteração da matéria de facto, ao abrigo do art. 712.º do CPC, com base na reapreciação da prova testemunhal e do depoimento de parte da Ré CC (executada), questão sobre a qual o tribunal recorrido não se pronunciou por entender que se verificava a excepção de caso julgado.

            Entende o recorrente que estamos perante uma nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia, com base na alínea d) do art. 668.º do CPC, por não o tribunal ter conhecido das questões colocadas na apelação.

           

            Mas não tem razão.

Tendo o acórdão recorrido decidido que se verifica, no caso sub iudice, a excepção de caso julgado, não podia, em coerência, tomar conhecimento das questões colocadas pelo recorrente na apelação. Esta solução é aquela que é imposta pelo funcionamento do instituto do caso julgado material.

Em consequência, não se verifica qualquer nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia, nos termos da alínea d), 1.ª parte do art. 668.º do CPC, nem tão pouco uma nulidade por excesso de pronúncia (art. 668.º, n.º1, al. d), 2.ª parte), pois a questão do caso julgado material é de conhecimento oficioso e já tinha sido debatida pelas partes nos articulados, como vimos.

Também não se verifica, qualquer nulidade por falta de especificação dos motivos de facto e de direito, nem por oposição entre os fundamentos e a decisão, nos termos das alíneas b) e c) do art. 668.º do CPC.

A doutrina e a jurisprudência têm entendido que esta nulidade só se verifica em casos extremos de ausência de fundamentação (cf. acórdão deste Supremo Tribunal de justiça, de 15-12-2011, processo n.º 2/08.9TTLMG.P1S1).

Como refere Teixeira de Sousa, «esta causa de nulidade verifica-se quando o tribunal julga procedente ou improcedente um pedido (e, por isso, não comete, nesse âmbito, qualquer omissão de pronúncia), mas não especifica quais os fundamentos de facto ou de direito que foram relevantes para essa decisão [8].  

E acrescenta o mesmo autor: «O dever de fundamentação restringe-se às decisões proferidas sobre um pedido controvertido ou sobre uma dúvida suscitada no processo (...) e apenas a ausência de qualquer fundamentação conduz à nulidade da decisão (...); a fundamentação insuficiente ou deficiente não constitui causa de nulidade da decisão, embora justifique a sua impugnação mediante recurso, se este for admissível»[9].

No mesmo sentido, diz o Conselheiro Rodrigues Bastos, que “a falta de motivação a que alude a alínea b) do n.º 1 é a total omissão dos fundamentos de facto ou dos fundamentos de direito em que assenta a decisão; uma especificação dessa matéria apenas incompleta ou deficiente não afecta o valor legal da sentença”[10].

E como advertia Alberto dos Reis “há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade”[11].

 

            Face à doutrina exposta, o acórdão recorrido não padece de qualquer falta de fundamentação, de facto ou de direito, nem sequer de qualquer deficiência da mesma ou contradição entre os fundamentos e a decisão. Antes pelo contrário, o tribunal desenvolveu a questão do caso julgado material de forma rigorosa e pormenorizada, explicando o significado da lei (arts 497.º e 498.º do CPC) e dos conceitos por ela utilizados, à luz da doutrina, procedendo à aplicação dos conceitos ao caso concreto, tendo em conta todos os elementos do processo que foram analisados com exaustão.

            Improcedem, portanto, as conclusões dos recorrentes n.ºs 23 e 24, 73 a 78 e 84 a 86.

            3) Excepção de caso julgado material

            No recurso de agravo, o Banco exequente invocou a excepção de caso julgado material, alegando que a presente acção incide sobre objecto já decidido por decisão transitada em julgado proferida nos embargos de terceiro.

            A excepção de caso julgado constitui uma excepção dilatória que se traduz num pressuposto processual negativo cuja função consiste em impedir o prosseguimento do processo com o objectivo de evitar que o tribunal se veja na contingência de proferir decisão de mérito que contrarie ou repita uma outra, anterior e definitiva.

           

Colocada a questão ao tribunal de 1.ª instância, decidiu este, no despacho saneador (fls. 320 a 324), contra o qual o Banco exequente interpôs recurso de agravo, que não havia entre os embargos de terceiro e a presente acção de reivindicação e anulação de venda judicial identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir.

            Relativamente às partes decidiu o despacho saneador que, embora coincidam os autores e o réu, Banco EE, SA, não assumiram a qualidade de partes, nos embargos, os demais réus da acção de reivindicação: CC, DD, Lda, Banco GG, S. A. e HH.

            Quanto ao pedido e causa de pedir entendeu o citado despacho que, nos embargos de terceiro, os autores peticionaram que fossem dadas sem efeito a penhora e a arrematação e alegaram, para fundamentar o pedido, que o prédio urbano que corresponde ao descrito no artigo 1.º da petição inicial, que havia sido penhorado e que se encontrava em fase de venda nos autos de execução, lhes pertence, por o terem adquirido a II em 1974, sustentando que sobre o mesmo praticaram actos materiais de posse. Já na presente acção, os autores peticionam a condenação dos réus a reconhecerem o seu direito de propriedade sobre o dito imóvel e a anulação da venda celebrada no dia 20-09-2000 no Tribunal Judicial de Alcobaça, através da qual o prédio foi vendido à 2.ª ré “DD, Lda”. Enquanto, por via dos embargos, os autores pretenderam obstar à penhora e arrematação do prédio em causa, alegando serem os legítimos possuidores do mesmo e a violação do direito de posse sobre o imóvel, através da presente acção os autores pretendem ver reconhecido o direito de propriedade sobre o prédio em causa.

            Em sentido diferente, o acórdão recorrido entendeu que se verificava a excepção de caso julgado material e revogou o despacho saneador, entendendo que se verificava entre os embargos de terceiro e a presente acção identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir. Afirma o Tribunal da Relação de Coimbra que o enquadramento jurídico-processual do caso dos autos, uma vez que os embargos de terceiro foram deduzidos em Março de 1997, era o da reforma processual operada pelo DL n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, o qual inseria os embargos de terceiro no modelo de um incidente de instância, dirigido não apenas a tutelar a posse, mas também qualquer direito incompatível com uma diligência judicialmente ordenada, passando a ser admissível, pela via incidental do art. 351.º e seguintes do CPC, a sua dedução pelo proprietário, mesmo que não demonstrasse ter a posse efectiva.

            Continua o acórdão recorrido, apresentando a seguinte fundamentação para o decidido:

«O caso julgado cobre, por conseguinte, a causa de pedir concretamente aduzida na acção anterior e também aquela que virtualmente o poderia ter sido e por qualquer motivo o não foi. 

(…)

Não releva aqui a identidade física ou nominal mas o interesse jurídico que a parte concretamente actuou e actua no processo. Por fim, o pedido deve ser encarado na essência da pretensão, ou seja, no direito que na mesma é objecto de tutela implícita ou explícita, e não nas simples consequências que encontrem a formulação no texto do articulado.

Por virtude desta necessária referência substancial, há sempre que avaliar se o direito que esteve subjacente ou implícito na declaração resultante do julgamento anteriormente prolatado na primeira causa volta a ser alvo de apreciação na segunda.

Isto posto, olhemos agora para a factualidade realmente aduzida naqueles embargos, factualidade de que nos dá conta a certidão de fls. 173 e seguintes.

Com efeito, como deflui da petição inicial, os então embargantes de terceiro AA e BB, não se confinaram à mera alegação de actos consubstanciadores do corpus e animus de uma posse de ano e dia; foram bem além disso, pois invocaram em seu benefício a usucapião alicerçada em tal posse, como causa de aquisição originária do direito de propriedade. É o que se pode constatar dos arts 5.º a 8.º daquele articulado (…).

Face a este arrazoado é insofismável a conclusão de que os então embargantes e agora Autores jogaram a sorte dos embargos em dois tabuleiros: posse e propriedade.

Como é compreensível, só avançaram com a posse como causa de pedir a se para a hipótese – que, natural e obviamente, não quiseram excluir – de não lograrem arrumar o êxito dos embargos mediante a demonstração de uma posse usucapível e, por esse caminho, da aquisição originária do direito mais pujante, isto é, da propriedade.

Destas considerações decorre, de um modo que podemos considerar de inequívoco, que, ao contrário do que se acha plasmado na decisão de 1ª instância ora impugnada, os então embargantes da penhora efectuada na execução acima mencionada, também quiseram fazer aí valer o seu direito de propriedade fundado em usucapião sobre o mesmo imóvel que agora reivindicam.

Como se pode constatar da aludida certidão, esta causa de aquisição originária – a usucapião – foi por isso expressamente apreciada na decisão de mérito ali proferida.

Usucapião e aquisição originária que os AA. retomam como causa de pedir na vertente acção, pois que não se coíbem de reproduzir integralmente e até ipsis verbis nos arts 12.º a 15.º da respectiva petição inicial toda a factualidade que haviam vertido no dito requerimento inicial de embargos de terceiro.

Sendo a causa de pedir nas acções reais o facto jurídico de que emerge o direito real a tutelar, nenhuma dúvida pode subsistir sobre a repetição desse mesmo facto jurídico. 

E sobre o pedido também não se nos é dado vislumbrar a diversidade que é apontada no aresto ora sob censura. É que o núcleo ou a essência da pretensão dos embargos de terceiro é a declaração e demonstração de um direito incompatível com a diligência, sendo os pedidos de levantamento da penhora e anulação da venda que se tenha realizado no processo executivo simples decorrências desse reconhecimento e declaração.

Tanto nos embargos de terceiro como na presente acção os agora Autores querem ver declarado o seu direito de propriedade contra quem representou o interesse executivo. 

Nos embargos de terceiro sobre uma penhora o interesse executivo está circunscrito ao que a lei designa por partes primitivas da execução (art. 357, n.º 1, do CPC), que são notificadas para a contestação, havendo recebimento.

Tendo os AA. então embargantes naufragado nessa prova naquele procedimento incidental, de resto, por decisão há muito transitada em julgado, seria inaceitável e contraditório que o pudessem lograr agora por meio da vertente acção contra as mesmas partes, mesmo que acompanhadas por outras. Com efeito, o despacho recorrido também parece impressionado com a falta de identidade entre as partes em relação às quais se dirimiram os embargos de terceiro e as que aparecem demandadas nos vertentes autos.

É verdade que os agora Autores, anteriores embargantes, demandam agora novos Réus: a compradora na venda judicial DD, Lda, e os credores reclamantes Banco GG, SA e HH. Trata-se, porém, e salvo respeito devido, de um puro artifício processual: por um lado, resulta das certidões do processo executivo juntas a fls. 6 e seguintes e 173 e seguintes que, quando em 20 de Setembro de 2000, a ora Ré DD arremata o prédio em causa já a sentença que julgara os embargos deduzidos pelos AA. se encontrava transitada em julgado desde 18 de Abril desse mesmo ano; por outro lado, os credores reclamantes não representaram então, como não representam agora, um interesse relevante autónomo relativamente ao da parte exequente, aliás, única que interveio e foi chamada a contestar aqueles embargos.

De um ponto de vista substancial estas novas partes inserem-se no mesmo interesse da execução que já obteve vencimento nos embargos formulados pelos AA.

Este interesse da salvaguarda da segurança de quem adquire direitos por via da execução é que justifica a norma do art. 358 do CPC, onde se preceitua que “A sentença de mérito proferida nos embargos constitui, nos termos gerais, caso julgado quanto à existência e titularidade do direito invocado pelo embargante (…)”.

Donde que, na procedência da excepção do caso julgado, o agravo mereça provimento e, por força desse provimento, fique prejudicado o conhecimento da apelação».

            No caso sub iudice, está em causa a excepção dilatória do caso julgado oposta pelo réu, no recurso de agravo, a qual pode ser conhecida oficiosamente pelo juiz.

            O trânsito em julgado imprime à decisão carácter definitivo; uma vez transitada em julgado, a decisão não pode ser alterada. Ao caso julgado está, assim, inerente a ideia de imutabilidade ou de estabilidade.

            Diz-se material o caso julgado, nos termos do art. 671.º do CPC, se a decisão recai sobre o mérito da causa, e, portanto, sobre a relação jurídica substancial.

            O caso julgado material tem força obrigatória dentro do processo e fora dele e por isso não pode ser alterado em qualquer acção nova que porventura se proponha sobre o mesmo objecto, entre as mesmas partes e com fundamento na mesma causa de pedir. A estabilidade ultrapassa as fronteiras do processo e portanto, além da preclusão operada no processo, produz-se a impossibilidade de a decisão ser alterada mesmo noutro processo, com a excepção, para os casos em que o caso julgado se formou em circunstâncias patológicas ou anormais, da possibilidade da sua revogação ou modificação por meio dos recursos extraordinários de revisão (art. 771.º do CPC).

Para que o caso julgado se imponha fora do processo, vinculando o juiz e as partes, é indispensável que concorram os requisitos do art. 498.º, n.º 1 do CPC, isto é, que entre a acção em que se formou o caso julgado e a acção em que se pretende fazer projectar a sua eficácia se verifiquem as três identidades previstas no artigo citado: sujeitos, pedido e causa de pedir.

           

            O art. 498.º do CPC define cada um dos requisitos do caso julgado da seguinte forma:

«1 - Repete-se a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.

2 - Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.

3 - Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.

4 - Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico. Nas acções reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real; nas acções constitutivas e de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido».

Contudo, o princípio segundo o qual o caso julgado só produz efeitos entre as partes não é um princípio rígido.

            A jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, como informa Alberto dos Reis, tem admitido a eficácia do caso julgado em relação a terceiros, desde que estes sejam titulares de relação jurídicas concorrentes ou dependentes[12].

            Relativamente à questão da identidade de sujeitos, consideramos que o facto de, na acção de reivindicação e de anulação da venda judicial, terem sido demandados como réus a executada, a adquirente na venda e os credores reclamantes, não demandados nos embargos de terceiros, deduzidos antes desta venda, não significa que não exista o requisito da identidade de sujeitos. A lei coloca este requisito no plano da qualidade jurídica ou da identidade do interesse jurídico, não relevando aqui a identidade física ou nominal, mas o interesse jurídico que a parte actuou no processo. Ora, o interesse jurídico feito valer pelos réus, na acção de reivindicação, é exactamente o mesmo interesse jurídico feito valer pelo Banco EE, S. A. nos embargos de terceiro. Os réus na acção de reivindicação são titulares de relações jurídicas dependentes da relação jurídica de que é titular o Banco EE, réu na presente acção e nos embargos, o qual, tendo procedido à penhora do bem, iniciou um processo ou acto-procedimento que termina com a venda judicial. Neste sentido, os réus na acção de reivindicação são titulares de interesses conexos ou dependentes daqueles que o caso julgado definiu, estando sujeitos ou beneficiando da eficácia do caso julgado proferido nos embargos de terceiro, no qual não se considerou provada nem a posse nem os elementos constitutivos do direito de propriedade – a aquisição derivada por compra ou a aquisição originária por usucapião – por falta de prova dos factos alegados na petição.

 

Relativamente à identidade do pedido e da causa de pedir, a lei define-os da seguinte forma:

Nas acções reais, a causa de pedir é o facto jurídico de que emerge o direito real a tutelar, por exemplo, o contrato de compra e venda ou a usucapião. Mas a causa de pedir não consiste na categoria legal invocada ou no facto jurídico abstracto configurado pela lei, mas, antes, nos concretos facto da vida a que se virá a reconhecer, ou não, a força jurídica bastante e adequada para desencadear os efeitos pretendidos pelo autor.

O pedido consiste no efeito jurídico pretendido pelo autor (ou pelo réu através da reconvenção), por exemplo, o reconhecimento do direito de propriedade.

Mas não é somente sobre a pretensão do autor que se forma o caso julgado. A lei também pretende que a solução dada à pretensão do autor, em função da causa de pedir em que tal pretensão se alicerça, seja respeitada pela força do caso julgado.

Na jurisprudência deste Supremo Tribunal, entende-se que não é apenas a conclusão ou dispositivo da sentença que tem força de caso julgado, aceitando-se como mais equilibrado um critério ecléctico, que, sem tornar extensiva a eficácia do caso julgado a todos os motivos objectivos da sentença, reconhece, todavia, essa autoridade à decisão daquelas questões preliminares que forem antecedente lógico indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado, em homenagem à economia processual, ao prestígio das instituições judiciárias quanto à coerência das decisões que proferem e, finalmente, à estabilidade e certeza das relações jurídicas[13].

No mesmo sentido se pronunciou Teixeira de Sousa, afirmando que «Não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge esses fundamentos enquanto pressuposto daquela decisão»[14].

O art. 498.º do CPC coloca os dois requisitos da identidade objectiva – pedido e causa de pedir – precisamente no mesmo plano, sem qualquer diferença de projecção e alcance[15]. Factos e pedido são portanto sempre partes do objecto do processo de igual valor e importância. É esta a ideia central defendida pela doutrina e pela jurisprudência alemãs, e aceite por Castro Mendes, segundo a qual «o caso julgado é o raciocínio como um todo e não cada um dos seus elementos»[16]

O objecto do processo é necessariamente dual, pois sem causa de pedir não há individualização da pretensão processual e sem pedido não existe requisição de tutela jurisdicional para a pretensão processual individualizada[17].

«Entre a causa de pedir e a pretensão processual existe um nexo de individualização caracterizado pela reciprocidade: a causa de pedir individualiza a pretensão delimitada e a pretensão delimitada individualiza a causa de pedir. Esta reciprocidade permite determinar a causa de pedir em razão da pretensão processual individualizada e a pretensão processual individualizada em razão da causa de pedir, estabelecendo-se entre ambas uma relação de implicação mútua» [18].

Conforme afirma Antunes Varela «É a resposta dada na sentença à pretensão do autor, delimitada em função da causa de pedir, que a lei pretende seja respeitada através da força e autoridade do caso julgado»[19] e «a eficácia do caso julgado, como se depreende do art. 498.º, apenas cobre a decisão contida na parte final da sentença (art. 659.º, n.º 2, in fine, ou seja, a resposta injuntiva do tribunal à pretensão do autor ou do réu, concretizada no pedido ou na reconvenção e limitada através da respectiva causa de pedir»[20].

Apesar de os pedidos serem formalmente diferentes - oposição à penhora e arrematação do prédio em causa (embargos de terceiro) e reconhecimento do direito de propriedade e anulação da venda judicial (acção de reivindicação) – os factos em que os autores alicerçaram a sua causa de pedir foram os mesmos: a posse e a aquisição originária por usucapião.

Os autores invocaram, nos embargos de terceiro, conforme resulta de fls. 174 e seguintes, não só a posse, mas também o direito de propriedade, adquirido por contrato de compra e venda cuja escritura não foi possível encontrar ou por usucapião, por si e antepossuidores há mais de 20 ou 50 anos.  

Na presente acção, conforme se pode verificar pela petição inicial, fls. 2 a 5, fundamentam o seu pedido de reconhecimento do direito de propriedade na aquisição originária por usucapião, por si e antepossuidores, com base no art. 1287.º e seguintes do Código Civil.

Como afirma o acórdão recorrido, «o pedido deve ser encarado na essência da pretensão, ou seja, no direito que na mesma é objecto de tutela implícita ou explícita, e não nas simples consequências que encontrem a formulação no texto do articulado. Por virtude desta necessária referência substancial, há sempre que avaliar se o direito que esteve subjacente ou implícito na declaração resultante do julgamento anteriormente prolatado na primeira causa volta a ser alvo de apreciação na segunda».

Ora, com efeito, os embargantes não se limitaram à mera alegação de actos consubstanciadores de corpus e animus de uma posse de ano e dia, mas invocaram em seu benefício a usucapião, como causa de aquisição originária do direito de propriedade, a qual foi expressamente apreciada e indeferida por insuficiência de prova, nos embargos de terceiro.

 

Na presente acção de reivindicação, os Autores retomam como causa de pedir a aquisição originária por usucapião, reproduzindo a este respeito integralmente, nos artigos 12.º a 15.º da petição inicial, toda a factualidade que haviam alegado no requerimento inicial de embargos de terceiro, nos artigos 5.º a 8.º.

Sendo assim, não há dúvida de que a causa de pedir enquanto facto jurídico de que emerge o direito real é a mesma nos dois processos. E relativamente ao pedido, também não se vislumbra qualquer diversidade.

«Deve atender-se, para o efeito, ao núcleo ou essência da pretensão dos embargos de terceiro, a qual é a declaração e demonstração de um direito incompatível com a diligência, constituindo os pedidos de levantamento de penhora e de anulação da venda simples decorrências desse reconhecimento e declaração», como bem entendeu o acórdão recorrido. Na perspectiva substancial, que nos serve de referência, tanto nos embargos de terceiro como na presente acção, o Autores querem ver declarado o seu direito de propriedade contra quem representou o interesse executivo. Ou seja, no pedido expresso nos embargos de terceiro – levantamento da penhora e da arrematação em hasta pública – está contido um pedido implícito de reconhecimento do direito de propriedade, conforme resulta da causa de pedir invocada.

Os autores, na decisão proferida nos embargos de terceiro (fls. 178/182), já transitada em julgado, não foram judicialmente reconhecidos nem como possuidores nem como proprietários, por usucapião ou por compra e venda. Em relação a estes fundamentos, a decisão faz caso julgado material e impede nova pronúncia sobre eles.

            Em consequência do exposto, não tendo os embargantes provado o seu direito de propriedade, por usucapião, no procedimento incidental, por decisão transitada em julgado, seria contraditório que o pudessem, agora, fazer, na acção de reivindicação, contra as mesmas partes, acompanhadas por outras que não representam um interesse relevante autónomo relativamente ao do Banco exequente, que interveio nos embargos.

De um ponto de vista substancial, estas novas partes inserem-se no mesmo interesse da execução que já obteve vencimento nos embargos formulados pelos Autores. Seria um formalismo ou artifício inaceitável e contrário à segurança jurídica não considerar preenchido o requisito da identidade das partes, do pedido e da causa de pedir e admitir que fosse discutida novamente, nesta acção, a aquisição por usucapião, com base nos mesmos factos.

O âmbito do caso julgado delimita-se pelo motivo determinante da decisão, ou seja, com esta causa de pedir – posse e usucapião – não pode discutir-se novamente a decisão tomada quanto ao direito de propriedade.

           

Este Supremo Tribunal tem assumido uma posição de flexibilidade na interpretação dos requisitos legais do caso julgado, pronunciando-se, mesmo nos casos em que estes requisitos não estão formalmente verificados, no sentido da verificação da excepção de caso julgado material:

            «O alcance e a autoridade do caso julgado não se podem confinar aos rígidos contornos definidos nos arts. 497.º e segs. do CPC para a excepção do caso julgado, antes se devendo tornar extensivos a situações em que, não obstante a ausência formal da identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir, o fundamento e razão de ser daquela figura jurídica estejam, notoriamente, presentes» (acórdão de 15-01-2013, processo n.º 816/09.2TBAGD.C1.S1, relatado pelo Conselheiro Fernandes do Vale).

            Sendo assim, improcedem as conclusões n.º 1 a 13 da alegação de recurso dos Recorrentes.

            4) Alteração da matéria de facto com base em reapreciação da prova testemunhal e depoimento de parte ou, em alternativa, a baixa do processo ao tribunal recorrido

            Decidida a procedência da excepção de caso julgado material, prejudicada fica o conhecimento desta questão. Sempre se dirá, todavia, que independentemente da resposta à questão do caso julgado material, o Supremo Tribunal de Justiça não tem competência para alterar matéria de facto que foi fixada através de meios de prova de livre apreciação, como o caso da prova testemunhal e do depoimento de parte.

Na apreciação do recurso de revista, o Supremo Tribunal de Justiça só conhece de questões de direito. Não controla a matéria de facto nem revoga por erro no seu apuramento; compete-lhe antes fiscalizar a aplicação do direito aos factos seleccionados pelos tribunais de primeira e segunda instâncias (arts 722.º, n.º3, e 729.º, n.ºs 1 e 2 do CPC). Daí dizer-se que o Supremo Tribunal de Justiça é um tribunal de revista e não um tribunal de 3.ª instância.

O Supremo não pode, assim, controlar a prudente convicção das instâncias sobre a prova realizada pelas partes. Está-lhe, pois, vedado intervir onde prevaleça o princípio da livre apreciação da prova estabelecido no art. 655.º, n.º1 CPC, exorbitando manifestamente da função que a lei lhe atribui a apreciação do maior ou menor valor concretamente atribuído à prova testemunhal (cf. art. 396.º Código Civil).

 O mesmo se diga em relação ao pedido de que o processo seja reenviado ao tribunal recorrido para reapreciação da matéria de facto, de acordo com o art. 729.º, n.º 3 do CPC, o qual sempre improcederia, pois não estamos perante contradição da matéria de facto nem perante a insuficiência desta para a fixação do regime jurídico a aplicar.

Improcedem, assim, as conclusões n.º 25 a 72 da alegação de recurso dos Recorrentes.

5) Violação dos princípios constitucionais da igualdade e do acesso à justiça (arts 13.º e 20.º, 202.º, n.º 2 e 204.º da CRP).

O direito à tutela jurisdicional efectiva previsto no art. 20.º, n.º 1 da CRP inclui um dever de exclusividade, que impõe aos tribunais, no âmbito da justiça cível, a pronúncia sobre todas as pretensões deduzidas pelas partes e a resolução de todos os pontos litigiosos que lhe sejam submetidos[21].

Nos termos do art. 20.º, n.º 4 da CRP, o direito de acção ou direito de agir em juízo terá de efectivar-se através de um processo equitativo. 

«Todo o processo – desde o momento de impulso de acção até ao momento da execução – deve estar informado pelo princípio da equitividade, através da exigência do processo equitativo (…). O due process positivado na Constituição portuguesa deve entender-se num sentido amplo, não só como um processo justo na sua conformação legislativa (exigência de um procedimento legislativo devido na conformação do processo), mas também como um processo materialmente informado pelos princípios materiais da justiça nos vários momentos processuais. (…) O significado básico da exigência de um processo equitativo é o da conformação do processo de forma materialmente adequada a uma tutela judicial efectiva»[22].

O direito à tutela jurisdicional apresenta várias vertentes: direito à igualdade de armas; direito a prazos razoáveis de acção ou de recurso; direito à fundamentação das decisões; direito à decisão em tempo razoável; direito ao conhecimento dos dados processuais; direito à prova; direito de defesa, direito a um processo orientado para a justiça material, sem demasiadas peias formalísticas[23].

Relevante para o caso sub judice, é a vertente que se refere ao direito de defesa traduzido na possibilidade de cada uma das partes invocar as razões de facto e de direito, oferecer provas, controlar as provas da outra parte, pronunciar-se sobre o valor e resultado destas provas.

Ora, este direito foi exercido pela recorrente, quer nos embargos de terceiro, quer na presente acção, tendo sido a sua pretensão quanto à aquisição da propriedade do bem apreciada por um tribunal imparcial, com todas as garantias de um processo equitativo.

A exigência de um processo equitativo impõe que as normas processuais proporcionem aos interessados meios efectivos de defesa dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos e paridade entre as partes na dialéctica que elas protagonizam no processo (acórdão do Tribunal Constitucional n.º 632/99). Um processo equitativo postula a efectividade do direito de defesa no processo, bem como dos princípios do contraditório e da igualdade de armas.

Contudo, o respeito por estes direitos não exclui a possibilidade de o legislador conformar o processo de acordo com regras, cuja inobservância tem por consequência a preclusão de direitos ou a restrição dos poderes cognitivos dos tribunais.

A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem entendido que o legislador ordinário tem competência para delimitar os pressupostos ou requisitos processuais de que depende a efectivação da garantia de acesso aos tribunais[24].

O legislador dispõe, assim, de uma ampla margem de liberdade na concreta modelação do processo, cabendo-lhe, nas soluções que consagra, ponderar os diversos direitos e interesses constitucionalmente protegidos relevantes e, em conformidade, disciplinar o âmbito do processo, a legitimidade, os prazos, os poderes de cognição do tribunal e o processo de execução[25].

Os regimes adjectivos, contudo, devem ser funcionalmente adequados aos fins do processo e ter um fundamento razoável, de justificação objectiva e racional, bem como conformar-se com o princípio da proporcionalidade e da proibição do arbítrio legislativo[26]. Deve entender-se que o legislador está vinculado ao princípio da igualdade (art. 13.º da CRP) e ao princípio da proporcionalidade (art. 18.º, n.º 2 e n.º 3 da CRP), sendo-lhe vedado criar obstáculos ao exercício de direitos das partes, que dificultem ou prejudiquem arbitrariamente ou de forma desproporcionada o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efectiva..

Ora, o instituto do caso julgado material explica-se pela necessidade de segurança jurídica, paz social e de coerência das decisões judiciais, não significando qualquer violação do direito à tutela jurisdicional nem do princípio da igualdade entre as partes. 

No caso concreto, a limitação do poderes cognitivos do Tribunal, impedido de conhecer do mérito relativamente a questões decididas por sentença transitada em julgado, respeita o juízo de proporcionalidade na ponderação de bens ou valores em conflito e não é incompatível com a tutela constitucional do acesso à justiça.

 

Com efeito, a força obrigatória reconhecida ao caso julgado material repousa na necessidade de assegurar estabilidade às relações jurídicas, não permitindo que litígios, entre as mesmas partes e com o mesmo objecto, se repitam indefinidamente, em prejuízo da paz jurídica, que ao Estado, como defensor do interesse público, compete assegurar. Sendo, precisamente, pela imposição, aos litigantes, desse comando jurídico indiscutível – a decisão transitada sobre o mérito da causa – que o Estado prossegue essa finalidade, assegurando o prestígio dos tribunais e garantindo a certeza e segurança jurídicas nas relações interpessoais.

 

Entendemos, assim, ter sido respeitado, na decisão do acórdão recorrido, o princípio da proporcionalidade, nos termos exigidos pela jurisprudência constitucional.     O regime jurídico-processual aplicado pelo acórdão recorrido assenta num fundamento racional, não é excessivo nem demasiado rígido.

A aplicação da excepção dilatória de caso julgado material não constitui um obstáculo arbitrário ou desproporcionado ao direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efectiva. Consiste, pelo contrário, numa garantia de segurança jurídica para a comunidade e de coerência das decisões judiciais, valores contribuem para promover a paz jurídica e social e o respeito dos cidadãos pelos tribunais.

Admitir-se, com base no acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, uma discussão permanente acerca de questões já decididas por sentença transitada em julgado, teria um custo jurídico e social não suportável pelo sistema judicial, promoveria um desrespeito pelos tribunais e aumentaria indefinidamente a litigiosidade.

Por força destes valores sociais e colectivos, restringe-se o acesso à justiça nos casos em que uma determinada questão já foi decidida por sentença transitada em julgado, aceitando-se que, neste contexto, prevaleça a segurança sobre a justiça.

Em consequência, a interpretação dada pelo acórdão recorrido ao instituto do caso julgado material e os efeitos preclusivos da figura sobre o conhecimento do mérito não violam os direitos à tutela judicial efectiva e à defesa, não padecendo a decisão de qualquer inconstitucionalidade.

Não houve, portanto, qualquer violação dos artigos 204.º, 13.º e 20.º e 202, n.º 2 da CRP.

Improcedem, assim, as conclusões n.º 79 a 83 da alegação de recurso dos Recorrentes.

IV – Decisão

Pelo exposto, nega-se a revista e confirma-se o acórdão recorrido.

Custas pelos Recorrentes.

Lisboa, 17 de Junho de 2014

Maria Clara Sottomayor (Relatora)

Sebastião Coutinho Póvoas

Moreira Alves

___________________
[1] Cf. Rosenberg/Schwab/Gottwald, Zivilprozess-recht, 15. Auflage, München, 1983, p. 456.
[2] Cf. Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2008, anotação ao art. 3.º, p. 9.
[3] Cf. Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, Conceito e Princípios Gerais à Luz do Código Revisto, 3.ª edição, Coimbra Editora, 2013, pp. 124-125.
[4] Ibidem, p. 125.
[5] Cf. Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Volume I, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, 2004, p. 33.
[6] Ibidem, p. 33.
[7] Cf. Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, 2.ª edição, Lex, Lisboa, 1997, p. 575.

[8] Cf. Teixeira de Sousa, Estudos sobre o novo processo civil, 2.ª edição, Lisboa, 1997, p. 221.
[9] Ibidem, p. 221.
[10] Cf. Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, vol. III, p. 194.
[11] Cf. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, 3.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2012 (reimpressão), p. 140.
[12] Cf. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume V, 3.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2012, pp. 160-164.
[13] Vide os acórdãos deste Supremo, de 10.07.97 – CJ/STJ – 2.º/165; de 27.04.04 – Proc. 04A1060.dgsi.Net; de 20.05.04 – Proc. 04B281.dgsi.Net; de 13.01.05 – Proc. 04B4365.dgsi.Net; de 05.07.05 – Proc. 05ª008.dgsi.Net; e de 08.03.07 – CJ/STJ – 1-º/98.
[14] Cf. Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, ob. cit., pp.  578-579.
[15] Cf. Castro Mendes, Limites objectivos do caso julgado em processo civil, Edições Ática, 1968, p. 161.
[16] Cf. Schwab, Der Streitgegenstand, p. 148, apud Castro Mendes, Limites objectivos do caso julgado …ob. cit., pp. 161-162. Esta mesma ideia é defendida por Rosenberg/Schwab/Gottwald, Zivilprozess-recht, ob. cit., p. 532.
[17] Cf. Teixeira de Sousa, O objecto da sentença e o caso julgado material (O estudo sobre a funcionalidade processual), BMJ,1983, Abril, n.º 325, p. 105.
[18] Cf. Teixeira de Sousa, O objecto da sentença…ob. cit., p. 106.
[19] Cf. Antunes Varela/ Miguel Bezerra/Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra Editora, 1985, p. 712
[20] Ibidem, p. 714.
[21]Cf. Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 9.ª edição, 2009, p. 37.
[22] Cf. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Artigos 1.º a 107.º, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 415.
[23] Ibidem, pp. 415-416.
[24] Cf. Rui Medeiros, «Anotação ao artigo 20.º da Constituição», in Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I – 2.ª edição, Coimbra Editora, 2010, p. 436.
[25] Ibidem, pp. 438-439.
[26] Neste sentido, vide Lopes do Rego, «Acesso ao direito e aos tribunais», in Estudos sobre a jurisprudência do Tribunal Constitucional, 1993, p. 69.