Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1761/06. 97UPRT.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: SEBASTIÃO PÓVOAS
Descritores: CAUSA DE PEDIR
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
SUBSTANCIAÇÃO.
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 02/02/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
1. No âmbito do recurso de revista a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, quanto à matéria de facto, é muitíssimo limitada, apenas podendo averiguar da observância das regras de direito probatório material (artigo 722.° n. ° 2) ou mandar ampliar aquela decisão (artigo 729.°, n.° 3)
Só à Relação compete censurar as respostas ao questionário ou anular a decisão proferida na 1.ª Instância, através do exercício dos poderes conferidos pelos n.°s 1 e 4 do artigo 712°.
O Supremo Tribunal de Justiça só pode usar da faculdade do n° 3 do artigo 729.º do Código de Processo Civil, perante patente contradição da matéria de facto apurada pelas instâncias ou se a mesma for de tal modo omissa que se revele insuficiente para ulterior subsunção, essencial para a sorte da demanda.

2. Sendo um documento particular da pena do recorrente e cuja autoria (letra e assinatura) não foi impugnada pelo recorrido, tem a força probatória a que se refere o artigo 376.º, n.ºs 1 e 2 do Código Civil, ou seja, os factos nele compreendidos “consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante”, sem prejuízo da indivisibilidade da declaração, nos precisos termos do artigo 360.º.

3. Tal documento apenas faz plena prova da proveniência das declarações nele contidas e de quem as subscreveu valendo, no mais, apenas como declaração confessória.

4. São pressupostos do enriquecimento sem causa a deslocação patrimonial, o ter ocorrido à custa de outrem e a ausência de causa justificativa.

5. O enriquecimento sem causa só pode ser invocado a título subsidiário, sendo que a alegação e prova daqueles pressupostos cumpre ao demandante devendo, “in dubio”, considerar-se que a deslocação patrimonial teve justa causa.

6. A prova da ausência de causa da deslocação patrimonial não se basta com o facto de um dos co-titulares de uma conta conjunta levantar, da totalidade das quantias que se provou terem sido depositadas pelo outro co-titular, se ficaram improvados os motivos porque o fez.

7. O conceito de causa de pedir é delimitado pelos factos jurídicos dos quais procede a pretensão que o demandante formula, cumprindo às partes a alegação desses factos, nos quais o juiz funda a sua decisão, embora possa atender, ainda que “ex officio”, aos instrumentais, que resultem da instrução e da discussão e aos que sejam complemento ou concretização de outros.

8. O juiz está limitado pelo princípio do dispositivo, mas a substanciação (ou consubstanciação) permite-lhe definir livremente o direito aplicável aos factos que lhe é lícito conhecer, buscando e interpretando as normas jurídicas. Tal princípio pode mesmo implicar uma convolação da situação jurídica alegada pelas partes e a sua submissão a diferentes normas, desde que não altere a causa de pedir.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


AA intentou acção, com processo ordinário, contra BB pedindo a sua condenação a pagar-lhe a quantia de 53.288,00 euros, acrescida de juros desde a citação.

Alega, nuclearmente, ter, a convite do Réu, acordado com este constituírem uma sociedade em Portugal destinada à importação e exportação de bens; para início da sociedade transferiu a quantia de 10.433.280$00 da sua conta pessoal para uma conta conjunta com o Réu; que este levantou essa quantia e a sociedade nunca foi constituída.

O Réu contestou e deduziu pedido reconvencional, do qual, oportunamente, o Autor foi absolvido da instância, por procedência da excepção de incompetência internacional.

Na 6.ª Vara Cível da Comarca do Porto a acção foi julgada improcedente e o Réu absolvido do pedido.

O Autor apelou para a Relação de Guimarães que confirmou o julgado.

Inconformado, pede revista, assim concluindo a sua alegação:
- Ao contrário do que é afirmado na douta sentença recorrida, o Réu deve ao Autor a quantia de € 53.288,00 (cinquenta e três mil, duzentos e oitenta e oito euros).
- O documento do Finibanco, datado de 25/06/2001, junto em audiência de julgamento pelo Autor, terá de levar necessariamente a uma resposta diferente à matéria de facto constante dos artigos 1.º a 6.° da Base Instrutória, acima transcritos, que foram incorrectamente julgados pelo tribunal “a quo”.
- Este documento consiste numa autorização de transferência bancária do Recorrente AA, da sua conta pessoal n.° ..., para a conta bancária conjunta com o Réu com o n.° ..., através da qual consta a seguinte declaração “Autorizo que se faça a transferência do valor de 10.433.280$00 para a conta n.° ..., cujo valor será posteriormente transferido para a Conta Empresa (Sociedade Importadora de Cabinda) a abrir proximamente”
- A autorização de transferência dada pelo Recorrente AA, da quantia de 10.433.280$00 para a conta conjunta com o Recorrido n.° ..., foi concedida no pressuposto de ambos virem a constituir em Portugal uma sociedade comercial por quotas (‘a abrir proximamente’), em que seriam sócios o Autor e o Réu, que teria por objecto a importação e a exportação de bens (‘Sociedade importadora de Cabinda’), tendo como objectivo servir para o arranque dos negócios da referida sociedade comercial e para pagar aos fornecedores da empresa, sendo certo também que tal sociedade comercial, nem outra, foi constituída em Portugal pelo Autor e pelo Réu.
- Nada justifica que o Réu/Recorrido tivesse transferido da conta conjunta n.° ... de que era titular com o Autor/Recorrente, a referida quantia de 10.433.280$00, sem autorização deste, para a sua conta pessoal com o n.° ....
- Resulta da letra e do espírito do documento acima mencionado que aquele montante transferido teria como objectivo servir para o “arranque” dos negócios da nova sociedade comercial de importação e exportação de bens a constituir em Portugal pelo Autor e pelo Réu.
- A sentença recorrida julgou incorrectamente a matéria de facto que consta dos artigos 1.º a 6.° da Base Instrutória, devendo os mesmos serem considerados provados com base no documento de autorização de transferência bancária do Finibanco, assinado pelo Autor/Recorrente AA, documento este junto aos autos por este na audiência de julgamento.
- O Autor alega na Petição Inicial o seguinte:
a) A quantia total actual, depositada pelo Autor, de 53.288,00€ (cinquenta e três mil, duzentos e oitenta e oito euros), foi posteriormente levantada, pelo Réu, da conta bancária conjunta, atrás mencionada, sem previamente avisar o Autor de tal levantamento (artigo 17° da PI.)
b) Não tendo o Réu nunca informado o Autor do destino dos referidos 53.288,00€ (cinquenta e três mil, duzentos e oitenta e oito euros), por si levantados (artigo 18° da P.I.);
c) Até hoje nunca nenhuma Sociedade Comercial foi constituída em Portugal pelo Autor e pelo Réu (artigo 19° da P.I.)
d) Pelo que o Réu se locupletou ilegitimamente e fez sua a quantia actual de 53.288,00€ (cinquenta e três mil, duzentos e oitenta e oito euros), que o Autor depositou naquela conta bancária conjunta.
- A matéria de facto atrás referida, alegada pelos Autores nos artigos 17°,18°, 19° e 20.° da P.I., que é controvertida, não foi incluída na base instrutória, como devia ter sido, carecendo ser averiguada, por ser relevante para se decidir sobre a existência ou inexistência de enriquecimento sem causa e a exigibilidade imediata do valor do pedido.
-Isto significa haver a necessidade de ampliar a matéria de facto, em ordem a constituir base suficiente para a decisão do direito, nos termos do artigo 729° n.° 3, do Código Civil.
-Deste modo devera ser anulado o acórdão recorrido e ordenada a baixa dos autos à relação para ampliação da matéria de facto, nos termos sobreditos, devendo a causa ser novamente julgada, em conformidade com o disposto nos artigos 729° n.° 3 e 730° do Código do Processo Civil.
-Ficou provado que “a quantia total depositada pelo Autor, de € 53.288,00, foi posteriormente levantada, pelo Réu, da conta bancária conjunta, atrás mencionada”, não existindo qualquer explicação, na restante matéria de facto dada como provada, para o destino desta mesma quantia.
-Mesmo perante a matéria de facto dada como provada nos presentes autos, o Réu/Recorrido, ao proceder ao levantamento daquela quantia, depositando-a numa sua conta pessoal, a fez sua, sem qualquer razão explicativa, nem direito à mesma.
-Dispõe o artigo 473.° do Código Civil que “aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou” (n.°1), e que “ a obrigação de restituir por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou” (n.°2).
- A sentença recorrida viola o disposto no artigo 473.° do Código Civil, 264.° e 515.° do Código de Processo Civil.

Contra alegou o Réu em defesa do julgado.

As instâncias deram assente a seguinte matéria de facto:
1) No ano de 1997/1998, o Autor conheceu em Cabinda, Angola, o Réu de nacionalidade Portuguesa, sócio gerente da “SIC — Sociedade Importadora de Cabinda, Lda.”, com sede em Angola, na sequência de alguns negócios de compra e venda de materiais de construção que fizeram entre si.
2) Após, encetarem conhecimento, o Réu convidou o Autor para vir a Portugal passar férias.
3) Em 1999 o Autor deslocou-se a Portugal, a convite do Réu, sendo por si recebido na cidade do Porto.
4) Durante a sua estadia o Autor abriu uma conta bancária em seu nome na Agência do Finibanco de Miranda do Douro, onde se deslocou com o Réu, com o NIB ..., agência na qual era gerente, R...A..., primo do Réu.
5) Ainda nesse ano de 2001 o Autor abriu uma segunda conta bancária, agora conjunta, em nome dele e do Réu, também na Agência de Miranda do Douro do Finibanco, à qual foi atribuído o NIB ..., tendo cada um de início depositado a quantia de esc. 250.000$00 (duzentos e cinquenta mil escudos), actualmente 1.247,00 (mil, duzentos e quarenta e sete euros).
6) Em 10 de Agosto de 2001, o Autor transferiu da sua conta pessoal com o N1B... para a conta conjunta com o Réu com o NTB..., a quantia de esc. 10.433.280$00 (dez milhões, quatrocentos e trinta e três mil, duzentos e oitenta escudos), agora 52.041,00 (cinquenta e dois mil e quarenta e um euros).
7) Sucede que aquela referida quantia total depositada pelo Autor, de € 53.288 (cinquenta e três mil, duzentos e oitenta e oito euros), foi posteriormente levantada pelo Réu da conta bancária conjunta, atrás mencionada.

Não resultaram provados estes factos que tinham sido alegados:
a) Em 2001 o Réu convidou o Autor para constituírem, em Portugal, uma sociedade comercial por quotas (resposta negativa ao quesito 1°).
b) Em que seriam sócios o Autor e o Réu (resposta negativa ao quesito 2.º).
e) E que teria por objecto a importação e exportação de bens (resposta negativa ao quesito 3.º).
d) A transferência da quantia referida em F) tinha como objectivo servir para o arranque dos negócios da referida sociedade comercial (resposta negativa ao quesito 4.º).
e) E para pagar a fornecedores da empresa (resposta negativa ao quesito 5.º).

f) Até hoje, nenhuma sociedade comercial foi constituída em Portugal pelo Autor e pelo Réu (resposta negativa ao quesito 6°).

Foram colhidos os vistos.
Conhecendo,
1- Poderes do Supremo Tribunal de Justiça.
2- Enriquecimento sem causa.
3- Causa de pedir.
4- Conclusões.

1. Poderes do Supremo Tribunal de Justiça

O recorrente começa por impugnar a decisão sobre a matéria de facto fazendo-o em duas vertentes: incorrecto julgamento dos quesitos 1.º a 6.º da Base Instrutória, por desconsideração do documento (com data de 25 de Junho de 2001) que juntou em audiência de julgamento; não inclusão na quesitaria da matéria alegada nos artigos 17.º a 20.º da petição inicial, que é controvertida e imprescindível para a decisão de direito.

1.1. Antes do mais, e como reiterada e abundantemente se vem afirmando, há que acentuar o seguinte:

No âmbito do recurso de revista a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, quanto à matéria de facto, é muitíssimo limitada, apenas podendo averiguar da observância das regras de direito probatório material (artigo 722.° n. ° 2) ou mandar ampliar aquela decisão (artigo 729.°, n.° 3) – e.g. o Acórdão do STJ de 17 de Março de 2005 - 05B2682, onde ainda se decidiu caber às “instâncias apurar a factualidade relevante, sendo que, na definição da matéria factícia necessária para a solução do litigio, cabe à Relação a última palavra”.

Só a este Tribunal compete censurar as respostas ao questionário ou anular a decisão proferida na 1.ª Instância, através do exercício dos poderes conferidos pelos n.°s 1 e 4 do artigo 712°.

É que, salvo as excepções previstas na lei, o Supremo Tribunal de Justiça conhece apenas matéria de direito, “ex vi” do artigo 26.º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei n. ° 3/99, de 13 de Janeiro.

A regra é limitar-se se a aplicar aos factos definitivamente fixados pelo tribunal “a quo” o regime jurídico pertinente.

As ditas situações de excepção (artigos 722° n° 2 e 729° n° 2 do Código de Processo Civil) ocorrem quando houver ofensa a disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou fixe a força probatória de determinado meio de prova.

Ou seja, o sindicar do modo como a Relação fixou os factos materiais só pode ocorrer, no âmbito do recurso de revista, se aquele Tribunal deu por provado um facto sem produção do tipo de prova que a lei exige como não dispensável para demonstrar a sua existência ou tiver incumprido os preceitos reguladores da força probatória de certos meios de prova (cf. “inter alia”, Cons, Cardona Ferreira «Guia de Recursos em Processo Civil”, 103 — “E há que ter, sempre presente, que o STJ, com disse não julga matéria de facto (v.g.art°729°). Esta orientação não é alargada pelo artigo 727° (que ressalva os artigos 722 n.°2 e 729.° n.° 2) porque, como não é demais sublinhar, o que pode estar em causa no STJ, é saber se se respeitou a lei quanto ao valor ou relevância dos meios de prova; e, no concernente á prova documental, na medida em que, mormente a parte interessada pode não ter podido dispor de certo documento até ao momento de se iniciar a fase de julgamento na 2.ª instância, ou não ser previsível a sua pertinência...”).

1.2 - Aqui chegados, resta verificar se a Relação, ao fixar a matéria de facto, incumpriu a segunda parte do n° 2 do artigo 722° do diploma adjectivo, isto é, se deu como provado um facto sem produção de prova legalmente indispensável para a sua existência ou se foram infringidas as normas reguladoras da força probatória de determinado meio de prova.

Não ocorreu nenhuma destas situações, ao responder negativamente aos quesitos 1.º a 6.º, cuja formulação acima se deixou transcrita.

As respostas fundaram-se na convicção que o julgador formou face à prova perante si produzida, na oralidade e imediação da audiência de julgamento, e cuja motivação foi, cuidada e exaustivamente, exposta.

Que dizer do documento que o recorrente invoca para propiciar diferente conclusão?

Vejamos,

Nesse texto, o Autor-recorrente autoriza o Banco a proceder a uma transferência da sua conta pessoal para uma conta conjunta com o Réu recorrido nos termos seguintes:

“Autorizo que se faça a transferência do valor de 10.433.280$00 para a conta n.º ..., cujo valor será posteriormente transferido para a Conta Empresa (Sociedade Importadora de Cabinda) a abrir proximamente.”

Sendo um documento particular da pena do recorrente e cuja autoria (letra e assinatura) não foi impugnada pelo recorrido, tem a força probatória a que se refere o artigo 376.º, n.ºs 1 e 2 do Código Civil, ou seja, os factos nele compreendidos “consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante”, sem prejuízo da indivisibilidade da declaração, nos precisos termos do artigo 360.º.

Tal documento apenas faz plena prova da proveniência das declarações nele contidas e de quem as subscreveu (“qui subscripsit videtur scripisse”) – cf. Prof. Vaz Serra – “Provas”, BMJ 112-281 – valendo, no mais, apenas como declaração confessória, ou seja, reconhecimento da realidade de um facto que é desfavorável ao emitente da declaração, favorecendo, sim, a parte contrária – artigo 352.º do Código Civil.

Ora, sendo, como se disse, uma declaração do Autor em conformidade – por não contrária – aos seus interesses, a sua desconsideração para as respostas em crise não implica violação das regras de direito probatório material (já que o seu valor é de apreciação livre) razão porque não se está perante uma situação inserível no n.º 2 do artigo 722.º do Código de Processo Civil na redacção aqui aplicável, por anterior ao Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto (actualmente seria o n.º 3 do mesmo preceito).

1.3. Mas, como se disse, o recorrente ainda se insurge contra a não inclusão na Base Instrutória dos artigos 17.º, 18.º, 19.º e 20.º da petição inicial, pugnando pelo uso da faculdade do n.º 3 do artigo 729.º do diploma adjectivo.

No primeiro articulado, e na parte agora pertinente, o Autor alegou:
a) A quantia total actual, depositada pelo Autor, de 53.288,00€ (cinquenta e três mil, duzentos e oitenta e oito euros), foi posteriormente levantada, pelo Réu, da conta bancária conjunta, atrás mencionada sem previamente avisar o Autor de tal levantamento (artigo 17° da P.I.)
b) Não tendo o Réu nunca informado o Autor do destino dos referidos 53.288,00€ (cinquenta e três mil, duzentos e oitenta e oito euros), por si levantados (artigo 18° da P.I.);
c) Até hoje nunca nenhuma Sociedade Comercial foi constituída em Portugal pelo Autor e pelo Réu (artigo 19° da P.I.)
d) Pelo que o Réu se locupletou ilegitimamente e fez sua a quantia actual de 53.288,00€ (cinquenta e três mil, duzentos e oitenta e oito euros), que o Autor depositou naquela conta bancária conjunta. (artigo 20.º da P.I).

Perante estes factos, há que verificar da sua pertinência (ou necessidade) para inclusão no acervo da matéria probanda.

Inequívoco é que o último artigo da petição, ora citado (20.º) é meramente conclusivo não tendo de ser incluído na base instrutória.

O artigo 19.º daquele articulado integrou o quesito 6.º que obteve resposta negativa.

A matéria dos artigos 17.º e 18.º não foi completamente quesitada, sendo, contudo, que apenas o foi a primeira parte do artigo 17.º (levantamento da quantia depositada, pelo Autor) integrando a alínea G) da especificação.

Ficou, em consequência, sem constar da base instrutória a segunda parte do artigo 17.º da P.I. (se o levantamento da alínea G) da especificação foi feito sem que o Réu tivesse, previamente, avisado o Autor) e o artigo 18.º do mesmo articulado (o Réu nunca informou o Autor do destino dos referidos 53.288,00 euros por si levantados.).

Vejamos se tais factos podem relevar para o conhecimento do enriquecimento sem causa, constitutivo da causa de pedir.
2. Enriquecimento sem causa.

2.1. Em primeira linha, e antes de qualquer subsunção fáctica, são curiais algumas considerações sobre a dogmática do enriquecimento sem causa, que, como se acenou, o Autor elegeu como causa de pedir - aí espartilhando o Tribunal – não tendo optado por outra “causa petendi”, quiçá por reconhecer só poder fundar o seu pedido nessa subsidiariedade causal.

Seria necessária a demonstração de um locupletamento sem suporte legal ou negocial.

Trata-se de uma fonte autónoma de obrigações prevista no n.° 1 do citado artigo 473.° que pressupõe um enriquecimento obtido à custa de outrem sem que se perfile qualquer causa justificativa, sendo que, tratando-se de causa residual, só releva se a lei não “facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído” (artigo 474.° Código Civil) — cf., por todos, os Profs. Vaz Serra — “Enriquecimento sem causa B.MJ 81-5 e 82-5; Almeida Costa, in “Direito das Obrigações”, 6.ª ed., 409, A. Varela, apud “Das Obrigações em Geral”, 1, 10.ª ed., 470 e Galvão Telles — “Direito das Obrigações”, 5.ª ed., 161.

Haverá, assim, uma deslocação patrimonial, quer resultante de acto jurídico não negocial, quer de mero acto material, em consequência do qual o “accipiens” aumenta o seu património à custa de outrem (“a danno di un’ altra persona”) sem qualquer causa obrigacional, ou negocialmente clausulada, que a justifique.

À vantagem patrimonial do enriquecido contrapõe-se o empobrecimento do que foi privado do bem ou do património.

Analisando o requisito da ausência de causa, o Prof. Almeida Costa (ob. cit., 418, nota 1) acentua: “Por causa de uma prestação pode entender-se: ou o fim subjectivo pela qual se efectua a prestação (o cumprimento de urna obrigação, a entrega de um empréstimo, uma atribuição gratuita — ‘causa solvendi, credendi, donandi’ — na terminologia latina); ou a relação jurídica de que resulta caber a prestação a quem a recebe. Teremos numa hipótese ou na outra, respectivamente, causa de prestação em sentido subjectivo e em sentido objectivo. Esta segunda modalidade é a que interessa para efeito de enriquecimento sem causa.”

Nota de seguida o “distinguo” entre “causa de uma prestação” e “causa de uma obrigação”.

A causa da deslocação patrimonial só releva para os efeitos do artigo 473.°, n.° 1 do Código Civil na ausência de relação obrigacional, negocial ou legal e, designadamente, tratando-se de prestação sem qualquer finalidade típica tutelada.

Finalmente, a pretensão de enriquecimento é sempre subsidiária (ou residual), isto é, só é possível se inexistir um meio alternativo para ressarcimento dos prejuízos (v.g., declaração de nulidade, de anulação, de cumprimento) — cf., “inter alia”, o Prof. Leite de Campos, “A Subsidariedade da Obrigação de Restituir o Enriquecimento”, 171 e 326.

Por isso é que, quando a deslocação tem por base um negócio jurídico, embora nulo ou anulável, a própria declaração de nulidade ou de anulação faz reintegrar no património de cada uma das partes os bens ou valores com que a outra se poderia locupletar (artigo 289.° do Código Civil) tendo até maior eficácia, por retroactiva, do que a acção por enriquecimento, cujos efeitos não podem exceder o locupletamento, à data de verificação de algum dos factos das alíneas a) e b) do artigo 480.° do Código Civil.

Para terminar esta breve análise, deve ainda referir-se que a alegação e prova dos requisitos do enriquecimento cumpre ao empobrecido, nos termos do artigo 342.° do Código Civil.

Mas como se julgou no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de Outubro de 2008 — 08 A2709 — desta mesma conferência, “in dubio” deve entender-se que o eventual enriquecimento derivou de justa causa, já que a deslocação sem causa não é consentânea com a normalidade negocial (cf., neste sentido, Dr. Moitinho de Almeida, in “Enriquecimento sem causa”, 101, Profs. P. de Lima e A. Varela, “Código Civil Anotado”, I, 4.ª ed., 456, e Conselheiro Rodrigues Bastos, “Notas ao Código Civil”, II, 269, além de, e v.g., dos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Outubro de 1970— BMJ 199-190, de 15 de Dezembro de 1977— BMJ 272- 196, de 29 de Maio de 2007 — 07 A 1302 - de 29 de Setembro de 2007-07B2156- e ainda, o mais recente Acórdão, desta Conferência, de 14 de Julho de 2009 – 413/09.2YFL.SB.

2.2. Aqui chegados, há que considerar que a resposta negativa ao quesito 6.º (nunca ter sido constituída uma sociedade entre Autor e Réu) não implica que não tivesse sido constituída tal sociedade.

Isto porque o quesito foi formulado pela negativa, tal como alegado, e uma resposta de não provado equivale à não quesitação de facto.

Mas esse facto, por integrar a ausência de causa do locupletamento, seria o primeiro a constituir o direito alegado, tendo de ser provado pelo demandante,“ex vi” do n.º 1 do artigo 342.º do Código Civil, como acima, mais detalhadamente, se ponderou.

Ou seja, para demonstrar que o dinheiro depositado tinha um destino acordado que não ocorreu (a constituição de uma sociedade), o Autor alegou que “até hoje nunca nenhuma sociedade comercial foi constituída em Portugal pelo Autor e pelo Réu (artigo 19.º da p.i.) sendo essa alegação reproduzida, tal qual, no quesito 6.º.

Da resposta “não provado” resulta, óbviamente, improvado apenas que “até hoje nunca nenhuma sociedade foi constituída”, o que não implica que tal sociedade o não tivesse sido.

Ficou, apenas, provado que foi o Autor quem abriu uma conta bancária conjunta em seu nome e do Réu tendo, então, cada um, depositado a quantia de 250.000$00 (1.247,00 euros).

E que, posteriormente, o Autor transferiu da sua conta pessoal para aquela conta conjunta 10.433.280$00 (52.041,00 euros), sendo que o Réu veio a levantar desta conta tudo o que o Autor ali depositara (53.288,00 euros).

Esta factualidade só basta para demonstrar a simples apropriação, por levantamento, pelo Réu, de um montante comprovadamente pertencente ao Autor, embora depositado em conta conjunta.

Mas não é suficiente para que este fique obrigado à sua restituição já que não se provou se existiu, ou não, qualquer acordo (ou negócio) permissivo do levantamento, irrelevando para esta conclusão o não terem sido quesitados os factos acima referidos (prévio aviso de levantamento do Réu ao Autor e não informação do destino da quantia levantada).

Houve uma deslocação patrimonial que o Autor não logrou provar não ter sido consentânea com o acordado entre ambos, isto é, que tal montante se destinava a um negócio que deixou de se realizar. (cf., também, as respostas negativas aos quesitos 1.º, 2.º, 3.º, 4.º e 5.º) e que o levantamento não se integrou em qualquer acordo negocial sendo, por isso, destituído de causa.

Assim, as respostas negativas aos quesitos referentes ao acordo de constituição da sociedade inviabilizaram a demonstração da causa de pedir, enriquecimento sem causa.

Mas será possível outra abordagem?

Vejamos,

3- Causa de pedir

O seu conceito é delimitado pelos factos jurídicos dos quais procede a pretensão formulada pelo demandante, sendo especificada com alegação de factos ou circunstâncias concretas ou individualizadas.
“E, de acordo com o artigo 264.° do Código de Processo Civil ‘às partes cabe alegar os factos que integram a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as suas excepções’ (n.° 1), sendo que o julgador ‘só pode fundar a decisão nos factos alegados pelas partes, sem prejuízo do disposto nos artigos 514.° e 665.°, de atender, ainda que oficiosamente, aos factos instrumentais que resultem da instrução e da discussão da causa e, finalmente, os factos que sejam ‘complemento ou concretização de outros’ (...) ‘desde que a parte interessada manifeste vontade de deles se aproveitar’ e garantido, que seja, o contraditório (n.° 2 e 3).
Para além deste preceito e dos artigos 273.° n.° 1 (modificação da causa de pedir) e 660.°, n.° 2 (questões a conhecer em sede de decisão e seus limites — artigo 661.°, n.° 1) importa aqui acentuar o princípio do artigo 664.°: ‘O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito; mas só pode servir-se dos factos articulados pelas partes, sem prejuízo do disposto no artigo 264.°’.
O demandante, antes de culminar com o pedido, tem de alegar os factos concretos que irão produzir o efeito jurídico que quer obter, de acordo com os artigos 467.°, n.° 1, alínea d) e 498.°, n.° 4, também do Código de Processo Civil, assim delimitando (ou caracterizando precisamente) a sua pretensão (cf., v.g., o Prof. Lebre de Freitas, in “Introdução ao Processo Civil”, 53).
Trata-se de consagrar inequivocamente o princípio do dispositivo ou, na expressão do Prof. Teixeira de Sousa, o ‘princípio da disponibilidade do objecto’ ou da ‘disponibilidade objectiva’.
E é perante tal que o juiz fica limitado nos termos do citado n.° 1 do artigo 661.º do CPC e, consequentemente, impedido de ir para além desses limites, quer em condenação, quer em absolvição) ou encontrar coisa diversa da que lhe foi pedida.
Mas a lei consagrou a teoria da substanciação, precisamente no n.° 4 do artigo 498.° da lei adjectiva.
A também chamada ‘teoria da consubstanciação’ implica que a causa de pedir se traduza no facto jurídico em que se baseia o pedido.
É o título gerador do direito invocado que tem de se distinguir, em termos dogmáticos, quer dos factos materiais alegados, quer das razões jurídicas invocadas, devendo ser definida em função da qualificação jurídica dos factos necessários à determinação do direito (cf. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Julho de 2004 — 04B853).
Daí que, quando se define — como atrás de procurou fazer — causa de pedir, tem de entender-se não como o acto, ou facto jurídico, abstracto mas em concreto (aquele, o certo, o que foi determinado, o que o Autor individualizou). (cf., o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de Julho de 2003 -03 A 1848 — relatado pelo, aqui, 2.° adjunto).
É então que é exercida a função delimitadora, impedindo o julgador de ultrapassar essa barreira, deixando-lhe, tão-sómente, a liberdade de buscar, interpretar e aplicar as regras do direito.”, como se diz no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Maio de 2009 – 162/09 – 1YFLSB,deste Colectivo.

Mas ao optar pela causa de pedir – enriquecimento – o Autor teria de provar os factos que alegou constitutivos do direito de obter a restituição.

Não o tendo feito, o Tribunal fica impedido de ir mais além, sob pena de alterar a “causa petendi”, o que lhe é vedado.

A nossa actuação limita-se a interpretar e aplicar regras de direito, não extravasando os poderes de cognição referidos no n.º 2 do artigo 660.º do Código de Processo Civil, e, de acordo com o principio da substanciação, definir livremente o direito aplicável aos factos sendo lícito, no limite, apenas a convolação de uma situação jurídica alegada pelas partes com mera ulterior submissão a diferentes normas, mas, repete-se, sem alterar a causa de pedir.
4. Conclusões

Tudo o que se expôs permite concluir:

a) No âmbito do recurso de revista a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, quanto à matéria de facto, é muitíssimo limitada, apenas podendo averiguar da observância das regras de direito probatório material (artigo 722.° n. ° 2) ou mandar ampliar aquela decisão (artigo 729.°, n.° 3)
Só à Relação compete censurar as respostas ao questionário ou anular a decisão proferida na 1.ª Instância, através do exercício dos poderes conferidos pelos n.°s 1 e 4 do artigo 712°.
O Supremo Tribunal de Justiça só pode usar da faculdade do n° 3 do artigo 729.º do Código de Processo Civil, perante patente contradição da matéria de facto apurada pelas instâncias ou se a mesma for de tal modo omissa que se revele insuficiente para ulterior subsunção, essencial para a sorte da demanda.

b) Sendo um documento particular da pena do recorrente e cuja autoria (letra e assinatura) não foi impugnada pelo recorrido, tem a força probatória a que se refere o artigo 376.º, n.ºs 1 e 2 do Código Civil, ou seja, os factos nele compreendidos “consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante”, sem prejuízo da indivisibilidade da declaração, nos precisos termos do artigo 360.º.

c) Tal documento apenas faz plena prova da proveniência das declarações nele contidas e de quem as subscreveu valendo, no mais, apenas, como declaração confessória.

d) São pressupostos do enriquecimento sem causa a deslocação patrimonial, o ter ocorrido à custa de outrem e a ausência de causa justificativa.

e) O enriquecimento sem causa só pode ser invocado a título subsidiário, sendo que a alegação e prova daqueles pressupostos cumpre ao demandante devendo, “in dubio”, considerar-se que a deslocação patrimonial teve justa causa.

f) A prova da ausência de causa da deslocação patrimonial não se basta com o facto de um dos co-titulares de uma conta conjunta levantar a totalidade das quantias que se provou terem sido depositadas pelo outro co-titular se ficaram improvados os motivos porque o fez.

g) O conceito de causa de pedir é delimitado pelos factos jurídicos dos quais procede a pretensão que o demandante formula, cumprindo às partes a alegação desses factos, nos quais o juiz funda a sua decisão, embora possa atender, ainda que “ex officio”, aos instrumentais, que resultem da instrução e da discussão e aos que sejam complemento ou concretização de outros.

h) O juiz está limitado pelo princípio do dispositivo, mas a substanciação (ou consubstanciação) permite-lhe definir livremente o direito aplicável aos factos que lhe é lícito conhecer, buscando e interpretando as normas jurídicas. Tal princípio pode mesmo implicar uma convolação da situação jurídica alegada pelas partes e a sua submissão a diferentes normas, desde que não altere a causa de pedir.

Nos termos expostos, acordam negar a revista.

Custas pelo recorrente.

Supremo Tribunal de Justiça, 2 de Fevereiro de 2010

Sebastião Póvoas (Relator)

Moreira Alves

Alves Velho