Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
043207
Nº Convencional: JSTJ00017385
Relator: FERREIRA DIAS
Descritores: FURTO QUALIFICADO
TENTATIVA
ACTOS DE EXECUÇÃO
ACTO PREPARATORIO
Nº do Documento: SJ199301060432073
Data do Acordão: 01/06/1993
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: BMJ N423 ANO1993 PAG166
Tribunal Recurso: T J V N GAIA
Processo no Tribunal Recurso: 1437/91
Data: 05/21/1992
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: DIR CRIM - TEORIA GERAL / CRIM C/PATRIMONIO.
Legislação Nacional: CP82 ARTIGO 22 ARTIGO 23 ARTIGO 296 ARTIGO 297 N2.
Sumário : I - Para que se verifique a pratica de um crime de furto qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22, 23, 296 e 297, n. 2, alineas c) e d) do Codigo Penal, torna-se necessaria a convergencia dos seguintes pressupostos:
1. Que o arguido resolva ou decida, com ilegitima intenção de apropriação, para si ou para outrem, subtrair coisa movel alheia pertencente ao sector publico;
2. Penetrando em edificicação por meio de arrombamento, escalamento ou chaves falsas;
3. Que tal crime que o agente decidiu perpetrar não chegue a consumar-se, por circunstancias independentes da sua vontade;
4. Que o agente pratique actos de execução;
5. Que ao crime consumado corresponda pena superior a dois anos de prisão.
II - O arrombamento de uma porta de um edificio publico, interrompido pela intervenção de um agente de autoridade, integra a pratica de actos de execução e não de meros actos preparatorios do crime de furto qualificado.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
O Digno Agente do Ministério Público acusou o arguido
A, solteiro, ajudante despachante alfandegário, de 35 anos, com os demais sinais dos autos, da autoria material de um crime de furto qualificado, na forma de tentativa, previsto e punível pelas disposições conjuntas dos artigos 296, 297 ns 1 e 2 alíneas c) e d) e 299 do Código Penal.
Realizado o julgamento, foi o dito arguido condenado pela prática de um crime de furto qualificado, na forma tentada, previsto e punível pelos artigos 297 n. 2 alíneas c) e d), 22, 23, e 299 do Código Penal na pena de um ano de prisão.
Foi outrossim condenado na parte fiscal e declarou-se perdidos a favor do Estado os objectos apreendidos a fls. 3.
Inconformado com tal decisão, interpôs o arguido o presente recurso, motivando-o nos seguintes termos:
- Não se provou que o arguido entrou dentro do edifício, nem que no seu interior houvesse bens ou objectos e seus valores, para o arguido se poder apropriar;
- Provou-se que o arguido tinha o propósito de se apropriar de bens, mas se nada houvesse no interior do edifício, a consumação do crime seria impossível;
- Impossível era pois também a tentativa, que exige actos de execução e não meros actos preparatórios;
- O arrombamento e os prejuízos respectivos são meros actos preparatórios dum furto, a punir autonomamente como crime de dano;
- Não há também qualquer crime de furto de coisa pertencente ao sector público, porquanto o Centro de
Saude Mental faz parte da administração directa do
Estado;
- O sector público é propriedade empresarial do Estado, tal como se define na Constituição e como no-lo apresenta Maia Gonçalves, nos comentários aos artigos
299 e 332 do seu Código Penal;
- Assim os factos provados integram apenas um crime de dano, devendo a pena do arguido ser mera simples multa, suspensa na sua execução.
Contra-motivou o Ministério Público, que, no seu douto parecer de fls. 60 e seguintes rebateu, com toda a mestria, as razões invocadas pelo recorrente e concluíu no sentido do improvimento do recurso.
Subiram os autos a este Supremo Tribunal e, lavrado o despacho preliminar e colhidos os vistos legais, teve lugar a audiência, que decorreu com inteiro respeito pelo formalismo legal, como da acta se infere.
Cumpre, pois, apreciar e decidir, já que nada obsta ao conhecimento do recurso.
Deu o Tribunal Colectivo como provado o seguinte manancial fáctico:
- Pelas 22 horas de 24 de Agosto de 1991, aproveitando a circunstância da noite, para mais facilmente concretizar os seus intentos, o arguido dirigiu-se ao
Centro de Saúde Mental de Vila Nova de Gaia, sito à
Avenida da República, desta cidade;
- Ali, usando os instrumentos de que era portador - relacionados a fls. 3 - nomeadamente uma serra, começou a rebentar a porta de acesso ao interior;
- Era propósito do arguido introduzir-se nas instalações do dito Centro e ali apoderar-se dos bens de valor, em particular dinheiro, que encontrasse, fazendo-os coisas suas;
- Não obstante sabia que o fazia contra a vontade de quem de direito e em prejuízo do respectivo dono, o
Estado;
- e bem assim do carácter ilícito de tal conduta;
- O arguido não logrou todavia concretizar o seu propósito por ter sido interrompido, quando procedia ao arrombamento da porta pela intervenção de um agente da autoridade policial, alertado por populares;
- Na actividade que levou a cabo com vista ao arrombamento da porta, o arguido provocou um prejuízo de 76167 escudos;
- Em audiência negou a actividade do arrombamento e o propósito do furto;
- Solteiro, vivia com o pai;
- Ex-toxicodependente;
- Não tinha emprego;
- Desde 1979 sofreu diversas condenações penais, por crimes de furto, desobediência, furto qualificado, posse de estupefacientes, algumas com pena de prisão que cumpriu, a última das quais de 3 anos de prisão com termo em 13 de Janeiro de 1990; e
- Na conduta descrita o arguido agiu, deliberada, livre e conscientemente.
Este o contexto factológico apurado e que este Supremo
Tribunal tem de acatar como incensurável, dada a sua dignidade de Tribunal de revista e atento o que preceituam os artigos 433 e 29, respectivamente, do
Código de Processo Penal e da Lei n. 38/87, de 23 de Dezembro.
Descritos que foram os factos dados como certificados, há que proceder à determinação da sua significação no
âmbito do universo do direito criminal.
Antes, porém, e para governo do arguido, vamos alinhar algumas considerações sobre os requisitos que a lei penal exige para a observação da figura jurídica da tentativa.
Da leitura atenta do disposto nos artigos 22 e 23 do
Código Penal, para que se verifique a tentativa do crime de furto qualificado previsto e punível pelas disposições dos artigos 296 e 297 n. 2 alíneas c) e d) do citado diploma, necessário se torna a convergência dos seguintes pressupostos:
1 - que o agente resolva ou decida, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outrem, subtrair coisa móvel alheia pertencente ao sector público;
2 - penetrando em edificação, por meio de arrombamento, escalamento ou chaves falsas;
3 - que tal crime que o agente decidiu perpetrar não chegue a consumar-se, por circunstâncias independentes da sua vontade;
4 - que o agente pratique actos de execução; e
5 - que ao crime consumado corresponda pena superior a dois anos de prisão.
Isto assente, temos por seguro que o arguido, com o seu actuar, retratou os elementos configurantes dos artigos
22, 23, 74 n. 1 alínea d), 296, 297 n. 2 alíneas c) e d) e 299, todos do Código Penal, e, consequentemente, constituiu-se autor do crime de furto qualificado e agravado, na forma de tentativa, neles compendiado.
Com efeito, mostram-se perfectibilizados todos os elementos que a lei exige para a sua conferência, a saber:
- o arguido decidiu, com ilegítima intenção de apropriação para si, subtrair e deles se tornar dono dos bens de valor, nomeadamente de dinheiro, que encontrasse no Centro de Saúde Mental, pertença do sector público do Estado;
- crime que não chegou a consumar-se por circunstancias independentes da sua vontade, mediatizadas no facto de haver sido interrompido, quando procedia ao arrombamento da porta do referido edifício, pela intervenção de um agente da autoridade policial, alertado por populares;
- o arguido praticou actos de execução - acto de arrombamento da porta, causando prejuízos avaliados em
76167 escudos - e não actos preparatórios, como pretende o recorrente, já que preenchido se apresenta, quanto a eles o condicionalismo constante das alíneas a), b) e c) do n. 2 do mandamento do artigo 22 do
Código Penal; e
- finalmente ao crime consumado corresponderia, caso fosse perpetrado, uma pena muito superior a dois anos de prisão.
Subsumidos os factos à sua dignidade criminal, passemos ao problema do doseamento da pena aplicável ao arguido.
Neste aspecto há que tomar em conta o que dispõe o artigo 72 do Código Penal, que traça as directrizes que o julgador há-de atender em tão difícil área: a culpa do agente, as exigências de prevenção de futuros crimes e todas as circunstâncias, que não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele, sem prejuízo, é claro, dos limites mínimo e máximo da pena aplicável em abstracto, que na situação vertente se situam em 40 dias e 8 anos, dez meses e doze dias de prisão.
Por outro lado, elevado se manifesta o grau de ilicitude do facto.
O modo de execução do facto - cometido de noite, circunstância procurada e aproveitada pelo agente - e a gravidade das suas consequências, traduzidas no valor do prejuízo causado ao Estado, no montante de 76167 escudos, agravam, de certo modo, a conduta do agente.
Agiu ele com dolo intenso (dolo directo).
O seu passado criminal constante de certificado de folhas 23 e seguintes largamente o desabonam.
Solteiro, vivia com o pai, era ex-toxicodependente e não tinha emprego.
Nenhuma circunstância atenuativa da sua responsabilidade se enxerga provada.
Ora, ponderando todos estes elementos carreados ao plenário e não esquecendo as exigências de prevenção de futuros crimes - hoje infelizmente tão frequentes e que trazem a comunidade em autêntico sobressalto - somos de parecer de que a reacção criminal com que a 1 Instância estigmatizou o criminoso procedimento do arguido - um ano de prisão - se patenteia como equilibradamente doseada, merecendo o nosso inteiro aplauso e confirmação.
E o mesmo se defende em relação a tudo o mais que decidido foi, já que nenhuma censura lhe pode ser feita.
Improcede, assim, toda a argumentação deduzida pelo recorrente, quer no aspecto da qualificação jurídico-criminal dos factos, quer no que incide à medida da pena, quer no que respeita à aplicação do artigo 299 do Código Penal, pois entendemos que o
Centro de Saúde Mental e, consequentemente, as coisas móveis que ali se encontravam, pertenciam ao sector público do Estado, destinando-se à prestação de serviços à comunidade (confira com interesse Vital
Moreira e Gomes Canotilho in Constituição da República Portuguesa Anotada - edição de 1976).
Resta-nos tratar do último fundamento invocado pelo arguido para infirmar a decisão recorrida, ou seja a suspensão da execução da pena.
Também neste aspecto carece de razão.
É que não se provaram quaisquer factos com viabilidade bastante para se poder concluir que, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao facto punível, e às circunstâncias deste, a simples censura do facto e a ameaça da pena bastarão para afastar o arguido da criminalidade e satisfazer as necessidades de reprovação e prevenção do crime, "conditio sine qua non" para a decretação de tal medida de clemência consignada no artigo 48 do Código Penal.
Desta sorte e pelos expostos fundamentos, decidem os juizes deste Supremo Tribunal de Justiça negar provimento ao recurso e na sua consequência confirmar inteiramente o bem elaborado acórdão recorrido.
Condena-se o arguido - recorrente em taxa de justiça de
5 UCs e na procuradoria de 1/3 da referida taxa.
Lisboa, 6 de Janeiro de 1993.
Ferreira Dias;
Pinto Bastos;
Ferreira Vidigal;
Sá Nogueira.
Decisão impugnada:
Acórdão de 21 de Maio de 1992 do Tribunal de Vila Nova de Gaia.