Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4/18.7GMLSB-F.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: PAULO FERREIRA DA CUNHA
Descritores: HABEAS CORPUS
PRAZO DA PRISÃO PREVENTIVA
RECURSO PARA O TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
CONSTITUCIONALIDADE
IMPROCEDÊNCIA
Data do Acordão: 01/25/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: IMPROCEDÊNCIA / NÃO DECRETAMENTO
Sumário :
I. Um arguido, preso preventivamente desde 16.07.2021, pronunciado pela prática, em coautoria material, de quatro crimes de furto qualificado, p. e p. pelo art. 204.º, nº 1, alíneas a), f) e h), e n.º 2, alíneas a), e), g), do Código Penal, de seis crimes de furto qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 23.º e 204.º, n.º 1, alíneas a), f) e h), e n.º 2, alíneas a), e), g), do Código Penal, de seis crimes de furto, p. e p. pelo art. 203.º do Código Penal, de oito crimes de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 255.º, al. a), e 256.º. nº 1, alíneas b) e e), e n.º 3, do Código Penal, e de um crime de associação criminosa, p. e p. pelo art. 299.º, nº 2, do Código Penal, interpôs, previamente à presente providência de Habeas Corpus, um recurso de constitucionalidade (a 25.05.2022),  relativamente ao qual foi proferida decisão sumária proferida pelo Tribunal Constitucional.

II. Pela ocorrência do recurso para o Tribunal Constitucional, o prazo de duração da prisão preventiva é acrescentado de 6 (seis) meses, conforme o disposto no art. 215.º, n.º 5, do Código de Processo Penal. Assim, o prazo da prisão preventiva só se esgotaria em 16.07.2023.

III. Não é de modo algum inconstitucional este normativo, aliás de acordo com o Acórdão 2/2008 do Tribunal Constitucional, de 4 de janeiro de 2008.

IV. Pelo exposto se indefere a providência de Habeas Corpus requerida, por manifestamente infundada.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I

RELATÓRIO



1. O arguido AA, recluso no E. P. ..., “visto o artigo 222º, nº 2 al. c) do C.P.P”, vem interpor junto deste Supremo Tribunal de Justiça uma providência de Habeas Corpus.

2. Patrocinado por Advogado, apresentou os seguintes fundamentos:

O arguido encontra-se privado da sua liberdade à ordem dos presentes autos desde a data da sua detenção ocorrida em 31.03.2021 na sequência do cumprimento pelas autoridades alemãs de MDE emitido para o efeito, tendo sido entregue às autoridades portuguesas em 15.07.2021.

Detenção que foi validada por meio de despacho subsequente ao primeiro interrogatório judicial de arguido detido, que teve lugar no dia 16.07.2021,

o qual, em consequência, determinou que o mesmo aguardasse os ulteriores termos do processo em prisão preventiva.

Situação em que se encontra desde então.

O arguido encontra-se pronunciado pela prática em co-autoria e concurso real de 4 (quatro) crimes de furto qualificado, p. e p. pelo art.º 204º, nº 1, alíneas a), f) e h) e nº 2, alíneas a),e)e g),do Código Penal;6 (seis)crimes de furto qualificado,na forma tentada,

. e p. pelos art.ºs 23º e 204º, nº 1, alíneas a), f) e h) e nº 2, alíneas a), e) e g), do Código

Penal; 6 (seis) crimes de furto, p. e p. pelo art.º 203º, nº 1 do Código Penal; 8 (oito) crimes

de falsificação ou contrafacção de documento, p. e p. pelos art.ºs 255º, alínea a) e 256°, no 1, alíneas b) e e) e nº 3, do Código Penal; e 1 (um) crime de associação criminosa, p. e p. pelo art.º 299º, no 2 do Código Penal.

Não foi declarada a excepcional complexidade do processo.

Por despacho de 29.09.2022 os autos foram recebidos para julgamento e cumpridas notificações nos termos do disposto nos artºs 311º-A e 311º-B do C.P.P..

Até à presente data não há condenação em primeira instância, pois o julgamento ainda nem sequer foi agendado.

A verdade é que no dia 16.01.2023 cumpriu-se um ano e seis meses desde o despacho tirado em primeiro interrogatório judicial que em 16.07.2021 impôs que o arguido aguardasse os ulteriores termos em prisão preventiva.

10º

Circunstância que, nos termos do disposto nos n.ºs 1, al. c) e 2º do artº 215º C.P.P., determinou a extinção da prisão preventiva, cuja manutenção que deixou de ter suporte legal,

11º

impondo-se a restituição do arguido à liberdade, nos termos do disposto no nº 1 do artº 217º daquele diploma legal.

12º

O que o arguido requereu ao tribunal no referido dia 16.01.2023, sem resposta positiva, no entanto.

Concluindo:

(a) Mas o arguido continua preso no E.P. ...;

(b) O que ocorre de forma ilegal, pelo menos desde 16.01.2023, data em que cumpriu um ano e seis meses de privação da liberdade sem que haja decisão de primeira instância;

(c) E não obstante nessa data haver requerido a sua imediata restituição à liberdade;

(d) O que não mereceu acolhimento até agora;

(e) Razões que determinam que o mesmo seja imediatamente colocado em liberdade, artº 222º, nº 2 al. c) do C.P.P.

Vossas Excelências julgarão como assim é, por mor, da

Justiça!”

3. A Informação a que alude o art. 223.º, n.º 1 do CPP é a seguinte, na sua substância:

“1.  O requerente/ arguido encontra-se preso, à ordem destes autos de processo comum com intervenção do tribunal colectivo nº 4/18.7GMLSB, do juiz ... do Juízo Central Criminal ..., desde o passado dia 16.07.2021;


2.   O requerente/ arguido encontra-se pronunciado (despacho de pronúncia proferido a 16.05.2022) pela prática, em co-autoria material, de quatro crimes de furto qualificado, p. e p. pelo art. 204º, nº 1, alíneas a), f) e h), e nº 2, alíneas a), e), g), do Código Penal, de seis crimes de furto qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 23º e 204º, nº 1, alíneas a), f) e h), e nº 2, alíneas a), e), g), do Código Penal, de seis crimes de furto, p. e p. pelo art. 203º do Código Penal, de oito crimes de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 255º, al. a), e 256º. Nº 1, alíneas b) e e), e nº 3, do Código Penal, e de um crime de associação criminosa, p. e p. pelo art. 299º, nº 2, do Código Penal;


3.    Considerando o disposto nos artigos 1º, al. m), e 215º, nºs 1, alínea c), e nº 2, do Código de Processo Penal, e porquanto não foi ainda proferida condenação em 1ª instância, o prazo máximo da prisão preventiva do requerente/ arguido seria efectivamente atingido na presente data (16.01.2023); porém, uma vez que foi interposto recurso de constitucionalidade (entre o mais, pelo próprio requerente da presente petição de habeas corpus, a 25.05.2022, a fls. 2592 e seguintes dos autos principais), sobre o qual veio a recair decisão sumária proferida pelo Tribunal Constitucional a 29.07.2022 (fls. 9613 e seguintes dos autos principais), o referido prazo é acrescentado de 6 (seis) meses, nos termos do disposto no art. 215º, nº 5, do Código de Processo Penal, pelo que só se mostrará atingido em 16.07.2023;
4.   A prisão do requerente/ arguido mantém-se desde o referido dia 16.07.2021 e encontra-se a ser cumprida pelo mesmo no Estabelecimento Prisional ....”


****

Convocada a 3.ª secção e notificados o Ministério Público e o Defensor, realizou-se audiência, em conformidade com o disposto nos n.ºs 1, 2 e 3 do artigo 223.º do CPP.

Durante a audiência, o Ilustre Defensor, pronunciando-se após a intervenção

do Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto, que substancialmente fundamentou a

posição do Ministério Público na norma do n.º 5 do artigo 215.º do CPP, invocou a

respetiva inconstitucionalidade.


II

FUNDAMENTAÇÃO

A.

Dos Factos


Com relevância para a decisão da vertente providência, recortam-se os seguintes factos:

1. Preso à ordem destes autos desde 16.07.2021 após cumprimento de um MDE, a 16.05.2022 foi o arguido, após interrogatório, pronunciado pela prática, em coautoria material, de quatro crimes de furto qualificado, p. e p. pelo art. 204º, nº 1, alíneas a), f) e h), e nº 2, alíneas a), e), g), do Código Penal, de seis crimes de furto qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 23º e 204º, nº 1, alíneas a), f) e h), e nº 2, alíneas a), e), g), do Código Penal, de seis crimes de furto, p. e p. pelo art. 203º do Código Penal, de oito crimes de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 255º, al. a), e 256º. nº 1, alíneas b) e e), e nº 3, do Código Penal, e de um crime de associação criminosa, p. e p. pelo art. 299º, nº 2, do Código Penal.

2. O peticionante da presente providência de Habeas corpus interpôs recurso de constitucionalidade a 25.05.2022 (cf. fls. 2592 e seguintes dos autos principais), relativamente ao qual foi proferida decisão sumária proferida pelo Tribunal Constitucional (cf. fls. 9613 e seguintes dos autos principais).


B.

Enquadramento geral



1. Há um especial timbre (e até simbolismo, que a sua historicidade evidencia) na providência de Habeas Corpus, que tem sede constitucional, além de, obviamente, consagração na lei penal. Esse como que ADN do instituto confere-lhe uma feição muito particular, que se tem mantido numa linha de grande coerência jurisprudencial, e não consente tergiversações nem utilizações ultra- ou extra-, além do seu património e sentido, legal e constitucionalmente determinados e consolidadíssimos entre nós. Não deixa de ser eloquente, porém, que o Tribunal Constitucional tenha sido chamado a proferir (no seu Acórdão 10/2005) a seguinte decisão: “Não é inconstitucional a taxatividade dos requisitos previstos no artigo 222.º, n.º 2, do Código de Processo Penal para a concessão de habeas corpus”. Por vezes, uma subtil “força normativa dos factos” (ou, rectius, força de factos com pretensões normativas) obriga a que, numa reiteração da normatividade, as instâncias judiciais declarem o que deveria ser evidente. Mas é importante que tal seja feito, para separar as águas e não deixar dúvidas para futuro.

2. Importa, contudo, ressaltar, que este aresto tem, inter alia, a virtualidade de precisar e insistir, implicitamente, no recorte de construção do instituto que tem numerus clausus de requisitos aplicáveis. Tudo o mais, fora dessas três alíneas, não importa para a obtenção de ganho de causa. Sem se olvidar, evidentemente, o requisito que diríamos “envolvente”, o abuso de poder (cf., v.g., em diálogo Gomes Canotilho / Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa — Anotada, vol. I, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, recente Acórdão deste STJ proferido no Proc.º n.º 43/21.0PJSNT-B.S1, de 21-04-2022.

3. O Habeas Corpus incorpora, assim, a sua “história” e a sua vivência; o seu ser não é alheio ou desentranhável do seu modo-de-ser. É essa, aliás, a grande lição da jurisprudência como fonte do Direito. Como se recordou, para bem enquadrar institucionalmente o instituto, nos Acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça de 30 de setembro de 2020, no Proc.º 421/15.4GESLV-A.S1, e de 31 de julho de 2020, no Proc.º 39/20.0PHSNT-B.S1, a Constituição da República Portuguesa (CRP) –  que seguiu uma tradição muito antiga, radicada no velho direito britânico e entre nós recebida por influência brasileira, por sua vez colhida na experiência dos EUA – consagra plenamente a providência do Habeas Corpus, a exemplo, aliás, do que vinha ocorrendo desde a Constituição de 1911 (art. 3.º, 31.º). Apesar de anteriormente desconhecida no constitucionalismo moderno português, de influência francesa, que era avessa ao instituto (Blandine Barret Kriegel, Les Droits de l'homme et le droit naturel, Paris, P.U.F., 1989, pp. 96-97). Não se limita a enunciar a providência. Fá-lo com sede sistemática nos Direitos Fundamentais, o que é reconhecer-lhe uma especial dignidade (cf., v.g., Ponto I do Sumário do Acórdão deste STJ de 23-05-2018, proferido no Proc. n.º 965/18.6T8FAR-A.S1). Ora essa dignidade tem também uma contrapartida de requisitos claros e distintos, e não se pode confundir nunca com aquele uso retórico da Constituição a que Eça de Queiroz aludia na polémica da proibição das Conferências do Casino. Na verdade, os preceitos constitucionais não podem ser meros arietes retóricos. A proeminência constitucional (a que Paulo Bonavides chamou “hegemonia vinculante” - Do Estado Liberal ao Estado Social, 7.ª ed., 2.ª tiragem, São Paulo, Malheiros Editores, 2004, p. 18) passa pelo rigor na aplicação dos institutos. E se na Constituição, como ensinava Pellegrino Rossi (Cours de droit constitutionnel, nova ed., Paris, Droz, 2012), ao menos grosso modo, se encontram as “cabeças de capítulo” de todas as matérias jurídicas, o corpo jurídico e a atividade jurisdicional em especial necessitam muitas vezes de mediação legal infraconstitucional mediadora, que concretize, especifique, densifique as grandes ideias, para que se não quedem num “céu dos conceitos” proclamatório. Ora o Habeas Corpus está concebido como grande providência de digníssima consagração na Carta Magna, mas deve a sua estrutura a rigorosos requisitos, que são inultrapassáveis.

4. Encontra-se, pois, bem recortada a figura, de forma a que o seu bom uso, apropriado e nas circunstâncias para que foi pensada, surta efeitos. É sabido que o Habeas Corpus é, v.g. recordando Cavaleiro de Ferreira, uma providência extraordinária destinada a pôr termo a situação ilícita que é a prisão ilegal (Curso de Processo Penal, 1956, vol. II, p. 477). O problema é saber se a manutenção da situação da recorrente será ilegal, e se se verificam os pressupostos para a concessão da providência em apreço.

5. Inter alia, podemos ver no acórdão de 10-08-2018, referente ao processo n.º 11/17.7GAMRA-A.S1:
“I - A providência de habeas corpus visa reagir, de modo imediato e urgente, contra a privação arbitrária da liberdade ou contra a manutenção de uma prisão manifestamente ilegal, ilegalidade essa que se deve configurar como violação directa, imediata, patente e grosseira dos seus pressupostos e das condições da sua aplicação. Atento o carácter extraordinário da providência, para que se desencadeie exame da situação de detenção ou prisão em sede de habeas corpus, há que deparar com abuso de poder, consubstanciador de atentado ilegítimo à liberdade individual – grave, grosseiro e rapidamente verificável – integrando uma das hipóteses previstas no art. 222.º, n.º 2, do CPP.
II – O habeas corpus não se destina a sindicar as decisões judiciais sobre crime verificados, penas aplicadas, nomeadamente a pena conjunta, nem sobre os pressupostos desta, ou sobre incidentes no cumprimento da pena, é assim e, apenas, um meio extraordinário de controlo da legalidade actual da prisão, estritamente vinculado aos pressupostos e limites determinados pela lei».
E recorde-se a lição do Acórdão deste STJ de 06-06-2019, proferido no Proc. n.º 146/19.1SELSB-A.S1:
“I - A providência de “habeas corpus” tem uma natureza excepcional destinando-se a assegurar o direito à liberdade mas não é um recurso. É, por assim dizer, um remédio único, a ser usado quando falham as demais garantias do direito de liberdade mas não pode ser utilizado para impugnar quaisquer deficiências ou irregularidades processuais que têm no recurso a sua sede própria de apreciação. (...)”.

6. Nunca será demais deixar bem presentes que os requisitos para a concessão do Habeas Corpus no caso de prisão ilegal são os que se encontram enunciados no n.º 2 do art. 222 CPP in fine, para os casos de a prisão:

a) Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.

É sobre estas três alíneas que há que laborar. E especificamente sobre aquela ou aquelas que o/a peticionante vier em concreto a invocar.


C.

Do Direito ao Caso


1. Apenas se devem recortar, sem prejuízo de um contacto holístico com os autos (que, como é o caso, esclarecem e complementam a necessariamente sintética apresentação dos próprios factos pela Informação do Tribunal e pela petição), as questões efetivamente suscitadas pelo peticionante que tenham cabimento no recorte legal respetivo, ou seja, na previsão do artigo 222.º n.º 2 do CPP. E, mais especificamente, e até porque tal consta da fundamentação da providência, trata-se de analisar a questão à luz da sua subsunção ou não na respetiva alínea c).

Porém, nenhuma possibilidade de aplicação se vislumbra, no caso vertente, de qualquer das alíneas do referido normativo. E apenas é alegada matéria que poderia eventualmente ser considerada à luz da previsão da alínea c), mas sem qualquer plausibilidade, como se verá.

2. Sinteticamente, tal como se refere no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 2 de fevereiro de 2005, entende-se que


“No âmbito da decisão sobre uma petição de habeas corpus, não cabe, porém, julgar e decidir sobre a natureza dos actos processuais e sobre a discussão que possam suscitar no lugar e momento apropriado (isto é, no processo), mas tem de se aceitar o efeito que os diversos actos produzam num determinado momento, retirando daí as consequências processuais que tiverem para os sujeitos implicados”. A providência de habeas corpus não decide, assim, sobre a regularidade de actos do processo com dimensão e efeitos processuais específicos, não constituindo um recurso de actos de um processo em que foi determinada a prisão do requerente, nem um sucedâneo dos recursos admissíveis.”

3. Nesta providência, há apenas que determinar, se na manutenção da situação da peticionante algo se poderá descortinar que se possa acolher aos fundamentos referidos no artigo 222.º, n.º 2 c) do CPP, ou neles, de algum modo se subsumir.

4. A providência em causa assume uma natureza excecional, para obviar a casos de detenção ou de prisão ilegais. Por isso, a medida não pode ser utilizada para impugnar outras irregularidades ou para conhecer da bondade de decisões judiciais que têm o recurso como sede própria para a sua reapreciação. Mas nem é o caso: apenas se alega excesso de tempo de manutenção em reclusão.

5. Só pode fundamentar a referida providência a existência de uma afronta clara, e indubitável, ao direito à liberdade. Deve demonstrar-se, sem qualquer margem para dúvida, que quem está preso não o deve estar e que a sua situação afronta o seu direito fundamental a estar livre. Estão em causa, pois, e apenas, situações de flagrante ilegalidade em que, por estar em causa uma clara postergação ou ataque a um valor fundamental, a reposição da legalidade – repondo a normal ordem das coisas e sanando esse ostensivo mal e disfunção na ordem jurídica – tem um carácter urgente.

6. Insiste-se e matiza-se: a providência excecional em causa, não se substitui nem pode substituir-se aos recursos ordinários, ou seja, não é nem pode ser meio adequado de pôr termo a todas as possíveis situações de ilegalidade de uma medida limitadora da liberdade. Está outrossim reservada para os casos indiscutíveis de ilegalidade, que, por serem-no, impõem e permitem uma decisão a tomar com a imposta celeridade de julgamento firmada na Constituição da República.

Como afirmou este mesmo Supremo Tribunal, no seu Acórdão de 16 de dezembro de 2003, trata-se aqui de
“um processo que não é um recurso, mas uma providência excepcional destinada a pôr um fim expedito a situações de ilegalidade grosseira, aparente, ostensiva, indiscutível, fora de toda a dúvida, da prisão e, não, a toda e qualquer ilegalidade, essa sim, possível objecto de recurso ordinário e ou extraordinário. Processo excepcional de habeas corpus este, que, pelas impostas celeridade e simplicidade que o caracterizam, mais não pode almejar, pois, que a aplicação da lei a circunstâncias de facto já tornadas seguras e indiscutíveis (…)”.

7. Acrescente-se ainda que a natureza excecional da decisão de Habeas Corpus, não entra no mérito da causa, mas apenas num dado conjunto de aspetos da legalidade –, limitando-se à questão do devido processo legal na privação da liberdade do arguido, dentro de limites que a Constituição e a Lei determinaram claramente.

A situação normativa aplicável evidencia com muita clareza a solução da presente questão.

8. O prazo máximo da prisão preventiva do arguido seria, realmente, o dia 16.01.2023 (cf. os artigos 1.º, al. m), e 215.º, n.º 1, alínea c), e n.º 2, do Código de Processo Penal), tendo em conta que não foi ainda proferida condenação em 1ª Instância. A serem estes os únicos factos a ter em conta, assistiria razão ao ora peticionante.

9. Porém, a 25.05.2022 (fls. 2592 e seguintes dos autos principais), foi interposto recurso para sede constitucional.

Como se disse, já objeto de decisão sumária proferida pelo Tribunal Constitucional (fls. 9613 e seguintes dos autos principais).

10. Ocorre, com efeito, que está previsto legalmente que o referido prazo de duração da prisão preventiva é acrescentado de 6 (seis) meses, nos termos do disposto no art. 215.º, n.º 5, do Código de Processo Penal:
“Os prazos referidos nas alíneas c) e d) do n.º 1, bem como os correspondentemente referidos nos n.os 2 e 3, são acrescentados de seis meses se tiver havido recurso para o Tribunal Constitucional ou se o processo penal tiver sido suspenso para julgamento em outro tribunal de questão prejudicial.”

11. Pelo que só se mostrará atingido o prazo em causa em 16.07.2023.

12. Além de formulada extemporaneamente, dando a impressão de que houvera um esquecimento (ou desatenção) do/ao normativo de extensão do prazo máximo de prisão preventiva (n.º 5 do artigo 215.º do CPP), constituindo um elemento de surpresa processual, a argumentação apresentada ex novo em audiência quanto a uma alegada inconstitucionalidade não logrou persuadir o Tribunal, sendo intolerável uma aplicação ou desaplicação do referido número conforme circunstâncias concretas, porquanto ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus. Sendo de aplicar cabalmente o referido normativo, aliás de acordo com o Acórdão 2/2008 do Tribunal Constitucional, de 4 de janeiro de 2008. Refere nomeadamente o referido aresto:

“(…) o acréscimo do prazo de prisão preventiva por efeito de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional tem como objectivo contrariar a dilação que decorre do simples facto de ter sido interposto um recurso desse tipo, visto que essa é uma consequência que se encontra desligada de qualquer outra específica vicissitude processual, e, designadamente, do eventual efeito suspensivo dos termos do processo.”

E mais adiante:

“Reconhecendo-se ao legislador, como se deixou vincado, uma certa margem de conformação quanto à fixação dos prazos de prisão preventiva, por efeito do disposto no artigo 28º, n.º 4, da Constituição, não parece que o acréscimo de seis meses ao limite máximo da prisão preventiva por via da interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, tal como prevê o n.º 5 do artigo 215º do CPP, represente uma restrição desproporcionada ou excessiva em relação aos fins que se pretendem obter. Isso porque – como se anotou -, essa prorrogação do prazo é aplicável por uma única vez, ainda que o interessado – como é o caso – tenha interposto mais do que um recurso de constitucionalidade. E também porque se traduz num acréscimo temporal que se mostra ser ajustado às possíveis incidências processuais que poderão resultar da interposição de um recurso desse tipo.

Não se verifica, pois, qualquer violação do disposto nos artigos 27º, 28º, n° 2, e 18º, n° 2, da CRP, por efeito da interpretação dada à referida norma do artigo 215º, n° 5, do Código de Processo Penal.”

13. Nesta medida, em face do exposto, necessariamente se conclui que a petição de Habeas Corpus apresentada pelo arguido é manifestamente infundada, tendo em atenção a simples verificação das contas dos prazos impostos pelo respetivo enquadramento legal.


III

DISPOSITIVO


Termos em que se acorda, neste Supremo Tribunal de Justiça, em indeferir a providência de Habeas Corpus requerida, por manifestamente infundada.
Custas pelo requerente, com 3 UC de taxa de justiça (Tabela III e artigo 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais).
Condenação a que se refere o n.º 6 do artigo 223.º do CPP: 9 UC.

Supremo Tribunal de Justiça, 25 de janeiro de 2023

Paulo Ferreira da Cunha (Relator)

Maria Teresa Féria de Almeida (Juíza Conselheira Adjunta)

Sénio Alves (Juiz Conselheiro Adjunto)

Nuno Gonçalves (Juiz Conselheiro Presidente da Secção)