Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
261/09.0TBCHV.P1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: RECURSO EXTRAORDINÁRIO
UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
CONTRADIÇÃO DE JULGADOS
QUESTÕES ESSENCIAIS
Data do Acordão: 03/22/2013
Votação: ------------
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO EXTRAORDINÁRIO PARA UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Decisão: NÃO ADMITIDO O RECURSO
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / COISAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS EM ESPECIAL - DIREITOS REAIS / DIREITO DE PROPRIEDADE.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS.
Doutrina:
- Amâncio Ferreira, Manual de Recursos em Processo Civil, 8ª ed., pp. 82, 116.
- Castro Mendes, Direito Processual Civil, vol. III, pp. 118, 119.
- Ribeiro Mendes, Sobre o anteprojecto de revisão de recursos em processo civil, na colectânea Novas Exigências do Processo Civil, pela Associação Jurídica do Porto, p. 232.
- Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., pp. 556 e 567.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 209.º, 1056.º, N.º3, 1417.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 14-10-2004, EM WWW.DGSI.PT;
-DE 23-9-2008, EM WWW.DGSI.PT;
-DE 10-1-2013, EM WWW.DGSI.PT .
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ACÓRDÃO DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA Nº 4/08, DE 22-2-08, D.R., 1ª SÉRIE DE 4-4-2008.
Sumário :

1. A contradição jurisprudencial para efeitos de admissibilidade do recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência há-de verificar-se relativamente a questões de direito que se revelem essenciais para a solução encontrada tanto no acórdão recorrido como no acórdão-fundamento.

2. Não relevam para o efeito meros argumentos de ordem suplementar, com natureza de obiter dictum.

A.G.

Decisão Texto Integral:

1. Os Autores, inconformados com o acórdão proferido neste Supremo Tribunal de Justiça vieram interpor recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência. Para o efeito, invocaram a existência de jurisprudência deste Supremo em sentido contrário à que foi assumida no acórdão recorrido.

Os recorridos, Réus na acção, contra-alegaram e invocaram a falta do pressuposto da contradição jurisprudencial necessário para a admissão do recurso extraordinário.

2. Foi instaurada acção de divisão de coisa comum, tendo por objecto um prédio urbano em regime de compropriedade, alegando os AA. a sua indivisibilidade.

Os RR. contrapuseram a divisibilidade do prédio, pretendendo a divisão, depois da constituição judicial da propriedade horizontal, com formação de 2 fracções autónomas, tantas quantos os comproprietários, de acordo com os critérios do art. 1056º, nº 1, do CPC.

O Tribunal de 1ª instância declarou a divisibilidade do prédio nesses termos, sendo constatada a possibilidade de constituição da propriedade horizontal, tendo em conta um relatório pericial e a autorização do Município competente.

Interposto recurso de apelação, a Relação de Guimarães revogou a sentença, considerando que o prédio era indivisível, atenta a falta de unanimidade dos comproprietários para a constituição da propriedade horizontal e o facto de a atribuição a cada um deles de uma fracção implicar o pagamento de tornas, o que foi considerado inadmissível neste processo de divisão de coisa comum.

Este Supremo Tribunal de Justiça concluiu de modo diverso, assumindo que a constituição da propriedade horizontal por decisão judicial não está dependente do acordo de todos os comproprietários e que a divisão do prédio mediante a adjudicação ou sorteio das fracções que venham a ser constituídas também não pressupõe a absoluta equivalência de valores das parcelas (ou fracções), sendo a eventual prestação e recebimento de tornas compatível com o processo de divisão de coisa comum.

Mais precisamente, foi acolhido o entendimento que ficou sintetizado em sumário elaborado pelo relator, de que:

Numa acção de divisão de coisa comum, a divisibilidade de um prédio através da constituição da propriedade horizontal por sentença judicial não depende do acordo de todos os comproprietários, bastando-se com o requerimento de algum deles e com a verificação dos requisitos substantivos (art. 1417º do CC) e os de ordem administrativa”.

E que

Não obsta à constituição da propriedade horizontal ope judicis o facto de as fracções apresentarem valores diversos, já que o processo especial de divisão de coisa comum admite que possam existir tornas entre os comproprietários”.

Pretendendo os recorrentes que se uniformize a jurisprudência relativamente a ambas as questões jurídicas que se mostraram decisivas para a revogação do acórdão da Relação, não é possível confirmar em relação a qualquer delas a alegada contradição jurisprudencial com relevo para a admissão do recurso extraordinário.

3. Na reforma do regime dos recursos cíveis de 2007, sob a designação de recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência, foi reintroduzido, na prática, o recurso para o Pleno que vigorou antes da reforma de 1995 (art. 763º, nº 1, do anterior CPC). Seguiu-se uma opção [1] que já fora adoptada tanto no processo penal [2] como no contencioso administrativo.[3]

A natureza extraordinária do recurso, susceptível de afectar o caso julgado, demanda que a sua admissibilidade obedeça a requisitos, entre os quais a comprovação da existência de uma contradição entre o acórdão recorrido e outro acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, relativamente à mesma questão (ou questões) de direito,[4] diversidade revelada relativamente a uma questão (ou questões) essencial para a decisão, num quadro normativo substancialmente.[5]

Ao invés do que se verifica relativamente ao recurso ampliado de revista, a lei não deixou ao Supremo qualquer margem de discricionariedade. Desde que se verifiquem os requisitos de natureza positiva e não ocorra o impedimento previsto no nº 3 do art. 763º do CPC, demonstrada que seja a aludida contrariedade, mais não resta ao Supremo que admitir e tramitar o recurso extraordinário.

Mas a natureza potestativa do direito de interposição de recurso extraordinário permite compreender que na apreciação dos respectivos requisitos se seja particularmente rigoroso, sob pena de descaracterização do recurso e do seu uso excessivo.

4. No caso concreto falha a referido pressuposto essencial.

Dir-se-á, antes de mais, que, para o efeito, apenas interessam contradições em matéria de direito, ainda que esta não possa desligar-se totalmente da questão de facto que tenha sido dirimida em cada um dos acórdãos.

Trata-se de uma linha decisória que igualmente emana do recente Ac. do STJ, de 10-1-13 (www-dgsi.pt), onde, depois de se referir que a identidade da questão de direito sobre que incidiu o acórdão em oposição tem pressuposta a identidade dos respectivos pressupostos de facto, se afirma ser insuficiente que a divergência se situe apenas na parte expositiva dos acórdãos, sem se reflectir no sentido da decisão.

Esta relação de identidade entre o núcleo de factos substanciais é ainda referida por Amâncio Ferreira a respeito da norma paralela do art. 678º, nº 2, al. c), do CPC, considerando verificada a identidade “quando o núcleo da situação de facto, à luz da norma aplicável, seja idêntico. Com o esclarecimento de que os elementos de facto relevantes para a ratio da regra jurídica devem ser coincidentes num e noutro caso, pouco importando que sejam diferentes os elementos acessórios da relação” (Manual de Recursos em Processo Civil, 8ª ed., pág. 116).

Por outro lado, devendo ser feita a distinção entre questões apreciadas e argumentos empregues nessa apreciação, apenas relevam as respostas que verdadeiramente se mostrem decisivas para a resolução do caso, devendo ser desvalorizadas as que assumam natureza acessória.

Com efeito, em sede de debate de questões de direito, é natural que a conclusão final seja sustentada em argumentos jurídicos variados, uns decisivos, outros complementares. Argumentos que, por vezes, não excedem a categoria de obter dicta, sem verdadeiro valor decisório, surgindo apenas como elementos de persuasão destinados a reforçar a ideia-base em que assenta a decisão.

Por isso, como referia Castro Mendes, pronunciando-se sobre o anterior recurso para o Pleno, deve exigir-se que a contradição nos fundamentos se mostre “decisiva para a decisão final” (Direito Processual Civil, vol. III, pág. 119).

Ao requisito da “identidade substancial” se reporta ainda o Ac. de Unif. de Jurisprudência nº 4/08, de 22-2-08, D.R., 1ª Série de 4-4-08, assim como Teixeira de Sousa, para quem se torna irrelevante que a contradição respeite a argumentos suplementares, apontando a necessidade de se tratar de fundamento que condicione “de forma essencial e determinante a decisão proferida” (Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., págs. 556 e 567).

Deste modo, não será qualquer contradição argumentativa que pode despoletar um recurso extraordinário de uniformização de jurisprudência, devendo este ser reservado para situações em que verdadeiramente esteja em causa assegurar os valores da segurança e da certeza jurídica no que concerne à resposta dada à questão ou questões que se tenham revelado decisivas em concreto.

5. No acórdão recorrido, este Supremo Tribunal confrontou-se com duas questões jurídicas que se mostraram decisivas para o resultado que foi declarado, isto é, para a afirmação da divisibilidade do prédio.

Primo: atento o disposto no art. 1417º do CC, considerou-se que a divisão de um prédio urbano por sentença judicial, em simultâneo com a constituição de propriedade horizontal, não carece do acordo de todos os comproprietários.

Secundo: em consequência directa ao disposto no art. 1056º, nº 3, do CPC, assumiu-se expressamente que a divisão de prédio em regime de compropriedade, mediante a eventual adjudicação ou sorteio de fracções autónomas, não é impedida pelo facto de os valores das fracções serem diversos e de tal diversidade poder implicar o pagamento/recebimento de tornas por parte dos respectivos interessados.

6. Relativamente à primeira questão de direito, os recorrentes invocaram a verificação de uma contradição jurisprudencial com o que anteriormente fora decidido no Ac. do STJ, de 23-9-08 (www.dgsi.pt).

Todavia, analisado em pormenor o referido aresto, não se verifica a exigida identidade substancial da questão de direito, na medida em que o que então estava em discussão era uma realidade substancialmente diversa daquele que emergia do processo em que foi proferido o acórdão agora sob recurso extraordinário.

Em tal acórdão estava em causa a divisão de um prédio que era integrado por uma casa de habitação e por um logradouro. Sendo dois os comproprietários (cujas quotas eram, respectivamente, de ¼ e de ¾) e não havendo acordo quanto à divisão, os peritos lograram encontrar uma forma de a executar: separando o logradouro da habitação e, assim, mediante uma operação urbanística de destaque, propondo a divisão em dois prédios.

Em tal caso, este Supremo Tribunal considerou que não se mostrava viável a imposição dessa forma de divisão, na medida em que (i) “a separação da casa de habitação de parte do terreno prejudica o uso a que o prédio se destina” (em violação do disposto no art. 209º do CC sobre coisas divisíveis), (ii) “a divisão pretendida pelo recorrente não é possível sem que, previamente, tenham sido respeitados os requisitos de natureza administrativa legalmente exigidos”, no caso a concessão de alvará ou a licença de destaque. Argumentou-se ainda com o facto de a iniciativa vir apenas de um dos comproprietários e de, assim, se “ultrapassar claramente o âmbito dos poderes de administração que a lei lhe confere”, argumento que mais adiante foi confirmado, asseverando que se “impõe, como condição específica, a concordância de todos os titulares … na realização de tais operações”.

Não pode ver-se nesta argumentação a requerida contradição jurisprudencial essencial, já que a mesma não pode desligar-se de modo algum da concreta situação que estava sob apreciação. Tratava-se efectivamente de uma realidade que não encontra paralelo com a que subjaz ao caso presente, já que em tal acórdão este Supremo Tribunal não se pôde confrontar com o preceituado no art. 1417º do CC que, reportando-se exclusivamente à constituição de propriedade horizontal de prédio urbano, expressamente prevê a viabilidade de a mesma ser executada por sentença proferida no âmbito de acção de divisão de coisa comum, sem alusão a qualquer acordo dos interessados.

Ou seja, ao invés do caso sub judice, em que existe norma expressa interpretada no sentido de não fazer depender a constituição de propriedade horizontal do acordo de todos os comproprietários (sem embargo do necessário preenchimento de outros requisitos legais, maxime dos relacionados com a autonomização de parcelas em fracções), não existe relativamente à outra situação (prédio composto por edifício e logradouro) norma semelhante que consinta a constituição, por via judicial, de outras operações urbanísticas, como a de destaque ou a de loteamento urbano, estando unicamente prevista a via administrativa em que necessariamente terão de cooperar todos os interessados.

Trata-se de uma diferença crucial, na medida em que sem norma que habilite o Tribunal a sobrepor-se às divergências entre comproprietários, estava impedida, nesse caso, a possibilidade de operar a divisão da coisa comum por uma das formas propostas pelos peritos.

Por isso, ainda que porventura estivessem presentes os demais requisitos que possibilitassem a separação material e jurídica do edifício e do respectivo logradouro, sempre faltaria norma que habilitasse o Tribunal a sobrepor-se à vontade unânime dos comproprietários, acolhendo a pretensão de apenas algum ou alguns deles.

Neste contexto, a alusão ao acordo dos comproprietários que igualmente foi considerado necessário para a constituição de propriedade horizontal surge como argumento marginal que verdadeiramente não se mostrou decisivo para o resultado que foi declarado e que foi sustentado em argumentos bem mais relevantes, partindo da ausência de norma que permitisse a divisão do prédio em duas partes.

7. Quanto à segunda questão relacionada com a admissibilidade ou não de tornas no âmbito do processo de divisão de coisa comum, a resposta é semelhante à anterior.

No caso ilustrado com a apresentação do segundo acórdão-fundamento (Ac. do STJ, de 14-10-04, www.dgsi.pt) tratava-se de um prédio integrado por casa de habitação e quintal pertencente a 6 comproprietários, segundo a proporção de 5/60 para um e 11/60 para cada um dos cinco restantes. Também não existia acordo quanto à sua divisão através do mecanismo de loteamento, o único que permitiria a atribuição a cada comproprietário de uma parcela.

Tal acórdão fundamentou a indivisibilidade do prédio numa argumentação conjugada em que sobrelevou o facto de o prédio “não poder ser fraccionado sem a realização de operação de loteamento, que depende de autorização camarária; depois, que essa autorização teria de ser requerida por todos os interessados”, sendo que a falta de acordo inviabilizava essa operação.

É verdade que nele também se refere que a divisão do prédio pela referida via exigiria que se pudessem “inteirar em espécie todos os interessados, sem que haja lugar a tornas”. Porém, tratou-se de um argumento meramente complementar (por isso se refere, ao introduzi-lo, “bem que menos imediatamente …), sobressaindo nitidamente nesse caso a necessidade de se operar uma operação de loteamento sobre a qual não havia acordo e que, além disso, nem sequer se encontrava autorizada pela entidade administrativa.

A invocação da inviabilidade da divisão por motivo da eventual necessidade de prestação e recebimento de tornas constituiu, para o caso, um argumento suplementar, não decisivo, e, por isso, sem força suficiente para levar a que este Supremo Tribunal de Justiça eleve a sua resposta ao patamar de interpretação uniformizadora.

8. Por conseguinte, não se verificando contradição substancial relativamente a qualquer das duas questões jurídicas enunciadas pelos recorrentes, não admito o recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência.

Custas do recurso a cargo dos recorrentes.

Notifique.

Lisboa, 22-3-13


Abrantes Geraldes

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[1] Contra a introdução do recurso extraordinário se pronunciou Ribeiro Mendes, Sobre o anteprojecto de revisão de recursos em processo civil, na colectânea Novas Exigências do Processo Civil, pela Associação Jurídica do Porto, pág. 232. No mesmo sentido, em face do regime agora instituído, cfr. Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8ª ed., pág. 82.
[2] Nos termos do art. 437º, nº 1, do CPP, com a nova redacção introduzida pela Lei nº 48/07, de 29 de Agosto, “quando, no domínio da mesma legislação, o STJ proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, cabe recurso para o Pleno das secções criminais do acórdão proferido em último lugar”.

[3] Segundo o art. 152º, nº 1, do CPTA, que regula o recurso para uniformização de jurisprudência:

1. As partes e o Ministério Público podem dirigir ao Supremo Tribunal Administrativo, no prazo de 30 dias contado do trânsito em julgado do acórdão impugnado, pedido de admissão de recurso para uniformização de jurisprudência, quando, sobre a mesma questão fundamental de direito, exista contradição:

a) Entre acórdão do Tribunal Central Administrativo e acórdão anteriormente proferido pelo mesmo Tribunal ou pelo Supremo Tribunal Administrativo;

b) Entre dois acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo”.
[4] Não se exige que as decisões sejam frontalmente opostas, bastando que sejam diversas, como refere Castro Mendes, Direito Processual Civil, vol. III, pág. 118.
[5] O art. 736º, nº 2, na versão anterior à reforma de 2007 esclarecia que “os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação sempre que, durante o intervalo da sua publicação, não tenha sido introduzida qualquer modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida”.