Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07B190
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: DUARTE SOARES
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO
ACTIVIDADE LEGISLATIVA
LEIS DE VALOR REFORÇADO
LEI DE CONTEÚDO PARAMÉTRICO
Nº do Documento: SJ20070614001902
Data do Acordão: 06/14/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
Responsabilidade civil do Estado decorrente da actividade legislativa.

Leis de valor reforçado no sentido de que têm um conteúdo paramétrico definidor dos pressupostos de posterior disciplina normativa e da sua consagração constitucional (art. 115º nº2 da CRP).

Da potencialidade geradora de danos da actividade legislativa e da neces-sidade, para o efeito de gerar responsabilidade civil do Estado, da exis-tência dum nexo de causalidade adequada entre a ilicitude do acto legis-lativo, enquanto violador de lei de conteúdo paramétrico, e a ocorrência dos danos.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

Município de Santo Tirso instaurou contra o Estado Português acção ordinária pedindo a sua condenação a pagar-lhe 72.923.268 contos com juros desde a citação alegando que com a publicação da Lei 83/98 de 14/12, que criou o Município da Trofa, foram violados, não só a lei quadro da criação de municípios (Lei 142/85 de 18/11) e os princípios constitucionais do estado de direito democrático consubstanciados no primado e respeito pela dignidade humana e vontade popular de escolha da comunidade social onde se quer integrar, tendo sido causa de prejuízos para o A de valor correspondente ao montante reclamado.
Contestou o R excepcionando a ilegitimidade do A; rejeitou a invocação da ilegalidade da Lei 83/98; defendeu a irresponsabilidade do Estado por actos que pratica no âmbito do poder político e da função legislativa; alegou que a norma do art. 22º da CRP não é de pendor subjectivo não atribuindo direito fundamental. Porque não tem valor reforçado, não existe violação da Lei 142/85 pela publicação da Lei 83/98. Não existe nexo causal entre o facto e o dano. À cautela, tem por exagerado o valor dos pretensos prejuízos Concluiu pela improcedência da acção.
Respondeu o A à excepção confirmando, quanto ao mais, o que alegou na petição.
Procedeu-se a julgamento e, após apresentação de alegações escritas quanto ao direito, foi proferida sentença julgando a acção procedente em parte e condenou o Estado Português a pagar ao A quantia de € 4.942.718 com juros de mora desde a citação e o Município de Santo Tirso como litigante de má fé na multa de € 178.
Conhecendo da apelação interposta por ambas as partes, a Relação do Porto julgou improcedente a do R mas procedente a do A revogando a sentença na parte em que o condenou como litigante de má fé.

Pede revista agora o R Estado através da Magistrada do MP junto da Relação a qual, concluindo as doutas alegações, formula as seguintes conclusões:
1 – A Lei 142/85 não é de valor reforçado sendo a interpretação que lhe atribui tal valor violadora do nº 2 do art. 290º da CRP.
2 – O regime jurídico de criação e instalação de novos municípios consagrado nas Leis 83/98 de 14/12 e 48/99 de 16/06, derrogou a Lei 142/85 de 18/11 nomeadamente as normas das als. e) e f) do nº1 do art.8º e b) do art.9º deste diploma.
3 – A Lei 83/98 não enferma de ilegalidade.
4 – Não se verifica na criação do município da Trofa qualquer omissão legislativa ou ilicitude nem se verificam os pressupostos da responsabilidade civil do Estado pelo que este não é civilmente responsável pelas desvantagens económicas decorrentes, para o A, da criação do município da Trofa.
5 - Foram violadas as normas dos arts. 115º nº2, 22º, 112º, nº3 e 290º nº2 da CRP e 483º nº1 e 12º nº1 do CC e 19º da Lei 48/99 de 16/6.

Respondeu o recorrido batendo-se pela confirmação do julgado.

Foram colhidos os vistos. Cumpre decidir.

Trata-se de acção instaurada nos tribunais comuns por um Município contra o Estado em que se pretende efectivar responsabilidade civil do Estado decorrente da sua actividade legislativa.
Refira-se, antes de mais, para melhor delimitar o âmbito do recurso, que as instâncias conheceram da totalidade do pedido formulado no montante global de 72.923.268 contos de alegados prejuízos decorrentes da amputação da área que passou a constituir o novo município da Trofa, ou seja, os que respei-tam:
a) à perda de receitas relativas à contribuição autárquica, ao imposto sobre veículos, à sisa, derrama e outra taxas de serviços pagos pelo sector produtivo;
b) à perda de transferência de capital (verbas provenientes do orçamento do Estado) e de rendimentos não obtidos pela perda de investimentos e oportunidades;
c) à menor capacidade de endividamento;
d) à perda de escolas, jardins de infância, feira de mercado e casa de cultura da Trofa, parte da rede viária municipal e parte da rede de água, saneamen-to e equipamento relacionado;
e) a perda de terrenos e diverso mobiliário urbano;
f) à manutenção dos custos da sobredimensão, designadamente, os respeitantes aos funcionários afectos aos serviços municipais que se tornaram ex-cedentários.

Só quanto aos prejuízos correspondentes à sobredimensão do quadro de pessoal resultante da diminuição da área e população com a criação do novo município, é que a acção procedeu e por um valor que representa, sensivelmente, 1/72 do montante reclamado, ou seja, o Município de Santo Tirso logrou obter indemnização que corresponde, apenas, a cerca de setenta vezes menos o valor que reclamou.
Daí que na presente revista se deva ter em conta, somente, a parte em que o recorrido decaiu que corresponde, naturalmente, à medida do vencimento do recorrente.
O acórdão confirmou a muito douta sentença do tribunal da Comarca de Santo Tirso,
Trata-se de acção fundada em responsabilidade civil do Estado resultante da prática de acto pretensamente ilícito compreendido nas suas atribuições legislativas através da Assembleia da República.
Isto é, seria a prática de acto de criação de legislação, ele próprio, violador da ordem jurídica vigente.
Não se trata aqui de violação do ordenamento constitucional mas antes de violação do ordenamento normativo comum o que só tem sentido se se admitir a existência de uma certa hierarquia entre leis comuns.
Ou seja, existirão algumas leis com valor reforçado.
Admite-se sem, discrepância, tal categoria de leis desde logo nos casos de autorização parlamentar para que o Governo discipline matérias de competência reservada da Assembleia da República.
As leis de autorização legislativa estabelecem os parâmetros ou limites da competência do Governo para a regulação da matéria em causa.
Se tais limites forem ultrapassados logo ocorrerá ilicitude do acto legislativo do Governo.
Porém, neste caso, será mais rigoroso falar-se de inconstitucionalidade orgânica pois se trata de invasão, pelo Governo, de área da competência legislativa reservada da Assembleia da República
Mas, como bem referem as instâncias, outras situações existem em que um acto legislativo que contrarie ordenamento anterior não deve ser tido, pura e simplesmente, como revogação das normas que regulavam de modo diferente os casos ou situações visadas.
É o caso dos diplomas legais que estabelecem, genericamente, e em abstracto, critérios de criação de instituições como sucede, precisamente com a Lei 142/85 de 18/11 que é, justamente, a lei-quadro da criação de municípios.
São aquelas leis que Gomes Canotilho nas suas lições de Direito Constitucional refere como apresentando um conteúdo de natureza paramétrica o qual serve de pressuposto material a posterior disciplina normativa.
No caso - o da lei quadro da criação de municípios relativamente ás leis que, em concreto, os criam, - estamos perante uma relação de auto vinculação pois uma e outra provêm do mesmo órgão.
É matéria reservada à Assembleia da República tanto no plano do estabelecimento dum regime geral e abstracto – pressuposto normativo necessário - que deve ser observado no acto da criação individual de cada novo município, como no acto legislativo criador, em concreto, de cada nova realidade municipal.
O problema da existência de leis comuns com tal valor tem hoje consagração constitucional no nº 2 do art. 115º da CRP – versão de 1989 – que expressamente prevê a existência de leis com esse valor não apenas as leis orgânicas, mas todas as que, nos termos constitucionais, sejam pressuposto normativo necessário de outra leis ou que por outra, devam ser respeitadas.
É o caso, claramente, da Lei 142/85 sendo indiscutível a sua diferenciação qualitativa relativamente à Lei 83/98 de 14/12 que criou o município da Trofa inteiramente destacado do município de Santo Tirso.

Da extensa matéria de facto provada que aqui se dá por inteiramente reproduzida, há que destacar, com interesse directo para conhecimento do recurso, o seguinte:
À data da criação do Município da Trofa - Dezembro de 1998 – o Município de Santo Tirso tinha um universo funcional ajustado a 103.000 habitantes e a uma área de 207 kms quadrados.
A criação do Município da Trofa fez com que a parte destacada corresponda a cerca de 32% da população do Município de Santo Tirso tal como antes se configurava e a 35% da área do mesmo concelho.,
Com custos de pessoal, no ano de 1998, o A despendeu 1.113.337 contos e, no ano de 1999, não obstante a criação do município da Trofa, manteve esse custo.

Admitindo-se a responsabilidade civil do Estado decorrente da sua actividade legislativa no pressuposto de que esta se traduziu numa ilicitude decorrente da violação de normas com valor reforçado, não pode deixar de concordar-se com o entendimento das instâncias quanto à necessidade da existência de um nexo de causalidade entre essa actividade legislativa ilícita e os prejuí-zos causados ao município de origem.
Daí que, não obstante a inobservância de todos os pressupostos previstos na lei quadro da criação de municípios – a referida Lei 142/85 - a quase totalidade dos prejuízos invocados pelo A – perda de receitas provenientes de impostos e taxas municipais, perda de transferência de capitais e de rendimentos não obtidos e de oportunidades, menor capacidade de endividamento, e todo o equipamento social ligado à área do novo município, bem como a perda de terrenos e mobiliário urbano correspondente à mesma área– constituem diminuições patrimoniais que o município de origem não deixaria de ter ainda que fos-sem rigorosamente observados todos os requisitos que a lei quadro impõe.
Já assim não sucede com os prejuízos que teve de suportar e foi suportando em consequência do sobredimensionamento dos quadros de funcionários e serviços que teve de manter, após a criação e instalação do município da Trofa não obstante a substancial diminuição quer da população quer da área resultante da amputação territorial e populacional que a criação do novo município implicou.
Tal prejuízo liga-se à inobservância, pelo Estado, através da Lei 83/98, dos arts. 9º e 8º da Lei 142/85 que omitiu as menções constantes das als. e) e f) daquele art. 8º que impunham a e) discriminação, em natureza, dos bens, universalidades, direitos e obrigações do município de origem a transferir para o novo município e f) a enunciação de critérios suficientemente precisos para afectação e imputação ao novo município, de direitos e obrigações..
Como bem assinalam as instâncias, a Lei 83/98 pretendeu remediar tal omissão através do art.4º que atribuiu à comissão instaladora prevista no seu art.3º, a competência para elaborar uma relação discriminada dos bens, universalidades de direitos e obrigações do município de Santo Tirso a transferir para o novo município.
Mas a solução prevista pela Lei 83/98 para além de brigar com a lei quadro que não prevê a delegação de competência nessa matéria, comporta um desfasamento temporal por diferir soluções que já deveriam estar nesse acto legislativo, ou seja, a lei quadro impunha que fosse o acto criador do município a estabelecer, desde logo, a discriminação dos bens e direitos a transferir e a enunciação de critérios tanto quanto precisos para sua afectação e imputação ao novo município.
Não o fez e daí resultou um elemento de ilicitude que - não afectando embora o acto de criação do novo município, como de forma brilhante e com notável profundidade conclui o douto julgador da primeira instância, com inteira concordância da Relação - envolve responsabilidade civil do Estado a qual decorre, como geralmente se vem entendendo, do art. 22º do CRP.

No recurso não é posto em causa o montante, apurado nas instâncias, do prejuízo que a sobredimensão funcional causou ao A. Por isso e porque se trata de matéria alheia ao objecto do recurso, nenhuma objecção se pode levantar a propósito.

De tudo decorre a falta de fundamento das conclusões do recurso.

Nestes termos, negam a revista sem custas por delas estar isento o recorrente.

Supremo Tribunal de Justiça, 14 de Junho de 2007

Duarte Soares (Relator)
Bettencourt Faria
Pereira da Silva