Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
656/03.2TBMTA.L1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
INTERPRETAÇÃO
ACIDENTE DE VIAÇÃO
FACTO NOTÓRIO
CASO JULGADO
ANULAÇÃO
Data do Acordão: 12/18/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS
DIREITO COMERCIAL - SEGUROS
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / AUDIÊNCIA PRELIMINAR / INSTRUÇÃO DO PROCESSO / SENTENÇA / RECURSOS
Doutrina: - Abílio Neto, “Código de Processo Civil Anotado”, 22ª edição, p. 781.
- Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil - Novo Regime, p. 396.
- Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado”, 3.°, p.-259 e ss..
– Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 2ª ed., pp.307, 308.
- Antunes Varela, Sampaio e Nora e J. Miguel Bezerra, Manual de Processo Civil, 2ª edição, pp. 688/699.
- Castro Mendes, Do conceito de prova, p. 711 e ss..
- João Castro Mendes, Direito Processual Civil, A.A.F.D.L, 1980, III vol., p. 276.
- Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, p. 304.
- Paulo Mota Pinto, Declaração Tácita, 1995, p.208.
- Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, vol. I, p. 233, em nota ao art.º 236.º do Código Civil.
- Vaz Serra, “Provas”, em BMJ 110º, p.61 e ss ..
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 236.º, 238.º, 487.º, N.º2.
CÓDIGO COMERCIAL (C.COM.): - ARTIGO 427.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 510.º, N.º1. AL. B), 514.º, 668.º, N.º2, D), 672.º, 675.º, 729.º, N.º3, 730.º, N.º1.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 14.1.1997, IN CJSTJ, 1997, I, 47.
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:
-Nº304/88, DE 14.12, IN BMJ, 382,231.
Sumário :
I. Ao contrário do que sucede com o Supremo Tribunal de Justiça que pode anular o Acórdão da Relação, nos termos do nº3 do art. 729º do Código de Processo Civil, consignando este normativo que a decisão de facto pode e deve ser ampliada em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, ou quando ocorrem contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do pleito, tendo, no entanto, que definir o direito aplicável a que o Tribunal da Relação fica vinculado nos termos do nº1 do art. 730º daquele Código, o mesmo não sucede como consequência da anulação pela Relação da sentença com vista à ampliação da matéria de facto.

II. Se nos fundamentos do Acórdão da Relação que revogou o despacho saneador-sentença para ampliação da matéria de facto, se afirma que “alguns dos danos sofridos pela Autora estarão ao abrigo do contrato que cobre danos próprios por choque e inundação”, esta consideração não faz caso julgado material, no sentido de vincular o tribunal de primeira instância a decidir no sentido afirmado. A decisão da Relação apenas tem força no contexto da relação processual dentro do processo, sendo que tal referência foi decisiva para a anulação do julgamento, por motivo exclusivamente processual, a extemporaneidade da decisão de mérito no despacho saneador.

III. Um declaratário normal colocado na posição do real declaratário, mesmo sendo o contrato de seguro um contrato de adesão, não poderá, razoavelmente, integrar a previsão de dano provocado por forças da natureza, no facto de um jeep ter ficado atolado numa zona de inundação pelas águas do rio, na subida da maré, ao ter sido conduzido numa estrada de terra batida que desemboca na margem do Rio Tejo e onde não era possível, pela largura da via, fazer inversão de marcha, ficando a roda traseira esquerda presa numa depressão lodosa, existente no local, coberta por areia e da qual o condutor não se apercebeu.

IV. O conceito “forças da natureza” constante da apólice do contrato de seguro em apreço associa, no caso, tal como decorre da cláusula 104ª, da apólice, itens 1.1 a 1.4, [tempestades, inundações, fenómenos sísmicos e movimento de terras], a consideração do sinistro se dever, exclusivamente, aos eventos aí previstos, não podendo, de modo algum, para eles concorrer a vontade humana: postula, assim, factores de inevitabilidade e externidade, atribuíveis a factos que em nada dependem da actuação do homem.

V. A subida da maré não pode qualificar-se como inundação, no contexto da cláusula 104ª da apólice, sobretudo, considerando que tendo ficado a viatura parcialmente submersa, por não ter sido atempadamente retirada de uma zona que, inexoravelmente, seria atingida pela subida da maré do rio Tejo. A subida da maré, sendo um fenómeno natural “derivado da força da natureza”, não é um facto imprevisível e, hoc sensu, não preenche o conceito de inundação que nos termos da apólice não prescinde do factor “imprevisibilidade”.

VI. Para ajuizar da subitaneidade, carácter fortuito e violento alheio à vontade do tomador do seguro, a que alude a apólice, não se pode prescindir da apreciação da actuação do condutor do veículo segurado, no concreto circunstancialismo em que o fez de harmonia com o padrão do bonus pater famílias.

VII. Sendo o veículo segurado um jeep a que se associa a ideia de estar mecanicamente dotado para circular em vias nas quais um vulgar automóvel não pode circular com idêntica segurança, não constitui facto notório que esse veículo tem tracção às quatro rodas e que está preparado para entrando, por exemplo, numa zona íngreme ou pedregosa, ou numa zona com lodo, possa circular/manobrar sem risco de acidente.

VIII. Um cidadão comum, uma pessoa medianamente informado, dispondo da informação a que a generalidade das pessoas acede, não tem conhecimento das características técnicas dum veículo automóvel, desta ou daquela marca; o facto de ser um jeep associa a ideia de um veículo robusto com características que o diferenciam de um vulgar automóvel pela sua potência e capacidade para percorrer vias onde àqueles é mais difícil circular. Quanto mais o condutor do veículo for pessoa experimentada e familiarizada com as suas características, mais exigente deve ser o juízo que houver de fazer acerca do modo como o utiliza.

IX. A realização duma manobra de inversão de marcha num areal, perto de um rio, que “escondia” uma depressão lodosa onde ficou presa a roda traseira esquerda do jeep e da qual o condutor não se apercebeu, não preenche o requisito de causa súbita; desde logo, porque ao avançar na estrada de terra batida até ao ponto da manobra, um condutor razoavelmente prudente (não dizemos, sequer, experiente) teria que prever que, tratando-se de uma zona com areia e próxima do rio, não seria de excluir a existência de lodo.

X. A imobilização do veículo, preso no lodo, não se deveu a uma causa que o condutor não tivesse podido representar nas circunstâncias em que agiu; nessa medida o condutor foi imprudente, agindo com culpa/negligência, quiçá confiando que o jeep realizaria a manobra, escapando da zona lodosa.

XI. Relevante, no processo causal do sinistro, mas não indissociável da causa primeira que é causa eficiente do dano, é o facto de ser previsível que, pela subida da maré, não sendo o veículo retirado, como não pôde ser, sofreria dano por causa da inundação; o jeep estava atolado numa zona lodosa e o fenómeno das marés não é, igualmente, um acontecimento súbito, nem fortuito, mas previsível.

XII. No quadro factual descrito, ponderada a actuação do condutor do jeep, não se pode considerar, à luz dos conceitos convocáveis definidos na apólice, que ocorreu um acidente de viação causalmente devido a factos subsumíveis aos conceitos de “subitaneidade, carácter fortuito e violento alheio à vontade do tomador do seguro.”
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


            AA, Sociedade de Advogados, intentou, no dia 26 de Março de 2003, no Tribunal Judicial da Comarca da Moita – 3º Juízo – acção declarativa de condenação, com processo ordinário – contra:

  BB, S.A.

 Pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 39 603,03 (sendo € 36 661,65 relativos ao valor do veículo automóvel com a n°000000, € 500 concernentes a despesas com o seu reboque e € 2 442,38 relativos ao aluguer de duas viaturas de substituição), acrescida de juros de mora à taxa legal a contar da citação.

Alegou, em síntese, que, no dia 26 de Dezembro de 2002, junto à Praia do Rosário, freguesia do Rosário, Moita, ao executar uma manobra de inversão de sentido de marcha, o seu veículo n°0000000 ficou atolado em zona arenosa, nas proximidades do rio, onde acabou por ficar parcialmente submerso pelas águas, devido à subida da maré.

Em consequência desse “acidente de viação” a Autora ficou privada do veículo, então avaliado em € 36 661,65 e logo considerado não recuperável, teve de recorrer a veículos de substituição, com o que despendeu € 2 442,38 e suportou os custos com o reboque no valor de € 500, valores estes pelos quais a ré é responsável por virtude do contrato de seguro do ramo automóvel/opção VIP, titulado pela apólice n°0000000000, que garante este tipo de riscos.

A ré, em contestação, alegou que o sinistro não estava abrangido pelo contrato de seguro, sob o argumento de este não cobrir simples avarias do veículo e as que ocorreram não terem resultado de acidente de viação.

 Logo no despacho saneador a ré foi absolvida do pedido, decisão que veio a ser anulada por acórdão, de 3 de Junho de 2004, deste Tribunal da Relação de Lisboa, que ordenou que os autos prosseguissem, devendo proceder-se à enunciação dos factos assentes e à elaboração da base instrutória (fls. 189).

Cumprido o ordenado, corridos os subsequentes termos processuais, foi proferida nova sentença a julgar a acção improcedente e a absolver a ré Companhia de BB, S.A. do pedido.

Inconformada, apelou a Autora para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por Acórdão de 16.2.2002 – fls. 504 a 518 –, negou provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.

De novo inconformada, a Autora recorreu para este Supremo Tribunal de Justiça e, alegando, formulou as seguintes conclusões:

a) A Recorrente imputou à sentença proferida em primeira instância a nulidade, por falta de fundamentação, quando decide que “Dado o contexto e interpretação segundo o disposto no art. 236°, n°1 e 238º, n°1, do Código Civil e o contexto, a referida garantia de indemnização em consequência de causa súbita, fortuita e violenta, alheia à vontade do tomador, segurado ou condutor, dado o respectivo contexto, reporta-se aos casos em que o evento envolve um choque, uma colisão ou um capotamento”, é decidir sem fundamentar.

b) Porque a frase em si não é inteligível, impossibilitando que dele se perceba a ideia que aí se tenha pretendido expressar; E porque, dessa “frase”, não resulta qualquer argumento de ordem fáctico-jurídica (apenas se identificam regras relativas à interpretação dos contratos, sem se especificar em que termos foi feita a operação de subsunção, ou seja, sem se identificar, em concreto, qual o “contexto” do qual resulta que a referida cláusula (ou condição especial) se reporta “aos casos em que o evento envolve um choque, uma colisão ou um capotamento”).

Surpreendentemente,

c) O Acórdão recorrido contorceu e distorceu a argumentação ventilada nas alegações de Recurso da ora Recorrente e confundindo a falta de fundamentação com a contradição entre os fundamentos e a decisão, veio concluir que o que a Recorrente imputou à sentença, foi este outro vício, e não aquele que ipsis literis resulta das alegações de recurso (como se as alíneas b) (falta de fundamentação] e c) [Contradição entre os fundamentos e a decisão], não fossem questões distintas, ambas, individualmente identificadas no art. 668°, n°1, Código de Processo Civil.

d) Com isso, o Acórdão recorrido incorreu em erro de julgamento, mas também, em nulidade, por omissão de pronúncia, ao não decidir a questão que lhe foi expressamente suscitada nas alegações do Recurso que [não] decidiu, nos termos do art. 668°, n°2, al. d).

Por outro lado,

e) O Acórdão recorrido incorre também em erro de julgamento, no que respeita à nulidade, por violação do caso julgado, invocada nas alegações do Recurso interposto para o Tribunal da Relação, obnubilando olimpicamente a lição de Teixeira de Sousa, (in “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, Lex, Lisboa, 1997, 2ª Edição, p. 578), que com rara clareza de raciocínio, esclarece que “Não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão”.

Neste enquadramento,

f) Como pode ser possível defender que não há ofensa do caso julgado, quando o Tribunal da Relação, em Acórdão anterior à prolação da Sentença, após analisar as clausulas da apólice e os factos em questão (que foram provados!) decidiu que “As inundações compreendem... ainda enxurrada ou transbordamento do leito de cursos de água naturais ou artificiais”; razão pela qual, “Salvo melhor opinião, alguns dos danos sofridos pela Autora estarão ao abrigo do contrato que cobre danos próprios por choque e inundação.”; Ao passo que a Sentença proferida posteriormente ao Trânsito em julgado desse Acórdão, veio decidir que “Dado o texto das cláusulas contratuais relativas à cobertura e danos derivados de tempestades, inundações, transbordamentos de águas, fenómenos sísmicos e movimentos de terras, a conclusão também é no sentido de que as circunstâncias que foram causa da perda total do jeep da autora nelas se não enquadram”.

g) A sentença proferida em primeira instância, confirmada pelo Acórdão recorrido, ao decidir que “Dado o texto das cláusulas contratuais relativas à cobertura de danos derivados de tempestades, inundações, transbordamentos de águas, (...) a conclusão também é no sentido de que as circunstâncias que foram causa da perda total do jeep da autora nelas se não enquadram”, violou a força de caso julgado adquirida pelo Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em 03 de Junho de 2004, que revogou primeira decisão de mérito proferida pelo Tribunal a quo e em que se decidiu que «As inundações compreendem (...) transbordamento do leito de cursos de água naturais ou artificiais» e «alguns dos danos sofridos pela Autora estarão ao abrigo do contrato que cobre danos próprios por choque e inundação”, pelo que deverá ser declarada nula, por força do disposto no art. 675.° do Código de Processo Civil, com as legais consequências.

Por outro lado,

h) A decisão da primeira instância, foi totalmente omissa relativamente à razão pela qual se conclui pela inaplicabilidade das condições especiais 104ª da apólice, fazendo uma bizarra equiparação do conceito “forças da natureza” à “causa violenta” sem expender um único fundamento “fáctico-jurídico”que permita compreender como deu tamanho salto no raciocínio, o que tudo inculca na nulidade sentença recorrida, por falta de especificação dos fundamentos jurídicos em que se sustenta, nos termos do art. 668°, n°1, al. b), do Código de Processo Civil.

E,

i) Ainda no que respeita à inaplicabilidade das condições especiais 104ª, tendo o Tribunal reconhecido que o local do acidente era uma zona de inundação, e considerado que as inundações estão cobertas pelas condições especiais da Apólice, a decisão é nula, nesta parte, por contradição entre os fundamentos e a decisão, nos termos do art. 668°, n°1 al. c), do Código de Processo Civil.

E como a falta de fundamentação raramente deixa de resultar da falta de fundamento,

j) As decisões proferidas pela primeira instância e pela Relação (a decisão recorrida) violam flagrantemente os artigos 236°, n°1, e 238°, n°1, do Código Civil, fazendo uma incompreensível restrição do campo de aplicação das condições especiais 104ª da apólice, que conforme foi decidido no Acórdão que a precedeu, é claramente aplicável ao caso dos autos, quer porque a subida da maré constitui uma manifestação das “força da natureza”, quer porque, na realidade, da cláusula 104.3.3.a), resultam até excluídos os danos causados pela subida da maré, mas por acção do mar, não decorrendo dessa exclusão os danos causados em zona de inundação pelas águas do rio.

k) Acresce que, o circunstancialismo do sinistro dos autos sempre se subsumiria a uma causa fortuita, nos termos previstos nas condições especiais 115ª-2, como aliás foi já decidido na primeira sentença proferida nos presentes autos.

l) Causa fortuita, é toda aquela que não puder ser imputada, num raciocínio de causalidade adequada e a título de culpa, a uma determinada acção humana, como é o caso de um sinistro que consistiu na submersão da viatura pelas águas do rio Tejo, na subida da maré, após ter ficado atolada no areal que ladeava a estrada, em que o condutor entrou, para inverter do sentido de marcha (e porque a estrada, no local onde se imobilizou o veículo, não possibilitava fazê-lo de outra forma) tendo a roda traseira esquerda ficado presa numa depressão lodosa existente no local, coberta pela areia e da qual aquele’ condutor (por oculta) não se poderia aperceber.

m) Constituindo igual — ou mais gritante ainda — violação do disposto no art. 236°, n°1 e 238°, n°1, do Código Civil restringir os conceitos de causa súbita, fortuita e violenta «(...) aos casos em que o evento envolve um choque, uma colisão ou um capotamento», quando é intuitivo que, um veículo automóvel não capota nem colide com coisa alguma, por causa súbita ou fortuita quando se encontre «imobilizado ou em curso de transporte», quando na referida cláusula se prevê que os próprios derivados a choque, colisão e capotamento, ficam expressamente abrangidos. Sem prejuízo de se abrangerem outros, que não são por essa via excluídos.

n) Para o sinistro concorreram dois factos distintos, ambos totalmente imprevisíveis: o veículo todo-o-terreno da autora ter ficado atolado, por uma das rodas ter ficado presa numa depressão lodosa coberta pela areia (que não era uma zona lodosa e que a própria Ré alegou ser seca!) E após, com a subida da maré, o veículo ter ficado submerso.

o) É FALSO que o veículo da Autora tenha ficado atolado numa «zona lodosa» pois tal expressão afasta-se incomensuravelmente do facto que ficou provado: «a roda traseira esquerda ficou presa numa depressão lodosa existente no local».

p) É do conhecimento geral, constituindo facto notório, nos termos do art. 514°, n°1 do Código de Processo Civil, que um veículo vulgo “jeep” é um veículo apto a circular em terrenos de difícil tracção, razão pela qual os veículos “todo o terreno” sejam conhecidos pela expressão “Jipe”.

q) Neste enquadramento, se a culpa é avaliada tendo como modelo a diligência típica do bom pai de família, é manifesto que o condutor não agiu culposamente, pois não poderia prever a possibilidade de um jeep ficar atolado numa depressão lodosa oculta, existente nas areias que ladeavam uma estrada de terra batida nas margens do rio, nem tão pouco, que essa zona (e a própria estrada) ficasse submersa pelas águas, na subida da maré.

r) Após reconhecer que «a imobilização da mesma nesse local, com a subsequente submersão parcial e danos daí derivados, integrará o conceito de acidente devido a causa fortuita alheia à vontade do condutor (...)”, o Acórdão recorrido vem concluir que a “a ré não pode ser responsabilizada» porque “ (...) os danos verificados, que resultaram do facto de o veículo ter vindo a ficar parcialmente submerso, não derivam de qualquer causa súbita ou fortuita decorrente da condução e circulação do veículo, mas tão somente do mesmo não ter sido tempestivamente removido do local onde ficou imobilizado.” e que “não tendo a autora logrado provar que fez todas as diligências possíveis para evitar o dano ou o seu agravamento (...), afigura-se-nos que a ré não pode ser responsabilizada por virtude do contrato do seguro em causa.”.

s) A decisão recorrida obnubilou os factos provados 5) e 6), que impõe conclusão jurídica diametralmente oposta à que foi expendida no Acórdão recorrido, pois “5 – O reboque não conseguiu circular na areia, pelo que não pode executar a operação de retirar a viatura com a 0000000.”; “6- Às 17 horas já estava a anoitecer e a maré estava a subir, pelo que nessa altura já não era possível fazer chegar ao local, em tempo, um tractor que pudesse circular na areia, para a viatura, operação que só poderia ser realizada na manhã do dia seguinte, após a descida da maré, e a viatura ficou parcialmente submersa pelas águas”.

t) A Autora provou que tudo fez para remover a viatura do local, antes da subida da maré! Provou que o reboque que chamou e compareceu no local, não conseguiu retirar a viatura, e provou que a viatura só foi retirada do local no dia seguinte, porque a maré subiu e anoiteceu, o que impossibilitou a execução dessa operação no mesmo dia, tendo o veículo ficado entretanto submerso pelas águas, causa da sua destruição.

u) Por outro lado, o Acórdão recorrido, reconhecendo a aplicabilidade abstracta das condições especiais 115ª, ao contrário do que ocorrera na Sentença proferida em primeira instância, vem depois, recorrer a um circunstancialismo abstracto e distorcido, para negar a responsabilidade da Seguradora Ré e a talhe de foice, vem considerar que o lesado teria de provar a sua falta de culpa, em flagrantemente violação das regras de distribuição do ónus da prova, pasmadas no art. 342°, do Código Civil e do disposto no art. 570º, do Código Civil, que aplica sem que tal aplicação pudesse alguma vez ter lugar!

v) Assim, só por cautela de patrocínio, sempre se dirá que o Acórdão recorrido é nulo por falta de fundamentação, não só porque não subsume esta pretensa culpa da Autora a qualquer instituto ou norma jurídica (nem sequer implicitamente), como ainda, porque, face aos factos provados (5 e 6, supra transcritos), não esclarece (em termos que sejam próprios de um raciocínio judiciário) “o que” mais (para além do que provou) teria a Autora teria de provar, como ainda, não expõe porque razão pela, tendo a Autora logrado provar a sua falta de culpa na produção dos danos [que o reboque que chamou e compareceu no local, não conseguiu retirar a viatura, e provou que a viatura só foi retirada do local no dia seguinte, porque a maré subiu e anoiteceu, o que impossibilitou a execução dessa operação no mesmo dia, tendo o veículo ficado entretanto submerso pelas águas, causa da sua destruição], teria ainda de “provar que fez todas as diligências possíveis para evitar o dano ou o seu agravamento, nem tendo sequer recorrido à ré, como podia, para a ajudar a desincumbir-se dessa missão”, ou sequer, com base em que regras de distribuição do ónus da prova, chegou a tão bizarra decisão.

Termos em que deverá ser concedido provimento ao presente recurso, anulando o Acórdão recorrido, que deverá ser substituído por Acórdão que declare a acção provada e procedente, condenando a Ré no pedido.

A Ré contra-alegou, pugnando pela confirmação do Acórdão.

Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta que a Relação considerou provados os seguintes factos:

1. Representantes da autora e da Companhia de BB, S.A, declararam por escrito, consubstanciado na apólice n° 0000000000, em 4 de Abril de 2001, a última assumir o risco emergente da circulação do veículo automóvel com a n° 0000000, mediante o pagamento do prémio anual de € 1 539,50 a pagar pela primeira.

2. No dia 26 de Dezembro de 2002, pelas 16.30 horas, na freguesia do Rosário, concelho da Moita, junto à Praia do Rosário, CC, administrador da autora, conduzia o veículo ligeiro de passageiros, marca Jeep Grand Cherokee, com a n°0000000, numa estrada de terra batida com cerca de dois metros de largura, situada junto às instalações de Comimba, no Rosário, que desemboca na margem do Rio Tejo.

3. A largura da estrada, no local onde se imobilizou o veículo, não possibilitava a inversão do sentido de marcha, e, assim, o condutor daquela viatura entrou no areal para efectuar a referida manobra, na execução da qual a roda traseira esquerda ficou presa numa depressão lodosa existente no local, coberta pela areia e da qual aquele condutor não se apercebeu.

4. O local onde a viatura estava atolada era uma zona de inundação pelas águas do Rio, na subida da maré, e, apesar das diversas manobras executadas, não foi possível retirar a viatura, e o condutor solicitou telefonicamente, cerca das 16.30 horas, os serviços de uma empresa de reboques situada na Moita para a retirar do local, e o reboque chegou ao local entre as 17.00 e as 17.30 horas.

5. O reboque não conseguiu circular na areia, pelo que não pôde executar a operação de retirar a viatura com a n° 0000000.

6. Às 17.30 horas já estava a anoitecer e a maré estava a subir, pelo que nessa altura já não era possível fazer chegar ao local, em tempo, um tractor que pudesse circular na areia, para a viatura, operação que só poderia ser realizada na manhã do dia seguinte, após a descida da maré, e a viatura ficou parcialmente submersa pelas águas, pela subida da maré, e, no dia 27 de Dezembro de 2002, foi retirada do local por um tractor e rebocada para as instalações da Motor Park, S.A, em Lisboa.

7. Do sinistro resultou a perda total da viatura, e o valor dos salvados do veículo era de € 7 500,00, e a oficina apresentou à ré o orçamento para a reparação da viatura no valor de € 25 000,00.

8. O administrador da autora, no exercício da sua profissão, necessita de se deslocar frequentemente para fora de Lisboa, para realizar julgamentos, e para se deslocar precisa de um veículo automóvel.

9. A autora procedeu, no dia 27 de Dezembro de 2002, na Hertz, ao aluguer de uma viatura pelo prazo de quinze dias, pelo qual pagou € 1 342,38, e, no dia 10 de Janeiro de 2003, ao aluguer, na Turiscar, de uma outra viatura até 7 de Março de 2003, pelo que pagou € 1 100.

10. No dia 27 de Dezembro de 2002, a autora enviou à ré o documento de folhas 9, solicitando uma viatura de substituição, e apesar das várias diligências da primeira, conforme documentos de folhas 10 a 12 e 14, a última não respondeu.

11. A autora não participou à ré a ocorrência circunstanciada de qualquer acidente de viação, limitando-se a enviar-lhe o documento mencionado sob 10, e ao Dr. CC foi repetidamente solicitado pela ré que circunstanciasse a ocorrência e para maior facilidade preenchesse impresso respectivo com a identificação completa do condutor, data e horas exactas, local e demais circunstâncias da ocorrência.

12. A autora não deu qualquer resposta, limitando-se o Dr. CC, em fax manuscrito, a reenviar à ré a comunicação mencionada sob 10.

13. No dia 4 de Fevereiro de 2003, a ré comunicou à autora que não respondia pelos danos da viatura, por não se enquadrarem na cobertura da apólice, e esta solicitou àquela cópia da apólice do seguro.

14. Em 11 de Março de 2003, a autora voltou a solicitar à ré para lhe facultar cópia da apólice de seguro relativo à viatura n° 0000000, que lha remeteu no dia em 13 de Março de 2003.

Fundamentação:

Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se delimita o objecto – afora as questões de conhecimento oficioso – importa saber:

- se o Acórdão ora recorrido, violou o caso julgado formado, com o Acórdão da Relação de Lisboa de 3.6.2004, que anulou o despacho saneador-sentença;

- se o acórdão recorrido é nulo por falta de fundamentação e por contradição entre os fundamentos e a decisão;

- se o Acórdão ocorreu em erro de julgamento, ao não considerar o sinistro participado pela Autora como coberto pelo contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, celebrado com a Ré.

Vejamos:

A Autora demandou a Ré, pedindo, além do mais, a sua condenação a indemnizá-la por perda total do veículo automóvel marca Jeep Grand Cherokee, com a n°0000000, que considerou ter sofrido um acidente de viação, no dia 26.12.2002, sustentando que as circunstâncias em que ocorreu o facto está abrangida pelo contrato de seguro celebrado com a Ré, tese de que esta discorda veementemente.

Desde logo, sob o ponto de vista substantivo, está em causa o alegado incumprimento do contrato de seguro invocado pela Autora, proprietária e tomadora do seguro. Esta problemática passa pela análise dos riscos cobertos pela apólice.

Antes, porém, importa saber se o Acórdão agora sob censura [e, indirectamente, a sentença recorrida], violaram o caso julgado formado com o Acórdão da Relação de Lisboa de 3.6.2004.

Analisando o processo, evidencia-se que a disputa que, desde há mais de nove anos, envolve as partes foi decidida no despacho saneador-sentença de 15.7.2003 – fls. 120 a 130 – que, considerando que a questão decidenda era apenas de direito – interpretação da cláusulas do contrato de seguro – mormente as coberturas constantes das “Condições Gerais” do contrato, como resulta claramente da decisão a fls. 124 – “Da leitura das mesmas, e no confronto com o sinistro descrito, resumimos a questão à interpretação das coberturas designadas de “Choque, Colisão Capotamento”, “Forças da Natureza”; “Veículo de Substituição” e “Assistência Auto Permanente”, pois que as restantes, como já a sua designação indicia, e as respectivas cláusulas o confirmam, nada têm a ver com o sinistro…”.

Analisando as coberturas “Choque, Colisão Capotamento”, e “Forças da Natureza” a decisão considerou que o sinistro estava excluído da respectiva previsão e, assim nem sequer importaria considerar as dos demais riscos; o despacho saneador-sentença julgou a acção improcedente e absolveu a Ré do pedido.

Tendo a Autora apelado para o Tribunal da Relação de Lisboa, este Tribunal revogou a sentença, considerando prematura a decisão sobre o mérito da causa no despacho saneador, fundamentando a certo trecho:

“A questão fulcral que se coloca é a de saber se o processo, pelo seu estado, permitia já o conhecimento do mérito da causa. Alegadamente o veículo circulava numa estrada de terra batida com cerca de dois metros de largura, a qual desemboca na margem do rio Tejo. Como a largura da estrada não possibilitava a inversão do sentido de marcha, o condutor entrou com a viatura no areal para efectuar essa manobra, tendo na execução da mesma ficado com a roda traseira esquerda presa numa depressão lodosa existente no local, coberta pela areia e da qual o condutor não se apercebeu. Esse local era uma zona de inundação pelas águas do rio na subida da maré, que atingiria o seu nível máximo cerca das 18h30.

Não tendo sido possível a remoção do veículo no dia do sinistro acabou por ficar submerso pela água até ao dia imediato, daí advindo os danos cujo ressarcimento vem pedido.

Salvo melhor opinião, alguns dos danos sofridos pela Autora estarão ao abrigo do contrato que cobre danos próprios por choque e inundação.

Assim sendo, afigura-se-nos que o processo ainda não fornece todos os elementos indispensáveis para que se conheça imediatamente do mérito da causa nos termos do art. 510º, nº1. al. b) do Código de Processo Civil, impondo-se o prosseguimento dos autos com vista à selecção dos factos assentes e elaboração da base instrutória, com a consequente anulação da sentença”. (destaque nosso)

 Como a decisão proferida, na sequência da anulação da matéria de facto, veio a julgar de novo a acção improcedente, considerando o sinistro não abrangido pela Apólice, a Autora, no recurso de apelação que interpôs do saneador-sentença, considerou que a decisão, ao não ter em conta o que o Acórdão anulatório referiu no que respeita à consideração de que alguns dos danos sofridos pela Autora estarão ao abrigo do contrato que cobre danos próprios por choque e inundação, desconsiderou aquele segmento da decisão e, dessa forma, violou o caso julgado.

O Acórdão recorrido, chamado a decidir esta questão, considerou que, no caso, a decisão da Relação não fez caso julgado, já que, anulando a decisão para ampliação da matéria de facto, apenas considerou a probabilidade de alguns dos danos sofridos pela Autora estarem ao abrigo do contrato que cobre danos próprios por choque e inundação, considerando que, como “solução plausível” deveria ser ponderada, factor essencial para ordenada ampliação da matéria de facto.

No Acórdão recorrido, considerou-se que aquele Acórdão anulatório da mesma Relação, não se pronunciou sobre a decisão de mérito e, quanto a ela, não fez caso julgado material, senão caso julgado formal que apenas obrigava a 1ª Instância a ampliar a matéria de facto para proferir ulteriormente decisão de meritis.

“Caso julgado é a alegação de que a mesma questão foi já deduzida num outro processo e nele julgada por deci­são de mérito que não admite recurso ordinário” – Antunes Varela, “Manual de Processo Civil”, 2ª ed. -307.

É material o que assenta sobre decisão de mérito proferida em processo anterior; nele a decisão recai sobre a relação material ou substantiva litigada; é formal quando há decisão anterior proferida sobre a relação pro­cessual.

Ele pressupõe a repetição de qualquer questão sobre a relação pro­cessual dentro do mesmo processo (ob. cit., 308).

 Ambos pressupõem o trânsito em julgado da decisão anterior”.

Como ensina o Professor Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1979, pág. 304, o caso julgado formal consiste na força obrigatória que os despachos e as sentenças possuem relativa e unicamente à relação processual, dentro do processo, excepto se não for admissível o recurso de agravo consiste na preclusão dos recursos ordinários, na irrecorribilidade, na não impugnabilidade”.

 O Prof. João Castro Mendes, in “Direito Processual Civil”, A.A.F.D.L, 1980, III vol. pág. 276, ensina que o “caso julgado formal traduz a força obrigatória dentro do processo”, contrariamente ao caso julgado material, cuja força obrigatória se estende para fora do processo em que a decisão foi proferida.

Estamos, pois, apenas perante caso julgado formal – art. 675º do Código de Processo Civil – que só poderia ter sido violado, se, sob o ponto de vista processual, a 1ª instância não tivesse acatado a decisão da Relação quanto à ampliação da matéria de facto.

Como a 1ª Instância cumpriu essa decisão não violou o caso julgado formado pelo Acórdão anulatório, não estando sequer impedida de apreciar a questão de mérito numa perspectiva não coincidente com a afirmação feita no Acórdão anulatório que, ademais, ao considerar que “alguns dos danos sofridos pela Autora estarão ao abrigo do contrato que cobre danos próprios por choque e inundação”, expressa uma hipótese, uma possibilidade “alguns danos…estarão…”. A decisão da Relação apenas tem força no contexto da relação processual, dentro do processo, sendo que aquela alusão foi decisiva para a anulação do julgamento, por motivo exclusivamente processual,  a extemporaneidade da decisão de mérito no despacho saneador.

Ao contrário do que sucede com o Supremo Tribunal de Justiça que pode anular o Acórdão da Relação, nos termos do nº3 do art. 729º do Código de Processo Civil – consignando este normativo que a decisão de facto pode e deve ser ampliada em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, ou quando ocorrem contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do pleito, tendo, no entanto, que definir o direito aplicável a que o Tribunal da Relação fica vinculado – nº1 do art. 730º daquele Código – o mesmo não sucede como consequência da anulação pela Relação da sentença com vista à ampliação da matéria de facto.

Em suma, a 1ª Instância, tendo sido anulada integralmente a decisão para ampliação da matéria de facto, cumpre o Acórdão nos precisos termos em que acata a decisão processual, já no caso de anulação pelo Supremo Tribunal de Justiça, tal anulação obriga a Relação a aplicar o direito aos factos apurados após a anulação, ou sanadas as contradições sendo esse o caso, nos termos em que, previamente, o Supremo Tribunal de Justiça definiu.

Em comentário ao art. 730º do Código de Processo Civil, cuja redacção não foi modificada pelo DL.303/2007, de 24.9, escreve o Conselheiro Abrantes Geraldes, in “Recursos em Processo Civil - Novo Regime”, pág. 396:

“Confrontando-se com uma situação em que a aplicação do direito ao caso concreto se mostra prejudicada pela deficiente selecção dos factos, em lugar da mera anulação do acórdão e da ampliação da matéria de facto, como se prevê no recurso de apelação, nos termos do art. 712.°, n.°4, cumpre ao Supremo pronunciar-se, ainda que estabelecendo alternativas, sobre o direito aplicável, antes de anular o acórdão e de ordenar a repetição do julgamento.

Nesta eventualidade, ficando definitivamente resolvida a solução no campo da aplicação ou interpretação do direito ou da determinação do direito aplicável, cumprirá à Relação pronunciar-se sobre os factos cuja falta foi detectada, subsumindo-os, depois, de modo vinculativo, ao que tiver sido predeterminado pelo Supremo.”

O caso julgado formal, questão que está em causa no recurso, tal como o caso julgado material, visam evitar a repetição de decisões judiciais sobre a mesma questão.

Ao caso julgado formal alude o art. 672º do mesmo diploma –  “Os despachos, bem como as sentenças, que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo, salvo se por sua natureza não admitirem o recurso de agravo”.

Pressuposto essencial do caso julgado formal é que uma pretensão já decidida no contexto meramente processual do processo e que não foi recorrida seja objecto de repetida apreciação: se assim acontecer transita em julgado a decisão primeiramente prolatada que prevalecerá se for contraditória com a segunda – art. 675º, nº1, do Código de Processo Civil.

Concluímos, assim, que o Acórdão, tal como a sentença recorrida, objecto do segundo recurso de apelação, não violaram o caso julgado (formal) formado com o Acórdão de 3.6.2004.

Passemos à questão da nulidade do Acórdão.

A recorrente considera que o Acórdão confundiu a falta de fundamentação com a contradição entre os fundamentos e a decisão, afirmando que fora aquele o vício apontado à decisão apelada, quando o vício que esta invocou foi o da falta de fundamentação, assim incorrendo em erro de julgamento e, por isso, também em nulidade por omissão de pronúncia – art. 668º, nº2, d) do Código de Processo Civil – cfr. conclusões c) d) e v) das alegações.

Importa dizer que, pese embora se tratar de questão de índole processual, a recorrente liga-a à questão de fundo, razão pela qual não pode ser abordada, desenquadrada da apreciação que fez do mérito da pretensão recursiva.

 Salvo o devido respeito, o Acórdão não enferma dos vícios que lhe são assacados.

Nas alegações do recurso de apelação, a fls. 457 a 459, a recorrente fundou a nulidade da sentença recorrida na interpretação que a sentença fez da Cláusula 115ª-2 da apólice, considerando que o segundo parágrafo do excerto [que cita no art. 9º[1]], “Não faz qualquer sentido lógico impossibilitando que dele se perceba a ideia que aí se pretendia expressar”, acrescentando ainda – arts. 10º a 13º – Em segundo lugar, da fundamentação supra transcrita nunca resultaria qualquer argumento de ordem fáctico-jurídica.

Efectivamente, são ali indicadas duas normas legais (art. 236°, n°1 e 238°, n°1, do Código Civil), generalisticamente aplicáveis ao caso dos autos. Não se refere, nem se depreende, qual o “contexto” do qual resulta que a referida cláusula (ou condição especial) se reporta “aos casos em que o evento envolve um choque, uma colisão ou um capotamento”. Ainda no contexto da arguida nulidade da sentença, a recorrente censura a interpretação da Cláusula 104º da apólice e do conceito a que alude “são forças da natureza, designadamente…”, criticando a decisão pelo facto de se ter entendido que a cláusula aludia ao conceito de “causa violenta”.

Em síntese e quanto à arguição de nulidade da sentença afirmou a recorrente, nos arts. 25º e 26º das alegações, a fls. 459:

 “Pelo que, não aduzindo qualquer fundamento “fáctico-jurídico” do qual resulte a equiparação do conceito “forças da natureza” à “causa violenta” que refere inexistir (não constando sequer que se faça tal equiparação e sem que se perceba como se deu tamanho salto no raciocínio),

 Nem tão pouco esclarecendo qual o “contexto” em que “segundo o disposto no art. 236°, n°1 e 238°, n°1, do Código Civil (…) a referida garantia de indemnização em consequência de causa súbita, fortuita e violenta, (…) reporta-se aos casos em que o evento envolve um choque, uma colisão ou um capotamento», a sentença recorrida é nula por falta de especificação dos fundamentos jurídicos em que se sustenta, nos termos do art. 668°, n°1, al. b) e n°3, do Código de Processo Civil.”

 Desde logo, importa afirmar que, em bom rigor, não estava em causa falta de fundamentação, que, como se sabe só constitui nulidade da decisão se for absoluta; mesmo que seja deficiente ou pouco aprofundada ainda aí não existe falta de fundamentação.

A obrigação de fundamentação das decisões judiciais decorre de imperativo constitucional[2] – art. 205º da Constituição da República – visando possibilitar aos destinatários da decisão o conhecimento dos fundamentos legais e factuais para que possam controlar a respectiva legalidade, e ao Tribunal de recurso para poder apreciar as razões porque se decidiu num certo sentido e seus fundamentos.

Como se pode ler no “Manual de Processo Civil”, do Professor Antunes Varela, Sampaio e Nora e J. Miguel Bezerra, 2ª edição, págs. 688/699:

“A nulidade da sentença carecida de fundamentação justifica-se por duas ordens de razões. A primeira, baseada na função dos tribunais como órgãos de pacificação social, consiste na necessidade de a decisão judicial explicitar os seus fundamentos como forma de persuasão das partes sobre a legalidade da solução encontrada pelo Estado.

Não basta, nesse ponto, que o tribunal declare vencida uma das partes; é essencial que procure convencê-la, mediante a argumentação dialéctica própria da ciência jurídica, da sua falta de razão em face da Direito.

A segunda liga-se directamente à recorribilidade das decisões judiciais.

A lei assegura aos particulares, sempre que a decisão não caiba na alçada do tribunal, a possibilidade de impugná-la, submetendo-a à consideração de um tribunal superior. Mas, para que a parte lesada com a decisão que considera injusta a possa impugnar com verdadeiro conhecimento de causa, torna-se de elementar conveniência saber quais os fundamentos de direito em que o julgador a baseou.”

Como referem os mesmos tratadistas “...não é indispensável, conquanto seja de toda a conveniência, que na sentença se especifiquem as disposições legais que fundamentem a decisão: essencial é que se mencionem os princípios, as regras, as normas em que a sentença se apoia...” – pág. 688.

Como antes dissemos, reportando a recorrente as alegadas nulidades à deficiente fundamentação da sentença, mais não faz que colocar a questão do erro de julgamento por errada interpretação do contrato e violação da lei, quanto aos cânones interpretativos convocáveis.

No que respeita à falta de clareza da fundamentação, sempre a recorrente teria ao seu alcance o direito de pedir o seu esclarecimento ou a reforma, nos termos do art. 669º do Código de Processo Civil.

No Acórdão, referiu-se como questão objecto do recurso – “Começa a recorrente por imputar à sentença recorrida o vício da sua nulidade, por falta de fundamentação e contradição entre os fundamentos e a decisão, nos termos do n°1, alíneas c) e d) do art. 668° do Código de Processo Civil”.

Desde logo, se verifica que foi considerada a “falta de fundamentação” muito embora se tenha aludido ao fundamento da al. c) do art. 668º, nº1, do Código de Processo Civil, o que a recorrente censura, afirmando que o Acórdão “contorceu e distorceu a argumentação ventilada nas alegações de Recurso da ora Recorrente e confundindo a falta de fundamentação com a contradição entre os fundamentos e a decisão, veio concluir que o que a Recorrente imputou à sentença, foi este outro vício, e não aquele que ipsis literis resulta das alegações de recurso (como se as alíneas b) (falta de fundamentação] e c) [Contradição entre os fundamentos e a decisão], não fossem questões distintas, ambas, individualmente identificadas no art. 668°, n°l, do Código de Processo Civil”.

No que releva é que o Acórdão, interpretando correctamente o sentido da alegação da recorrente, considerou que a falta de fundamentação alegada pela Autora se reportava à deficiência da sentença quanto à sua inteligibilidade e apreciou a questão suscitada, escrevendo a propósito e pertinentemente – “ […] Na realidade, o que a recorrente, no fundo, invoca é um erro de interpretação e aplicação do clausulado no contrato aos factos, o que não pode ser confundido, nem com falta (absoluta) de fundamentação (que a recorrente reconhece não existir), nem com contradição lógica entre os fundamentos e a decisão. Não se verifica, assim, o vício de nulidade imputado à sentença recorrida.”

Concluímos, assim, que o Acórdão apreciou a nulidade invocada pela recorrente, inexistindo qualquer omissão de pronúncia; ademais e, como antes dissemos, o Acórdão enquadrou também essa questão na apreciação do mérito do recurso, apreciando-a na perspectiva de saber se a decisão incorreu em erro de julgamento.

Finalmente, questão nodal do recurso, importa saber se a Ré, como seguradora, é responsável pelos danos verificados no veículo da Autora.

A causa de pedir radica no alegado incumprimento do contrato de seguro que Autora e a Ré celebraram, em 4.4.2001, assumindo esta o risco emergente da circulação do veículo automóvel com a 0000000, que, como se sabe do processo, é um Jeep Grand Cherokee.

Sendo inquestionável que está em causa um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, rege-se ele pelas estipulações constantes da respectiva apólice, desde que não proibidas por lei e, na sua falta ou insuficiência, pelas disposições legais aplicáveis – art. 427º do Código Comercial, ao tempo vigente. O contrato na respectiva apólice tem cláusulas gerais e condições especiais.

Por se tratar de um contrato formal, as regras de interpretação aplicáveis constam do art. 238º do Código Civil:

 “1. Nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso.
2. Esse sentido pode, todavia, valer, se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade.”
A magna questão que o recurso coloca é a de saber se a apólice – tendo em conta as condições gerais e especiais dela constantes – abrange os danos que a Autora, enquanto segurada e tomadora, pretende ver ressarcidos.

Antes de tudo, importa saber quais os riscos que o contrato abrangia para depois, em função dos factos que despoletaram o sinistro, na tese da Autora, apurar se a Ré se constituiu na obrigação de indemnizar.

O seguro cobria a responsabilidade civil facultativa, os danos próprios sofridos pelo veículo segurado, indicados nas cláusulas:

 100ª - Extensão da Responsabilidade Civil Facultativa,

 104ª - Forças da Natureza,

 115ª - Danos no veículo,

 116ª - Incêndio, Raio e Explosão,

 117º - Furto e Roubo,

 118ª - Quebra Isolada de Vidros,

 120ª - Veículo de Substituição.

O sinistro ocorreu no seguinte circunstancialismo de harmonia com os factos considerados provados pela Relação:

 “No dia 26 de Dezembro de 2002, pelas 16.30 horas, na freguesia do Rosário, concelho da Moita, junto à Praia do Rosário, CC, administrador da autora, conduzia o veículo ligeiro de passageiros, marca Beep Grand Cherokee, com a n°0000000, numa estrada de terra batida com cerca de dois metros de largura, situada junto às instalações de Comimba, no Rosário, que desemboca na margem do Rio Tejo.

 A largura da estrada, no local onde se imobilizou o veículo, não possibilitava a inversão do sentido de marcha, e, assim, o condutor daquela viatura entrou no areal para efectuar a referida manobra, na execução da qual a roda traseira esquerda ficou presa numa depressão lodosa existente no local, coberta pela areia e da qual aquele condutor não se apercebeu.

 O local onde a viatura estava atolada era uma zona de inundação pelas águas do Rio, na subida da maré, e, apesar das diversas manobras executadas, não foi possível retirar a viatura, e o condutor solicitou telefonicamente, cerca das 16.30 horas, os serviços de uma empresa de reboques situada na Moita para a retirar do local, e o reboque chegou ao local entre as 17.00 e as 17.30 horas.

 O reboque não conseguiu circular na areia, pelo que não pôde executar a operação de retirar a viatura com a n° 0000000.

Às 17.30 horas já estava a anoitecer e a maré estava a subir, pelo que nessa altura já não era possível fazer chegar ao local, em tempo, um tractor que pudesse circular na areia, para a viatura, operação que só poderia ser realizada na manhã do dia seguinte, após a descida da maré, e a viatura ficou parcialmente submersa pelas águas, pela subida da maré, e, no dia 27 de Dezembro de 2002, foi retirada do local por um tractor e rebocada para as instalações da Motor Park, S.A, em Lisboa.

Tendo em conta esta factualidade, que se considera relevante para saber se o sinistro está coberto pela apólice, desde logo, por manifestas razões são de excluir os riscos previstos nas Cláusulas 116ª – Incêndio, Raio e Explosão, 117ª – Furto e Roubo e 118ª – Quebra Isolada de Vidros que poderiam ter atinência com o acidente, não sendo de ponderar, para já, a Cláusula 120ª – Veículo de Substituição.

Decorre das alegações da recorrente que as instâncias não fizeram correcta interpretação das Cláusulas 104ª – Forças da Natureza, e 115ª – Danos no veículo – e 115ª-2.

Na cláusula 104º contêm-se as seguintes definições:

“Para efeitos desta cobertura, entende-se por:

 1.1. TEMPESTADES: tufões, ciclones, furacões, tornados e toda a acção directa de ventos fortes (considerando-se como tais aqueles cuja velocidade atinja ou exceda, em contínuo, ou em rajada, a velocidade de 80 km hora), ou choque de objectos arremessados ou projectados pelos mesmos;

                1.2. INUNDAÇÕES: tromba de água ou queda de chuvas torrenciais (precipitação atmosférica de intensidade superior a dez milímetros em dez minutos no pluviómetro); rebentamento de adutores, colectores, drenos, diques e barragens; e ainda, enxurrada ou transbordamento do leito de cursos de água naturais ou artificiais;

                1.3.FENÓMEN0S SÍSMICOS: tremores de terra. Terramotos, erupções vulcânicas, maremotos e fogo subterrâneo e, ainda, incêndio resultante destes fenómenos;

                1.4. MOVIMENTOS DE TERRAS: aluimentos, deslizamentos, derrocadas e afundamentos de terrenos, devidos a fenómenos geológicos.

 Na Cláusula 115ª – DANOS NO VEÍCULO – Choque, Colisão e Capotamento.

1.1. CHOQUE – embate do veículo seguro contra qualquer corpo fixo, ou sofrido pelo veículo quando imobilizado.

1.2 COLISÃO – embate do veículo seguro com qualquer outro corpo em movimento.

1.3 CAPOTAMENTO – situação em que o veículo seguro perca e sua posição normal (e não resulte de Choque ou Colisão).

   2. A Império não garante:

A indemnização dos danos sofridos pelo veículo seguro em consequência de acidente devido a causa súbita, fortuita e violenta, alheia à vontade do Tomador, Segurado ou condutor, quer o veículo se encontre em circulação, quer imobilizado quer em curso de transporte.

Ficam expressamente abrangidos, os danos devidos a choque, colisão e capotamento, incluindo a quebra de vidros.”

O Acórdão recorrido, analisando a previsão das Cláusulas 115ª e 104ª, concluiu que a “responsabilidade da seguradora, a existir, só poderá derivar do estatuído na parte relativa aos Danos no Veículo (115) e nunca no segmento das coberturas atinentes às “Forças da Natureza”.

 Efectivamente, vistos os factos provados deles resulta que os danos verificados no veículo segurado não resultaram de qualquer imprevisível transbordamento do leito do rio, mas do conhecido subir das águas por virtude das marés, uma vez que os factos ocorreram já no estuário do rio – nas denominadas zonas influenciadas por maré, o que constitui facto notório, nos termos do art. 514° n° 1 do Código de Processo Civil.

Mais adiante, questionado se o sinistro poderia ser abrangido pela Cláusula 115ª – Danos no Veículo –, ponderou: “Para cabal resposta deve destacar-se o seguinte. Nos termos do ponto 1.16 do art. 6º das Condições Gerais integradoras da apólice em causa, estão excluídos, entre muitos outros, os danos resultantes da circulação em locais não reconhecidos como acessíveis aos veículos seguros”.

Depois de transcrever o ponto 1.16 do art. 6º das Condições Gerais, que exclui -  “Os danos resultantes da circulação em locais não reconhecidos como acessíveis aos veículos seguros, e de analisar a previsão da Cláusula 115ª – Danos no Veículo – Choque, Colisão e Capotamento, e os seus itens 2 (“o que a Império garante”) e 3 (“o que a Império não garante”), o Acórdão referiu:

“Como bem recorda a recorrente, o veículo seguro é um jipe, nome tradicionalmente dado a um tipo de automóvel destinado ao uso off road, normalmente com tracção nas quatro rodas. A designação derivou do termo inglês Jeep (pronúncia da sigla GP, que em inglês significa general purpose (uso geral)) e que era a marca do veículo que inaugurou este segmento – o Jeep Willys.

Integra, portanto, o tipo de veículos destinado a ser utilizados na generalidade dos terrenos, pelo que os danos derivados do seu uso em terra batida e mesmo arenosa não pode integrar, no caso, o conceito de danos resultantes da circulação em locais não reconhecidos como acessíveis aos veículos seguros, para efeitos da exclusão da responsabilidade, contemplada no mencionado ponto 1.16 da cláusula 6ª das Condições Gerais.

Acresce que, dos factos provados resulta que o condutor do veículo adoptou o comportamento de qualquer condutor médio posto perante o circunstancialismo que se lhe deparou – fim do caminho de terra batida, ladeado de um areal que, aparentemente lhe permitiria executar a manobra de inversão de marcha, não fora a circunstância (imprevisível) da roda traseira esquerda ter ficado "presa numa depressão lodosa existente no local, coberta pela areia e da qual aquele condutor não se apercebeu".

Mas se, como resulta dos factos provados e contrariamente ao que aparentava, o local onde a viatura ficou atolada era uma zona de inundação pelas águas do rio, na subida da maré, e, apesar das diversas manobras executadas, não foi possível retirá-la dali pelos seus próprios meios, a imobilização da mesma nesse local, com a sua subsequente submersão parcial e danos daí derivados, integrará o conceito de acidente devido a causa fortuita, alheia à vontade do condutor, cuja indemnização pelos respectivos danos a ré seguradora esteja obrigado a garantir, nos termos da citada cláusula 115ª, 2?

A resposta afigura-se-nos que terá de ser negativa.

O dano concreto derivou da submersão parcial do mesmo e esta ocorreu, não de forma imprevista, mas porque o veículo foi mantido em zona de expectável inundação, o que não integra também o campo de previsão de cobertura constante da cláusula 115°, n°2, ainda que esta, contrariamente ao que parece poder inferir-se do texto da sentença recorrida, nos danos aí previstos, compreenda, para além dos devidos a choque, colisão e capotamento (como se deixou expressa e repetidamente consagrado), quaisquer outros, "em consequência de acidente devido a causa súbita, fortuita e violenta, alheia à vontade do Tomador, Segurado ou condutor, quer o veículo se encontre em circulação, quer imobilizado quer em curso de transporte".

 Efectivamente, os danos verificados, que resultaram do facto do veículo ter vindo a ficar parcialmente submerso, não derivaram de qualquer causa súbita ou fortuita decorrente da condução e circulação do veículo, mas tão somente do mesmo não ter sido tempestivamente removido do local onde ficou imobilizado.

Ora, assim sendo, e não tendo a autora logrado provar que fez todas as diligências possíveis para evitar o dano ou o seu agravamento, nem tendo sequer recorrido à ré, como podia, para a ajudar a desincumbir-se dessa missão, afigura-se-nos que a ré não pode ser responsabilizada por virtude do contrato de seguro em causa.

Improcede, desta forma, na totalidade a argumentação da recorrente, impondo-se manter o decidido, embora por razões não inteiramente coincidentes com as invocadas”.

A recorrente discorda da inaplicabilidade da Cláusula 104ª, que se refere aos danos derivados das “forças da natureza”, considerando que “a submersão da viatura pela subida da maré, após a roda traseira esquerda da viatura Jipe ter ficado presa numa depressão lodosa, configura um acidente decorrente de inundação, por transbordamento do leito de cursos de água”.

Discorda, igualmente, da não aplicação de Clausula 115ª, considerando que o acidente está incurso na previsão do item 2 desta Cláusula de onde decorre que o contrato de seguro garante a indemnização dos danos sofridos pelo veículo seguro em consequência de acidente ser devido a causa súbita, fortuita e violenta, alheia à vontade do tomador, segurado ou condutor, quer o veículo se encontre em circulação, quer imobilizado, quer em curso de transporte.


Importa analisar as declarações de vontade negocial plasmadas no contrato, em obediência às regras da hermenêutica jurídica – arts. 236º e 238º do Código Civil.

No que concerne à interpretação da declaração negocial rege o art. 236º do Código Civil que dispõe:

“1. A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.
2. Sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida”


“Na interpretação dos contratos, prevalecerá, em regra, "a vontade real do declarante", sempre que for conhecida do declaratário. Faltando esse conhecimento, a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante (...)”. cfr. inter alia, Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 14.1.1997, in CJSTJ, 1997, I, 47.

Os Professores Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. I, pág. 233, em nota ao art. 236º do Código Civil, ensinam:

“...A regra estabelecida no nº l, para o problema básico da interpretação das declarações de vontade, é esta: o sentido decisivo da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um declaratário normal, ou seja, media­namente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante. Exceptuam-se apenas os casos de não poder ser imputado ao declarante, razoavelmente, aquele sentido (nº 1), ou o de o declaratário conhecer a vontade real do declarante (nº 2).

(...) O objectivo da solução aceite na lei é o de proteger o declaratário, conferindo à declaração o sentido que seria razoável presumir em face do comportamento do declarante, e não o sentido que este lhe quis efectiva­mente atribuir.

Consagra-se assim uma doutrina objectivista da interpretação, em que o objectivismo é, no entanto, temperado por uma salutar restrição de inspiração subjectivista.

(...) A normalidade do declaratário, que a lei toma como padrão, exprime-se não só na capacidade para entender o texto ou conteúdo da declaração, mas também na diligência para recolher todos os elementos que, coadjuvando a declaração, auxiliem a descoberta da vontade real do declarante.”

O declaratário normal deve ser uma pessoa com – “Razoabilidade, sagacidade, conhecimento e diligência medianos, considerando as circunstâncias que ela teria conhecido e o modo como teria raciocinado a partir delas, mas fixando-a na posição do real destinatário, isto é, acrescentando as circunstâncias que este conheceu concretamente e o modo como aquele concreto declaratário poderia a partir delas ter depreendido um sentido declarativo” – Paulo Mota Pinto, in “Declaração Tácita”, 1995, 208.

Na aplicação destes ensinamentos, importa afirmar que um declaratário normal colocado na posição do real declaratário, mesmo sendo o contrato de seguro um contrato de adesão, não poderá, razoavelmente, integrar a previsão de dano provocado por forças da natureza, no facto do jeep ter ficado atolado numa zona de inundação pelas águas do rio na subida da maré, ao ter sido conduzido numa estrada de terra batida que desemboca na margem do Rio Tejo e onde não era possível pela largura da via – cerca de dois metros – fazer inversão de marcha, ficando a roda traseira esquerda presa numa depressão lodosa existente no local coberta por areia e da qual o condutor não se apercebeu.

É que o conceito “forças da natureza” associa, no caso, tal como decorre da cláusula 104º, da apólice, itens 1.1 a 1.4, [tempestades, inundações, fenómenos sísmicos e movimento de terras], a consideração do sinistro se dever, exclusivamente, aos eventos aí previstos, não podendo, de modo algum, para eles concorrer a vontade humana: postula, assim factores de inevitabilidade e externidade, atribuíveis a factos que em nada dependem da actuação do homem.

A subida da maré não pode qualificar-se como inundação, no contexto da cláusula 104ª da apólice, sobretudo, considerando que tendo ficado a viatura parcialmente submersa, por não ter sido atempadamente retirada de uma zona que, inexoravelmente, seria atingida pela subida da maré do rio Tejo.

A subida da maré, no circunstancialismo factual provado, sendo fenómeno natural “derivado da força da natureza”, não é um facto imprevisível e, hoc sensu, não preenche o conceito de inundação que aqui não prescinde do factor “imprevisibilidade”.

Mas será que o acidente ocorreu por causa súbita, fortuita e violenta?  

Se assim se puder considerar, a Ré teria que indemnizar a Autora pelos danos sofridos, ao abrigo da Cláusula 115ª-2, que antes citamos.

Nos termos dessa cláusula, a seguradora garante “A indemnização dos danos sofridos pelo veículo seguro em consequência de acidente devido a causa súbita, fortuita, e violenta, alheia à vontade (…) quer veículo se encontre em circulação, quer imobilizado querem curso de transporte”.

Para ajuizar da subitaneidade, carácter fortuito e violento alheio à vontade do tomador do seguro, não se pode decompor, nem cindir a total actuação do segurado.

            Importa não esquecer que se trata da condução de um veículo automóvel o que postula uma actuação prudente de harmonia com o paradigma do bom pai de família – art. 487º, nº2, do Código Civil – o que é relevante para saber se aqueles requisitos, todos ligados ao conceito de imprevisibilidade, no caso se verificam.

            Antes importa dizer, que sendo o veículo um Jeep a que se associa a ideia de estar mecanicamente dotado para circular em vias que não as que um vulgar automóvel pode circular com segurança proporcionada pela sua mecânica, não constitui sequer facto notório que o veículo da Autora tem tracção às quatro rodas e que está preparado, para entrando, por exemplo, numa zona íngreme ou pedregosa, ou numa zona com lodo, possa circular/manobrar sem risco de acidente.

Nem a Autora, nem a Ré alegaram o que quer que fosse sobre as características do Jeep, razão pela qual, salvo o devido respeito, não constitui facto notório[3] – art. 514º do Código de Processo Civil – o que se considerou acerca da circulabilidade do veículo em função das suas performances técnicas.

            Um cidadão comum, uma pessoa regularmente informada, com acesso à informação a que a generalidade das pessoas acede, não tem conhecimento das características técnicas dum veículo automóvel, desta ou daquela marca; o facto de ser um jeep associa a ideia de um veículo robusto com características que o diferenciam de um vulgar automóvel pela sua potência e capacidade para percorrer vias onde àqueles é mais difícil circular.

            Quanto mais o condutor do veículo for pessoa experimentada e familiarizada com as suas características, mais exigente deve ser o juízo que se houver de fazer acerca da sua utilização.

            Dito isto, vejamos os factos que no seu conjunto despoletaram o sinistro.

            O condutor do veículo circulava no dia 26.12.2002 pelas 16 h 30 junto à Praia do Rosário, numa estrada de terra batida com cerca de dois metros de largura que desemboca na margem do Rio Tejo. A largura da estrada, no local onde se imobilizou o veículo, não possibilitava a inversão do sentido de marcha, e, assim, o condutor daquela viatura entrou no areal para efectuar a referida manobra, na execução da qual a roda traseira esquerda ficou presa numa depressão lodosa existente no local, coberta pela areia e da qual aquele condutor não se percebeu.
O local onde a viatura estava atolada era uma zona de inundação pelas águas do rio, na subida da maré, e, apesar das diversas manobras executadas, não foi possível retirar a viatura.

            Desde logo, pretendendo o condutor fazer a manobra de inversão de marcha numa zona de areal próxima de um rio, no caso o Rio Tejo, e no fim de uma estrada estreita que aí desembocava, essa actuação revela temeridade, uma vez que o condutor pôde aperceber-se, previamente, que havia areia, como é natural numa estrada que “desemboca na margem do Rio Tejo”.

A realização da manobra de inversão de marcha no areal que “escondia” uma depressão lodosa onde ficou presa a roda traseira esquerda e da qual o condutor não se apercebeu, não preenche os requisito de causa súbita, desde logo, porque ao avançar na estrada de terra batida até ao ponto da manobra, um condutor razoavelmente prudente (não dizemos, sequer, experiente) teria que prever que, tratando-se de uma zona com areia e próxima do Rio, não seria de excluir a existência de lodo. Tudo leva a crer que se tratava de uma rua sem saída que terminava na margem do Tejo.

            Decidindo efectuar a manobra de inversão de marcha num local instável – areia e lodo, este coberto por areia e ainda que o lodo não fosse visível, seria de prever a sua existência (a estrada desembocava, repete-se, na margem do rio) – por isso não se pode considerar que a prisão da roda no lodo constituísse causa fortuita, no sentido de imprevisível e, muito menos no sentido de que surgiu por acaso sendo de todo imprevisível e inesperada à luz das regras da experiência comum de um condutor de um jeep.

            A imobilização do veículo, preso no lodo, não se deveu a uma causa que o condutor não tivesse podido representar nas circunstâncias em que agiu; nessa medida o condutor foi imprudente, agindo com culpa/negligência, quiçá confiando que o jeep realizaria a manobra escapando da zona lodosa. Não foi sequer alegado se o condutor para não atingir a proximidade do rio que avistava pudesse fazer manobra de marcha-atrás até atingir um ponto da estrada a partir do qual pudesse fazer inversão de marcha.

            Depois, relevante no processo causal do sinistro, mas não indissociável da causa primeira que é causa eficiente do dano, é o facto de ser previsível, que pela subida da maré não sendo o veículo retirado, como não pôde ser, sofreria dano por causa da inundação, afinal o jeep estava atolado numa zona lodosa e o fenómeno das marés não é, igualmente, um acontecimento súbito, nem fortuito, mas previsível.

            O facto de por causa não imputável ao condutor, não ter sido retirado a tempo de evitar que ficasse danificado pela água do rio, tendo-se provado que o condutor foi diligente no chamamento dos meios de socorro, não pode ser dissociado da actuação primeira que conduziu ao atolamento do veículo.

Este é o momento a jusante crucial daquele processo causal do acidente, que, repetimos, não tem na sua origem e iter naturalístico uma causa súbita e fortuita, muito menos violenta, já que nesse conceito não se pode considerar o normal fenómeno das marés, ainda que possa ser considerado força da natureza.
            Ao invés do que a recorrente considera, concluímos que a causação dos danos se deveu ao atolamento e à submersão do jeep após a subida da maré, factos que eram, no quadro factual em que condutor actuou, previsíveis, razão pela qual o acidente não está a coberto da apólice, o que exclui a responsabilidade indemnizatória da Ré.

            Pelo quanto dissemos o recurso soçobra.

            Decisão.

            Nega-se a revista.

            Custas pela Autora/recorrente. 

           Supremo Tribunal de Justiça, 18 de Dezembro de 2012
             

Fonseca Ramos (Relator)

Salazar Casanova

Fernandes do Vale

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[1] O excerto citado – “ « (…) nas condições especiais 115ª-2, expressa-se que o contrato de seguro garante a indemnização dos danos sofridos pelo veículo seguro em consequência de acidente devido a causa súbita, fortuita e violenta, alheia à vontade do tomador, segurado ou condutor, quer o veículo se encontre em circulação, quer imobilizado, quer em curso de transporte.
«Dado o contexto e interpretação segundo o disposto no art. 236°, n°1 e 238°, n°1, do Código Civil e o contexto, a referida garantia de indemnização em consequência de causa súbita, fortuita e violenta, alheia à vontade do tomador, segurado ou condutor, dado o respectivo contexto, reporta-se aos casos em que o evento envolve um choque, uma colisão ou um capotamento.
«Assim, os danos cobertos pelo contrato de seguro em causa não são os derivados de qualquer acidente, mas apenas os derivados de choque, colisão ou capotamento».

[2] Como consta do Acórdão do Tribunal Constitucional de nº304/88, de 14.12, in BMJ, 382,231: “A fundamentação das decisões judiciais cumpre, em geral, duas funções: a) uma, de ordem endoprocessual, que visa essencialmente impor ao juiz um momento de verificação e controlo crítico da lógica da decisão, permitir às partes o recurso da decisão com perfeito conhecimento da situação e ainda colocar o tribunal de recurso em posição de exprimir, em termos mais seguros, um juízo concordante ou divergente; b) outra, de ordem extraprocessual, que procura tornar possível um controlo externo e geral sobre a fundamentação factual, lógica e jurídica da decisão, garantindo a transparência do processo e da decisão”. 


[4] “Um facto é notório quando o juiz o conhece como tal, colocado na posição do cidadão comum, regularmente informado, sem necessitar de recorrer a operações lógicas e cognitivas, nem a juízos presuntivos (Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado”, 3.°-259 e ss; Castro Mendes, “Do conceito de prova”, págs. 711 e ss., com grandes desenvolvimentos; Vaz Serra, “Provas”, em BMJ 110º-61 e ss 3.°-259 e ss.
Facto notório não é o mesmo que facto evidente: “este último corresponde à aplicação de verdades axiomáticas próprias das várias ciências; são factos que se apresentam ao juiz como provindos das fontes comuns do saber humano, tais como o conhecimento de que o calor dilata os corpos” – (Rodrigues Bastos, Notas as Código de Processo Civil, 2. °-514).” – citámos do “Código de Processo Civil Anotado”, de Abílio Neto, 22ª edição, pág., 781.