Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06B729
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: BETTENCOURT DE FARIA
Descritores: NAVIO
CAPITÃO DE NAVIO
COMISSÃO
Nº do Documento: SJ200604270007292
Data do Acordão: 04/27/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : I - Nos transporte marítimo de mercadorias ao armador compete intervir na sua estiva e desestiva, na medida em que tais actividades interferem com a gestão náutica do navio. Ao afretador compete tudo o mais que a elas respeita.
II - Estando o navio em fase de descarga das mercadorias, o seu apeamento para permitir a desestiva é da responsabilidade do afretador. III - O facto das entidades com quem o afretador contratou a descarga, terem agido com autonomia na gestão dos meios humanos e sob a supervisão das entidades portuárias, não lhes retira a qualidade de comissárias do afretador, uma vez que aquelas autonomia e supervisão têm um carácter técnico e não retiram ao afretador o poder jurídico de supervisionar as referidas entidades, como é próprio do comitente.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I
"AA", BB e CC moveram a presente acção ordinária contra Empresa-A, pedindo que a ré fosse condenada a pagar-lhes, respectivamente, as quantias de 29.923.810$00, 750.000$00 e 750.000$00.
A ré contestou.
Deduziram incidente de intervenção principal Empresa-B, na qualidade de empresa armadora, Empresa-C, na qualidade de afretador do navio e Empresa-D, na qualidade de seguradora do afretador.
Destas deduziram contestação as intervenientes Empresa-C e Empresa-D.
O processo seguiu os seus trâmites e, feito o julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente, absolvendo a ré Empresa-A do pedido.
Apelaram as autoras, tendo o Tribunal da Relação julgado o recurso parcialmente procedente e condenado a Empresa-C a pagar às autoras as quantias peticionadas. Mais absolveu do pedido a Empresa-D
Recorre agora a apelada Empresa-C, a qual, nas suas alegações de recurso, apresenta, em síntese, as seguintes conclusões:

1. São obrigações do capitão do navio fazer boa estiva e arrumação, na sequência da sua responsabilidade pela gestão náutica do navio.
2. Compreendem-se nessa gestão ter a percepção do mau acondicionamento da carga para efeitos de desestiva e ordenar que esta seja previamente apeada.
3. Verificando-se omissão de tais deveres e decorrendo daí danos, é por estes civilmente responsável o armador, de quem o capitão é um comissário.
4. Cabe à empresa portuária de estiva, em exclusivo, a definição dos meios humanos a afectar á operação portuária, bem como a sua gestão - artº 21º nº 4 do DL 298/93 de 28.08 - .
5. Os poderes de superintendência, fiscalização e coordenação cabem à autoridade portuária e ao Instituto de Trabalho Portuário.
6. As entidades atrás referidas ditam totalmente o seu modus faciendi da operação de descarga, sem qualquer interferência de outrem, nomeadamente o afretador do navio interessado na carga.
7. Não existindo, por isso, a necessária relação de dependência ou subordinação entre o comitente e o comissário, para que o afretador possa ser considerado responsável ao abrigo do artº 500º nº 1 do C. Civil.
8. A experiência e a obrigação profissional do lesado, como estivador, obrigava-o a prever e a ditar a operação de apeamento da carga, pelo que, não o fazendo, agiu com culpa.
9. A indemnização deve ser reduzida com base no prudente arbítrio do julgador.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.


II
Nos termos do artº 713º nº 6 do C. P. Civil, consignam-se os factos dados por assentes pelas instâncias remetendo para o que consta de fls. 588 a 591.

III
Apreciando

1. A primeira questão suscitada pela recorrente é a de que, contrariamente ao decidido no acórdão impugnado, a responsável pela operação de desestiva e descarga era o armador, o proprietário do navio e não o afretador.
Foi esta a tese sufragada na sentença de 1ª instância, em que se cita o artº 3º nº 2 da Convenção de Bruxelas, segundo o qual ao capitão do navio, representante do armador, compete proceder "de modo apropriado e diligente ao carregamento, manutenção, estiva, guarda, cuidados e descarga das mercadorias transportadas."
Aí se refere igualmente que o artº 9º do DL 191/87 de 29.04 que comete ao afretador a obrigação de "efectuar as operações de carregamento e de descarga do navio dentro dos prazos estabelecidos". No entanto, foi entendimento do julgador de 1ª instância que desta norma apenas decorria para o afretador o dever de cumprir os prazos de descarga, mas sem lhe atribuir as tarefas de carga e descarga.
Salvo o devido respeito, entendemos que esta interpretação restritiva do disposto no aludido artº 9º do DL 191/87 não se coaduna com a própria letra do preceito. Com efeito, não se compreenderia que o afretador pudesse ser responsabilizado pelo atraso na descarga, se não tivesse qualquer interferência na sua realização.
Mas, por outro lado, há que coadunar as responsabilidades do afretador na carga e descarga, com a determinação legal de que o armador, através do seu representante, o capitão do navio, deve agir de modo apropriado e diligente na estiva e desestiva das mercadorias transportadas.
Haveria como que uma sobreposição de competências.
Vejamos.
O capitão do navio, como primeiro responsável da gestão náutica do transporte, tem uma competência na estiva e desestiva, mas apenas na medida em que tal actividade possa comprometer a referida gestão náutica. É até do conhecimento comum que um navio mal estivado pode por em risco a sua própria navegabilidade.
Mas a actividade em causa não se esgota na sua gestão náutica.
Existem procedimentos de carga e descarga das mercadorias que respeitam, já não à segurança do navio, mas que se destinam apenas a prevenir o risco de danos nos produtos transportados, ou noutros bens ou pessoas e que deverão competir ao responsável por essa actividade.
Fica, assim, definida a parcela de responsabilidade que deve caber a cada uma das entidades em questão. Ao armador compete intervir na estiva e desestiva, na medida em que interferirem com a gestão náutica do navio, ao afretador compete tudo o mais que for necessário para as efectuar.
De acordo com a matéria de facto assente, o acidente dos autos ocorreu devido ao facto da mercadoria não ter sido previamente apeada. Ora, isto nada tem a ver com a gestão náutica do navio. Entra, portanto, no elenco daquelas operações que competiam ao afretador assegurar.
Acresce que, para além desta responsabilidade do afretador definida em termos gerais, no caso concreto, o afretador chamou a si a dita actividade e subcontratou-a - facto dado por assente em 2ª instância, a fls. 591 - . Não pode, por isso, questionar a legalidade duma responsabilidade, que, com ou sem cobertura normativa geral, veio expressamente assumir.

2. A segunda questão colocada pela recorrente é a de que as entidades que realizaram efectivamente a desestiva actuaram com autonomia na definição e gestão dos meios humanos afectos à operação e apenas sob a superintendência das autoridades portuárias, razões pelas quais não podem ser consideradas comissários do afretador.
No acórdão em apreço considerou-se que a contratação de um descarregador pela recorrente integrava um contrato de prestação de serviço, o qual se rege pela normas do mandato, sendo que nas obrigações do mandatário se inclui - artº 1161º al. a) do C. Civil - agir sob as instruções do mandante. Daí que existisse a necessária relação de dependência entre aquela e as entidades que realizaram o serviço de descarga. Desta forma, ocorre uma relação de comissão entre eles, que importa a responsabilização da primeira como comitente pelos danos que se verificaram na descarga.
Nada temos a contrapor a esta tese.
Efectivamente, a recorrente detinha poderes de supervisão e orientação sobre o serviço contratado, que permitem afirmar a sua qualidade de comitente.
A autonomia a que alude na definição e gestão dos meios humanos que foram afectos à operação por parte das entidades subcontratadas, é meramente técnica e não jurídica, ou seja, não interferem com o poder de orientar a operação que continuou a deter.
Se os não usou, tal facto não lhe retira a qualidade de comitente.
Note-se que aquela gestão dos meios humanos poderia relevar se estivesse em discussão a culpa. No entanto, está só em apreciação um vínculo jurídico, a relação de comissão, que advém tão só do modo como as partes do contrato de descarga configuraram a relação jurídica que entre elas se estabeleceu.

3. Vem alegar a recorrente a culpa do lesado. Funda esta asserção na omissão dum dever de cautela derivado da sua experiência profissional. Pretende, pois, que esta Tribunal retire por presunção judicial - nas suas alegações fala em "ilações" - , uma conduta negligente por parte da própria vítima.
Acontece, porém que é jurisprudência firme a de que o STJ não pode fixar factos por presunção, porque isso vai contra os limites dos seus poderes de apreciação da matéria de facto, tal como resultam dos artºs 722º nº 2 e 729º nº 2 do C. P. Civil.
Por outro lado, directamente, da matéria de facto dada por provada não se sabe quem foi o responsável material pela facto das mercadorias não terem sido apeadas, bem como se desconhece qual a experiência profissional da referida vítima, ou qual foi a sua actuação nas circunstâncias em que se deu o sinistro. Unicamente ficou demonstrado que os atados tombaram sobre o lesado - ponto 13 dos factos assentes - . Ou seja, nada se provou quanto à conduta e concreto do mesmo sinistrado.

4. Finalmente, pretende a recorrente que são exagerados os montantes indemnizatórios arbitrados, requerendo a sua redução pelo prudente arbítrio do julgador. Não indica, porém, por que modo deve essa redução ser feita.
Quanto aos danos não patrimoniais a decisão sub judice se pecou foi por defeito, encontrando-se os valores determinados, bem dentro do que é de jurisprudência fixar.
Quanto aos danos patrimoniais nada há a contrapor às judiciosas considerações feitas em 2ª instância, para as quais se remete, conforme o artº 713º nº 5 do C. P. Civil.

Com o que improcede o recurso.

Pelo exposto, acordam em negar a revista e confirmam o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 27 de Abril de 2006
Bettencourt de Faria
Pereira da Silva
Rodrigues dos Santos