Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08A1109
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: URBANO DIAS
Descritores: LEGITIMIDADE PARA RECORRER
INTERVENÇÃO ACESSÓRIA
Nº do Documento: SJ20080417011091
Data do Acordão: 04/17/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO
Sumário :
O interveniente acessório tem legitimidade para recorrer da decisão que foi desfavorável para a parte principal.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1 – Construções AA Lª intentou acção ordinária contra BB Lª com vista a obter dela o pagamento de 9.280,00 € e juros, para além do que se viesse a liquidar inerente aos prejuízos sofridos, tendo por base 30,00 € diários desde 01 de Setembro de 2003 até à data em que estiverem realizadas as infra-estruturas do loteamento sito no lugar do Alto ..., freguesia de Darque, Viana do Castelo, e as mesmas devidamente recepcionadas pela Câmara Municipal de Viana do Castelo.

2 – A R. contestou, imputando a responsabilidade pela não efectivação das infra-estruturas a Calves S. A., anterior proprietária dos lotes adquiridos, razão pela qual requereu a sua intervenção como parte acessória.

3 – Admitido o incidente, veio a chamada a contestar, defendendo a total improcedência dos pedidos.

4 – Após julgamento, foi a R. condenada no pagamento à A. de 4.380,00 € e juros, para além do que se vier a liquidar relativamente a todos os prejuízos por esta suportados em consequência da falta de infra-estruturas de saneamento, rede de água e electricidade nos lotes por ela adquiridos, contadas desde a data em que se mostrem concluídas as moradias edificadas nesses lotes e até à data em que essas infra estruturas se mostrem efectivadas.

5 – Inconformadas, apelaram A. e interveninente para o Tribunal da Relação de Guimarães.
Esta viu rejeitado o seu recurso com fundamento na falta de legitimidade para recorrer e aquela não teve êxito na sua pretensão.

6 – Não conformada com a decisão da Conferência que decidiu não conhecer do mérito do recurso por si interposto, a interveniente agravou a coberto das seguintes conclusões:
- O despacho recorrido não deve manter-se, pois consubstancia uma solução que não consagra a justa e rigorosa interpretação e aplicação ao caso sub judice das normas e princípios jurídicos competentes.
- A recorrente ocupa a posição processual de chamada, pelo que, em virtude dessa qualidade, passou a gozar dos mesmos direitos e a estar sujeita aos mesmos deveres da parte principal assistida, neste caso a R./recorrida.
- O efeito principal do incidente de intervenção acessória provocada consiste na possibilidade de a parte principal fazer com que a sua eventual condenação o seja em conjunto com a do chamado, ficando aquela munida de uma decisão contra este que lhe permite exigir, no âmbito das relações internas, a responsabilidade que compete ao chamado.
- A recorrente assumiu, desde logo, posição activa no presente processo, pois apresentou contestação, por meio da qual impugnou os factos e defendeu-se ainda por excepção; já na fase da instrução e julgamento requereu a junção e produção de diversos meios de prova.
- Constituindo a sentença, uma vez transitada em julgado, caso julgado material, com força obrigatória dentro e fora do processo e mostrando-se a recorrente incluída no âmbito do mesmo, semelhante circunstância impedirá que se possa definir de forma diferente o direito concreto aplicável à relação material litigada, nomeadamente no que respeita às questões de que depende o direito de regresso.
- O artigo 680º, nº 2, do Código de Processo Civil estende a legitimidade para recorrer às pessoas prejudicadas pela decisão, mesmo que não sejam partes ou partes acessórias.
- É manifesto que a sentença proferida pelo Tribunal de 1ª Instância é susceptível de causar prejuízo directo, sério, real e efectivo à recorrente, na medida em que lhe impõe responsabilidades e diminui o seu património.
- O prejuízo da recorrente é directo e imediato pois resulta directa e expressamente da sentença proferida, a qual estende, sem mais, a responsabilidade imputada à recorrida BB, Lda, à recorrente.
- A sentença assim proferida, já produz efeito útil em relação à recorrente, porquanto reconheceu e atribuiu-lhe expressamente a responsabilidade, questão que, não sendo admitido o recurso interposto, ficará definitivamente decidida e constituirá caso julgado e que, em ulterior acção de regresso, já não poderá ser negada ou contestada!
- É notória a desvantagem certa e concreta que impende da decisão sobre a recorrente e, nessa medida, o prejuízo da recorrente é também actual e positivo.
- Não se aceita, pois, que a recorrente mantenha a mesma posição e situação jurídica que tinha antes deste processo.
- O despacho recorrido violou as disposições dos artigos 332°, nº 4, 671º, 673° e 680º, nº 2, do Código de Processo Civil, porquanto as mesmas não foram aplicadas e interpretadas com o sentido versado nas considerações anteriores.

A A. não apresentou contra-alegações.

7Quid iuris?
A recorrente coloca-nos apenas a seguinte questão: terá o interveninente acessório legitimidade para recorrer da decisão desfavorável para a parte principal?
É o que vamos ver.
Prescreve o art. 330º do Código de Processo Civil:
“1 – O réu que tenha acção de regresso contra terceiro para ser indemnizado do prejuízo que lhe cause a perda da demanda pode chamá-lo a intervir como auxiliar na defesa, sempre que careça de legitimidade para intervir como parte principal.
2 – A intervenção do chamado circunscreve-se à discussão das questões que tenham repercussão na acção de regresso invocada como fundamento do chamamento”.
Comentando este preceito, Lopes do Rêgo diz o seguinte:
“Na base de tal configuração está a ideia de que a posição processual que deve corresponder ao sujeito passivo da relação de regresso, conexo com a controvertida – e invocada pelo réu como causa do chamamento – é a de mero auxiliar da defesa, tendo em vista o seu interesse indirecto ou reflexo na improcedência da pretensão do autor, pondo-se, consequentemente, a coberto de ulterior e eventual acção de regresso ou de indemnização contra ele movida pelo réu da causa principal”.
Mas, sendo tal a ideia - continua o mesmo A. - “não deve ser tratado como parte principal”, o seu papel e estatuto reconduzem-se, pois, ao de auxiliar na defesa, visando com a sua actuação processual – não obstar à própria condenação, reconhecidamente impossível – mas produzir a improcedência da pretensão que o autor deduziu no confronto do réu-chamante” (in Comentários ao Código de Processo Civil, página 252 e ss.).
A este propósito, Lebre de Freitas sublinha que, com o Decreto-Lei nº 329-A/95, “das três situações processuais a que o chamamento à autoria podia conduzir (litisconsórcio impróprio, substituição processual, assistência), apenas a assistência, agora designada intervenção acessória, passou a ter lugar”(in Código de Processo Civil Anotado, Volume 1º, página 583).
Para Salvador da Costa, “esta solução legal é inspirada, face ao interesse indirecto ou reflexo, na improcedência da pretensão ao autor, pela ideia de a posição processual que deve corresponder ao titular de uma acção de regresso, meramente conexa com a relação jurídica material controvertida objecto da causa principal, é a de mero auxiliar na defesa, em termos de acautelamento da eventualidade da hipótese de no futuro contra ele ser intentada, por quem foi réu na acção anterior, acção de regresso para efectivação do respectivo direito”.
E, não deixa de fazer notar que “o fundamento básico da intervenção acessória provocada é a acção de regresso da titularidade do réu contra terceiro, destinada a permitir-lhe a obtenção da indemnização pelo prejuízo que eventualmente lhe advenha da perda da demanda”, sendo certo que “o chamado não influencia a relação jurídica processual desenvolvida entre o autor e o chamante” e, daí que “nela não pode haver sentença de condenação” (in Os Incidentes da Instância – 3ª edição -, pág. 127 e ss.).
Ou seja, hoje em dia, o interveniente acessório tem a posição de assistente, tal como era regulada a mesma nos artigos 335º e seguintes do Código de Processo Civil de 1967.
Ora, a respeito da posição jurídica do assistente na acção, Lopes Cardoso disse, de forma bem clara, que o mesmo não podia ser condenado ou absolvido, sendo-lhe até lícito abandonar a causa em qualquer altura.
Mas, acentuou, que “o simples facto de ser admitido a assistir, vincula-o, porém, a tal decisão, não porque este forme caso julgado pleno contra ele …, mas no sentido de que o assistente, em nova acção onde tenha a posição de parte principal, fica obrigado a aceitá-la como prova plena dos factos que a sentença estabeleceu, e como caso julgado relativamente ao direito que definiu” (in Manual dos Incidentes da Instância em Processo Civil 2ª edição -, página 115 – consideração esta tecida no âmbito de aplicação do Código de Processo Civil de 1939, mas mas que mantém perfeita actualidade, atento o disposto no artigo 341º aplicável ao caso sub iudice ex vi nº 4 do artigo 332º).
Também Alberto dos Reis acentua esta mesma ideia – “quem é condenado na acção é a parte principal; o tribunal condena o assistido, se este decair, mas não condena o assistente” (in Código de Processo Civil anotado, Volume I – 3ª edição -, página 478. Também esta referência é feita em relação ao Código de Processo Civil de 1939, mas permanece válida nos dias de hoje pelas mesmas razões supra referidas).
De tudo o exposto, resulta de forma bem clara que o interveniente acessório não pode nunca ser condenado na acção para a qual apenas foi chamado a intervir como mero auxiliar.
Daí que, em perfeita consonância com o que foi referido, o nº 4 do artigo 332º do Código de Processo Civil preceitue que “a sentença proferida constitui caso julgado quando o chamado, nos termos previstos no artigo 341º, relativamente às questões de que dependa o direito de regresso do autor do chamamento, por este invocável em ulterior acção de indemnização”.
A ratio de toda esta orientação legislativa é, outra vez, explicada por Lebre de Freitas, em comentário, ao preceito legal acabado de referir.
Lê-se na obra citada deste A.:
“No regime do anterior chamamento à autoria, constituía-se sempre caso julgado contra o primitivo réu, mesmo que ele se excluísse da causas”, mas “diversamente se passam as coisas num regime em que ao chamado só é consentido intervir acessoriamente”, sendo certo que o mesmo é impedido de contrariar de forma cabal e plena a pretensão que se discute como principal, impedindo-o de fazer uso de meios processuais que podiam influir na decisão final ou tomar, no uso de um meio processual, uma orientação diversa que igualmente podia influenciar a decisão”.
Daí que “a produção de caso julgado perante o chamado à intervenção acessória pode, portanto, não se produzir, como se produzia sempre perante o chamado à autoria. Mas, quando se produz, o seu alcance continua a ser o mesmo, tendo em conta que a função de um incidente e de outro é a mesma: tornar indiscutíveis, no confronto do chamado, os pressupostos do direito à indemnização, a fazer valer em acção posterior, que respeitem à existência e ao conteúdo do direito do autor” (in obra citada, página 590).
Por isso mesmo, proclama Mariana França Gouveia que “a declaração de que o dever de indemnizar existe é um pressuposto da acção de regresso e esse pressuposto fica assente, o mesmo é dizer, tem força de caso julgado” e daí que “a decisão sobre a culpa da ré tem força de caso julgado, ou seja, não pode mais ser discutida entre as partes” (Cadernos de Direito Privado, nº 10, pág. 47).
Salvador da Costa, alinhando nestas mesmas ideias, não deixa, contudo, de ir um pouco mais longe ao defender que, embora o chamado passe a ser considerado assistente (nº 1 do artigo 322º do Código de Processo Civil), “não se vê motivo plausível para que não se lhe aplique a regra da responsabilidade de pagamento de custas”.
E concretiza:
“Assim, no caso de o réu chamante ficar vencido na causa e de o chamado haver intervindo, este último torna-se responsável por uma quota parte nas custas a cargo do primeiro, até um décimo, na proporção da actividade por ele desenvolvida”.
E justifica:
“Este incidente permite que se estendam ao chamado os efeitos do caso julgado da sentença, de modo a que não seja possível nem necessário que na subsequente acção de indemnização proposta pelo réu contra o chamado se voltem a discutir as questões já decididas no anterior processo”, ..., “ele fica vinculado a aceitar a sentença respectiva como prova plena dos factos nela estabelecidos relativamente ao direito definido e no que concerne às questões de que a acção de regresso dependa” (obra citada, páginas 138 e 139) (ideia esta que acabou de ser consagrada na nova redacção do artigo 452º do Código de Processo Civil, a entrar em vigor no dia 01 de Setembro de 2008, ut artigo 26º do Decreto-Lei nº 34/2008, de 26 de Fevereiro)..

Esclarecida a posição do chamado a intervir acessoriamente, nos termos do supra citado artigo 330º, é altura de nos interrogarmos sobre a legitimidade do mesmo para, só por si, recorrer da decisão que foi desfavorável para a parte que o fez intervir.
Vimos já que a razão última da sua intervenção foi a possibilidade de ser demandado pelo R. em acção de regresso e, de tal modo, que a sentença proferida constitui caso julgado “relativamente às questões de que dependa o direito de regresso do autor do chamamento”.
A resposta a esta vexata quaestio tem de ser encontrada no quadro que nos é traçado pelo nº 2 do artigo 680º do Código de Processo Civil.
É evidente que ele tem todo o interesse em não ver vingadas as pretensões do autor da acção. Se isso acontecer, definitivamente ele fica em paz jurídica na medida em que deixa de haver motivo para ser demandado pelo réu, o mesmo é dizer que deixa de haver motivo para que este possa exercer direito de regresso.
A este respeito, Ribeiro Mendes assinala que “no caso de o assistente se limitar a auxiliar a parte principal actuante e não revel, então só tem legitimidade para interpor recurso de decisões que o prejudiquem de forma directa e efectiva, nos termos do nº 2 do artigo 680º, como se tratasse de um qualquer terceiro” (in Recursos em Processo Civil, página 164).
Do mesmo modo, António Santos Abrantes Geraldes faz notar que “quanto aos assistentes, a quem é atribuída a qualidade de partes acessórias, a legitimidade para recorrer deve buscar-se através do prejuízo directo e efectivo emanado da decisão”, certo que “a legitimidade para recorrer depende da resposta afirmativa à questão colocada acerca da existência de prejuízo directo e efectivo decorrente da decisão” (in Recursos em Processo Civil – Novo Regime -, página 63 e 64).
Miguel Teixeira de Sousa faz notar o critério material pelo qual se afere a legitimidade de terceiro para recorrer: “este sujeito tem de ser alguém que seja directa e efectivamente prejudicado pela decisão, isto é, que seja abrangido pelo caso julgado de uma decisão que lhe seja desfavorável por afectar os seus direitos e interesses”, acrescentando, ainda, que “o afirmado quanto à intervenção de um terceiro que assume a posição de recorrente vale igualmente para a parte acessória que recorre da decisão (artº 680, nº 2, in fine)” (in Estudos Sobre O Novo Processo Civil, página 506 e 507).
Igualmente Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes sublinham que “as partes acessórias podem interpor recurso das decisões que os prejudiquem «directa e efectivamente»” (in Código de Processo Civil Anotado, Volume 3º, página 21).
Amâncio Fereira afirma a este respeito:
“Só têm legitimidade para recorrer os terceiros que sofram um prejuízo actual e positivo com a decisão que predendam impugnar” (in Manual dos Recursos em Processo Civil – 4ª edição -, pág. 128).
Alberto dos Reis, analisando o sentido da expressão “prejuízo directo” salienta que é fora de dúvida que está excluído o prejuízo indirecto ou reflexo, mas “deve ter-se como certo que o prejuízo há-de ser actual e positivo”, não sendo suficiente o prejuízo eventual, incerto e longínquo” (in Código de Processo Civil anotado, Volume V, pág. 272).
Ora bem.
Perante isto, a resposta última a dar à questão que nos preocupa passa pela que vier a ser dada a esta outra: tem o interveniente interesse directo e efectivo na não condenação da parte que provocou a sua intervenção?
Como já ficou assinalado, a posição do interveniente acessório não é a de um simples expectador desinteressado com a sorte da lide, tão-pouco de um mero auxiliar do réu, com intuitos filantrópicos ou outros, mas antes a de contribuir para a descoberta da verdade, interessado confesso na não condenação deste último, certo que a mesma a ele se poderá impor em sede de direito de regresso no caso de vencimento da posição do autor nos limites assinalados.
Repetindo a ideia lançada de Lebre de Freitas, o seu papel “é o de produzir a improcedência da pretensão que o autor deduziu no confronto do réu-chamante” e pela razão simples de que com ela também ele fica totalmente livre de responsabilidade, isento de qualquer obrigação de indemnizar.
Sendo isto assim, como efectivamente é, não podemos deixar de reconhecer que o interveniente acessório, no caso a recorrente, tem todo o interesse em ver a R., requerente do seu chamamento, absolvida do pedido que foi formulado pela A., o mesmo é dizer que, à luz dos ensinamentos colhidos e, nomeadamente, tendo em conta o estatuído no nº 2 do artigo 680º do Código de Processo Civil, que ela tem legitimidade para recorrer da decisão da 1ª Instância que condenou a R. nos precisos termos supra referidos.
É que, como ficou dito e redito, da eventual sorte da lide, depende ser ela chamada a contas pela R. em via do direito de regresso.
Evidente que a sua legitimidade se circunscreve às questões que tenha repercussão na acção de regresso invocada como fundamento do chamamento, ut nº 2 do artigo 330º do Código de Processo Civil.

8A bene placito com o exposto, concede-se provimento ao agravo, revogando, desta sorte, o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães na parte em que decidiu não conhecer do recurso de apelação da aqui recorrente.
Transitada esta decisão, baixem os autos ao Tribunal da Relação de Guimarães com vista à apreciação do mérito da apelação interposta pela aqui agravante.
Sem custas (artigo 2º, nº 1, alínea g) do Código das Custas Judiciais).


Lisboa, aos 17 de Abril de 2008
Urbano Dias (relator)
Paulo Sá
Mário Cruz