Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2093/21.8T8BRG.G1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: ANA PAULA LOBO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PODERES DA RELAÇÃO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
ÓNUS DE CONCLUIR
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO
REJEIÇÃO DE RECURSO
CONHECIMENTO DO MÉRITO
BAIXA DO PROCESSO AO TRIBUNAL RECORRIDO
Data do Acordão: 03/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário :
I - A rejeição do recurso em sede de impugnação da decisão de facto, ao abrigo do artigo 640.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, só deve ocorrer quando dos termos em que a pretensão recursória vem formulada não resulte a identificação dos juízos probatórios visados, o sentido da pretendida decisão a proferir sobre eles nem a indicação dos concretos meios de prova para tal convocados, o que é bem diferente do que seria já uma envolvência no plano da apreciação do mérito sobre o invocado erro de julgamento.

II - Uma coisa é a definição do objecto da impugnação deduzida e do alcance da alteração pretendida, bem como a indicação dos meios probatórios convocados, garantidas pela mencionada disposição legal; coisa diversa são as razões ou argumentos probatórios aduzidos nesse âmbito, seja qual for a sua densidade ou coerência, a apreciar, portanto, em sede de mérito.

Decisão Texto Integral:

I – Relatório

I.1 – Questões a decidir

A Korvases, Ldª, intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra AA e BB pedindo que os réus fossem condenados:

a) a reconhecer que a autora é a única dona e legítima proprietária e possuidora do prédio rústico sito na Avenida ..., União das freguesias ..., ... e ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº 818 e na respectiva matriz rústica sob o nº 3673, com a área de 8.142,8 m2. (oito mil cento e quarenta e dois metros quadrados e oitenta cemtímetros), a confrontar de norte com estação agrária, CC e outros, CCR II e DD, do sul com M... Lda., do poente com Avenida ... e do nascente com caminho municipal;

b) a reconhecer que a autora é a única dona e legítima proprietária e possuidora da parcela de terreno, com cerca de 300 m2, que aqueles ocupam, a qual integra o prédio identificado em a) e dele é parte incindível;

c) a restituir à autora essa mesma parcela de terreno integrante do seu prédio, livre de pessoas e bens;

d) a demolir o muro, com um portão metálico no meio, erigido na confrontação nascente do prédio da autora, na parte que confina com a Rua ..., bem como a demolir a construção metálica com cobertura que construíram na aludida parcela indevidamente ocupada;

e) a absterem-se da prática de quaisquer actos turbativos da propriedade, posse e domínio da autora sobre o aludido prédio e, consequente, da parcela de terreno com cerca de 300 m2;

f) a indemnizar a Autora pelos prejuízos suportados e que se vier a suportar, em virtude dos actos praticados pelos Réus, a liquidar em execução de sentença.

Em fundamento da sua pretensão alegou que adquiriu, por compra, o prédio cuja propriedade pretende ver-lhe reconhecida, que registou a seu favor e sobre o qual, por si e seus ante possuidores, praticou actos de posse tendentes a demostrar a sua aquisição por usucapião.

Os réus apresentaram contestação onde impugnaram a factualidade alegada pelo autor e deduziram reconvenção, tendo pedido que a autora/reconvinda fosse condenada:

a) a reconhecer que os réus são os únicos donos e legítimos proprietários e possuidores da parcela de terreno, com cerca de 300,00 (287 m2), a qual integra os seus prédios urbanos, sendo parte incindível dos mesmos;

b) a absterem-se da prática de quaisquer actos turbativos da propriedade, posse e domínio dos réus sobre a parcela de terreno, integrante dos seus prédios urbanos;

c) a indemnizar os réus pelos prejuízos suportados e que vierem a suportar, em virtude dos actos praticados pela autora, a liquidar em execução de sentença.

A sentença proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo Local Cível ... - Juiz ... - julgou parcialmente procedente a acção e totalmente procedente a reconvenção e, em consequência:

a) Condenou os réus a reconhecerem o direito de propriedade da autora sobre o prédio identificado em A., C. e D. da factualidade assente, absolvendo os réus de tudo o demais peticionado pela autora;

b) Condeno a autora/reconvinda a reconhecer que os réus são os únicos donos e legítimos proprietários e possuidores da parcela de terreno referida em I. da factualidade assente, a qual integra os prédios urbanos referidos em S. da factualidade assente, sendo parte incindível dos mesmos;

c) Condenou a autora/reconvinda a abster-se da prática de quaisquer actos turbativos da propriedade, posse e domínio dos réus sobre a parcela de terreno referida supra em b);

d) Absolveu a autora/reconvinda do demais peticionado pelos réus.

Foi pela A. interposto recurso de apelação, com impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto vindo o Tribunal da Relação de Guimarães por acórdão proferido em 17 de Novembro de 2022 a confirmar a sentença recorrida julgando a apelação improcedente.

Para tal concorreu a decisão constante daquele acórdão de que:

não tendo o recorrente observado o disposto no art. 640º, nº 1 e 2 do CPC, tal implica a rejeição do recurso, na parte relativa à impugnação da matéria de facto, mantendo-se a mesma como consta da sentença”.

A A. apresenta pedido de revista daquele acórdão quer quanto à matéria relativa à não apreciação da impugnação sobre a matéria de facto quer quanto à decisão final, e, subsidiariamente pedido de revista excepcional ao abrigo do disposto no artigo 672.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Civil, invocando contradição com o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido em 22/04/2014 pela 1.ª Secção, no processo 1825/09.7TBSTS.P1.S1, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

1. A Recorrente não pode concordar com o Acórdão recorrido, o qual rejeitou o recurso na parte relativa à impugnação da matéria de facto por entender que a Recorrente não observou o disposto no artigo 640.º, n.º 1 e 2 do CPC, pois considera que nele se faz uma incorreta aplicação da lei substantiva e processual, violando-se o disposto nos artigos 640.º e 662.º do CPC, e daí o presente recurso - cfr. alínea b) do artigo 674.º do C.P. Civil;

2. O acórdão recorrido enferma numa profunda injustiça e abdica da verdade material que é o objectivo primordial da Justiça em detrimento de um mero e questionável formalismo;

3. O Acórdão recorrido, não obstante julgar improcedente a apelação interposta pela Recorrente, confirmando a referida sentença, fê-lo com uma fundamentação totalmente distinta da fundamentação utilizada pelo Tribunal de 1ª Instância, tal como defendido por António Santos Abrantes Geraldes in Recursos em Processo Civil - 4.ª Edição - Almedina e no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 10-12-2020, proferido no âmbito do processo 3782/18.0T8VCT.G1 e disponível em www.dgsi.pt

4. O Tribunal da Relação de Guimarães, rejeitando o recurso, na parte relativa à impugnação da matéria de facto, tão pouco se debruçou sobre a aludida sentença, pelo que se trata de uma decisão que versa sobre uma questão nova, que não foi apreciada nem decidida em Primeira Instância, pelo que não há dupla conformidade entre as decisões das Instâncias;

5. O Tribunal da Relação em vez de se debruçar sobre o mérito dos argumentos alegados pela Recorrente em sede de Apelação, escudou-se num mero formalismo dando, erroneamente, prevalência à verdade formal ao invés da verdade material;

6. Discorda a Recorrente que tenha omitido os meios probatórios que impunham decisão diversa relativamente a cada um dos factos cuja decisão impugna, como entendeu o Tribunal recorrido, sendo que o que se lhe afigura é que este não terá concordado foi com o mecanismo de agregação de factos levado a cabo pela Recorrente, o que esta fez uma vez que os factos eram conexos entre si, encontravam-se encadeados uns nos outros, pelo que os meios de prova que justificam a alteração, eliminação ou introdução de novos factos eram, exatamente, os mesmos, merecendo, por isso, um tratamento conjunto e evitando-se, deste modo, um excesso de transcrições (repetidas para cada facto) sobre as mesmas matérias;

7. É falso que a Recorrente se tenha limitado a discorrer genericamente sobre o teor da prova produzida, sem indicar os concretos meios probatórios que, sobre cada um dos pontos impugnados, impunham decisão diversa da recorrida pois os depoimentos das testemunhas EE, CC, FF, GG, HH, II, JJ e do RÉU AA foram os meios probatórios invocados pela Recorrente e que impunham decisão diversa da tomada em 1.ª instância, mormente a decisão referida nos pontos 3.1.6 e 3.1.7 das alegações de recurso;

8. Quer os factos que a Recorrente considerou incorretamente dados como provados, quer os que considerou mal dados como não provados, além de conexos, no limite, poderiam até ser considerados como sobrepostos, na medida em que o facto é este: Atos de posse praticados pela Recorrente e pelos Recorridos, e seus respetivos antecessores, sobre a faixa de terreno em discussão e estado de convencimento com que atuaram;

9. Quanto a todos esses factos a Recorrente procedeu à Identificação dos factos objeto de impugnação e à abordagem da motivação da sentença (ponto 3.1 das alegações); à ponderação de um juízo crítico e indicação dos concretos meios de prova (pontos 3.1.1 a 3.1.5 das alegações) e à conclusão (3.1.6 das alegações);

10. É falso que a Recorrente se tenha limitado a transcrever o depoimento de várias testemunhas;

11. A Recorrente identificou os pontos de facto que considerava mal julgados, por referência à matéria de facto dada como provada, indicou os elementos de prova que entendeu mal valorados, forneceu a indicação da sessão onde foram prestados os depoimentos das testemunhas que, a seu ver, impunham decisão diferente, com referência ao início e termo dos mesmos, transcrevendo as passagens em causa, bem como referiu qual o sentido em que, no seu entender, deveria ter sido decidido, o que tanto bastava para que o douto tribunal da Relação devesse ter procedido à reapreciação da matéria de facto, ao invés de rejeitar, nesta parte, o recurso uma vez que o comando inscrito no artigo 640.º, n.º 2 do CPC, no essencial, foi cumprido;

12. O recurso, na parte relativa à impugnação da matéria de facto, não poderia, assim, ter sido rejeitado, de resto, tal como vem sendo decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça de que é exemplo o acórdão, datado de 27-10-2021, proferido no âmbito do processo 1372/19.9T8VFR.P1.S1, o datado de 9.7.2015, proferido no Proc. 284040/11.0YIPRT.G1.S1 e um outro proferido em 28.4.2016 – Proc. 1006/12.2TBPRD.P1.S1, todos disponíveis em www.dgsi.pt;

13. O acórdão recorrido ao exacerbar as formalidades da impugnação da matéria de facto, salvo o devido respeito, demitiu-se dos seus poderes/deveres e incorreu em denegação de justiça, pelo que deverá este egrégio tribunal revogar/anular o acórdão recorrido, determinando que o recurso que havia sido apresentado seja recebido e apreciado por aquele Tribunal;

14. Para a eventualidade, que por dever de patrocínio se considera, de o recurso de revista nos termos normais acima interposto não ser admitido por se considerar existir a situação de dupla conformidade do artigo 671.º, n.º 3, do CPC, é também interposta revista excecional, ao abrigo do disposto no artigo 672.º, n.º 1, al. c), do CPC cujo fundamento está no facto do acórdão recorrido estar em absoluta contradição com outro, já transitado em julgado, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, e sem que tenha sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme :Processo 1825/09.7TBSTS.P1.S1, da 1.ª secção do STJ, de 22/04/2014, o qual constitui o acórdão fundamento nos presentes autos de recurso;

15. A matéria sobre a qual se recorre prende-se com a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, o que a seguir pelo entendimento restrito e literal do Acórdão recorrido pode esvaziar de conteúdo tal poder/dever, devendo o ónus imposto ao Recorrente da matéria de facto ser averiguado com parcimónia, na sua globalidade, na sua essencialidade;

16. No aludido acórdão fundamento, foi o tribunal chamado a debruçar-se sobre a específica questão da rejeição do recurso quanto à impugnação da decisão de facto, por carência da indicação concreta dos pontos da gravação em que se encontravam gravados os depoimentos em que se fundava a divertida interpretação/ilação factual que conduziria a um diverso juízo probatório;

17. A questão tratada no acórdão recorrido, rejeição do recurso quanto à questão da apreciação e alteração da decisão da matéria de facto, com base nos depoimentos gravados, das testemunhas, como foi exposto, encontra-se perfeitamente identificada e é idêntica à questão versada no acórdão-fundamento supra referido;

18. Não se conhece qualquer acórdão uniformizador de jurisprudência conforme com o acórdão recorrido;

19. No acórdão-fundamento e para decisão do objeto do recurso, o Supremo Tribunal de Justiça pronunciou-se expressamente sobre tal questão, tendo concluído que não pode esse tribunal eximir-se à reapreciação da prova, escoltado e respaldado numa ausência de indicação expressa das passagens das gravações em que se encontrem registados os depoimentos que impõem decisão diversa quando das alegações do Recorrente se percebe que é feita uma resenha dos depoimentos das testemunhas que, no juízo daquele, servem para desdizer a decisão que o tribunal deu sobre a matéria de facto sujeita a julgamento e se fez menção das gravações em que tais depoimentos se encontravam inseridos, situação em que o comando legal ínsito no artigo 640.º foi cumprido e, como tal, deve o tribunal proceder à reapreciação da decisão de facto;

20. O referido entendimento foi proferido, pelo menos numa parte, sobre situação idêntica à situação em causa nos presentes autos: rejeição do recurso quanto à impugnação da decisão de facto, por carência da indicação concreta dos pontos da gravação em que se encontravam gravados os depoimentos em que se fundava a interpretação/ilação factual que conduziria a um diverso juízo probatório;

21. Tratam-se, assim, de decisões contraditórias que assentam nos mesmos factos essenciais quanto aos requisitos que são necessários cumprir para a apreciação e alteração da decisão da matéria de facto pelo Tribunal da Relação;

22. Assim, ter-se-á, forçosamente, que entender que a Recorrente, na sua apelação, cumpriu o artigo 640.º, n.º 1, alíneas a) e b) e, na essencialidade, o objetivo do ónus que lhe é imposto pelo n.º 2, alínea a), do mesmo artigo 640.º, do CPC, bastando para tanto fazer menção do início e termo dos depoimentos, o que de facto se fez, no pressuposto de que o mesmo é suficiente para que o Tribunal de recurso proceda à audição dos referidos meios de prova;

23. O acórdão recorrido faz uma interpretação rígida e restritiva da mesma norma jurídica, volvendo em essencial o que por acessório se deveria ter, pelo que o fundamento para a rejeição do recurso no Tribunal da Relação, não pode ser aceite, devendo o mesmo ser recebido e apreciado;

24. Não se pode continuar a assistir a decisões dos Tribunais da Relação, que rejeitam sistematicamente o recurso sobre a matéria de facto ao arrepio e em contradição com as decisões do Supremo Tribunal de Justiça pondo em causa a aplicação do direito;

25. A admissibilidade do presente recurso, não pode deixar de ser entendida como um corolário dos princípios conjugados da igualdade (artigo 13.º n.º 9 da CRP) e da tutela jurisdicional efetiva (artigo 20.º da CRP), encontrando-se, pelo supra exposto, verificados os pressupostos de admissão do presente recurso excecional de revista, tal como definido no artigo 672.º, n.º 1, alínea c) do CPC.

Formulou o pedido de revogação do acórdão recorrido.

Foram apresentadas contra-alegações defendendo a confirmação do acórdão recorrido que terminam com as seguintes conclusões:

1. Os recorridos têm um merecido respeito pelos Venerandos Desembargadores do Tribunal da Relação de Guimarães que subscreveram o acórdão recorrido, o qual julgou improcedente a Apelação, confirmando a sentença recorrida.

2. Os recorridos, salvo o devido respeito, entendem que o Acórdão recorrido faz uma aplicação correta da lei.

3. Entendem os recorridos, conforme resulta do art.º 640º do C.P.C., os recorrentes, pretendem que determinada matéria seja alterada e que foi dada como provada, transcrevendo, como fundamento depoimento de várias testemunhas.

4. Limitam-se a discorrer genericamente sobre o teor da prova produzida, sem indicar os concretos meios probatórios que, sobre cada um dos pontos impugnados, impunham, decisão diversa da recorrida, não cumprindo os recorrentes as exigências do artº 640ºC.P.C.

5. Os recorrentes não cumpriram o ónus a seu cargo, uma análise critica da prova invocada, em confronto com o que consta da motivação da sentença, que permita justificar a alteração da decisão proferida sobre os fatos.

6. A recorrente limita-se a dizer genericamente que a prova não foi devidamente valorada designadamente as declarações de testemunhas, não individualizando os meios de prova que em relação a cada um dos fatos impugnados impunha uma decisão diversa.

7. Tratando-se, como se trata, de analisar as declarações das testemunhas, impunha-se a indicação das concretas passagens da gravação relativamente a cada fato impugnado, o que se não verificou.

8. Não tendo os recorrentes observado o disposto no art.º 640º, nº 1 do C.P.C., tal implica a rejeição do recurso, na parte relativa à impugnação da matéria de fato.

9. Mantendo-se a matéria de fato fixada na 1ª instância: factos provados (…)

10. Quanto aos fatos não provados (…)

11. Assim, não sendo de alterar a decisão quanto a matéria de facto, também não merece censura a aplicação do direito na decisão recorrida.

12. Com efeito o que está em causa é a titularidade de uma faixa de terreno com cerca de 300m2.

13. Não resultou provado que a Recorrente tivesse praticados atos materiais vocacionados para a usucapião.

14. Depois e como consta da sentença recorrida os Réus e bem assim como os seus antecessores vêm praticando atos materiais que denunciam o inequívoco exercício de poder de fato sobre a parcela, correspondente ao direito de propriedade e que o vêm fazendo à vista de todos com o conhecimento de toda a gente e sem oposição de quem quer que seja, pelo menos até 2006, durante pelo menos 20 anos.

15. Pelo que o presente recurso de revista, reveste a natureza de dupla conforme e deverá ser rejeitado, fazendo correta apreciação do artº 662º do C.P.C., não se vislumbrando quaisquer nulidades, do artº 674º do C.P.C.

16. Os recorrentes para a eventualidade de o recurso de revista não ser atendido, o que pugnamos, vem interpor recurso de revista excecional, ao abrigo do artº 672º, nº 1, al) c, do C.P.C.

17. Alega, para justificar o fundamento da revista excecional, que o acórdão recorrido está em absoluta contradição com outro, já transitado em julgado, proferido pelo STJ, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão de direito e sem que se tenha proferido acórdão de uniformização de jurisprudência.

18. Ora, salvo o devido respeito ambos os acórdãos são substancialmente diferentes, não podendo servir de fundamento para a admissão da revista excecional.

19. Ora o Tribunal da Relação de Guimarães, na opinião dos recorridos bem andou ao rejeitar o recurso em impugnação de matéria de fato, senão vejamos:

A apelante limitou-se a indicar determinados meios probatórios relativamente a todo o bloco da matéria provada e não provada objeto da impugnação, omitindo-os a cada um dos fatos cuja decisão se impugna.

20. Mais alegou que relativamente aos pontos 1,2,3,4, a recorrente não indicou os concretos meios probatórios constantes do processo ou do registo da gravação nele realizada que impunham decisão sobre esses pontos da matéria de fato, impugnados, diversa da recorrida.

21. Como aliás a recorrente reconhece, nas suas alegações que” sendo o que se lhe afigura é que o Tribunal a quo, na realidade não terá concordado com o mecanismo de agregação de fatos levado a cabo pela recorrente, uma vez que esta fez porque os fatos eram conexos entre si”

22. A própria recorrente o reconhece e confessa.

23. A recorrente omitiu os meios probatórios, que impunham decisão diversa.

24. A recorrente não cumpriu, o ónus legal que lhe era exigido.

25. O Acórdão recorrido não merece reparos.

26.  A Revista excecional deverá ser rejeitada, por falta de pressupostos legais.

                                   ***

I.2 – Questão prévia - admissibilidade do recurso

Nos termos conjugados do disposto nos art.º 629.º, n.º1, 631.º, n.º1, 671.º, n.º1 e 674.º, n.º1, b) do Código de Processo Civil o recurso de revista normal é admissível pelo que se prescinde da análise de admissibilidade do recurso de revista excepcional subsidiariamente interposto.

Muito embora o Tribunal da Relação haja confirmado a decisão proferida pelo tribunal de primeira instância, o recurso de apelação tinha também como fundamento a impugnação da matéria de facto, fundamento que a Relação se recusou a analisar por entender incumprido o disposto no art.º 640.º do Código de Processo Civil, pelo que não se verifica a situação de dupla conforme no sentido de poder tornar inadmissível a presente revista.

 Só após ter sido dirimida a suscitada questão adjectiva em torno da interpretação do disposto no art.º 640.º do Código de Processo Civil estará o processo em condições de ver definida a existência/inexistência operante da dupla conforme.

                                                   *

I.3 – O objecto do recurso

Tendo em consideração o teor das conclusões das alegações de recurso e o conteúdo da decisão recorrida, cumpre apreciar as seguintes questões:

1. Interpretação do disposto no art.º 640.º do Código de Processo Civil.

2. Aquisição originária do direito de propriedade.

                                                            

                                                *

I.4 - Os factos

As instâncias consideraram provados os seguintes factos:

A. Por escritura pública lavrada no Cartório Notarial ..., em 28/12/2007, a Autora comprou, pelo preço de três milhões e quatrocentos mil euros, à sociedade comercial, “S..., Lda.”, que lhe vendeu, o prédio rústico, designado por parcela B, sito no Lugar ..., freguesia ..., concelho ..., a confrontar de norte com ..., CC e outros, CCR II, Lda., e DD, do sul com M... e do poente com a Avenida ..., descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º 818/... e inscrito na respectiva matriz sob o artigo 136, com a área de 11.089 m2.

B. A autora fez inscrever, na competente conservatória, em 17/01/2008, pela apresentação ...6, o direito adquirido pela compra referida em A..

C. Foi levada a cabo, na Conservatória e Finanças, uma operação de desanexação de uma parcela de terreno do prédio referido em A. com área de 2946,20 m2, a qual deu origem à descrição n.º ...20/... da ... Conservatória do Registo Predial ... conforme AP. ...82 de 2015/06/16 e ao artigo matricial 3663 da União das freguesias ..., ... e ....

D. Por via da referida desanexação, o prédio referido em A. ficou com área (na matriz e descrição) de 8.142,8 m2 e com a matriz rústica sob o n.º 3673 e passou a confrontar de norte com Estação Agrária, CC e outros, CCR II e DD, do sul com M..., Lda. e do poente com Avenida ....

E. A autora, por si (desde há mais de 10 anos) e por seus ante possuidores (há mais de 30, 40 e 50 anos), de modo contínuo e reiterado, vem usando e fruindo todo o prédio referido em A. e D., roçando o mato, cuidando e limpando a propriedade, conservando-a e nela realizando todas as obras de conservação, beneficiação ou mesmo de valorização, suportando todos os encargos, contribuições e impostos a ele inerentes, usufruindo das utilidades que aquele proporciona e nele exercendo a sua actividade imobiliária.

F. Assim actuando à vista de todos, durante o dia e a noite e com o conhecimento de toda a gente.

G. Sem oposição de ninguém e sem violência, de boa-fé e sem prejudicar quem quer que seja.

H.  Na convicção de que sobre tal prédio exerce um direito de propriedade, em seu único e exclusivo proveito.

I. Existe, no Lugar ..., freguesia ..., concelho ..., um talho de terreno de área não concretamente apurada, mas situada entre 287 m2 e 300 m2, a confrontar de nascente com caminho público (Rua ...).

J. Os réus ocupam a parcela referida em I.

K. E, em 2007, construíram um muro com um portão metálico no limite nascente da dita parcela.

L. E recentemente ali erigiram uma construção metálica com cobertura.

M. A autora está impossibilitada de ter acesso à via pública pelo lado nascente do seu prédio.

N.  A autora não pode usar a parcela referida em I..

O. A autora enviou aos réus as missivas correspondentes aos documentos 14 e 15 anexos à petição inicial e os ante possuidores da autora enviaram aos réus a missiva correspondente ao documento 5 e 6 anexos à petição inicial.

P. No dia Onze de Julho de mil novecentos e oitenta e sete, foi celebrado entre os Réus e os proprietários da Quinta S..., Senhores KK, LL e MM, o acordo escrito que consta de fls. 62, denominado de “contrato-promessa de compra e venda”, com os seguintes dizeres:

“No dia Onze de Julho de mil novecentos e oitenta e sete, foi celebrado o presente contrato entre os proprietários da Quinta S..., KK, LL, MM, como vendedores e AA e sua esposa BB, como compradores.

Os vendedores prometem vender aos compradores, livre de quaisquer ónus e encargos referida propriedade composta por duas moradias de habitação e diversos artigos rústicos numa área aproximada de setenta mil metros quadrados, bem como uma nascente de água para rega da referida propriedade, sita no lugar ... da mesma freguesia ... pelo valor de sessenta milhões de escudos.

Os compradores entregam nesta data como sinal e princípio de pagamento, a quantia de oito milhões de escudos.

O restante valor será pago no ato da escritura notarial prazo máximo de três anos a contar desta data.

Nada mais havendo a tratar este contrato-promessa vai ser assinado por todos”.

Q.  No dia trinta de Junho de mil novecentos e oitenta e nove, o Réu AA, celebrou com o Sr. CC o acordo escrito que consta de fls. 66 verso e 67, denominado de contrato promessa de compra e venda, de onde constam, ademais, os seguintes dizeres:

“CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA”

Primeiro Outorgante:- AA, casado, sob o regime de comunhão geral de bens com D. NN, residentes no lugar do ..., freguesia ..., da cidade ....

Segundo outorgante: CC natural de ..., concelho ... que outorga por si e como representante de sua mulher OO e ainda outorgando como procurador de PP, natural de ..., ... casado com OO; de FF, com a mesma naturalidade do  anterior, casado com QQ; EE, com a mesma naturalidade, casado com RR, todos casados em comunhão geral de bens e residentes em Rua M..., nº 335,341,347 e 351, da freguesia ..., cidade ....

Entre os outorgantes é realizado o presente contrato, nas condições que se seguem:

 1-O primeiro outorgante é dono e legitimo possuidor dos seguintes prédios:

a) Prédio rustico denominado Campo ..., descrito na Conservatória sob o nº 15526 e inscrito na matriz rústica sob o nº 339 da freguesia ....

b) Prédio rustico denominado Campo ..., descrito na Conservatória sob o nº 15526 e inscrito na matriz rústica sob o nº 340 da freguesia ....

c) Prédio rustico denominado Campo ..., descrito na Conservatória sob o nº 15526 e inscrito na matriz rústica sob o nº 341, da freguesia ....

d) Prédio rustico denominado Campo ..., descrito na Conservatória sob o nº 15526 e inscrito na matriz rústica sob o nº 342, da freguesia ....

e) Prédio rustico denominado Campo ..., descrito na Conservatória sob o nº 15526 e inscrito na matriz rústica sob o nº 343 da freguesia ....

f) Prédio Rústico denominado Leira ..., descrito na Conservatória sob o nº 15526 e inscrito na matriz rústica sob o nº 344 da freguesia ....

g) Prédio Rústico denominado Campo ..., descrito na Conservatória sob o nº 15526 e inscrito na matriz rústica sob o nº 345 da freguesia ....

h) Prédio Rústico denominado Hortinha ..., descrito na Conservatória sob o nº 15526 e inscrito na matriz rústica sob o nº 346 da freguesia ....

i) Prédio Rústico denominado Campo ..., descrito na Conservatória sob o nº 15526 e inscrito na matriz rústica sob o nº 347 da freguesia ...).

j) Prédio Rústico denominado Campo ..., descrito na Conservatória sob o nº 15526 e inscrito na matriz rústica sob o nº 348 da freguesia ...).

l) Prédio Rústico denominado Pomar ..., descrito na Conservatória sob o nº 15526 e inscrito na matriz rústica sob o nº 349 da freguesia ....

Todos estes prédios rústicos pertencem à denominada Quinta ....

Pelo presente contrato promessa de Compra e Venda, o primeiro outorgante promete vender ao segundo outorgante, livre de quaisquer ónus encargos ou responsabilidades, os prédios rústicos atrás descritos, pelo preço de 60.000.000$00 (sessenta milhões de escudos). Esta importância será paga nas seguintes condições o primeiro outorgante entregará nesta data como sinal e principio de pagamento a quantia de 31.000.000$00, em dois cheques sendo um de 1.000.000$00 (mil contos), (cheque nº ...57, sob ...), e para movimentar neste ato, e o outro no valor de 30.000.000$00 (trinta mil contos),(cheque nº .........) agência de ..., para ser movimentado em 12 de agosto do corrente ano. O restante preço ou sejam 29.000.000$00 (vinte e nove milhões de escudos), será pago no ato da escritura notarial, que será outorgada durante o mês de Outubro próximo.

Concordam as partes em atribuir ao presente contrato, execução especifica nos termos do artº 830º do Código Civil.

..., 30 de Junho de 1989”

R. Por escritura de 17 de Novembro de mil novecentos e oitenta e nove, KK, LL e MM declararam vender a CC, PP, FF e EE a parte rústica do prédio misto descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número 15526 e na matriz sob o art. 32.º, correspondente aos arts. 339 a 346, 360 a 363, 377 e 466, que por sua vez, mais tarde, o venderam à sociedade comercial S..., LDA., que por sua vez o alienou à autora.

S. Por escritura pública lavrada no Cartório Notarial ..., em 17 de Novembro de mil novecentos e oitenta e nove, o réu declarou comprar, pelo preço de cinco milhões e novecentos mil escudos, a KK, LL e MM, que declararam vender-lhe, os seguintes prédios urbanos, destinados exclusivamente a habitação, sitos no Lugar ..., ou Senra ... freguesia ..., concelho ...:

Número UM- Prédio urbano, composto de rés do chão e dois andares, a confrontar do norte com o prédio seguinte, do sul com SS, do nascente com caminho público, e do poente com CC, PP, FF e EE, inscrito na matriz sob o artigo trinta e dois, com o rendimento coletável de quatro mil novecentos e cinquenta e quatro escudos, e o valor tributável de cento e nove mil novecentos e setenta e oito escudos e oitenta centavos, e a que atribuem o valos de quatro milhões e novecentos mil escudos;

NUMERO DOIS: Prédio urbano, com posto de rés-do-chão e um andar, a confrontar do sul com o prédio anterior, do norte com eles outorgantes, do nascente com caminho público e do poente com CC, PP, FF, e EE, inscrito na matriz sob o artigo trinta e três, com o rendimento coletável de quatrocentos e sessenta e oito escudos e o valor tributável de dez mil trezentos e oitenta e nove mil escudos.

T. Os réus fizeram inscrever, na competente Conservatória, o direito derivado da compra referida em S..

U. Os Réus, por si e seus antepossuidores, há mais de 35, 40 e 50 anos, de modo contínuo e reiterado, vêm usando e fruindo os prédios referidos em S., incluindo a parcela referida em I. como parte daqueles.

V. Cuidando-os e limpando-os.

W. Conservando-os e neles realizando todas as obras de conservação, beneficiação ou mesmo valorização.

X. Suportando todos os encargos, contribuições e impostos aos mesmos inerentes.

Y. Usufruindo das utilidades que os mesmos proporcionam.

Z. E neles exercendo as suas atividades do dia a dia.

AA. Tudo à vista de todos, durante o dia e durante a noite e com conhecimento de toda a gente e sem oposição de ninguém, sendo no que tange à parcela referida em I., sem oposição pelo menos até 2006.

BB. Na convicção de que sobre os prédios, incluindo a parcela referida em I., exercem o direito de propriedade, em seu único e exclusivo proveito.

CC. Na parte poente da parcela referida em I. existe um muro que foi construído por CC e que aí permanece há cerca de 33 anos.

DD. Os antecessores da autora sempre usaram como passagem parte da parcela de terreno referida em I. para acederem ao prédio referido em A.



*



Factos Não Provados

1. O prédio referido em A. confronta do nascente com caminho municipal.

2. O muro referido em CC. foi construído no meio do prédio referido em A. e D..

3. Os actos referidos de E. a H. foram praticados pela autora, e seus antecessores, também sobre a parcela referida em I. como parte integrante do prédio referido em A. e D..

4. Os réus venderam os prédios rústicos referidos em P..


*

II - Fundamentação

1.      Interpretação do disposto no art.º 640.º do Código de Processo Civil

Apenas no início de 1995 a legislação processual civil portuguesa garantiu o duplo grau de jurisdição em matéria de facto com o DL 39/95, de 15 de Fevereiro, em cujo preâmbulo se lia que:

Visa o presente diploma consagrar, na área do processo civil, uma solução legislativa que, embora corrente noutros ordenamentos jurídicos, é, no nosso, substancialmente inovadora, ao prever e regulamentar a possibilidade de documentação ou registo das audiências finais e da prova nelas produzida, (…)

Tal admissibilidade do registo das provas produzidas ao longo da audiência de discussão e julgamento permitirá alcançar um triplo objectivo:

Em primeiro lugar, na perspectiva das garantias das partes no processo, as soluções ora instituídas implicarão a criação de um verdadeiro e efectivo 2.º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto, facultando às partes na causa uma maior e mais real possibilidade de reacção contra eventuais - e seguramente excepcionais - erros do julgador na livre apreciação das provas e na fixação da matéria de facto relevante para a solução jurídica do pleito.

(…) Finalmente, o registo das audiências e da prova nelas produzida configura-se ainda como instrumento adequado para satisfazer o próprio interesse do tribunal e dos magistrados que o integram, inviabilizando acusações de julgamento à margem (ou contra) da prova produzida, com os benefícios que daí poderão advir para a força persuasiva das decisões judiciais e para o necessário prestígio da administração da justiça.

O estabelecimento desta inovadora garantia das partes - consistente na possibilidade de requerer e obter a integral registo das audiências e a consequente efectividade de um 2.º grau de jurisdição na apreciação dos pontos questionados da matéria de facto - suscita, desde logo, a questão da sua articulação com a tradicional garantia decorrente da colegialidade da decisão sobre a matéria de facto. (…)

A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência - visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso. (…)

A consagração desta nova garantia das partes no processo civil implica naturalmente a criação de um específico ónus de alegação do recorrente, no que respeita à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação.

Este especial ónus de alegação, a cargo do recorrente, decorre, aliás, dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa fé processuais, assegurando, em última análise, a seriedade do próprio recurso intentado e obviando a que o alargamento dos poderes cognitivos das relações (resultante da nova redacção do artigo 712.º) - e a consequente ampliação das possibilidades de impugnação das decisões proferidas em 1.ª instância - possa ser utilizado para fins puramente dilatórios, visando apenas o protelamento do trânsito em julgado de uma decisão inquestionavelmente correcta.

Daí que se estabeleça, no artigo 690.º-A, que o recorrente deve, sob pena de rejeição do recurso, para além de delimitar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, motivar o seu recurso através da transcrição das passagens da gravação que reproduzam os meios de prova que, no seu entendimento, impunham diversa decisão sobre a matéria de facto.

Tal ónus acrescido do recorrente justifica, por outro lado, o possível alargamento do prazo para elaboração e apresentação das alegações, consentido pelo n.º 6 do artigo 705.º

(…)

Por outro lado - e como resulta claramente das considerações antecedentes -, o objecto do 2.º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto não é a pura e simples repetição das audiências perante a relação, mas, mais singelamente, a detecção e correcção de concretos, pontuais e claramente apontados e fundamentados erros de julgamento, o que atenuará sensivelmente os riscos emergentes da quebra da imediação na produção da prova (…).”

Duma fase inicial em que  o recorrente teria de proceder à transcrição escrita das passagens da gravação em que se fundava, passou-se a um período em que teria que ser identificado “o início e o termo da gravação de cada depoimento, informação ou esclarecimento” que se mostravam registados na acta de audiência, com o DL183/2000, de 10 de Agosto, para, finalmente,  com o DL 303/2007, de 24 de Agosto, deixar de ser exigida, quer a transcrição dos depoimentos, quer a referência ao assinalado na acta, sendo, somente, necessário  “indicar, com exactidão, as passagens da gravação em que a impugnação se baseie”.

Chegados ao art.º 640º do actual Código de Processo Civil verificamos que os ónus a suportar pelo recorrente para beneficiar da garantia de duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto são os seguintes:

1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;”

Analisando as alegações de apelação apresentadas pela A. e aqui recorrente podemos estabelecer o seguinte mapa para a sua eficiente leitura:

1. Nas alegações indicou:

3 - OS FUNDAMENTOS DA DISCORDÂNCIA:

3.1 - MATÉRIA DE FACTO - IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO PROFERIDA SOBRE A MATÉRIA DE FACTO PROVADA:

2. Enunciou os factos considerados não provados;

3. Enunciou os factos considerados provados;

4. Enunciou a fundamentação desse probatório que termina dizendo: Tudo o assim exposto serve para justificar a prova da factualidade constante de E. a H. e U. a DD. e a não prova da factualidade constante de 1 a 3. - ;

5. Referiu imediatamente a seguir que:”

“Sucede que, e salvo o devido respeito, esta factualidade dada como não provada, e na parte da reconvenção, como provada, foi incorretamente julgada, pois conciliando a prova documental junta aos autos, nomeadamente a certidão da Conservatória do Registo Predial, a planta topográfica e as fotografias juntas aos autos com os depoimentos da prova testemunhal obtidos em sede de audiência de discussão e julgamento e que se encontram gravados, impunha-se uma decisão diferente relativamente à matéria de facto dada como não provada na ação, e provada na reconvenção, assim como quanto à improcedência dos pedidos formulados pela Autora e à procedência dos pedidos dos Réus.”

6. Passou à análise dos depoimentos das testemunhas e depoimento de parte que entendeu deveriam ter conduzido a decisão diversa, com indicação da sessão de julgamento em que foram ouvidas, fls. 12 e segs das alegações:

3.1.1 - DEPOIMENTOS DAS TESTEMUNHAS EE, CC E FF

7. Sobre o depoimento de cada testemunha seguiu sempre o seguinte modelo:

a) identificação da testemunha

b) data da inquirição

c) início e fim do depoimento

d) duração do depoimento

e) o que considera que deve ser extraído desse depoimento

f) transcreveu a passagem da gravação que entende relevante

8. Os depoimentos integrais em causa tinham a seguinte duração:

EE – 00:12:48

CC – 00:28:37

FF– 00: 23:34

9. Quanto ao depoimento de CC, repartiu-o entre o que a testemunha disse sobre:

1 - a aquisição dos terrenos rústicos

2 - construção do muro e sua finalidade

3 - esclarecimento sobre eventuais discrepâncias do seu depoimento com o do seu irmão, EE

4 - ao uso que pelos réus era dado à parcela de terreno em discussão nos autos

10. Concluiu sobre os referidos depoimentos que:

“Ora, de tudo quanto supra transcrito é patente que os testemunhos de EE e CC foram coincidentes no que concerne ao facto dos Réus nada fazerem na parcela de terreno em discussão nos autos até 1999, no facto da testemunha CC ser o conhecedor da situação e do negócio ter sido com este, e não com o EE, facto que também a testemunha FF ouvido no dia 11-02-2022 entre as 11:41:38 e as 12:05:13, num depoimento com a duração de 00:23:34 confirmou (…) Entenda a Recorrente que o tribunal recorrido face às versões contraditórias da testemunha EE e da testemunha CC não justificou, devidamente, a sua opção por ter dado mais credibilidade ao depoimento daquele do que deste, quando as regras da experiência e o senso comum apontam, exatamente, para que maior credibilidade tivesse sido dada a este último”

11. Análise do depoimento nas declarações do filho dos Réus, a testemunha GG num depoimento prestado em 11-02-2022, entre as 15:33:30 e as 16:09:36 e com uma duração de 00:36:05, igualmente transcrito – questão:

“(…) repare-se que os Réus sempre tiveram uma entrada própria que usavam para aceder às suas casas, não usando a entrada que mais tarde vieram a fechar, em 2007, junto ao caminho municipal, entrada essa que a testemunha CC disse que sempre usaram até à venda à antecessora da Autora, em 1999, e que aquando da compra dos terrenos rústicos pelos CC e dos urbanos pelos Réus, em 1989, estes bem sabiam não lhes pertencer tal como o próprio filho asseverou em Tribunal”.

12. Análise do depoimento do réu AA, ouvido no dia 11-02-2022, entre as 09:58:31 e as 10:31:25, num depoimento com a duração de 00:32:54, igualmente transcrito – questão:

“E tantos os Réus bem sabiam não lhes pertencer que o próprio Réu Marido, ouvido no dia 11-02-2022, entre as 09:58:31 e as 10:31:25, num depoimento com a duração de 00:32:54, afirmou que apenas começaram a utilizar a parcela em discussão nestes autos quando repuseram o muro, ou seja, na sua versão, desde 1995”

13.  Análise sobre o valor probatório do depoimento de parte.

14.  Análise do depoimento das testemunhas HH, ouvida em audiência de julgamento no dia 11-02-2022, entre as 14:26:58 e as 14:50:01 num depoimento com a duração de 00:22:26 e II ouvida no mesmo dia, entre as 14:50:01 e as 16:06 num depoimento com a duração de 00:26:04, igualmente transcrito – destacando que:

(…) apenas relataram ao tribunal aquilo que o Réu marido lhes disse, desconhecendo em concreto o que havia sido negociado entre aquele e os CC, sendo que o primeiro sempre soube adiantar que quando foi fechar o muro, em 1994/1995, entrou pelo lado do Senhor AA, numa alusão ao facto da entrada que mais tarde viria a ser fechada em 2007 e da parcela de terreno em discussão nestes autos não pertencer aos Réus e nem por eles ser utilizada.”

15. Análise do depoimento a testemunha JJ ouvida em audiência de julgamento no dia 11-02-2022, entre as 12:21:32 e as 12:41:50 num depoimento com a duração de 00:20:17, corroborou, plenamente, o depoimento da testemunha conhecedora de tudo quanto se passou, ou seja, CC como se infere das passagens que infra se transcrevem”

16. Este depoimento foi concretamente reportado à seguinte questão:

17. A parcela de terreno, reivindicada nos presentes autos, foi utilizada permanentemente, primeiro, pelos CC e, depois, pela S... até, sensivelmente, 1999, e não pelos réus desde 1989 pois a estes apenas lhes era permitida a passagem

18. Enunciação dos factos que a A. considera que devem ser considerados provados:

“3.1.6.- Assim, em conclusão, sustenta a Recorrente, em cumprimento do artigo 640.º, n.º 1, al. c) do C.P.C., que devem ser dados como PROVADOS os seguintes factos:

A. Por escritura pública lavrada (…)

D. Por via da referida desanexação (…)

E. A autora, por si (desde mais de 10 anos) (…)

K. E, em 2007, construíram um muro (…)

S. Por escritura pública lavrada no Cartório (…)

T. Os réus fizeram inscrever (…)

 

B. U. Os Réus, por si e seus antepossuidores (…)

C. V. Cuidando-os e limpando-os (…)

W. Conservando-os e neles realizando (…)

X. Suportando todos os encargos (…)

Y. Usufruindo das utilidades (…)

Z. E neles exercendo as suas atividades (…)

AA. Tudo à vista de todos, (…)

BB. Na convicção de que sobre (…)

CC. Na parte poente da parcela (…)

DD. Os Réus, até 1999, sempre (…)

3.1.7. - E como NÃO PROVADOS:

1.O prédio Número UM (…)

2.O prédio urbano, 32º, hoje (…)

3.O prédio urbano, artigo (…)

4. Os atos referidos de U. (…)

Foram levadas às conclusões, de modo sintéctico, como se impõe as diversas questões constantes do mapeamento anterior sendo de destacar as seguintes:

“XIV - A Apelante considera incorretamente julgados os factos constantes dos pontos A., D., E., K., S., T., U., AA., BB., CC. e DD. Da sentença recorrida os quais devem ser declarados provados com o exato teor indicado no Ponto 3.1.6. supra das alegações de recurso.

XV - A Apelante considera, ainda, que devem ser considerados como não provados os pontos 1, 2,3 e 4 tal como indicado no Ponto 3.1.7. supra das alegações de recurso.

XVI - Os concretos meios probatórios que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, são as declarações da testemunha CC, JJ, GG, HH, II e FF.”

Como claramente resulta do mapeamento das alegações acabado de elaborar mostram-se indicados:

Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

 A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

  A lei não contempla, além dos acima indicados, qualquer outro parâmetro a observar pelo recorrente para obter o duplo grau de jurisdição em sede de apreciação da matéria de facto.

Estamos perante uma garantia dos cidadãos no desenrolar dos processos que decorrem perante os tribunais cíveis – duplo grau de jurisdição pleno por abarcar factos e a direito – concedida pela lei, única fonte de direito no ordenamento jurídico português. Como está bem patente nas partes do preâmbulo do mais exigente diploma do nosso ordenamento quanto a esta matéria foi preocupação do legislador assegurar o exercício do direito ao contraditório por parte do recorrido e evitar o uso desta garantia como mero efeito dilatório. Fê-lo escolhendo os instrumentos que achou adequados, vindo ao longo do tempo a simplificar as exigências que devem os recorrentes cumprir. Como balizas relativas à rejeição do recurso existem apenas estas:

- assegurar que a parte contrária tem efectiva possibilidade de se defender da pretensão

 recursiva formulada contra si,

- evitar que esta garantia seja usada como mero expediente dilatório,

 por isso, a necessidade de concretização dos factos a alterar, dos meios de prova que suportam essa alteração, e do sentido da alteração.

A curta história do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto não pode deixar de ser olhada por um duplo prisma de forte tendência de simplificação processual e abandono de ritos morosos e ineficientes, e, reafirmação da confiança do legislador na capacidade dos tribunais de 2.ª instância de assegurarem a efectiva concretização desse duplo grau de jurisdição, num processo moderno que se quer bem gerido, eficiente e informado pelos princípios da cooperação de magistrados, mandatários e partes em busca da verdade material com vista à outorga de tutela jurisdicional efectiva.

Em suma, a rejeição do recurso em sede de impugnação da decisão de facto, ao abrigo do artigo 640.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, só deve ocorrer quando dos termos em que a pretensão recursória vem formulada não resulte a identificação dos juízos probatórios visados, o sentido da pretendida decisão a proferir sobre eles nem a indicação dos concretos meios de prova para tal convocados, o que é bem diferente do que seria já uma envolvência no plano da apreciação do mérito sobre o invocado erro de julgamento. Com efeito, uma coisa é a definição do objecto da impugnação deduzida e do alcance da alteração pretendida, bem como a indicação dos meios probatórios convocados, garantidas pela mencionada disposição legal, coisa diversa são as razões ou argumentos probatórios aduzidos nesse âmbito, seja qual for a sua densidade ou coerência, a apreciar, portanto, em sede de mérito.

Acresce que, mesmo seguindo a orientação adoptada no acórdão recorrido, que não partilhamos, segundo a qual o requisito do ónus impugnativo estabelecido na alínea b) do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil implica uma análise crítica dos meios probatórios concretamente convocados em termos de permitir ao tribunal de recurso caracterizar o invocado erro de facto, tal foi cumprido nas alegações de recurso.

Será o quanto basta para justificar a reapreciação dessa prova, independentemente de outra prova produzida não convocada pela recorrente e de que o tribunal de recurso pode lançar mão oficiosamente.

A rejeição do recurso, porque aniquila o direito ao recurso, só pode ocorrer quando o teor do recurso de apelação impossibilite a identificação da matéria de facto a alterar e o respectivo conhecimento, o que é diverso de se afastar de qualquer esquema mental mais formalista de leitura do preceito em análise.

Não há, no caso concreto, qualquer fundamento legal que suporte a rejeição do recurso da decisão sobre a matéria de facto.

Procede, pois, a revista com este fundamento, ficando, consequentemente, prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas neste recurso de revista.


* * * * *


III – Deliberação


Pelo exposto, concede-se a revista, revoga-se o acórdão recorrido, e, determina-se a baixa dos autos ao Tribunal da Relação para apreciação da impugnação da matéria de facto e prolação de decisão de direito em conformidade.

Custas pelo vencido a final.

                             *

Lisboa, 2 de Março de 2023

Ana Paula Lobo (Relatora)

Afonso Henrique Cabral Ferreira

Maria Graça Trigo