Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07B3832
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores: ADOPÇÃO
CONFIANÇA JUDICIAL DE MENORES
LEGALIDADE
PROCESSO DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Nº do Documento: SJ200804100038327
Data do Acordão: 04/10/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :


1. Sendo legalmente qualificado como de jurisdição voluntária o processo de confiança judicial (artigo 150º da OTM), é-lhe aplicável o disposto no nº 2 do artigo 1411º do Código de Processo Civil, segundo o qual “das resoluções proferidas segundo critérios de conveniência ou oportunidade não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça”;

2. A intervenção do Supremo Tribunal de Justiça no julgamento de recursos interpostos no respectivo âmbito limita-se, assim, à apreciação das decisões tomadas de acordo com a legalidade estrita;

3. Nomeadamente, pode verificar o respeito pelos pressupostos, processuais ou substantivos, do poder de escolher a medida mais conveniente aos interesses a tutelar, bem como o respeito do fim com que tais poderes foram atribuídos aos tribunais, mas não a conveniência ou a oportunidade daquela escolha;

4. No caso, encontram-se preenchidos os requisitos legalmente exigidos para que possa ser decretada a medida de confiança judicial a instituição com vista a futura adopção, analisados do ponto de vista que deve prevalecer, e que é o da protecção dos interesses do menor: está demonstrada, quanto ao pai, a inexistência entre ambos dos vínculos afectivos próprios da filiação, bem como o desinteresse objectivo exigido pela al.e) do nº 1 do artigo 1978º do Código Civil; quanto à mãe, objectivamente, o facto de revelar, pela forma como vem organizando a sua vida e a relação com a filha, um desinteresse susceptível de comprometer seriamente aqueles vínculos nos três meses que antecederam o requerimento da medida de confiança, encontrando-se o menor entregue a uma instituição.

5. Diferentemente, a conclusão a que o Tribunal da Relação chegou de que a medida de acolhimento já se não mostrava adequada à prossecução do superior interesse do menor, ponderada nos termos previstos no nº 1 do artigo 1410º do Código de Processo Civil, não é sindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Decisão Texto Integral:

Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:


1. Por sentença do Tribunal de Família e de Menores de Matosinhos, de 21 de Fevereiro de 2007, de fls. 128, proferida no âmbito de um processo de confiança judicial desencadeado por iniciativa do Ministério Público em 21 de Novembro de 2006, foi decretada “a confiança judicial da menor AA ao «Lar S...C...»”, onde, aliás, já vivia, “com vista à sua futura adopção”.
Foi ainda nomeada à menor uma curadora provisória – a medida de confiança judicial provoca a inibição do exercício do poder paternal relativamente aos progenitores (artigo 1978º-A do Código Civil, aditado pelo artigo 3º da Lei nº 31/2003, de 22 de Agosto) –, a Directora do Lar (artigo 167º do Decreto-Lei nº 314/78, de 27 de Outubro – Organização Tutelar de Menores) e determinado que cessassem de imediato as visitas e contactos com a família biológica.
Para o efeito, a sentença fez as seguintes considerações:
– Quanto ao pai, “embora a visite com regularidade, não possui a qualquer nível capacidades ou competências para assumir a educação da filha – sofre de atraso mental, encontra-se desempregado e ele próprio não perspectiva assumir a educação da criança. Mais sintomático do que tudo isso é a reacção da menor face à figura paterna: aceita-a como tal mas não pergunta por ele nem revela desejo em vê-lo caso ele não apareça. Entre a AA e o seu pai os vínculos afectivos próprios da filiação biológica encontram-se francamente debilitados e a total falta de condições para assumir a criança tornam manifesto que no pai a AA nunca poderia encontrar uma alternativa viável à sua institucionalização para sempre”;
Quanto à mãe, apesar de entender tratar-se de uma situação mais duvidosa, a sentença acaba por concluir que “continua a não reunir condições laborais e habitacionais, para assumir o processo educativo da menor e, por outro lado, ao longo de mais de um ano de institucionalização foi incapaz de estabelecer com a filha uma relação de vinculação significativa”.
Deu, assim, como preenchido, em relação a ambos os pais, o pressuposto constante da “al. e) do art. 1978º do Cód. Civil (redacção da Lei nº 31/03 de 22 de Agosto) para que seja decretada a confiança judicial (…) com vista à (…) futura adopção”, assim definido naquele artigo do Código Civil:

“1 – Com vista a futura adopção o tribunal pode confiar o menor a casal, a pessoa singular ou instituição quando não existam ou se encontrem seriamente comprometidos os vínculos afectivos próprios da filiação, pela verificação objectiva de qualquer das seguintes situações:
(…)
e) se os pais do menor acolhido por um particular ou por uma instituição tiveram revelado manifesto desinteresse pelo filho, em termos de comprometer seriamente a qualidade e a continuidade daqueles vínculos, durante, pelo menos, os três meses que precederam o pedido de confiança.
(…)”

A mãe, BB, recorreu (quanto à matéria de facto e à solução de direito) para o Tribunal da Relação do Porto. Todavia, por acórdão de 16 de Julho de 2007, de fls. 205, foi negado provimento ao recurso, e mantida a decisão da 1ª Instância.
BB recorreu, então, para o Supremo Tribunal de Justiça, sendo o recurso recebido como revista e com efeito meramente devolutivo, “excepto no que diz respeito: a) a não serem permitidas as visitas de BB a AA; b) e a ser porventura entregue de imediato a cuidados de terceiro, que não seja a Instituição onde tem estado e está acolhida”, pelo despacho de fls. 237.

2. Nas alegações que apresentou, e que reproduzem as que utilizou no recurso de apelação, na parte em que (então) impugnou a decisão de direito, a recorrente formulou as seguintes conclusões:
“1ª- A factualidade dos autos não se subsume no nº 1 do art. 1978º do CC nem nas als. d) e e) do mesmo preceito, ou seja, no caso em apreço, os vínculos próprios da filiação não se encontram seriamente comprometidos.
2ª – Do mesmo modo, a factualidade assente não permitia ao tribunal ‘a quo’ concluir que a menor foi exposta em perigo grave em termos de segurança, saúde, formação, educação e desenvolvimento;
3ª – Como não permitia concluir pelo manifesto desinteresse da recorrente, em termos de comprometer seriamente a qualidade e a continuidade dos vínculos afectivos próprios da filiação.
4ª – Ao decidir como decidiu o tribunal ‘a quo’ violou o disposto no art. 1978º, 1 e als. d), e) e nos arts. 1877º, 1882º, 1885º a 1888º do mesmo e ainda o art. 3º da L.P.C.J.P.
5ª – A decisão sub censura é ofensiva dos princípios constitucionais plasmados nos arts. 36º, nº 6 e 67º, nº 1 da Lei Fundamental, que garantem que os filhos não podem ser separados dos pais, salvo quando estes não cumpram os deveres fundamentais para com eles, bem como o direito à família à protecção do Estado e à efectividade de todas as condições que permitam a realização pessoal dos seus membros.”
Nas contra-alegações, o Ministério Público pronunciou-se no sentido de que o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 1411º do Código de Processo Civil, não pode conhecer do recurso, porque a decisão recorrida foi proferida segundo critérios de oportunidade e conveniência.
Sustenta que “a recorrente (…) não traz à colação, nesta revista, a invocação de qualquer critério normativo. Pelo contrário, a razão subjacente às suas afirmações radica em critérios de pura oportunidade, isto é, em averiguar se, tendo em conta o interesse da menor AA, ela [sua mãe] pode proporcionar-lhe aquele mínimo indispensável a um crescimento são e equilibrado, no seio da família que constituem”.
Notificada para se pronunciar sobre este obstáculo suscitado pelo Ministério Público, nos termos do nº 2 do artigo 704º, do nº 2 do artigo 702º e do artigo 726º do Código de Processo Civil, a recorrente manifestou a sua discordância.

3. A matéria de facto definitivamente provada neste processo é a seguinte (transcreve-se o acórdão recorrido, que confirmou o decidido em 1ª instância, indeferindo a impugnação então deduzida pela recorrente):

“a) – AA nasceu a 17 de Abril de 2000 e foi registada como filha de CC e de BB;
b) – A progenitora da menor foi criada no “Lar de S...C...” e não possui qualquer rectaguarda familiar;
c) – O progenitor da menor foi criado na “Obra do P...G...” e não possui, igualmente, qualquer rectaguarda familiar;
d) – A progenitora trabalhou, inicialmente, como empregada doméstica e, depois, passou a trabalhar em restaurantes com horários de trabalho incompatíveis com os cuidados a prestar à filha, pelo que necessitou sempre de entregar a criança a amas;
e) – A partir de Setembro de 2001, a menor começou a frequentar o infantário “Patronato N...S...da N...”;
f) – Diariamente, a mãe levava-a ao infantário, pela manhã, e, no final do período escolar, a ama ia buscá-la;
g) – A criança ficava, depois, entregue à ama, até ao final do horário laboral da mãe, que a ia buscar, sempre depois da meia-noite;
h) – Por vezes, a menor ficava a dormir em casa da ama;
i) – Em Outubro de 2005, a ama da menor faleceu;
j) – Nessa altura, a progenitora solicitou a outra ama que lhe cuidasse da menor, desde o fecho do infantário até ao final do seu próprio horário de trabalho;
k) – A menor ficava com a ama até cerca da 1 da manhã, quando a mãe a ia buscar, e, depois, levantava-se, por volta das 7 da manhã para ingressar no infantário;
l) – Quando ia buscar a filha, a progenitora não costumava perguntar como tinha estado a criança;
m) – Em Dezembro de 2005, esta senhora deixou de poder cuidar da menor e a progenitora decidiu solicitar ao Lar de S...C... que acolhesse a menor, pois não tinha condições para tomar conta da criança;
n) – Uma vez que a referida instituição se encontra encerrada aos fins-de-semana, a menor passava a semana na instituição e, aos fins-de-semana, a progenitora entregava-a aos cuidados de uma jovem (neta da primeira ama da menor);
o) – Nessa altura, a menor, ao regressar à instituição, durante a semana começa a manifestar comportamentos desadequados, de cariz sexual e um discurso fortemente sexualizado;
p) – Praticamente todas as técnicas e funcionárias do lar se aperceberam do discurso e comportamentos da menor, situação que era comentada entre todas;
q) – Quando foi confrontada com a situação, a progenitora revelou de nada se ter apercebido e aceitou pacificamente deixar de ir buscar a filha aos fins-de-semana;
r) – A menor relatou aos técnicos da instituição cenas de sexo explícito que teria presenciado, aos fins-de-semana, em casa da jovem a quem a mãe a entregava e seu namorado;
s) – A menor relatou, de forma clara e explícita, a funcionárias do lar a forma como se fazem “charros”, explicando que viu um amigo da mãe fazê-los;
t) – Em Fevereiro de 2006, numa altura em que a AA ainda passava os fins-de-semana com a mãe, duas técnicas da instituição efectuaram visita domiciliária-surpresa, a fim de averiguarem as condições habitacionais da progenitora;
u) – Na referida visita, verificaram que a casa é constituída por um quarto de casal, uma sala que é utilizada como cozinha e uma casa de banho completa (com polibain);
v) – As técnicas chegaram, ao início da tarde, e verificaram que mãe e filha se encontravam ainda a dormir;
x) – A progenitora, depois de muita insistência, veio abrir a porta, em pijama, e a menor encontrava-se de fralda e chupeta (objectos que já não utilizava na instituição);
y) – A menor encontrava-se, manifestamente, com fome;
w) – A sala/cozinha estava repleta de louça suja, eram visíveis biberões com verdete, talheres e medicamentos;
z) – O quarto, corredor e casa de banho encontravam-se repletos de roupas amontoadas (inclusive o polibain);
aa) – Questionada sobre o banho, a progenitora esclareceu que aquecia água e dava banho à menor numa bacia;
bb) – Na casa, tal era o amontoado de coisas, não havia local (além da cama) para pousar uma bacia com água;
cc) – Era visível comida estragada, garrafas de cerveja vazias, pão com bolor;
dd – Desde que deixou de levar a filha, aos fins-de-semana, a progenitora passou a visitá-la na instituição, no seu dia de folga;
ee) – A progenitora trabalha num restaurante, em Vila Nova de Gaia, e, até muito recentemente, o seu horário de trabalho era : Domingo, 2ª, 3ª, 6ª e Sábado, das 12h às 15h e das 19h às 23h; à 5ª feira, trabalha das 19h às 23 h e folga à 4ª feira;
ff) – Até à data em que foi citada para os termos desta acção, a progenitora tinha efectuado as seguintes visitas à menor:
- 16-03-2006
- 28-03-2006
- 04-04-2006
- 12-04-2006
- 28-04-2006
- 09-05-2006
- 24-05-2006
- 30-05-2006
- 08-06-2006
- 12-06-2006
- 26-06-2006
- 25-07-2006
- 06-09-2006
- 13-09-2006
- 27-09-2006
- 26-10-2006
- 02-11-2006
- 08-11-2006;
gg) – Alegando não ter tido folga, telefonou, nos dias 23-03-2006, 20-04-2006 e 22-06-2006;
hh) – No mês de Agosto, em que a instituição se encontra encerrada, a menor esteve com funcionárias da instituição;
ii) – Embora soubesse com quem a filha estava e os contactos telefónicos, a progenitora nunca contactou com a filha ou com quem dela cuidava, nesse período;
jj) – A menor não perguntou pela mãe, durante todo o mês de Agosto;
kk) – Antes das férias de Verão, numa altura em que a mãe esteve algum tempo sem efectuar visitas à filha, esta verbalizou, sem emoção: “a minha mãe deve ter morrido”;
ll) – Embora, “oficialmente”, apenas tenha iniciado actividade, no seu actual local de trabalho, em Junho de 2006, antes disso (provavelmente Fevereiro ou Março), a mãe da menor já, aí, efectuava alguns serviços;
mm) – Muito recentemente, terá obtido a anuência da sua entidade patronal para alterar o horário de trabalho, trabalhando apenas até ás 17h;
nn) – Desde Dezembro de 2006, a progenitora passou a visitar a filha com maior regularidade e a criança passou a revelar ansiedade pela visita da mãe;
oo) – A progenitora aufere, mensalmente, 372 € líquidos e reside numa casa da Câmara pela qual paga a renda mensal de 25 €;
pp) – Recentemente (Fevereiro de 2007), a habitação continuava a apresentar-se sem condições de higiene;
qq) – A patroa da progenitora revela disponibilidade para a auxiliar;
rr) – O progenitor da menor visita-a com frequência e regularidade, mas é incapaz de desenvolver com a criança uma relação afectiva consistente, pois sofre de atraso mental;
ss)- Encontra-se desempregado e não possui quaisquer condições para cuidar da menor;
tt)- A menor raramente fala no pai e nunca pergunta por ele;
uu) – A falta de higiene na habitação, desorganização e desarrumação foram sempre uma constante estrutural na progenitora da menor;
vv) – Pelo menos há seis meses atrás, a progenitora foi confrontada pelo técnico de Seg. Social de que deveria alterar as suas condições de vida pois a filha não poderia crescer numa instituição;
xx) – A menor é uma criança muito extrovertida que se adapta com muita facilidade a novas situações e revela capacidade de aprendizagem superior ao que seria de esperar para a sua idade;
zz) – Quando a menor integrou a instituição, era notória a falta de regras e de educação.”

4. Antes de mais, cumpre apreciar a questão da admissibilidade do presente recurso, suscitada pelo Ministério Público.
Para o efeito, transcreve-se ou segue-se de perto o que se observou no acórdão deste Supremo Tribunal de 28 de Fevereiro de 2008, redigido pela mesma relatora e disponível em www.dgsi.pt, proc.nº 07B4681, proferido num processo judicial de promoção e protecção de crianças e jovens em perigo, em que o Ministério Público requereu a medida de confiança de menor a instituição, com vista à adopção.
Na verdade, o processo de confiança judicial é também considerado, por lei, como um processo de jurisdição voluntária (artigo 150º da OTM).
Para o que agora releva, esta opção legal implica, desde logo, que “das resoluções proferidas [nestes processos] segundo critérios de conveniência ou oportunidade não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça” (nº 2 do artigo 1411º do Código de Processo Civil).
Como é sabido, ao incluir na competência dos tribunais o julgamento dos chamados processos de jurisdição voluntária ou graciosa, cujas regras gerais se encontram nos artigos 1409º a 1411º do Código de Processo Civil, o legislador pretendeu que a prossecução de determinados interesses, em si mesmos de natureza privada, mas cuja tutela é de interesse público, fosse fiscalizada por entidades cujas características são garantia de uma protecção adequada à sua natureza.
Com essa finalidade, conferiu-lhes os poderes necessários para o efeito, afastando, quando conveniente, certos princípios, conformadores do processo civil em geral, que disciplinam a sua intervenção enquanto órgãos incumbidos de resolver litígios que se desenrolam entre partes iguais, perante as quais os tribunais têm de adoptar uma posição de rigorosa imparcialidade.
Assim, no domínio da jurisdição voluntária, os tribunais podem investigar livremente os factos que entendam necessários à decisão mais acertada (afastando a regra, vigente na jurisdição contenciosa, da limitação, mais ou menos apertada, aos factos alegados – cfr. artigos 664º e 264º do Código de Processo Civil), recolher as informações e as provas que entendam pertinentes, rejeitando as demais, decidir segundo critérios de conveniência e de oportunidade, e, na generalidade dos casos, adaptar a solução definida à eventual evolução da situação de facto.
Dotado destes meios, o tribunal deve assumir (neste sentido, parcialmente) a defesa do interesse que a lei lhe confia – no caso, o “interesse superior da criança e do jovem”, como expressamente afirma a alínea a) do artigo 4º da Lei de Protecção das Crianças e dos Jovens em Perigo, aprovada pela Lei nº 147/99, de 1 de Setembro, aplicável por força do disposto no artigo 147º-A da OTM –, ainda que essa defesa implique fazê-lo prevalecer sobre outros interesses que eventualmente estejam envolvidos, ou mesmo em oposição.
Como ali se explicita, a intervenção do tribunal “deve atender prioritariamente aos interesses da criança e do jovem, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto”.
Explica-se desta forma que o Supremo Tribunal de Justiça, enquanto tribunal especialmente encarregado de controlar a aplicação da lei, substantiva (cfr. nº 2 do artigo 722º do Código de Processo Civil, na redacção aplicável) ou adjectiva (cfr. artigo 755º do mesmo diploma), não possa, nos recursos interpostos em processos de jurisdição voluntária, apreciar medidas tomadas segundo critérios de conveniência e oportunidade, ao abrigo do disposto no artigo 1410º do Código de Processo Civil. Com efeito, a escolha das soluções mais convenientes está intimamente ligada à apreciação da situação de facto em que os interessados se encontram; não tendo o Supremo Tribunal de Justiça o poder de controlar a decisão sobre tal situação (cfr. artigos 729º e 722º do Código de Processo Civil, na redacção aplicável), a lei restringiu a admissibilidade de recurso até à Relação.
A verdade, todavia, é que esta limitação não implica a total exclusão da intervenção do Supremo Tribunal de Justiça nestes recursos; apenas a confina à apreciação das decisões recorridas enquanto aplicam a lei estrita. É, nomeadamente, o que se verifica, quer quanto à verificação dos pressupostos, processuais ou substantivos, do poder de escolher a medida a adoptar, quer quanto ao respeito do fim com que esse poder foi atribuído.
Neste recurso, a recorrente nega o preenchimento dos requisitos definidos pelo corpo do nº 1 do artigo 1978º do Código Civil – a não existência ou o sério comprometimento dos vínculos afectivos próprios da filiação – e pelas suas alíneas d) e e), sustentando que não ocorreu, nem qualquer situação de “perigo grave para a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento do menor” (al. d)), nem nenhuma “situação de manifesto desinteresse pelo filho, em termos de comprometer, seriamente, a qualidade e a continuidades daqueles vínculos, durante, pelo menos, os três meses que precederam o pedido de confiança” (al. e)).
Tratando-se de pressupostos legais imperativamente fixados para que o juiz possa ponderar da conveniência e da oportunidade de decretar a medida que lhe foi requerida, cabe no âmbito dos poderes do Supremo Tribunal de Justiça e, portanto, deste recurso, a apreciação da respectiva verificação; é, pois, admissível o recurso, mas com o âmbito assim delimitado.
O mesmo se diga quanto à acusação de inconstitucionalidade da decisão proferida pela Relação.

5. No caso presente, a sentença da 1ª Instância, confirmada pela Relação, determinou a confiança requerida com base na alínea e) do nº 1do artigo 1978º do Código Civil, razão pela qual este acórdão se vai cingir a verificar se os respectivos pressupostos, para além do que genericamente se define no corpo do mesmo nº 1, estão ou não reunidos.
Como se sabe, trata-se de uma medida da qual vai resultar o “corte” das relações eventualmente existentes com a família biológica do menor. Não pode, por isso, ser determinada se o menor estiver a cargo e a viver com os parentes indicados no nº 4 do artigo 1978º do Código Civil, salvo se for prejudicial tal convivência, provoca a inibição do exercício do poder paternal (artigo 1978º-A do Código Civil) e a nomeação de um curador provisório (artigo 167º da OTM), e faz cessar o direito a visitas da sua família natural.
Também por isso, é pressuposto genérico desta medida a inexistência ou o sério comprometimento dos “vínculos afectivos próprios da filiação” (corpo do nº 1 do artigo 1978º), e só pode ser decidida nas situações descritas nas diversas alíneas do mesmo nº 1.
No caso, o acórdão recorrido (tal como a sentença da 1ª Instância) deu como preenchido aquele primeiro requisito da quebra dos vínculos afectivos e, ainda, dos que constam da alínea e) do nº 1 do artigo 1798º do Código Civil.
Ora, da consideração conjunta da matéria de facto definitivamente provada, da objectividade com que se deve aferir do preenchimento dos requisitos constantes desta alínea (como diz expressamente o corpo do nº 1) e da regra de que, em qualquer caso, “na verificação das situações previstas” no nº 1 do artigo 1798º, “o tribunal deve atender prioritariamente aos direitos e interesses do menor”, como impõe o respectivo nº 2, decorre que nada há a censurar à decisão recorrida.
Relativamente à relação entre a menor e o pai, a matéria de facto revela a inexistência entre ambos dos vínculos afectivos característicos da filiação, bem como o desinteresse objectivo exigido pela al. e) do nº 1 do artigo 1978º do Código Civil: é o que resulta dos pontos rr) e tt) da matéria de facto provada.
Pensando, agora, na situação de facto relativa à menor e à recorrente, está demonstrado que se encontram seriamente comprometidos, nomeadamente da menor em relação à mãe (cfr. Maria Clara Sottomayor, A Nova Lei da Adopção, in Direito e Justiça, vol. XVIII, 2004, t. II, pág. 241 e segs, pág. 243), os “vínculos afectivos próprios da filiação”, e que, nos três meses que antecederam o pedido de confiança judicial, a relação objectivamente existente entre mãe e filha mostra que se encontra gravemente comprometida, quer a qualidade, quer a continuidade desses vínculos – cfr. designadamente os pontos m), q), dd), ff), hh), ii), jj), kk)
Não está em causa, como resulta das decisões das instâncias e do que acima se disse, saber se, do ponto de vista da recorrente, a expectativa quanto à evolução das suas condições de vida permite confiar que a mesma venha a poder garantir à menor “a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento” adequados, ou se (tendo em conta que a menor se encontra institucionalizada desde Dezembro de 2005), a recorrente subjectivamente se não desinteressou da filha, nas condições descritas na alínea e).
Com efeito, a medida em apreciação não tem como objectivo punir ou censurar os pais por qualquer eventual negligência que tenham relativamente ao filho, como claramente decorre da exigência legal de que a avaliação das situações que a podem justificar seja objectiva e tenha em conta o interesse da criança.
Mais uma vez, a matéria de facto havida como provada conduz à conclusão de que a recorrente, pela forma como vem organizando a sua vida e a relação com a filha, revela, objectivamente, o “desinteresse” relevante nos termos da alínea e).
Para além disso, a menor permanecia institucionalizada há mais de três meses, quando o Ministério Público requereu a medida de confiança (cfr al. m) da matéria provada.
É certo que a mãe manteve sempre contacto com a menor, através de visitas à instituição a que está entregue, mas cuja irregularidade e escassez não revelam, desde logo, o interesse pela sua pessoa e pelo seu desenvolvimento normalmente existente numa relação de filiação – cfr. factos provados, pontos dd), ff).
Ao exigir uma situação de desinteresse, que se prolongue pelo menos por três meses, a lei não impõe a inexistência de contactos entre os pais e a criança que se encontra institucionalizada. O que releva é o modo e o significado desses contactos, que tanto pode ser o de criar ou manter laços afectivos com o objectivo de tornar possível a vida em conjunto, como apenas o de tentar evitar uma situação que acabe por levar a um processo tendente à adopção (cfr., por exemplo, Beatriz Marques Borges, Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, Comentários e Anotações à Lei nº 147/99 de 1 de Setembro, Coimbra, 2007, págs. 167 e 168) e ponto nn) dos factos provados.
Como se escreveu no acórdão de 30 de Novembro de 2004 deste Supremo Tribunal (proc. nº 04A3795, disponível em www.dgsi.pt), «no conceito de "manifesto desinteresse pelo filho" está essencialmente em causa a qualidade e a continuidade dos vínculos próprios da filiação».
Finalmente, está provada a condição exigida pelo nº 4 do artigo 1978º do Código Civil (cfr. pontos b) e c) da matéria de facto provada).

6. A recorrente “acusa” ainda o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de violar a Constituição, por ofender os princípios “plasmados nos arts. 36º, nº 6 e 67º, nº 1, da Lei Fundamental, que garantem que os filhos não podem ser separados dos pais, salvo quando estes não cumpram os deveres fundamentais para com eles, bem como o direito à família e à protecção do Estado e à efectividade de todas as condições que permitam a realização pessoal dos seus membros”.
Esta “acusação”, todavia, só se compreende na medida em que a recorrente discorda da apreciação que a Relação fez sobre o cumprimento dos deveres dos pais para com a menor em causa neste processo. Ora a Relação, tal como a 1ª Instância, considerou que a situação em que objectivamente a menor se encontrava revelava, nos termos já vistos, esse não cumprimento, não sendo possível afirmar que a decisão é de tal maneira desconforme com os factos apurados que se possa traduzir numa violação do apontado nº 6 do artigo 36º da Constituição. Note-se, aliás, que o nº 7 do mesmo preceito prevê a existência da figura da adopção e, ao deferir para a lei ordinária a sua regulamentação, impõe que a mesmo a proteja e discipline de forma a garantir uma tramitação célere, consciente da urgência de protecção e estabilidade na organização da vida dos menores em situação de carência.
Para além disso, não se pode igualmente dizer que o acórdão recorrido tenha ofendido o nº 1 do artigo 67º da Constituição, que atribui ao Estado o dever de protecção da família (aliás, não necessariamente ligada por laços biológicos); um meio de alcançar tal protecção é, seguramente, a previsão da adopção.

7. Nestes termos, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
Sem custas (art. 3º, nº 1, a) do Código das Custas Judiciais).

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (Relatora)
Lázaro Faria
Salvador da Costa