Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
033053
Nº Convencional: JSTJ00002643
Relator: VERA JARDIM
Descritores: TRANSGRESSÃO
CAÇA EM ÉPOCA DE DEFESO
CAÇA POR MEIOS PROIBIDOS
FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Nº do Documento: SJ197101270330533
Data do Acordão: 01/27/1971
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: DR IS DE 1971/02/16, PÁG. 194 - BMJ Nº 203, ANO 1971, PÁG. 113
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PARA PLENO
Decisão: TIRADO ASSENTO.
Indicações Eventuais: ASSENTO DO STJ.
Área Temática: DIR CRIM.
Legislação Nacional: D 47847 DE 1967/08/14 ARTIGO 1 ARTIGO 2 ARTIGO 85 ARTIGO 86 ARTIGO 89 N1 B C G N3 ARTIGO 208 ARTIGO 210 N1 ARTIGO 211 ARTIGO 212 ARTIGO 213 ARTIGO 214 ARTIGO 215.
L 2132 BXLVI BXLVIII N1 BXLIX.
CP886 ARTIGO 1 ARTIGO 3 ARTIGO 75 N1 ARTIGO 486 PARUNICO.
CPC67 ARTIGO 766 N3.
D 47726 1967/05/22 ARTIGO 5 N1.
D 23461 DE 1934/01/17 ARTIGO 86 ARTIGO 90.
Legislação Estrangeira: CP DE FRANÇA ART1.
CP DA BELGICA ART1.
CP DA ITALIA ART39.
CP DA ALEMANHA ART1.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO RL PROC33053 DE 1969/06/11.
ACÓRDÃO RL PROC33053 DE 1968/02/23.
Sumário :
A infracção prevista no n. 1 do artigo 210 do Decreto n. 47847, de 14 de Agosto de 1967, tem natureza contravencional.
Decisão Texto Integral:
O Senhor Procurador da Republica junto do Tribunal da Relação de Lisboa recorre para o Tribunal Pleno do acordão do mesmo Tribunal de 11 de Junho de 1969, certificado a folhas..., pois, alega, o mesmo se encontra em nitida oposição com o acordão de 23 de Fevereiro de 1968, do mesmo Tribunal, certificado a folhas..., sobre a mesma questão de direito, dado que enquanto o primeiro decidiu que a caça por qualquer meio ou processo proibido punido no artigo
210 do Regulamento de Caça (Decreto n. 47847, de 14 de Agosto de 1967) constitui crime e não simples contravenção, o segundo julgou em sentido contrario, ou seja, que a referida infracção constitui simples contravenção.
Decidido pela secção a existencia da invocada oposição e dos demais pressupostos legais, produziu o Excelentissimo Representante do Ministerio Publico a sua alegação, na qual, depois de expor os criterios de distinção entre crimes e contravenções, passa a examinar a disposição legal em causa para concluir que a infracção se enquadra melhor no conceito de contravenção, uma vez que a lei não lhe atribui a natureza de crime.
Efectivamente - afirma - sabe-se que o bem juridico defendido pelas disposições da Lei n. 2132 - n. 1 da base XLVIII - e Decreto n. 47847 - artigo 210, n. 1 - e a conservação e fomento das especies cinegeticas; das especies cinegeticas em geral, e não de um determinado exemplar de especie, daqui se intuindo que a violação dos preceitos legais que impedem o exercicio da caça em epoca de defeso ou com meios proibidos põe em perigo a conservação e o fomento das especies cinegeticas, mas quando se trata de actos isolados, não são estes susceptiveis de provocar o exterminio, nem porão em perigo imediato a sobrevivencia das aludidas especies.
Por outro lado, no parecer da Camara Corporativa e na proposta do Governo entendia-se que a caça em epoca de defeso ou com o emprego de meios proibidos constituia crime, entendimento que suscitou controversia na discussão da proposta na Assembleia Nacional, pelo que este orgão legislativo entendeu que não devia tomar posição expressa ou implicita no problema da qualificação da infracção, deixando a solução ao criterio da doutrina e da jurisprudencia.
Alem disto, a perda dos instrumentos e produtos da infracção, cominada na disposição legal em apreciação, faz inculcar a sua natureza contravencional, pois, se se tratasse de um crime, sempre essa perda resultaria da lei - artigo 75, n. 1, do Codigo Penal, resultando o comando legal, quanto a perda, precisamente de se tratar de contravenção, e em vista do disposto no paragrafo unico do artigo 486 do mesmo Codigo.
Finalmente, parece-lhe operante considerar que, tendo a infracção natureza contravencional no regime anterior, não devera ser-lhe atribuida outra natureza sem segura indicação da lei nesse sentido - e tal indicação não existe, tudo se concitando no sentido da manutenção dessa natureza.
Termina por concluir que deve solucionar-se o conflito da jurisprudencia firmando-se o seguinte assento: a infracção prevista no n. 1 do artigo 210 do Decreto n. 47847, de 24 de Agosto de 1967, tem natureza contravencional.
Embora verificada pela secção, como se disse, a existencia da invocada oposição, o que era, a par da existencia dos demais pressupostos legais, fundamento para o prosseguimento do recurso, dai não decorre que o Tribunal Pleno deva acatar a decisão - artigo 766, n. 3, do Codigo de Processo Civil, cabendo-lhe, portanto fiscalizar esta.
Basta, no entanto, o enunciado da questão posta e a simples leitura dos mencionados acordãos do Tribunal da Relação para se haver de concluir pela alegada oposição, na qual se funda o recurso.
Assim, e uma vez que não podem por-se duvidas sobre ela, deve o Tribunal Pleno resolver o conflito de jurisprudencia.
Como bem faz notar, na sua douta alegação, o ilustre representante do Ministerio Publico, o criterio de distinção entre crimes e contravenções e uma dificil e delicada questão do direito criminal.
Dificil, acrescentaremos, porquanto os criterios doutrinais são dispares e, por vezes, imprecisos; delicada porque a disciplina a que estão submetidas aquelas duas especies de infracções não e sempre a mesma, tendo, por isso, decisivo interesse o determinar se o facto ilicito reveste a natureza de crime ou de contravenção.
O nosso Codigo Penal que, como se sabe, adoptou aquela classificação bipartida, decidiu-se pela formulação do conceito relativamente a cada uma das infracções
- artigos 1 e 3 do Codigo Penal - contrariamente a outros codigos penais, que partem da natureza da pena para definir a infracção (Codigo Penal frances, artigo 1, Codigo Penal belga, artigo 1, Codigo Penal italiano, artigo 39, Codigo Penal alemão, artigo 1).
Efectivamente, o nosso Codigo Penal, depois de definir, no seu artigo 1, crime ou delito como sendo o facto voluntario declarado punivel pela lei penal, diz no seu artigo 3 que se considera contravenção o facto voluntario punivel, que unicamente consiste na violação, ou na falta de observancia das disposições preventivas das leis e regulamentos, independentemente de toda a intenção malefica.
A lei, como se ve, fornece-nos, pois, um conceito de contravenção - e sera, portanto, servindo-se do mesmo - que o interprete deve, em cada caso, tomar posição quanto a natureza da infracção.
Mas aquele conceito não deixa de ser ambiguo, na medida em que se refere a disposições preventivas, sabido como e que não ha unanimidade de opiniões quanto ao conceito de normas preventivas e, portanto, quanto ao criterio de distinção entre estas e as normas repressivas.
Efectivamente, o criterio de distinção parece estar, precisamente, como faz notar Pereira do Vale (Anotações ao Codigo Penal, pagina 18) em verificar se a disposição penal e preventiva ou repressiva. No primeiro caso a infracção dessa disposição e contravenção, e, no segundo, deve considerar-se como crime.
A chave do problema parece, pois, encontrar-se no modo ou criterio, de distinção daquelas normas.
Mas ai reside a dificuldade - e pela razão ja enunciada.
Aquele comentador, seguindo alias a Revista de Legislação e de Jurisprudencia (ano 24, pagina 456), entende que por disposição preventiva se deve considerar a que pune um facto o qual, não sendo intrinsecamente imoral e ofensivo de um direito, pode ser causa ocasional de lesão ou dano individual ou social.
Outros opinam que por normas repressivas se devem entender aquelas que defendem interesses juridicos, punindo aqueles factos que atacam ou põem em perigo, directa e imediatamente, certos interesses, sendo preventivas aquelas que protegem interesses indeterminados.
Outros, ainda, opinam que a distinção se baseia nos proprios fins que o Estado se propõe realizar, ligando o conceito de contravenção a actividade administrativa e financeira do Estado.
Destas orientações, e não são todas, parece poder concluir-se, como refere o Excelentissimo Representante do Ministerio Publico no seu citado parecer, que os autores não se afastam da posição de que são normas preventivas as que protegem mediatamente interesses penalmente tutelados e repressivas as que estabelecem a sua protecção proxima ou imediata.
A primeira actividade do interprete não esta, porem, em escolher um dos criterios, mas antes em averiguar se a propria norma punitiva define, expressa ou tacitamente, a natureza da infracção e por isso que, perante uma posição legal desse genero, devem ser abandonados aqueles criterios, pois se a lei define tal natureza ja não e possivel a duvida.
Vamos, então, ver se e a propria lei que define a natureza da infracção em causa.
Antes, porem, de entrarmos no exame deste ponto, vejamos como os acordãos em causa encararam e resolveram a questão.
O acordão de 23 de Fevereiro de 1968 decidiu-se pela solução de que a inobservancia das leis e regulamentos de caça constitui contravenção e não crime. E isto porque: A todas as pessoas e concedido o direito de caçar (artigo 2 do Decreto n. 47847). Em principio, portanto, não e proibido esperar, procurar, perseguir, apanhar ou matar os animais bravios que se encontrem em liberdade natural (artigo 1 do referido decreto).
A perseguição dos animais selvagens não e, em si, a face da lei, reprovavel.
Simplesmente, o exercicio do direito de caçar esta regulamentado e so pode exercer-se em determinadas condições, que são as estabelecidas em ordem a serem evitadas inumeras consequencias danosas que poderiam advir da inteira liberdade de caçar e que poderiam afectar, não so a integridade fisica e patrimonial de outrem, como a propria conservação dos animais bravios de modo que as especies de interesse cinegetico fossem dizimadas total ou excessivamente.
No sentido de se evitarem tais riscos se promulgaram diversas normas em que se estabelecem as condições em que a caça se pode praticar.
E, pois, obvio que o Regulamento da Caça contem disposições preventivas. Consequentemente, as infracções a tais disposições constituem contravenções.
Por seu lado, o acordão de 11 de Junho de 1969 fundamenta a decisão essencialmente no seguinte: Enquanto no artigo 210 do Decreto n. 47847 não se classificou a infracção, nos artigos seguintes chama-se-lhe contravenção. Ora, sendo a pena do artigo 210 mais severa do que as dos artigos seguintes, isso leva a conclusão de que a infracção descrita naquele artigo e crime e não contravenção.
Por outro lado, a disposição do artigo 210 corresponde a do n. 1 do artigo 5 do Decreto n. 47226 e ai expressamente se declarava constituir crime a caça no defeso ou com meios proibidos.
Alem disto, no artigo 208, permite-se as comissões venatorias constituirem-se assistentes nos processos crimes previstos no artigo 210 - e nos processos de contravenções não cabe a constituição de assistente.
O primeiro dos acordãos afasta-se da discussão sobre normas preventivas e repressivas, parecendo, no entanto, que considera a disposição em analise de caracter preventivo, ao passo que o segundo, pondo em realce a falta de unidade de criterios para fazer tal distinção, cinge-se a analise da lei para chegar a solução apontada.

Os caminhos escolhidos foram, pois, diferentes. Não cremos, porem, que o do acordão de 11 de Junho de 1969 possa conduzir a solução por ele encontrada.
Vamos ver porque.
A Lei n. 2132, ao tratar no capitulo V, Base XLVI, da responsabilidade penal, emprega a expressão "infracções a disciplina da caça", estabelecendo as penalidades.
Mas enquanto na Base XLVIII, ao determinar a penalidade para a caça em epoca de defeso ou com o emprego de meios proibidos ou relativamente a especies não permitidas, não classifica a infracção, logo na Base XLIX afirma que a caça em locais proibidos constitui contravenção punivel com a multa de 500 escudos a 5000 escudos.
No Decreto n. 47847 foi adoptada a mesma orientação.
Efectivamente, quanto a infracção do artigo 210, n. 1, limita-se a indicar a penalidade, mas logo nos artigos seguintes (211 a 215) classifica as infracções ai descritas como contravenções.
Isto poderia levar a concluir que a infracção descrita no artigo 210 seria um crime, e não, como as infracções descritas nos artigos seguintes, uma contravenção.
Na verdade, se a lei classifica estas como contravenções e nada diz quanto aquela, para a qual a penalidade e sensivelmente mais grave (prisão de um a seis meses e multa de 500 escudos a 10000 escudos quando, para as dos artigos 211 e seguintes a pena de prisão não pode ser superior a tres meses e o montante da multa não vai alem de 5000 escudos), parece que quer afastar a simples natureza contravencional quanto a infracção do artigo 210, considerando apenas contravenções as infracções menos graves.
Mas esta solução, que não deixa de ter logica, e logo contrariada pelo n. 3 do artigo 211.
Com efeito, diz-se no n. 1 deste artigo que a caça com inobservancia das proibições e limitações estabelecidas nos artigos 85 e 86 e nas alineas c) e g) do n. 1 do artigo 89 constitui contravenção punivel com multa de 200 escudos a 1000 escudos, salvo o disposto no n. 3.
Ora, neste, prescreve-se que se a inobservancia da alinea g) do n. 1 do artigo 89 implicar violação da limitação estabelecida na sua alinea b), sera aplicada a pena cominada no artigo 210.
Temos assim, que a penalidade desta ultima disposição e tambem aplicavel, por força do n. 3 do artigo
211, a uma infracção que esta disposição expressamente classifica como contravenção. Logo aquele raciocinio que, como se disse, não deixa de ter logica, não colhe, pois e a propria lei que classifica como contravenção uma infracção para a qual prescreve penalidade igual a infracção descrita no artigo 210.
Consequentemente, não se pode chegar por aquele caminho a conclusão de que a infracção do artigo
210 e crime e não contravenção, dado que a penalidade ai prescrita e tambem aplicavel a uma infracção que expressamente, como se disse, se classifica como contravenção.
Parece, então, que o raciocinio contrario e que estara certo.
Efectivamente, se, como se demonstrou, a lei manda aplicar ao que classifica de contravenção a pena do artigo 210, parece claro que não quis fazer uma distinção entre crimes e contravenções conforme a gravidade das penalidades prescritas. Logo, e se a uma contravenção corresponde a penalidade do artigo 210, não esta afastado, antes se confirma, que o tipo descrito nesta ultima disposição e tambem uma contravenção.
E o contrario seria, na verdade, absurdo.
Com efeito, se a penalidade corresponde a gravidade da infracção cometida e se, segundo o criterio legal, e contravenção uma infracção a que corresponde a mesma pena do artigo 210, não se ve qualquer razão para atribuir natureza diferente a infracções para as quais a lei comina a mesma penalidade e que, portanto, considera de igual gravidade.
Desta forma, a lei, ao estabelecer para qualquer das infracções referidas a mesma penalidade, e depois de atribuir a natureza de contravenção a uma delas, veio, afinal, a definir a natureza de ambas.
Mal se compreenderia, de resto, que tivesse querido atribuir a cada uma natureza diferente, não so pelo que vem de ser dito, como tambem porque os interesses que a lei quis proteger, atraves de qualquer das citadas disposições, são os mesmos.
E se os interesses são, na verdade, os mesmos, e perfeitamente logico, e tecnicamente correcto, que a lei tivesse seguido, para defesa de ambos, uma orientação uniforme, atribuindo, pois, a mesma natureza a qualquer das infracções.
Ora, quando e a propria lei a atribuir esta, inutil e ao interprete socorrer-se de qualquer criterio fornecido pela doutrina para chegar a definição que deve seguir, como se deixou dito de principio.
Quando esta argumentação não fosse valida, ainda assim era de concluir pela natureza contravencional da referida infracção, pois a lei não lhe atribui a natureza do crime - o que, alias, e em vista do que se expos, seria um tanto contraditorio - sendo certo, por outro lado, que a norma tem, sem sombra de duvida, e segundo os criterios doutrinais citados, natureza preventiva.
Alias, não e argumento valido o dizer-se que outro diploma legal anterior expressamente declarava constituir crime a infracção em causa, pois e certo que tambem por diploma legal (Decreto n. 23461, de 17 de Janeiro de 1934, artigos 86 e 90) a mesma constituia simples contravenção.
Em vista de tudo o que fica exposto, acordam no Supremo Tribunal de Justiça em, decidindo o conflito de jurisprudencia, firmar o seguinte assento:
A infracção prevista no n. 1 do artigo 210 do Decreto n. 47847, de 14 de Agosto de 1967, tem natureza contravencional.
Não e devido imposto de justiça.

Lisboa, 27 de Janeiro de 1971

Adriano Vera Jardim (Relator) - J. Santos Carvalho Junior - Eduardo Correia Guedes - Adriano Campos de Carvalho - Antonio Pedro Sameiro - Alberto Nogueira - Albuquerque Rocha - Ludovico da Costa - Fernando Bernardes de Miranda - Jose Antonio Fernandes - João Moura - Arala Chaves - Manuel Falcão Nunes Garcia.