Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
493/12.3TJCBR-H.P2.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: ANA PAULA BOULAROT
Descritores: INSOLVÊNCIA
RESOLUÇÃO A FAVOR DA MASSA
Data do Acordão: 03/12/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Área Temática:
DIREITO FALIMENTAR – MASSA INSOLVÊNCIA E INTERVENIENTES NO PROCESSO / MASSA INSOLVENTE E CLASSIFICAÇÕES DOS CRÉDITOS / EFEITOS DA DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA / RESOLUÇÃO EM BENEFÍCIO DA MASSA INSOLVENTE.
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / GARANTIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES / CONSERVAÇÃO DA GARANTIA PATRIMONIAL / IMPUGNAÇÃO PAULIANA.
Doutrina:
- Baptista Machado, Obra Dispersa, Volume 1, p. 130 e 131;
- Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2ª edição, 2013, p. 303, 305 e 563 ; Anotado, I, 2005, p. 434;
- Código Da Insolvência E Da Recuperação De Empresas Anotado, Colecção PLMJ, 2012, p. 128 e 129;
- Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Ministério da Justiça, Coimbra Editora, 2004;
- Gravato de Morais, Resolução Em Beneficio Da massa Insolvente, 2008, p. 41, 50 e 164;
- Júlio Gomes, Nótula Sobre A Resolução Em Benefício Da Massa Insolvente, in IV Congresso De Direito Da Insolvência, p. 109 a 111;
- Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 7ª edição, p. 210, 249 a 255.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGOS 46.º, N.ºS 1 E 2, 120.º, N.ºS 1, 2 E 5, ALÍNEA A) E 121.º, N.º 1, ALÍNEA B).
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 610.º, ALÍNEA B).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 12-07-2007, PROCESSO N.º 07A1851;
- DE 25-02-2014, RELATORA ANA PAULA BOULAROT, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 20-03-2014, RELATOR AZEVEDO RAMOS, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 29-04-2014, RELATOR PINTO DE ALMEIDA, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 01-06-2014, RELATORA ANA PAULA BOULAROT;
- DE 05-05-2015, RELATORA ANA PAULA BOULAROT, IN WWW.DGSI.PT.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:

- DE 04-10-2017, PROCESSO N.º 1730/15.8T8BGC-A.G1, RELATOR DAMIÃO E CUNHA.
Sumário :

I O direito potestativo de resolução do contrato por parte do Administrador da Insolvência, a que alude o normativo inserto no artigo 120º do CIRE, embora não exija para a sua plena eficácia uma justificação completa que esgote todos os fundamentos, deverá contudo, conter os elementos fácticos suficientes que permitam ao destinatário saber o porquê da resolução e essa suficiência deverá ser objecto de uma análise casuística.

II Por seu turno, a acção de impugnação da resolução não se destina a atacar os aspectos puramente formais da carta resolutiva enviada pelo Administrador da insolvência, mas também os aspectos substanciais contidos na mesma.

III Dispõe o artigo 120º, nº1 do CIRE, na versão aqui aplicável do DL 185/2009 de 12 de Agosto, o seguinte: «Podem ser resolvidos em benefício da massa insolvente os actos prejudiciais à massa praticados dentro dos quatro anos anteriores à data do início do processo.», acrescentando o seu nº2 que «Consideram-se prejudiciais à massa os actos que diminuam, frustrem, dificultem, ponham em perigo ou retardem a satisfação dos credores da insolvência.».

III A compra e venda ocorrida nos dois anos anteriores à data do processo de insolvência, sem o consequente recebimento da respectiva quota parte devida pelos Recorrentes à Insolvente, bem sabendo aqueles que a Vendedora estava numa situação de insolvência, constituem circunstancialismos que integram o conceito legal de «actos prejudiciais à massa» e por isso a resolução dos mesmos é perfeitamente lícita.

IV De outra banda, o aludido acto de «venda», uma vez que se apurou não ter sido paga qualquer quantia a título de preço por parte dos Recorrentes à Insolvente, sempre poderia ser subsumido no preceituado na alínea b) do nº1, do artigo 121ºdo CIRE, por se apresentar como um negócio gratuito celebrado pelo devedor nos dois anos anteriores à data do início do processo (escritura celebrada em 13 de Fevereiro de 2012 e declaração de insolvência ocorrida em 20 de Junho de 2012).

(APB)

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I M e L instauraram contra MASSA INSOLVENTE DE C, LDA,  acção declarativa de resolução em benefício da massa insolvente, pedindo a anulação da resolução incondicional em benefício da massa insolvente, comunicada pela Sra. Administradora da Insolvência, da compra e venda celebrada entre os impugnantes e a Insolvente, relativamente à fracção autónoma “S”, do prédio urbano descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de …; e subsidiariamente, o reconhecimento de um crédito sobre a massa insolvente no montante de 800.000 €, qualificado como garantido.

Alegam para o efeito e em síntese que a factualidade invocada pela Sra. Administradora da Insolvência para fundamentar a mencionada resolução não corresponde à verdade, pois, por um lado, o valor real da dita fracção autónoma corresponde ao preço declarado na escritura de compra e venda (400.000 €). Por outro lado, efectuaram, faseadamente, o pagamento do preço, mediante os cheques que discriminam, mais referindo que habitam a referida fracção autónoma desde 2010, sempre que se deslocam a Portugal, porquanto residem em França. Por fim, invocam que não tinham qualquer relação especial com a Insolvente nem acesso a qualquer informação especial sobre esta, pelo que desconheciam a situação de insolvência iminente da mesma e, assim, não agiram de má fé na celebração do referido contrato de compra e venda.

Para o caso de a resolução impugnada se manter, os Autores adiantam desde já que, tendo pago o montante de 400.000 € e considerando, por tal motivo, que o contrato-promessa não foi cumprido, têm um direito de crédito naquele valor, elevado ao dobro, nos termos do artigo 442º nº2 CCivil, bem como têm um direito de retenção sobre a mencionada fracção autónoma, nos termos do artigo 755º nº1 alínea f) do mesmo diploma, pois o seu direito de crédito resulta do incumprimento de um contrato-promessa pelo promitente vendedor, todas as quantias que reclamam foram entregues por conta desse contrato e já obtiveram, há muito, a tradição da coisa, em virtude de a habitarem quando se encontram em Portugal.

A Ré contestou, impugnando a generalidade da factualidade alegada na petição inicial e invoca que a compra e venda resolvida pela Sra. Administradora da Insolvência foi realizada com o único intuito de subtrair parte relevante do património da Insolvente ao alcance dos credores desta, pois, à data da celebração daquele negócio, os Autores tinham conhecimento não só dos valores das dívidas da Insolvente e que conduziram à declaração da sua insolvência, mas também que a mesma não tinha outro património para além daquele que foi transmitido na data em que o processo de insolvência se aprestava a iniciar, sendo que os mantinham um relacionamento pessoal e profissional com a Insolvente.

Alega, igualmente, que os Autores não pagaram o preço da fracção autónoma em apreço, impugnando os documentos por aqueles apresentados para prova de tal pagamento, acrescendo que, a terem efectuado os invocados pagamentos e em virtude de a Insolvente ser proprietária de apenas metade indivisa do imóvel, somente metade desses montantes poderia ser imputada a título de pagamento àquela, pelo que os Autores terão pago indevidamente os valores em causa à “R”.

Mais invoca que a dita fracção autónoma tem o valor real de € 500.000, motivo pelo qual os Autores obtiveram um benefício com o negócio resolvido, em directo detrimento dos interesses dos credores da vendedora, o que fundamenta a resolução incondicional prevista na al. h) do nº1 do artigo 121.º do CIRE.

Por fim, sustenta que a atitude dolosa dos Autores, no tempo e pela forma como actuaram, preenche os requisitos da resolução condicional contidos no artigo 120.º, nºs 1 a 5, alíneas a) e b) do CIRE e da resolução incondicional prevista no nº3 do artigo 120º do CIRE, por força da remissão operada para o artigo 121º, nº1, alínea h), do mesmo diploma.

A final, a acção foi julgada procedente, e, em consequência, declarou-se  ineficaz a resolução operada pela Sra. Administradora da Insolvência, em benefício da massa insolvente do contrato de compra e venda celebrado entre os Autores e a ora Insolvente em 13 de Fevereiro de2012, relativo à fracção autónoma “S” do prédio descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de ….

Inconformada apelou a Massa Insolvente de C, Lda, tendo a final o recurso sido julgado procedente, com a consequente revogação da sentença recorrida.

Irresignados recorrem agora os Autores, de Revista, apresentando as seguintes conclusões:

- Os recorrentes não se conformam com tal decisão visto que entendem que ter havido uma incorrecta aplicação do direito, sendo que a mesma está em oposição com o decidido pelo mesmo Tribunal da Relação do Porto, em 23/01/2017, no âmbito do processo n.° 4058/12.1TBGDM-B.P1, integralmente disponível para consulta em www.dgsj.pt, o qual se dá aqui por integralmente reproduzido, sem que tenha existido uniformização da jurisprudência.

- Entendeu o Tribunal recorrido que no «acto realizado sem contrapartida ou sem possível contrapartida actual, a ocorrência de prejuízo para a massa rectius para a satisfação dos credores da insolvência decorre claramente da própria disposição dos bens, ao invés dos contratos que prevêem prestações recíprocas, maxime a venda de um bem contra um determinado preço», o que integra o conceito de prejudicialidade do negócio previsto nos n.°s 1 e 2 do artigo 120.° do CIRE.

- Tendo sido dado apenas como provado que (i) «em Fevereiro de 2012, a fracção autónoma identificada em 1) tinha o valor de cerca de 398.500 €» (facto n.° 3) - ou seja, que o imóvel foi vendido por um preço superior ao seu valor de mercado - e que (ii) «Relativamente ao preço indicado em 1), os AA. não pagaram à Insolvente a quantia de200.000 €» (facto n.° 4) - isto porque destinando-se esta quantia ao pagamento da quota-parte da comproprietária R, S.A., não poderia a mesma ser entregue à aqui insolvente, e como não provado que «Relativamente ao preço indicado em 1), os AA. não pagaram à Insolvente a quantia de 200.000 €» (ponto b) da matéria de facto não provada), não há factos que concluir saber se existiu ou não qualquer contrapartida actual - ou mesmo qualquer contrapartida.

- O Tribunal a quo não poderia, assim, ter concluído pela inexistência de contrapartida ou contrapartida actual, utilizada para sustentar a decisão recorrida.

- Sem prejuízo do concluído nos pontos anteriores, o Tribunal a quo para julgar improcedente a acção deveria ter, tal como sucedeu com a 1.a instância, exigido a prova de factos demonstrativos da prejudicialidade do negócio - designadamente que o bem foi vendido abaixo do seu valor de mercado, que o preço não foi pago, ou que o mesmo não ingressou no património da recorrida, conforme o impõem os n.°s 1 e 2 do artigo 120.° do CIRE.

- Erra a decisão recorrida quando considera que não havendo contrapartida actual tal constitui sempre um prejuízo para a massa, porque se o bem já se encontra pago integralmente antes da realização do negócio de compra e venda - sendo que por esse motivo não há actualidade quanto aos dois facto - a vendedora encontrar-se-á sempre beneficiada até ao momento da venda, visto que na sua esfera jurídica encontram-se já o preço e ainda o bem vendido.

- No acórdão proferido no citado processo n.° 4058/12.1TBGDM-B.P1, foi decidido de forma diametralmente oposta ao sucedido no caso dos autos, porque, perante factos em tudo idênticos, entendeu-se que «embora se possa afirmar que a massa insolvente ficou substancialmente reduzida com a venda do referido imóvel, daí não se segue que a prática desse acto tenha diminuído, frustrado, dificultado posto em perigo ou retardado a satisfação dos credores do insolvente.

- Efectivamente, para que assim fosse era necessário que estivesse provado, desde logo, que o valor pelo qual foi vendido o imóvel não foi recebido pelo devedor insolvente, ou tendo-o sido não entrou no património do devedor ou não foi usado para solver as suas dívidas. Para além disso, necessário também se tornava que estivesse demonstrado que o referido valor não correspondia ao seu valor real, ou seja, que o bem foi vendido por preço inferior ao seu valor de mercado.»

- Verificamos que o Tribunal a quo ao decidir nos termos indicados violou o disposto nos n.°s 1 e 2 do artigo 120.° do CIRE.

Nas contra alegações a Massa Insolvente pugna pela manutenção do julgado.

II A única questão que se impõe conhecer neste recurso é a de saber se o Acórdão impugnado violou o preceituado no artigo 120º do CIRE.

As instâncias deram como provados os seguintes factos:

1. Por escrito exarado por Oficial Público, na 1ª Conservatória do Registo Predial de …C, em 13.02.2012, R, S.A. e C, Lda. declararam vender e os AA. declararam comprar, pelo preço de 400.000 €, a fracção autónoma “S” do prédio descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de … – cf. doc. de fls. 23-26, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

2. Do escrito referido em 1) consta: “As Primeiras vendem aos Segundos a aludida fracção, pelo preço global de Quatrocentos Mil Euros, que as sociedades já receberam” e “Que esta venda é feita na proporção de quarenta cem avos para a segunda identificada em a) e de sessenta cem avos para o segundo indicado em b)” – cf. doc. de fls. 23-26, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

3. Em Fevereiro de 2012, a fracção autónoma identificada em 1) tinha o valor de cerca de 398.500 €.

4. Relativamente ao preço indicado em 1), os AA. não pagaram à Insolvente a quantia de 200.000 € .

 5. O Autor conhece o então gerente da Insolvente, A, há, pelo menos, 20 anos.

6. Na data indicada em 1), os AA. tinham conhecimento que “C, Lda.” se encontrava em situação de insolvência.

7. F e Outros requereram a declaração de insolvência de C, Lda., mediante petição inicial apresentada, no Tribunal, em 14.02.2012 – cf. petição inicial de fls. 1-55 dos autos principais, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

8. Por sentença proferida em 20.06.2012, transitada em julgado, foi declarada a insolvência de C, Lda. – cf. fls. 169-181 autos principais, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

9. Por carta de 30.05.2013, registada com aviso de recepção, enviada aos AA. e por estes recebida, a Sra. Administradora da Insolvência declarou resolvido o acordo referido em 1), com os fundamentos constantes de fls. 161 e 161 v.º – cf. docs. De fls. 160 a 161 v.º, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

Factos Não Provados

a) Em Fevereiro de 2012, a fracção autónoma identificada em 1) tinha o valor de, pelo menos, 500.000 €.

b) Relativamente ao preço indicado em 1), os AA. não pagaram à Insolvente a quantia de 200.000 €.

c) Na data indicada em 1), os AA. tinham conhecimento do montante das dívidas da Insolvente e que, mediante a celebração do acordo referido em 1), esta ficava desprovida de bens com valor suficiente para pagamento daquelas.

Vejamos.

O Acórdão recorrido fundou o seu juízo no seguinte raciocínio:

«[I]ndependentemente da caracterizarmos a acção de impugnação da resolução do acto em benefício da massa insolvente como uma acção de simples apreciação negativa, ou como uma acção de condenação (com a consequência de o ónus probatório se alterar decisivamente em função de uma ou de outra das classificações apontadas), analisemos os factos já comprovados no processo, à luz do direito.

Nos termos do artº 120º nº1 CIRE, “podem ser resolvidos em benefício da massa insolvente os actos prejudiciais à massa praticados ou omitidos dentro dos quatro anos anteriores à data do início do processo de insolvência”.

Ora, os actos prejudiciais à massa são amplamente definidos como “os actos que diminuem, frustrem, dificultem, ponham em perigo ou retardem a satisfação dos credores da insolvência” (artº 120º nº2 CIRE).

Na decorrência, e por apelo ao que a doutrina estabeleceu a propósito da norma requisito da impugnação pauliana do artº 610º al.b) CCiv, “qualquer acto que enfraqueça qualitativamente ou quantitativamente a garantia patrimonial pode e deve ser atacado” – Prof. Gravato Morais, Resolução em Benefício da Massa, 2008, pg. 50.

“No fundo”, escrevem os Prof. Carvalho Fernandes e Dr. João Labareda, Anotado, I, 2005, pg. 434, “para além dos actos que implicam diminuição do valor da massa insolvente, são prejudiciais todos os que tornem a satisfação do interesse dos credores mais difícil ou mais demorada”.

Assim, a troca de um objecto por uma soma pecuniária equivalente não significa que não tenha havido prejuízo para a massa insolvente.

Aliás, como se escreveu a propósito da impugnação pauliana no Ac.S.T.J. 12/7/07, pº 07A1851, relatado pelo Consº Alves Velho, “o que releva é a impossibilidade ou dificuldade prática em executar os demais bens do devedor, como é tipicamente o caso da venda pelo preço justo e real mas com ocultação da importância recebida. O dinheiro é, na verdade, um bem que, pela sua natural fungibilidade é facilmente “mobilizável e sonegável à acção dos credores” (…). Não fora assim e, certamente, desapareceriam os casos de impugnação relativos a actos onerosos, com excepção dos feridos de simulação de preço, os únicos em que a insolvência ou o seu agravamento, tal como a consciência do prejuízo, são inerentes à inferioridade do valor efectivo da contraprestação relativamente ao valor real da coisa vendida.” O caso dos autos mais se caracteriza ainda por inexistir um pagamento efectivo do preço no acto da compra e venda, como resulta do processo e da alegação dos Autores.

No caso de actos realizados sem contrapartida ou, como no caso dos autos, sem possível contrapartida actual, a ocorrência de prejuízo para a massa rectius para a satisfação dos credores da insolvência decorre apodíctica, claramente, da própria disposição dos bens, ao invés dos contratos que prevêem prestações recíprocas, maxime a venda de um bem contra um determinado preço.

A questão da prejudicialidade torna-se evidente, em face da própria falta de contrapartida actual.

E quanto ao requisito da má fé, na pessoa dos AA., ele demonstra-se pelo mero conhecimento da situação de insolvência – artº 120º nº5 al.a) CIRE.

No mesmo sentido se pronunciou o Ac.R.G. 4/10/2017, pº 1730/15.8T8BGC-A.G1, relatado pelo Des. Damião e Cunha.

Nestes termos, procedendo a alegação da Recorrente, encontram-se verificados os pressupostos da resolução declarada pela Sra. Administradora de Insolvência com fundamento, entre outros, no artº 120º nºs 2 e 5 CIRE.».

Insurgem-se os Recorrentes contra a decisão plasmada no Acórdão impugnado porquanto, na tese que esgrimem tendo sido dado apenas como provado que (i) «em Fevereiro de 2012, a fracção autónoma identificada em 1) tinha o valor de cerca de 398.500 €» (facto n.° 3) - ou seja, que o imóvel foi vendido por um preço superior ao seu valor de mercado - e que (ii) «Relativamente ao preço indicado em 1), os AA. não pagaram à Insolvente a quantia de 200.000 €» (facto n.° 4) - isto porque destinando-se esta quantia ao pagamento da quota-parte da comproprietária R, S.A., não poderia a mesma ser entregue à aqui insolvente, e como não provado que «Relativamente ao preço indicado em 1), os AA. não pagaram à Insolvente a quantia de 200.000 €» (ponto b) da matéria de facto não provada), não há factos que concluir saber se existiu ou não qualquer contrapartida actual - ou mesmo qualquer contrapartida, por isso não se poderia  ter concluído pela inexistência de contrapartida ou contrapartida actual, utilizada para sustentar a decisão recorrida, nomeadamente que no «acto realizado sem contrapartida ou sem possível contrapartida actual, a ocorrência de prejuízo para a massa rectius para a satisfação dos credores da insolvência decorre claramente da própria disposição dos bens, ao invés dos contratos que prevêem prestações recíprocas, maxime a venda de um bem contra um determinado preço», o que integra o conceito de prejudicialidade do negócio previsto nos n.°s 1 e 2 do artigo 120.° do CIRE.

O processo de Insolvência constitui um procedimento universal e concursal, cujo objectivo é a obtenção da liquidação do património do devedor, por todos os seus credores: concursal (concursus creditorum), uma vez que todos os credores são chamados a nele intervirem, seja qual for a natureza do respectivo crédito e, por outro lado, verificada que seja a insuficiência do património a excutir, serão repartidas de modo proporcional por todos os credores as respectivas perdas (principio da par conditio creditorum); é um processo universal, uma vez que todos os bens do devedor podem ser apreendidos para futura liquidação, de harmonia com o disposto no artigo 46º, nº1 e 2 do CIRE, normativo este que define o âmbito e a função da massa insolvente.

A massa abrange, desta feita, a totalidade do património do devedor insolvente, susceptível de penhora, que não esteja excluído por qualquer disposição especial em contrário, bem como aqueles bens que sejam relativamente impenhoráveis, mas que sejam por aqueles apresentados voluntariamente (exceptuam-se apenas os bens que sejam absolutamente impenhoráveis), e que existam no momento da declaração da insolvência ou que venham a ser adquiridos subsequentemente pelo devedor na pendência do processo, cfr Código Da Insolvência E Da Recuperação De Empresas Anotado, Colecção PLMJ, 2012, 128/129; Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2ª edição, 2013, 303/305.

Conforme deflui do preâmbulo do CIRE, a resolução em beneficio da massa insolvente a que se alude no normativo inserto no artigo 120º, visa a «(…)reconstituição do património do devedor (a massa insolvente) por meio de um instituto especifico – a “resolução em beneficio da massa insolvente” –que permite, de forma expedita e eficaz, a destruição de actos prejudiciais a esse património(…)» destinando-se tal expediente a «(… )apreender para a massa insolvente não só aqueles bens que se mantenham na titularidade do insolvente, como aqueles que nela se manteriam caso não houvessem sido por ele praticados ou omitidos aqueles actos, que se mostrem prejudiciais para a massa.(…)», cfr Gravato de Morais, Resolução Em Beneficio Da massa Insolvente, 2008, 41; Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 7ª edição, 210; Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Ministério da Justiça, Coimbra Editora, 2004.

Dispõe aquele normativo, no seu nº1 na versão aqui aplicável do DL 185/2009 de 12 de Agosto, o seguinte: «Podem ser resolvidos em benefício da massa insolvente os actos prejudiciais à massa praticados dentro dos quatro anos anteriores à data do início do processo.», acrescentando o seu nº2 que «Consideram-se prejudiciais à massa os actos que diminuam, frustrem, dificultem, ponham em perigo ou retardem a satisfação dos credores da insolvência.».

A acção de impugnação da resolução não se destina a atacar os aspectos puramente formais da carta resolutiva enviada pelo Administrador da insolvência, mas também os aspectos substanciais contidos na mesma, pois não nos podemos esquecer que a Recorrente alega que o AI aquando do envio da carta a comunicar-lhe a resolução do contrato de compra e venda do imóvel celebrado entre a Insolvente e os Recorrentes remeteu expressamente para os motivos constantes da carta que havia enviado a estes, a qual fez juntar para seu conhecimento, sendo certo que nessa mesma carta se pode ler:

«[E]x.mos Senhores,

Enquanto Administradora de Insolvência da massa insolvente supra identificada e nos termos do disposto nos artigos 120.°, n.°s 1, 2, 3, 4 e 5, alíneas a) e b) e 121.°, n.° 1, alínea h), ambos do CI.R.E. (Decreto-Lei n.° 53/2004, de 18 de Março alterado pelo Decreto-Lei n.° 200/2004, de 18 de Agosto) sou a declarar-lhes que procedo à RESOLUÇÃO INCONDICIONAL do acto jurídico consubstanciado na transmissão/compra e venda na sequência da qual V.as Ex.as, adquiriam às sociedades insolventes C, LDA. e R, S.A., por escritura pública de compra e venda outorgada em 13.02.2012 na Primeira Conservatória do Registo Predial de …/… e pelo preço de € 400.000,00 (quatrocentos mil euros), o seguinte imóvel,

a. Fracção autónoma designada pelas letras "S", correspondente ao quarto andar direito, tipo T-três e duas garagens provativas identificadas com os n.°s 87 e 88 no piso menos um, com uso exclusivo do espaço comum na cobertura do piso três, do prédio urbano sito em…, com valor patrimonial de 249.630,00 €.A Administradora da Insolvência teve conhecimento destes factos aquando da reunião havida com o contabilista da insolvente para a obtenção de elementos contabilísticos daquela sociedade, ocorrida em 23.01.2013, com vista às averiguações realizadas para a busca e apreensão do património da insolvente enquanto garantia do ressarcimento dos seus credores, altura em que teve acesso â documentação referente ao negócio ora resolvido.

Porém, o património transmitido em benefício de V.as Ex.as, detém um valor manifestamente superior ao do escriturado o qual ascende, no mínimo, a € 500.000,00 (quinhentos mil euros) em função, mormente, da aptidão económica do imóvel, bem assim como da capacidade construtiva, razão pela qual V.as Ex.as ficaram claramente beneficiados com o acto em detrimento directo dos interesses dos credores da insolvente.

Mas, ainda que assim não fosse, o benefício dos compradores resulta do facto de não terem procedido ao pagamento de qualquer montante para a aquisição do imóvel em causa, encontrando-se assim na propriedade de património para o qual não despenderam qualquer recurso ou atribuíram à insolvente qualquer contrapartida pecuniária.

Mais releva o facto de, quer V,as Ex.as, quer as sociedades vendedoras, por manterem um especial relacionamento, não poderem ignorar que a devedora, à data da compra e venda agora resolvida, se encontrava em situação de insolvência iminente, mormente, por ter dissipado a maior parte do s/ património e não ter capacidade económica para solver os seus compromissos e dívidas já vencidas.

Logo, o acto resolvido consubstancia actividade prejudicial aos interesses da massa, mormente, por força da impossibilidade de apreensão e alienação do património objecto da compra e venda o que diminui substancialmente o valor em massa em detrimento dos interesses dos credores da insolvência.».

Esta missiva é bem expressiva dos fundamentos que levaram o AI a resolver contrato de compra e venda da fracção S, que veio a ser adquirida pelos Recorrentes, não podendo restar para esta quaisquer dúvidas acerca do objecto do negócio que lhe dizia directamente respeito, maxime, por aquela fracção se encontrar devidamente identificada, bem como ficou devidamente elucidada que o negócio havia sido efectuado em prejuízo da massa.

Não sendo extremamente rigorosos no que tange às exigências substanciais da carta resolutiva, temos vindo a entender que a Lei, embora não impondo que aquela seja exaustiva quanto à explanação dos fundamentos que consubstanciam a resolução, terá de conter o quantum satis para o cabal exercício daquele direito potestativo.

Sem embargo de não se exigir para a respectiva efectivação abundantes justificações, não nos podemos bastar com uma mera alegação de prejudicialidade, pois dessa proposição genérica não se poderá retirar, como consequência e sem mais, o surgimento desse direito potestativo, cfr Carvalho Fernandes e João Labareda, l.c., 563; Gravato de Morais, ibidem, 2008, 164 (embora este Autor pareça ser mais exigente nos requisitos substanciais, ao referir-se que no caso «a resolução carece de especifica motivação»); Baptista Machado, Obra Dispersa, Vol 1, 130/131.

Temos pois como assente que o direito potestativo de resolução do contrato por parte do Administrador da Insolvência, a que alude o normativo inserto no artigo 120º do CIRE, embora não exija para a sua plena eficácia uma justificação completa que esgote todos os fundamentos, deverá contudo, conter os elementos fácticos suficientes que permitam ao destinatário saber o porquê da resolução e essa suficiência deverá ser objecto de uma análise casuística, cfr os Ac STJ de 25 de Fevereiro de 2014 e de 5 de Maio de 2015 da aqui Relatora, de 20 de Março de 2014 (Relator Azevedo Ramos) e de 29 de Abril de 2014 (Relator Pinto de Almeida), in www.dgsi.pt.

A carta supra transcrita cumpriu totalmente as exigências resolutivas, no que tange ao seu enunciado.

Vejamos agora se havia efectivamente razões substanciais para a manifestada resolução.

No que tange ao preço de venda, verifica-se que o preço constante da escritura de compra e venda no montante de 400.000 € era superior ao valor de mercado do imóvel à época da mesma, cerca de 398.500 €, factos apurados sob os pontos 1. e 3. da materialidade assente, inexistindo aqui qualquer facto indiciador de um eventual prejuízo para a massa insolvente, já que o preço indicado como sendo da venda corresponde ao valor do imóvel.

Mas, se de prejudicialidade não podemos falar naquele preciso particular, a situação assume foros de diferente apreciação, quando atentamos nos pontos 4., 5. e 6., da matéria assente:

4. Relativamente ao preço indicado em 1), os AA. não pagaram à «Insolvente a quantia de 200.000 € .

 5. O Autor conhece o então gerente da Insolvente, A, há, pelo menos, 20 anos.

6. Na data indicada em 1), os AA. tinham conhecimento que “C, Lda.” se encontrava em situação de insolvência.»

Efectivamente, não tendo ficado apurado que os Recorrentes tenham satisfeito à Insolvente a sua quota parte devida no preço da compra e venda, por um lado; existindo relações próximas entre o Recorrente e o então gerente da Insolvente; e, sabendo os Recorrrentes das condições económicas deficitárias da vendedora, em situação de insolvência, óbvia se torna aquela prejudicialidade.

Se não.

Dispõe o artigo 120º do CIRE, o seguinte:

«1. Podem ser resolvidos em benefício da massa insolvente os actos prejudiciais à massa praticados dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência.

2. Consideram-se prejudiciais à massa os actos que diminuam, frustrem, dificultem, ponham em perigo ou retardem a satisfação dos credores da insolvência.

3. Presumem-se prejudiciais à massa, sem admissão de prova em contrário, os actos de qualquer dos tipos referidos no artigo seguinte, ainda que praticados ou omitidos fora dos prazos aí contemplados.

4. Salvo nos casos a que respeita o artigo seguinte, a resolução pressupõe a má fé do terceiro, a qual se presume quanto a actos cuja prática ou omissão tenha ocorrido dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência e em que tenha participado ou de que tenha aproveitado pessoa especialmente relacionada com o insolvente, ainda que a relação especial não existisse a essa data.

5 – Entende-se por má fé o conhecimento, à data do acto, de qualquer das seguintes circunstâncias:

a) De que o devedor se encontrava em situação de insolvência;

b) Do carácter prejudicial do acto e de que o devedor se encontrava à data em situação de insolvência iminente;

f) Do início do processo de insolvência.».

A compra e venda ocorrida nos dois anos anteriores à data do processo de insolvência, sem o consequente recebimento da respectiva quota parte devida pelos Recorrentes à Insolvente, isto é 200.000 Euros, bem sabendo os Recorrentes que a Vendedora estava numa situação de insolvência, constituem circunstancialismos que integram o conceito legal de «actos prejudiciais à massa» e por isso a resolução dos mesmos é perfeitamente lícita, «[O]s actos resolúveis não se configuram, nem são havidos, como actos inválidos, seja do ponto de vista formal, seja sob o prima substancial, atendendo naturalmente à inexistência de vícios que os afectem (…) Do que se trata aqui é de, em razão de interesses supremos da generalidade dos credores da insolvência, sacrificar outros interesses havidos como menores (os de que contratam com o devedor insolvente e, eventualmente, os de que negoceiam com aqueles, portanto todos os terceiros em relação ao devedor insolvente) em função do empobrecimento patrimonial daqueles credores, por via da prática de actos num dado período temporal, designado como suspeito, que precede a situação de insolvência.», apud Gravato Morais, ibidem, 47.

De outra banda, o aludido acto de «venda», uma vez que se apurou não ter sido paga qualquer quantia a titulo de preço por parte dos Recorrentes à Insolvente, sempre poderia ser subsumido no preceituado na alínea b) do nº1, do artigo 121ºdo CIRE, por se apresentar como um negócio gratuito celebrado pelo devedor nos dois anos anteriores à data do inicio do processo (escritura celebrada em 13 de Fevereiro de 2012 e declaração de insolvência ocorrida em 20 de Junho de 2012), cfr Júlio Gomes, Nótula Sobre A Resolução Em Benefício Da Massa Insolvente, in IV Congresso De Direito Da Insolvência, 109/111; Maria do Rosário Epifânio, ibidem, 249/255; Ac STJ de 1 de Junho de 2014, em que foi Relatora a aqui Relatora e primeiro Adjunto o aqui primeiro Adjunto.

Soçobram assim as conclusões de recurso.

III Destarte, nega-se a Revista, mantendo-se a decisão ínsita no Acórdão sob recurso.

Custas pelos Recorrentes.

Lisboa, 12 de Março de 2019

Ana Paula Boularot (Relatora)

Pinto de Almeida

José Rainho