Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02B186
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FERNANDO GIRÃO
Descritores: CONTRATO DE SEGURO-CAUÇÃO
GARANTIA AUTÓNOMA
CLÁUSULA ON FIRST DEMAND
Nº do Documento: SJ200203190001862
Data do Acordão: 03/19/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 4204/01
Data: 07/12/2001
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário :
I - No contrato de seguro-caução o segurador não se compromete a cumprir a obrigação do segurado, mas antes a realizar uma obrigação própria, de cariz indemnizatório, funcionando, assim, como reforço da possibilidade do beneficiário, no caso de o segurado não cumprir o que com ele contratou, obter com mais facilidade o que lhe é devido.
II - Só se pode, porém, falar do seguro-caução como garantia totalmente autónoma e automática no caso de constar expressamente da apólice (estamos na presença de um contrato formal em que a apólice constitui um documento ad substantiam) a cláusula de pagamento à primeira solicitação (on first demand), usual nos contratos de garantia bancária.
III - Nestes casos, o garante (segurador) está obrigado a satisfazer aquilo a que se obrigou, logo que para tal e dentro dos termos previamente acordados, seja solicitado pelo beneficiário e sem que a este possam se opostas (pelo devedor ou pelo garante) quaisquer objecções.
IV - Fora destes casos, conforme decorre do n.º 2 do art.º 89 do DL n.º 183/88, de 24-05, o segurador tem a faculdade de subordinar a eficácia do seguro a condição, bem como a estabelecer prazos constitutivos de sinistros.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Com fundamento no incumprimento de um contrato de empreitada a autora A intentou a presente acção contra as rés B, Banco C e «D»-Companhia de Seguros, SA, tendo sido proferida sentença, em 1ª instância, datada de 21/6/2000, condenando, solidariamente:
--a empreiteira B a pagar à autora a indemnização de 23816793 escudos, com juros de mora desde a citação;
--o C, por força de uma garantia bancária, a pagar à autora o montante máximo de 5000000 escudos, desde o transito em julgado da sentença;
--a seguradora «D», por força de um contrato de seguro de caução, a pagar à autora o montante máximo de 20583438 escudos, com juros de mora desde 2/10/94 até integral pagamento.
Apelou esta última ré -- «D» -- arguindo a nulidade da sentença, por contradição entre a fundamentação e a decisão, pois que foi condenada no pagamento de juros a partir da citação (2/10/94), depois de se ter concluído, na parte fundamentadora da sentença, que «...a garante do seguro de caução, a 3ª Ré, não incorre em mora em momento anterior à prolação da sentença, porque é nesta que se define e delimita a obrigação principal.».
A Relação de Lisboa deu provimento ao recurso e, depois de anular parcialmente a sentença, alterou-a, na parte em discussão, no sentido de os juros a cargo da ré «D» serem contabilizados a partir da data da sentença recorrida (21 de Junho de 2000).
É agora a vez da autora recorrer de revista, com as seguintes conclusões:
1. Bem andou o Senhor Juiz da 1ª instância ao condenar a ora recorrida não só no capital seguro, mas ainda nos «juros de mora desde 02.10.94 até integral pagamento».
2. Na verdade sempre se imporia (como se impõe) decidir da forma como se decidiu na sentença proferida nos autos em 1ª instância, ao contrário do que se defende no acórdão recorrido, ou seja condenando a recorrida na quantia de 20583438 escudos acrescida dos juros de mora desde 2/10/1994 - data da citação para os termos da acção - até integral pagamento.
3. A dívida da recorrida foi logo liquidada na petição inicial e não apenas na sentença, ao contrário do que se pretende no acórdão recorrido.
4. No entender da recorrente, a ora recorrida está obrigada a pagar a obrigação que garantiu (até ao limite máximo que garantiu, evidente) e os juros de mora respectivos desde a data em que foi interpelada para pagar - artigo 805 do Código Civil.
5. A autora, ora recorrente, não fez qualquer pedido de actualização do pedido, pelo que os juros de mora devidos pela ré «D», ora recorrida, são-no desde a data da citação para a acção.
6. Nestes termos e nos mais de direito deve ser dado inteiro provimento ao presente recurso e, por via dele, revogar-se o acórdão recorrido, substituindo-o por acórdão que condene a ora recorrida a pagar à ora recorrente os juros vencidos sobre a quantia de 20583438 escudos desde 2/10/1994 até integral pagamento.

A recorrida não contra-alegou.
Corridos os vistos, cumpre decidir.

A Relação considerou provados, com relevância para a solução do recurso, os seguintes factos:

No dia 6 de Janeiro de 1994, a autora e a ré B - Construções e Obras Públicas do Norte, Ldª celebraram o contrato de empreitada de construção civil da estação de serviço de Areosa, Gondomar, pelo preço de 45945175 escudos, constante de fls. 34 a 43;

A conclusão da obra foi acordada, depois de prorrogação, para o dia 26 de Abril de 1994;

A ré B abandonou, em Abril de 1994, a obra e retirou todos os equipamentos, materiais, utensílios e aparelhos que ali tinha, bem como os empregados que tinha adstritos;

A ré B não efectuou os trabalhos referidos no documento de fls. 47 a 74 como «não executados» e que tinham o valor indicado no mesmo documento;

Em 28 de Abril de 1994, a autora endereçou à ré B a carta, cuja cópia consta de fls. 44 a 46, declarando rescindir o referido contrato, por incumprimento da ré, que esta recebeu;

Entre a assinatura do contrato e Março de 1994, a autora entregou à ré B a quantia de 19235188 escudos (fls.75, 76 e 77);

Em Maio de 1994, a autora acordou com E a conclusão da obra, tendo despendido a quantia de 42486780 escudos e 50 centavos;

Alguns dos ensaios para a verificação do cumprimento ou incumprimento por parte da B tiveram resultado negativo;

E concluiu a obra em Julho de 1994;
10º
A ré «D» e a ré B celebraram os contratos de seguro-caução, formalizados através das apólices nºs 16117 e 16071, cujas cópias constam de fls. 81 a 84, correspondendo o capital em risco a 4594517 escudos e 15988921 escudos, respectivamente;
11º
Em 29 de Setembro de 1994, a autora solicitou à ré «D» o pagamento das quantias referidas nas apólices, tendo esta respondido nos termos da carta de fls. 85, solicitando esclarecimentos;
12º
A ré B enviou à ré «D» a carta datada de 24/10/1994, cuja cópia consta de fls. 114, declarando designadamente que «não é responsável pelo incumprimento do contrato, conforme a A o quer demonstrar».

Por interessar também à decisão transcrevem-se ainda os nºs 1, 4 e 5 do artigo 10º das duas apólices supra referidas em 10º:
«1. Para determinar as indemnizações resultantes deste contrato, poderá ser exigida a apresentação de determinados documentos ou a prática de certos actos, judiciais ou extra-judiciais, a realizar pelo Segurado, de harmonia com o que for determinado nas Condições Particulares.
4.O direito à indemnização nasce quando, após a verificação do sinistro, o Tomador do Seguro, interpelado para satisfazer a obrigação, se recusar injustificadamente a fazê-lo.
5.Ocorrendo o direito à indemnização, tal como definido no número anterior, o Segurado tem o direito de ser devidamente indemnizado pela Seguradora, no prazo de 45 dias a contar da data da reclamação.».

Discute-se uma única questão - se os juros de mora devidos pela seguradora «D», ora recorrida, são contados desde a citação ou desde a data da sentença, conforme decidiu o acórdão recorrido.

Vejamos.

Através dos dois contratos de seguro de caução, devidamente formalizados pelas apólices juntas aos autos, a ré seguradora «D», garantiu o pagamento à beneficiária A, (a autora, dona da obra) da indemnização devida em caso de incumprimento das obrigações assumidas pela tomadora B (a co-ré empreiteira) e respeitantes a 30% sobre o valor de adjudicação para adiantamento da empreitada em causa, até ao limite máximo e total de 20583438 escudos, correspondente à soma dos montantes de capital previsto em cada uma das apólices.

O seguro de caução integra, como se sabe, o núcleo dos chamados contratos de garantia, figuras jurídicas recentes, criadas sob a égide do principio da autonomia da vontade privada na sua vertente da liberdade contratual (artigo 405 do Código Civil), para dar melhor resposta -- relativamente às garantias clássicas, como a fiança -- às necessidades cada vez mais exigentes do comércio jurídico.

A essência de um contrato de garantia reside no facto de uma parte assegurar a outra a obtenção de determinado resultado, ou assumir a responsabilidade por um risco ligado a um empreendimento, respondendo pelos danos causados pela não verificação do resultado ou pela actuação do risco.

Na espécie que ora nos ocupa - o seguro de caução --, estamos ainda perante uma particular modalidade de contrato de seguro, com uma regulamentação específica no nosso ordenamento jurídico através do DL 188/83, de 24 de Maio.
Almeida Costa esclarece-nos, na RLJ nº 129, página 20, que o seguro de caução assume a feição típica de um contrato a favor de terceiro: é celebrado entre a empresa seguradora e o devedor da obrigação a garantir ou o contragarante, a favor do respectivo credor (artigo 9º, nº 2 do referido DL 188/83), abrangendo apenas o risco de incumprimento temporário ou definitivo de obrigações, que, por lei ou convenção, sejam susceptíveis de caução, fiança ou aval (artigo 6º), limitando-se a obrigação de indemnizar, por parte da seguradora, à própria quantia segura (artigo 7º, nº 2).

E daqui emerge uma característica que o distingue da fiança: a autonomia da obrigação do segurador em relação à obrigação principal.

Efectivamente, enquanto na fiança o fiador responde na medida do obrigado principal (artigos 627, nº 2 e 634 do Código Civil), o segurador de caução responde por uma obrigação própria.

No contrato de seguro de caução o segurador não se compromete a cumprir a obrigação do segurado, mas antes a realizar uma obrigação própria, de cariz indemnizatório.

Funciona, assim, como reforço da possibilidade do beneficiário, no caso de o segurado não cumprir o que com ele contratou, obter com mais facilidade o que lhe é devido.

Só se pode, porém, falar do seguro de caução como garantia totalmente autónoma e automática no caso de constar expressamente da apólice (não esqueçamos que estamos na presença de um contrato formal em que a apólice constitui um documento ad substantiam) a cláusula de pagamento à primeira solicitação (on first demand), usual nos contratos de garantia bancária.

Nestes casos, o garante (segurador) está obrigado a satisfazer aquilo a que se obrigou, logo que para tal e dentro dos termos previamente acordados, seja solicitado pelo beneficiário e sem que a este possam se opostas (pelo devedor ou pelo garante) quaisquer objecções.

Fora destes casos, conforme decorre do nº 2 do artigo 8º do DL 183/88, o segurador tem a faculdade de subordinar a eficácia do seguro a condição, bem como a estabelecer prazos constitutivos de sinistros.

É o que acontece no caso dos autos.
Decorre do supra transcrito nº 4 do artigo 10º das Cláusulas Gerais de ambos os contratos de seguro de caução (fls. 82, vº e 84, vº) que o direito à indemnização segurada só nasce depois de, verificado o incumprimento, a tomadora (B), interpelada para satisfazer a obrigação, se recusar injustificadamente a fazê-lo.

Por conseguinte a eficácia dos dois seguros ficou, por legal contratação, condicionada à prévia e injustificada recusa, depois de interpelada, da tomadora e devedora principal a pagar a indemnização devida por ter incumprido o contrato principal (empreitada).

Ora, não consta dos factos provados que a beneficiária A, autora e recorrente, tenha interpelado -- antes da propositura desta acção -- a tomadora e co-ré B para lhe pagar a indemnização a que se julga com direito pelo incumprimento do contrato de empreitada que ambas celebraram.

Acresce que a B, tomadora dos dois seguros-caução, não aceitou o incumprimento que lhe era imputado e disso deu conta à seguradora «D», quando esta foi interpelada pela beneficiária A para lhe pagar as indemnizações convencionadas nos dois contratos em apreço.

Consequentemente, e porque, ao contrário do que foi entendido pelo acórdão recorrido, não estamos perante a situação prevista na primeira parte do nº 3 do artigo 805 do Código Civil - na verdade, o crédito em causa foi logo liquidado na petição inicial, limitando-se a sentença a condenar no respectivo montante --, a mora da seguradora «D» inicia-se com a sua citação para a presente acção, como determina o nº 1 do mesmo artigo 805 e conforme defende a autora A.
Há a esclarecer, no entanto, que a citação, quer da seguradora, quer das duas outras co-rés, ocorreu em 12/10/1995 (fls. 92-94) e não em 2/10/1994, como consta da peça alegatória da recorrente.

DECISÃO:
Pelo exposto concede-se a revista, alterando-se o acórdão recorrido no sentido de os juros a cargo da recorrida «D» serem contabilizados a partir da sua citação, ou seja, a partir de 12/10/1995.
Custas pela recorrida «D».

Lisboa, 19 de Março de 2002

Fernando Girão (Relator)
Moitinho de Almeida
Henriques de Matos