Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
896/18.0YRLSB.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: ALEXANDRE REIS
Descritores: REVISÃO E CONFIRMAÇÃO DE SENTENÇA
ESCRITURA PÚBLICA
UNIÃO DE FACTO
AQUISIÇÃO DA NACIONALIDADE
Data do Acordão: 01/29/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSOS ESPECIAIS / REVISÃO DE SENTENÇAS ESTRANGEIRAS.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 978.º, 980.º, 982.º E 984.º.
Legislação Estrangeira:
CÓDIGO CIVIL DO BRASIL
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 12-07-2005, PROCESSOS N.º 05B1880;
- DE 25-06-2013, PROCESSO N.º 623/12.5YRLSB.S1.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL RELAÇÃO DE LISBOA:

- DE 10-11-2009, PROCESSOS N.º 1072/09.8YRLSB-7.
Sumário :
I - A escritura pública, lavrada em cartório do Registo Civil situado no Brasil, que reconhece a “união estável e de endereço comum” entre uma pessoa com nacionalidade brasileira e outra com nacionalidade portuguesa, tem no ordenamento jurídico brasileiro força idêntica a uma sentença.

II - Verificados os requisitos previstos no art. 980.º do CPC, e não relevando saber se a referida escritura é suficiente para atribuir nacionalidade portuguesa ao membro com nacionalidade brasileira, como pretendido, deve a mesma ser revista e confirmada por tribunal português.
Decisão Texto Integral:
                                                                                             

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
           


AA, português, e BB, brasileiro, intentaram esta acção de revisão e confirmação da escritura pública lavrada em 09-07-2009, no Tabelião dum Cartório de Registo Civil, no Estado de ..., Brasil, declaratória da sua «união estável e de endereço comum», ou seja, de que mantêm, desde antes de Julho de 2008, uma união estável, pública, contínua e duradoura, constituindo uma entidade familiar, alegando que, por isso, se encontram preenchidos os requisitos legais previstos no artigo 980º do CPC para a mesma produzir efeitos em Portugal.

A Relação de Lisboa recusou liminarmente o peticionado reconhecimento, por considerar, em suma, que:

1º - A escritura pública de união estável outorgada no Brasil não se enquadra na previsão do art. 978º do CPC, uma vez que não se trata de sentença ou de qualquer outra decisão de autoridade não judicial estrangeira relativa ao estado civil.

2º - Como a prova da união de facto para efeitos de aquisição de nacionalidade, «que se presume ser a finalidade última dos requerentes», só pode ser feita exclusivamente por decisão judicial que directamente a reconheça (art. 3º, nº 3, da Lei 37/81, de 03/10, e art. 14º, nº 2, do DL 237-A/2006, de 14/12), não pode haver uma dualidade de critérios consoante o interessado na nacionalidade portuguesa viva em Portugal ou no estrangeiro, sob pena de violação do princípio da igualdade (cfr. art. 13º da CRP) e, consequentemente, da obtenção de um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português [art. 980º, f), do CPC].

Os requerentes interpuseram recurso de revista, adversando os motivos da recusa em que se estribou o acórdão da Relação e concluindo que deve ser confirmada a mencionada escritura pública.

O Ministério Público respondeu, apontando, previamente, o deficiente cumprimento pelos recorrentes do comando dos arts. 637º e 639º do CPC, e pugnando, caso o recurso não seja de rejeitar, pela revogação do decidido e consequente revisão e confirmação da escritura pública.

*
Cumpre decidir, para o que releva o antecedentemente relatado.
O exagerado sincretismo do remate conclusivo da motivação impugnatória não deixa de conferir alguma pertinência à questão prévia suscitada pelo Ministério Público, mas o certo é que, ainda assim, a conclusão permite enformar o objecto do recurso.

O Código Civil do Brasil de 2002 legitimou «como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família» (art. 1723º).
Entretanto, em Maio de 2011, o Supremo Tribunal Federal reconheceu, por unanimidade, a união estável entre casais do mesmo sexo como entidade familiar, equiparando as chamadas «relações homoafetivas» às uniões estáveis entre homens e mulheres. E em 2013, na sequência dessa decisão, o Conselho Nacional de Justiça resolveu obrigar os cartórios de todo o país a celebrar o casamento civil e converter a «união estável homoafetiva» em casamento em função de divergências de interpretação sobre o tema.
Ademais, uma relação de convivência entre duas pessoas (de sexos diferentes ou do mesmo sexo), configurada na convivência pública, contínua e duradoura, estabelecida com o objectivo de constituir família, pode ser formalizada através da escritura pública declaratória de união estável e esta pode ser posteriormente convertida em casamento.
Uma vez emitida pela autoridade administrativa ...eira legalmente competente para o efeito, uma tal escritura pública tem, no ordenamento jurídico daquele país, força igual à de um sentença que reconheça uma «união estável homoafetiva» e, assim, deve ser considerada como uma decisão sobre direitos privados abrangida pela previsão do art. 978º, nº 1, do CPC, carecendo de revisão para produzir efeitos em Portugal.
Na verdade, «[o] critério a ter em conta para a sujeição ao processo de revisão assenta na natureza da decisão – importando avaliar se a “decisão” estrangeira produz efeitos idênticos ou equivalentes a uma decisão judicial propriamente dita –, mostrando-se não relevante o órgão de que emana, dado que cada Estado é livre em definir as matérias que cabem na competência dos tribunais, não se mostrando o respectivo critério uniforme em todos os Estados» ([1]).

Como imediatamente se constata pela leitura dos respectivos requisitos enunciados no art. 980º do CPC ([2]), a revisão do conteúdo da dita “decisão” (escritura) estrangeira, com vista a operar efeitos jurisdicionais na ordem jurídica nacional, envolve, tão só, a verificação da sua regularidade formal ou extrínseca, não pressupondo, por isso, a apreciação dos fundamentos de facto e de direito da mesma.

Ora, relativamente à escritura em apreço, verifica-se que concorrem as condições indicadas sob as alíneas a) e f) do citado artigo, porque não se suscitam dúvidas sobre a autenticidade do documento onde a mesma consta nem sobre a sua inteligência e, ainda, porque o seu conteúdo (união de facto de pessoas do mesmo sexo), em si, não é incompatível com os princípios de ordem pública internacional do Estado Português. E também se não apura, através dos meios previstos no art. 984º do mesmo código, a falta de observância de qualquer um dos requisitos indicados sob as demais alíneas daquela outra norma (980º), designadamente a d).
Realmente, o obstáculo que na decisão recorrida foi oposto à pretendida confirmação não se prende com o resultado desta, em si mesmo, mas com o que, eventualmente, poderia advir da aquisição da nacionalidade portuguesa, apenas com base na falada escritura, pelo requerente cidadão …, quando, diferentemente, um outro interessado na nacionalidade portuguesa que viva em Portugal apenas pode provar a união de facto para tal efeito por decisão judicial que directamente a reconheça, tal como é previsto nos acima citados normativos.
Porém, mesmo não desconsiderando a probabilidade de «a finalidade última dos requerentes» ser a aquisição da nacionalidade portuguesa por um deles, sendo, pois, previdente o argumentado pela Relação, por ora, apenas vem pedida a revisão e confirmação da escritura e o certo é que só a apreciação dos termos em que, porventura, possa vir a ser materializada uma tal hipotética pretensão permitiria aferir se, em concreto, a mesma violaria o invocado princípio da igualdade.
Por assim ser e uma vez que foi facultado o exame do processo, para alegações, aos requerentes e ao Ministério Público (art. 982º do CPC), pode já concluir-se pela procedência da pretensão formulada nestes autos.

*

Decisão:
Pelo exposto, acorda-se em conceder a revista e, por consequência, a revisão e confirmação, para produzir efeitos em território nacional, da escritura acima referida.

Sem custas o recurso de revista, sendo as custas da acção suportadas pelos requerentes que dela tiram proveito (art. 527º do CPC).

Lisboa, 29/1/2019

Alexandre Reis (Relator)

Lima Gonçalves



Fátima Gomes

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[1] Acórdão da RL de 10-11-2009 (p. 1072/09.8YRLSB-7). Também neste sentido, os acórdãos deste Tribunal de 25-06-2013 (p. 623/12.5YRLSB.S1) e de 12-07-2005 (p. 05B1880).

[2] «Para que a sentença seja confirmada é necessário:

a) Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença nem sobre a inteligência da decisão;

(…) d) Que não possa invocar-se a exceção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afeta a tribunal português, exceto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição;

(…) f) Que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.».