Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08S2273
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: PINTO HESPANHOL
Descritores: ABANDONO DO TRABALHO
PRESUNÇÃO DE ABANDONO
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: SJ200810290022734
Data do Acordão: 10/29/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário :
1. O Código do Trabalho, no n.º 2 do seu artigo 450.º, prevê a figura da presunção de abandono do trabalho, retirada da ausência do trabalhador ao serviço durante, pelo menos, 10 dias úteis seguidos, sem que o empregador tenha recebido comunicação do motivo da ausência.
2. É ao empregador que compete o ónus de alegar e provar os factos integradores da referida presunção (base da presunção), isto é, não só a ausência do trabalhador ao serviço durante, pelo menos, 10 dias úteis seguidos, como também a não recepção de comunicação do motivo da ausência.
3. Não tendo o empregador provado a não recepção de comunicação do motivo da ausência do trabalhador, o que alegou e que lhe cabia provar, fica afastada a aplicação daquela presunção, pelo que a cessação do contrato de trabalho operada pelo empregador com fundamento em abandono do trabalho, porque vigorava um contrato de trabalho por tempo indeterminado entre as partes, configura um despedimento ilícito, com as inerentes consequências legais, já que não precedido de processo disciplinar.
Decisão Texto Integral:




Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

I

1. Em 5 de Janeiro de 2006, no Tribunal do Trabalho do Funchal, AA instaurou a presente acção declarativa, com processo comum, emergente de contrato individual de trabalho contra M...P...F..., HERDEIROS, pedindo: (i) se declare a ilicitude da cessação do respectivo contrato de trabalho; (ii) a condenação da ré a reintegrá-lo no seu posto de trabalho, sem prejuízo da atinente categoria e antiguidade, ou, caso assim venha a optar, a pagar-lhe uma indemnização correspondente a um mês e meio de retribuição base e diuturnidades por cada ano completo de serviço ou fracção, e, em todo o caso, a pagar-lhe as retribuições que deixou de auferir «desde o dia três de Dezembro de 2005 até ao trânsito em julgado da douta decisão a proferir pelo Tribunal».

Alegou, em resumo, que foi admitido ao serviço da ré, em Maio de 1970, para desempenhar as funções de mecânico, tendo estado doente, entre 14 de Janeiro de 2005 e 5 de Fevereiro de 2005 e, igualmente, entre 10 de Fevereiro de 2005 e 1 de Setembro de 2005, sendo certo que a ré lhe comunicou, em 23 de Fevereiro de 2005, a denúncia do contrato de trabalho por «ter-se ausentado do serviço desde 10 de Fevereiro do corrente ano, ou seja, por prazo superior a 10 dias úteis, sem que tenha esta entidade patronal recebido qualquer comunicação ou justificação desta ausência, [o que] equivale a abandono de trabalho […]»; porém, os documentos comprovativos de doença nos meses de Janeiro e Fevereiro de 2005 foram entregues, em mão, por seu filho, BB, no estabelecimento comercial da ré.

A ré contestou, alegando que o autor só trazia os documentos comprovativos de doença, «quando vinha trabalhar e, por vezes, nem comunicava, não obstante sempre ter sido alertado de que a empresa não prescindia do cumprimento da lei», e que, desde 10 de Fevereiro de 2005, deixou de comparecer ao serviço, não tendo comunicado o motivo dessa ausência, acrescendo que, no período de ausência, «foi visto por diversas vezes ingerindo bebidas alcoólicas num bar próximo à sua residência»; em 28 de Fevereiro de 2005, «o A. autor apresentou-se à R. a fim de receber os montantes salariais a que tinha direito por denúncia do contrato», tendo a ré pago «todos os valores a que o A. tinha direito, e este recebeu», e que, «cerca de um mês depois, estranhamente, o A. passou a enviar à R. o certificado de incapacidade temporária para o trabalho por estado de doença», que lhe devolveu.

Realizado o julgamento, tendo o autor declarado optar por indemnização em substituição da reintegração, foi proferida sentença que julgou procedente a acção, declarando «ilícito o despedimento do A. por ausência de processo disciplinar» e condenando «a ré no pagamento ao A. das retribuições vencidas desde a data do despedimento e até ao trânsito em julgado da decisão e, bem assim, no pagamento de uma indemnização por antiguidade equivalente a € 560,60 por cada ano de antiguidade ou fracção até à data do trânsito em julgado da decisão».

2. Inconformada, a ré interpôs recurso de apelação, aduzindo que «a decisão de não ir trabalhar acompanhada da não comunicação do motivo da ausência e da justificação formalizada da ausência, quando o poderia fazer por qualquer meio ao seu dispor [artigo 15.º da fundamentação de facto] consubstancia, por parte do trabalhador, a adopção de um comportamento que traduz inequivocamente a intenção de não retomar a prestação de trabalho e caracteriza o animus extintivo do trabalhador relativamente ao vínculo laboral».

Acrescentou que «[n]ão pode proceder a conclusão do Juiz a quo de que os muitos anos anteriores de uma prática eventualmente aceite pela anterior gerência justificam, por parte do trabalhador, um comportamento contrário às novas orientações, que resulta provado existirem, sob pena de se pugnar pela inércia das decisões de mudança» e concluiu que, «ainda que, por mera hipótese, se considere não existir o animus extintivo da relação laboral do trabalhador, a verdade é que o trabalhador deixou operar no ordenamento jurídico a presunção legal do abandono de trabalho invocada pelo Recorrente quando não a elidiu, por qualquer meio, como era seu ónus, ao não fazer prova da ocorrência de motivo de força maior impeditivo da comunicação da sua ausência […], deixando cessar o contrato de trabalho com efeitos reputados ao 1.º dia de ausência ao serviço».

Apreciando o recurso, o Tribunal da Relação de Lisboa julgou a apelação procedente, revogou a sentença recorrida e absolveu a ré dos pedidos deduzidos.

É contra esta decisão que o autor se insurge, mediante recurso de revista, em que pede a revogação do acórdão recorrido, ao abrigo das seguintes conclusões:

«A – Para que a presunção de abandono do trabalho prevista no n.º 2 do artigo 450.º pudesse operar, a Ré, ora Recorrida, teria de provar não só a ausência do trabalhador ao serviço, mas também que não recebeu a comunicação do motivo da ausência, pois que se trata de um facto integrante da base da presunção. E a verdade é que, embora o tenha alegado, não logrou essa prova, conforme se constata pelo último ponto no elenco dos factos não provados em primeira instância (e que permaneceram inalterados).
B – Por outro lado, o facto de o A., ora Recorrente, não ter logrado provar que de facto entregou comunicação do motivo da ausência (segundo ponto dos factos não provados) não equivale à prova do seu contrário, ou seja, de que não comunicou. E, de igual forma, essa falta de comunicação não decorre da factualidade dada como provada.
C – Tendo falhado essa prova, a Recorrida não preencheu o segundo dos factos previstos no n.º 2 do art. 450.º, cuja demonstração cumulativa se exige para que ocorra a presunção do abandono do trabalho, com os inerentes efeitos (artigos 344.º, n.º 1, 349.º e 350.º, n.º 1, do Código Civil).
D – À data em que a comunicação exigida pelo n.º 5 do artigo 450.º foi enviada não era lícito à Recorrida invocar a cessação do contrato de trabalho com base no abandono presumido, pois a ausência ao serviço por parte do Recorrente ainda não tinha atingido os dez dias úteis seguidos; somente se tinham completado nove dias de ausência.
E – Se o Recorrente não se apresentou no seu local de trabalho de 14 de Janeiro a 5 de Fevereiro de 2005, e se cinco dias depois volta a ausentar-se do seu local de trabalho, de dias 10 de Fevereiro a 23 de Fevereiro (data do envio da carta), então, das duas uma: ou a Recorrida não tinha conhecimento do motivo da ausência do trabalhador em Janeiro, tendo, no entanto, relevado a mesma, não lhe assacando quaisquer consequências; ou a Recorrida tinha conhecimento do estado de doença, incapacitante para o trabalho, do aqui Recorrente.
F – Naquela primeira hipótese, o Recorrente teria a legítima expectativa de que a manutenção do seu comportamento, quanto às faltas que cometeu por motivo de doença, não iria acarretar quaisquer consequências, muito menos tão gravosas como as efectivadas pela Recorrida através da carta invocando abandono do trabalho; isto tanto mais que desde 1970 que esta sua conduta, que sempre adoptou, era tolerada.
G – A brusca transformação da atitude da Recorrida apanhou, assim, o trabalhador de surpresa, confiante que estava que tudo se passaria como dantes. A sua postura adoptada através da carta remetida a 23 de Fevereiro, invocando o abandono do trabalho do Recorrente, não é compatível com a demonstrada ao longo dos trinta e cinco anos anteriores e até cinco dias antes daquele seu período de ausência, pelo que configura manifesto abuso de direito.
H – Já na segunda hipótese (a de que a Recorrida conhecia o estado de doença do trabalhador), então, à Recorrida é exigível que deduzisse que o Recorrente se ausentava naquele mês de Fevereiro pelos mesmo[s] motivos que havia faltado no mês de Janeiro e até cinco dias antes — por incapacidade resultante de doença, não lhe sendo lícito invocar o abandono do trabalho se conhecia ou devia conhecer o motivo da ausência.
I – O Acórdão recorrido viola, portanto, salvaguardado o devido respeito que, mais uma vez, se renova, os artigos 436.º, 439.º e 450.º do Código do Trabalho e os artigos 334.º, 342.º, 344.º, 349.º e 350.º do Código Civil.»

A recorrida contra-alegou, defendendo a manutenção do julgado.

Neste Supremo Tribunal, a Ex.ma Procuradora-Geral-Adjunta concluiu que a revista devia proceder, parecer que, notificado às partes, suscitou resposta da ré para discordar daquela posição.

3. No caso vertente, as questões suscitadas são as que se passam a enunciar:

– Se a empregadora tem a seu favor a presunção de abandono do trabalho prevista no n.º 2 do artigo 450.º do Código do Trabalho [conclusões A) a D) e I), na parte atinente, da alegação do recurso de revista];
Se a invocação da presunção de abandono do trabalho pela empregadora configura abuso de direito [conclusões E) a G) e I), na parte atinente, da alegação do recurso de revista];
Se é ilícito invocar aquele abandono presumido, porque a empregadora conhecia ou devia conhecer o motivo da ausência [conclusões H) e I), na parte atinente, da alegação do recurso de revista].

Estando em causa a apreciação de factos verificados em data posterior à entrada em vigor do Código do Trabalho (dia 1 de Dezembro de 2003 — n.º 1 do artigo 3.º da Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto), atento o disposto no artigo 8.º, n.º 1, da Lei n.º 99/2003, aplica-se o regime jurídico acolhido naquele Código.

Corridos os vistos, cumpre decidir.

II

1. O tribunal recorrido deu como provada a seguinte matéria de facto:

1) A ré dedica-se à actividade económica de prestação de serviços do ramo da mecânica automóvel, com especialização em molas, travões, suspensões, etc;
2) A ré exerce a sua actividade económica no estabelecimento comercial, sito na Rua 5 de Outubro, n.os 130 e 131 A, Funchal;
3) O A. desempenhou as funções de mecânico por conta e sob a direcção e autoridade da ré, inicialmente com a firma M...P...F..., no estabelecimento referido em 2), desde o início do mês de Maio de 1970;
4) O A. esteve incapacitado para o trabalho por doença natural nos seguintes períodos: 14.01.2005 a 28.01.2005; 28.01.2005 a 5.02.2005; 10.02.2005 a 21.02.2005, 21.02.2005 a 1.03.2005; 1.03.2005 a 31.03.2005; 31.03.2005 a 30.04.2005; 30.04.2005 a 30.05.2005; 30.05.2005 a 30.06.2005; 30.06.2005 a 30.07.2005; 30.07.2005 a 30.08.2005; 30.08.2005 a 30.09.3005;
5) Os documentos comprovativos da incapacidade para o trabalho por doença do A., relativamente ao período de Março a Setembro de 2005, foram por este enviados para a ré, por carta registada com aviso de recepção;
6) Em 23 de Fevereiro de 2005, a entidade patronal remeteu ao A. a carta que consta de fls. 36 dos autos, recebida por este em 24.02.2005, com o seguinte teor: «Vimos pela presente comunicar a V. Ex.a, nos termos e para os efeitos no disposto do art. 450.º da Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto, que o facto de V. Ex.a ter--se ausentado do serviço desde 10 de Fevereiro do corrente ano, ou seja por prazo superior a 10 dias úteis, sem que tenha esta entidade patronal recebido qualquer comunicação ou justificação desta ausência, equivale a abandono do trabalho, vale como denúncia do contrato e constitui V. Ex.a na obrigação de indemnizar a entidade patronal nos termos do art. 448.º. A falta de qualquer comunicação e/ou justificação à empresa até esta data, quer por telefone, quer por carta, quer por qualquer outro meio ou por interposta pessoa, equivale a abandono e ausência do posto de trabalho e clara intenção de não o retomar»;
7) A ré devolveu ao A., por carta registada, as baixas por doença que este lhe foi remetendo ao longo do ano de 2005, por carta registada, com aviso de recepção, ou seja, as baixas com início em 1.03.2005 e término em 30.09.2005, data em que teve alta;
8) Em data não apurada do mês de Outubro de 2005, o A. apresentou-se nas instalações da ré para desempenhar as suas funções de mecânico;
9) Nessa altura, foi-lhe recusada a presença nas instalações da ré sendo-lhe dito que já não trabalhava ali;
10) No ano de 2004, o A. auferia o vencimento mensal ilíquido no valor de € 560,60;
11) Nas declarações de remunerações apresentadas na Segurança Social relativamente aos meses de Março a Dezembro de 2005, a ré não mencionou como sendo seu trabalhador o ora A.;
12) Nas múltiplas ocasiões em que o A. se encontrou de baixa por doença em períodos anteriores ao ano de 2005, sucedia muitas vezes que o mesmo trazia os comprovativos da baixa apenas quando regressava ao serviço e por vezes nem comunicava a sua situação de baixa;
13) Em data não apurada, mas após o falecimento de M...P...F..., os seus herdeiros, que continuaram a explorar o estabelecimento, deram conta aos funcionários que as faltas tinham de ser justificadas dentro dos prazos estipulados na lei;
14) O A. ausentou-se do serviço desde o dia 10 de Fevereiro de 2005;
15) Ao A. era possível comunicar o motivo da sua ausência, por carta, telefone ou através de familiar;
16) Em datas não apuradas, o A. foi visto junto a um bar situado no bairro da Nazaré a consumir cerveja.

Para melhor elucidação, importa registar que foram julgados não provados, no que agora interessa, os seguintes factos articulados pelas partes (decisão sobre a matéria de facto, lavrada a fls. 226-229):

«Os documentos comprovativos da licença por doença dos meses de Janeiro e Fevereiro de 2005 foram entregues, em mão, por BB, filho do A., no estabelecimento comercial da ré» — facto alegado no artigo 6.º da petição inicial;
«A ré desconhecia se o A. se encontrava ou não de baixa médica» — facto alegado no artigo 21.º da contestação;
«No dia 28 de Fevereiro de 2005, o A. apresentou-se à ré a fim de receber os montantes salariais a que tinha direito» — facto alegado no artigo 33.º da contestação;
«Até Março de 2005, o A. não comunicou por qualquer forma à ré o motivo da sua ausência» — facto alegado nos artigos 16.º, 17.º e 18.º da contestação.

Os factos materiais fixados pelo tribunal recorrido não foram objecto de impugnação pelas partes, nem se vislumbra qualquer das situações referidas no n.º 3 do artigo 729.º do Código de Processo Civil, pelo que será com base nesses factos que hão-de ser resolvidas as questões suscitadas no presente recurso.

2. Em primeira linha, o recorrente alega que, tendo falhado a prova da não comunicação do motivo da ausência, «a Recorrida não preencheu o segundo dos factos previstos no n.º 2 do art. 450.º, cuja demonstração cumulativa se exige para que ocorra a presunção do abandono do trabalho, com os inerentes efeitos».

No mesmo sentido, a sentença da primeira instância decidiu que «não ficou provada a falta de comunicação do motivo da ausência no período considerado como de ausência ao serviço sem comunicação, pelo que a ré não demonstrou os factos que lhe competia para poder beneficiar da presunção relativa [à] intenção do trabalhador de não retomar o trabalho» e, de todo o modo, «[a]inda que assim se não entendesse, sempre haveria que concluir que não se verifica a presunção de abandono do trabalho, dado que tal não ocorrerá quando a entidade patronal conhece os motivos pelos quais o trabalhador não se estava a apresentar ao serviço», logo, «a cessação do contrato de trabalho operada por vontade da ré através da comunicação referida no ponto 6. [da matéria de facto provada], tendo em conta que vigorava um contrato de trabalho por tempo indeterminado, configura um despedimento ilícito, porquanto não precedido de processo disciplinar (cfr. art. 429.º, a), do Código do Trabalho)».

Por sua vez, o aresto recorrido decidiu que, tendo o autor «estado ausente do serviço mais de 10 dias úteis sem comunicar a ausência à entidade patronal, e não [se] estando perante um caso de força maior que impeça essa comunicação, o abandono do trabalho presume-se, nos termos do art. 450.º, n.º 2, do CT, considerando-se extinta a relação laboral por denúncia desde a data do início da ausência […]».

2.1. O artigo 450.º do Código do Trabalho estabelece que «[c]onsidera-se abandono do trabalho a ausência do trabalhador ao serviço acompanhada de factos que, com toda a probabilidade, revelem a intenção de o não retomar» (n.º 1), presumindo-se «abandono do trabalho a ausência do trabalhador ao serviço durante, pelo menos, dez dias úteis seguidos, sem que o empregador tenha recebido comunicação do motivo da ausência» (n.º 2), podendo tal presunção «ser ilidida pelo trabalhador mediante prova da ocorrência de motivo de força maior impeditivo da comunicação da ausência» (n.º 3).

Refira-se, ainda, que, de harmonia com o mesmo preceito, «[o] abandono do trabalho vale como denúncia do contrato e constitui o trabalhador na obrigação de indemnizar o empregador pelos prejuízos causados, não devendo a indemnização ser inferior ao montante calculado nos termos do artigo 448.º» (n.º 4) e que «[a] cessação do contrato só é invocável pelo empregador após comunicação por carta registada com aviso de recepção para a última morada conhecida do trabalhador» (n.º 5).

Assim sendo, para que ocorra o abandono do trabalho exige-se a verificação cumulativa de dois elementos: (i) um objectivo, traduzido na ausência do trabalhador ao serviço, isto é, na não comparência, voluntária e injustificada, no local e no tempo de trabalho a que está obrigado; (ii) outro subjectivo, traduzido na intenção de não retomar o serviço, ou seja, a intenção de não comparência definitiva ao trabalho, a retirar de factos que, com toda a probabilidade, a revelem.

Precisa a este respeito PEDRO ROMANO MARTINEZ, que «[o] abandono do trabalho constitui uma denúncia ilícita que importa responsabilidade para o trabalhador, nos mesmos termos estabelecidos para a denúncia sem aviso prévio», sendo certo que, neste caso, «a denúncia manifesta-se mediante um comportamento concludente, a ausência do trabalhador ao serviço», verificando-se «uma denúncia tácita resultante da falta de comparência ao serviço», acrescentando que, «[a]pesar de não resultar expressamente da norma, o contrato de trabalho cessa a partir da data do início do abandono, pelo que a declaração do empregador é uma confirmação (imprescindível), com eficácia retroactiva, da extinção do vínculo» (Direito do Trabalho, 3.ª edição, Almedina, Coimbra, 2006, pp. 948-949).

Por seu lado, MONTEIRO FERNANDES afirma que a lei constrói a figura do abandono do trabalho «sobre um complexo factual, constituído pela ausência do trabalhador e por factos concludentes no sentido da existência da “intenção de o não retomar”, sendo certo que «[a] não comparência ao serviço por dez ou mais dias úteis seguidos, sem “comunicação do motivo da ausência(-), oferece suporte a uma presunção iuris tantum de abandono do lugar», que poderá ser afastada mediante «prova da ocorrência de motivo de força maior impeditivo da comunicação da ausência», realçando que o efeito de denúncia sem aviso prévio a que a lei faz corresponder o abandono do trabalho só se produz com a comunicação prevista no n.º 5 do artigo 450.º citado, «que não pode deixar de traduzir a simples constatação do abandono e, portanto, da cessação do contrato imputável ao trabalhador» (Direito do Trabalho, 12.ª edição, Almedina, Coimbra, 2004, pp. 609-610).

Para JÚLIO GOMES, «a doutrina fala aqui de uma ausência qualificada, ou seja, às faltas injustificadas têm que acrescer factos que, no dizer da lei, com toda a probabilidade indiquem que o trabalhador não tem intenção de retomar o trabalho. Essa intenção há-de revelar-se com toda a probabilidade, não sendo de modo algum suficiente uma mera verosimilhança(-), já que também aqui a vontade de demissão, ainda que tacitamente manifestada, deve ser séria e inequívoca. A vontade extintiva não pode considerar-se a regra, mas antes a excepção, e como tal deve ser interpretada restritivamente, exigindo-se mais do que uma omissão» (Direito do Trabalho, vol. I, Relações Individuais de Trabalho, Coimbra Editora, 2007, p. 1072).
2.2. Relativamente à falada presunção de abandono do trabalho, aos factos que a suportam e aos termos em que se admite que o trabalhador ilida tal presunção, este Supremo Tribunal tem-se pronunciado em termos divergentes.

Na verdade, ainda no domínio do regime jurídico da cessação do contrato individual de trabalho e da celebração e caducidade do contrato a termo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 64-A/89, de 27 de Fevereiro, o acórdão de 22 de Outubro de 1996, proferido no Processo n.º 93/96, da 4.ª Secção, in Acórdãos Doutrinais, Ano XXXVI, Abril de 1997, n.º 424, pp. 534-546, considerou que compete à entidade patronal que invoca o abandono do trabalho o ónus da prova do facto positivo base da referida presunção, ou seja, a ausência do trabalhador durante, pelo menos, quinze dias seguidos, incumbindo-lhe apenas o ónus de alegação do facto negativo sobre a falta de comunicação do motivo da ausência, sendo que o ónus da prova desse facto negativo cabe ao trabalhador, e não ao empregador.

Também no domínio da mesma legislação, o acórdão de 16 de Maio de 2000, proferido no Processo n.º 46/2000, da 4.ª Secção, publicado na base de dados do Ministério da Justiça, www.dgsi.pt, documento n.º SJ200005160000464, aresto em que se fundou o acórdão recorrido, entendeu que «[p]ara beneficiar da presunção legal de abandono do trabalho, a entidade patronal tem de alegar e provar somente que o trabalhador faltou ao serviço durante 15 dias úteis seguidos sem apresentar justificação, sendo ao trabalhador que compete provar que a comunicou à entidade patronal a prova [sic] daquela comunicação. Não é à entidade patronal que compete provar a recepção daquela comunicação».

Porém, já no domínio do Código do Trabalho, o acórdão de 26 de Março de 2008, Processo n.º 2715/07, da 4.ª Secção, pronunciou-se nos termos seguintes:

«Nos n.os 2 e 3 do art. 450.º [do Código do Trabalho], prevê-se a figura da presunção do abandono, retirada da ausência do trabalhador ao serviço durante, pelo menos, 10 dias úteis seguidos, sem que o empregador tenha recebido comunicação do motivo da ausência.
Ou seja, no fundo, a lei tipifica tais factos (ausência por mais de 10 dias úteis seguidos, sem que o empregador tenha recebido tal comunicação) como concludentes da intenção, por parte do trabalhador, de fazer cessar o contrato, permitindo, porém, que o trabalhador ilida a presunção, mediante a prova da ocorrência de motivo de força maior impeditivo da comunicação da ausência.
E como resulta dos princípios gerais aplicáveis nesse domínio e tem sido sublinhado pela doutrina e jurisprudência, cabe ao empregador que invocou a cessação do contrato o ónus de alegar e provar os factos integradores dos requisitos do abandono do trabalho, o que abrange, no caso de presunção do abandono — como acontece, no caso dos autos — os aludidos factos que suportam a presunção(-).
Trata-se, na verdade, do ponto de vista substantivo, de factos integradores ou constitutivos do abandono do trabalho invocado pelo R. como fundamento da cessação do contrato que os ligou, e, na sua projecção processual na presente acção, como factos impeditivos da pretensão nela formulada pelo A. — de reconhecimento da existência de um despedimento ilícito por parte do R., com as inerentes consequências legais, por alegada inverificação desse abandono de trabalho (art. 342.º, n.º 2, do Código Civil).»

É de manter esta mais recente orientação jurisprudencial.

Com efeito, a prova do facto conhecido, base da presunção (artigo 349.º do Código Civil), cabe à parte que a presunção favorece, pelo que é ao empregador que incumbe o ónus de alegar e provar os factos integradores da questionada presunção, isto é, não só a ausência do trabalhador ao serviço durante, pelo menos, 10 dias úteis seguidos, mas também a não recepção de comunicação do motivo da ausência.

Ora, no caso, a ré não logrou provar o segundo dos factos que suportam a referida presunção do abandono — o não recebimento da comunicação do motivo da ausência do autor , que alegou e que lhe cabia provar, o que afasta a aplicação daquela presunção e leva a que se conclua pelo alegado despedimento ilícito.

Na verdade, como já se referiu, foi dado, expressamente, como não provado que «[a]té Março de 2005, o A. não comunicou por qualquer forma à ré o motivo da sua ausência», facto alegado nos artigos 16.º a 18.º da contestação; por outro lado, a circunstância do autor não ter logrado provar que entregou a comunicação do motivo da ausência não equivale à prova do seu contrário, isto é, de que não comunicou, sendo que essa falta de comunicação não resulta da factualidade dada como provada.

Ora, tendo a ré falhado essa prova, não se preenche o segundo dos factos previstos no n.º 2 do citado artigo 450.º, cuja demonstração cumulativa se exige para que ocorra a presunção de abandono do trabalho, com os inerentes efeitos (artigos 342.º, n.º 2, 344.º, n.º 1, 349.º e 350.º, n.º 1, do Código Civil).

2.3. A invocada presunção de abandono do trabalho não aproveita, portanto, à ré, sendo certo que não se mostram provados — nem, aliás, aquela os alegou, como também lhe competia — outros factos que, fora do quadro da sobredita presunção, ou seja, já no campo de aplicação do n.º 1 daquele artigo 450.º, sejam concludentes no sentido de ser intenção do autor, com a sua não apresentação ao serviço, a partir de 10 de Fevereiro de 2005, não retomar o trabalho ao serviço da empregadora.

O que vale por dizer que também não está demonstrado, nesse quadro, o abandono do trabalho, com a correspondente eficácia extintiva do vínculo laboral.

Assim, a cessação do contrato de trabalho operada pela ré com fundamento em abandono do trabalho, tendo em conta que vigorava um contrato de trabalho por tempo indeterminado entre as partes, configura um despedimento ilícito, já que não precedido de processo disciplinar, com as inerentes consequências legais (artigos 429.º, alínea a), 436.º e 439.º do Código do Trabalho), termos em que procedem as conclusões A) a D) e I), na parte atinente, da alegação do recurso de revista.

3. Em derradeiro termo, o recorrente defende que a invocação da presunção de abandono do trabalho pela empregadora configura abuso de direito e que é ilícito invocar aquele abandono presumido, na medida em que a empregadora conhecia ou devia conhecer o motivo da ausência.

O n.º 2 do artigo 660.º do Código de Processo Civil, aplicável aos acórdãos proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do disposto nos conjugados artigos 713.º, n.º 2, e 726.º do mesmo Código, estabelece que o tribunal deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.

Tendo-se concluído que não se verifica a invocada presunção de abandono do trabalho, fica prejudicada a apreciação das questões suscitadas nas conclusões E) a H) e I), na parte atinente, da alegação do recurso de revista.

III

Pelos fundamentos expostos, decide-se conceder a revista e revogar o acórdão recorrido, repristinando-se a sentença proferida na primeira instância.

Custas, nas instâncias e neste Supremo Tribunal, a cargo da ré/recorrida.

Lisboa, 29 de Outubro de 2008

Pinto Hespanhol (Relator)
Vasques Dinis
Bravo Serra