Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 1ª SECÇÃO | ||
Relator: | SEBASTIÃO PÓVOAS | ||
Descritores: | SUBEMPREITADA LIBERDADE CONTRATUAL SUBSTANCIAÇÃO. OBRAS PÚBLICAS | ||
Data do Acordão: | 02/09/2010 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Referência de Publicação: | CJASTJ, ANO XVIII, TOMO I/2010, P. 64 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
Sumário : | 1. Limitado, embora, pelo princípio do dispositivo, a substanciação (ou consubstanciação) permite ao juiz definir livremente o direito aplicável aos factos que lhe é licito conhecer, buscando e interpretando as normas jurídicas que entende pertinentes. 2. A subempreitada – conceptualizada no artigo 1213.º do Código Civil – tem como pressuposto a pré-existência de um contrato de empreitada na sequência do qual o empreiteiro – actuando nas vestes de dono da obra, contrata com um terceiro a realização de todos, ou de parte, dos trabalhos que se vinculou a realizar. 3. É um contrato subordinado (subcontrato) mas com individualidade em relação à empreitada. 4. O conceito de empreitada de obras públicas consta do artigo 2.º, n.º 3 do Decreto-Lei n.º 59/99 de 2 de Março – com as alterações da Lei n.º 163/99 de 14 de Setembro e do Decreto-Lei n.º 159/2000, de 27 de Julho – sendo a respectiva subempreitada prevista no n.º 1 do artigo 266.º. 5. O princípio da liberdade contratual permite a livre fixação do conteúdo e do clausulado dos contratos, desde que não contrariem disposições legais de natureza imperativa – artigo 405.º do Código Civil – autorizando o afastamento de contratos paradigmáticos desde que sejam garantidas a ética, a lisura negocial e a integridade de valores que informam a sociedade. 6. A autonomia privada também autoriza que nos tipos negociais existentes se insiram cláusulas de outros, com as restrições referidas, tendo por objectivo actualizar o paradigma, agilizar o comércio jurídico, a concertação e a compatibilização internacional. 7. Nada impede que num contrato de subempreitada privada se colham no regime do instituto homólogo de obras públicas, conceitos e regras, sem que tal implique a sujeição às normas de direito público. 8. É ao demandante que cumpre provar o dano pelo interesse contratual positivo. 9. Só pode fazer-se apelo a uma expectativa jurídica perante a existência de uma situação activa, já juridicamente tutelada, correspondente a uma fase de um “iter” complexo de formação sucessiva de um direito. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça: “O..., S.A” intentou acção, com processo sumário, contra “A...de O...C..., Limitada” pedindo a sua condenação a pagar-lhe a quantia de 54.303,07 euros, com juros à taxa de 12%. Alegou, em síntese, ter celebrado com a Ré um contrato de subempreitada para execução de trabalhos constantes de uma proposta que lhe apresentou, tendo a Ré adjudicado à Autora trabalhos orçados em 1.198.671,12 euros, com várias parcelas a preços unitários; que a Ré contratou outro empreiteiro para alguns trabalhos incluídos na proposta da Autora, nos valores de 89.038,42 euros e 229.746,31 euros; que nunca teria contratado com a Ré se estes trabalhos, que mais lucro lhe dariam, não fossem incluídos; que, assim, deixou de auferir 53.303,07 euros. A Ré contestou o pedido. No Circulo Judicial de Leiria, a acção foi julgada improcedente e a Ré absolvida do pedido. Inconformada, a Autora apelou para a Relação de Coimbra que confirmou o julgado. Pede agora revista, assim concluindo a sua alegação: Contra alegou a recorrida em defesa do julgado. A Relação deu por assente a seguinte matéria de facto: A) A autora dedica-se à actividade de construção civil e obras públicas. Foram colhidos os vistos. Conhecendo, Delimitado, que foi, o objecto do recurso pelo acervo conclusivo das alegações da recorrente, e perante a impossibilidade de modificar a decisão de facto – por não se perfilar qualquer das situações do n.º 2 do artigo 722.º do Código de Processo Civil, na redacção aqui aplicável – e de não ser caso de lançar mão da faculdade de reenvio do n.º 3 do artigo 729.º daquele diploma, vamos ficar nas questões de direito suscitadas. A primeira tem a ver com a qualificação do contrato e respectivo regime jurídico aplicável. Tem-se por certo que o juiz está limitado pelo princípio do dispositivo mas a substanciação (ou consubstanciação) permite-lhe definir livremente o direito aplicável aos factos que lhe é licito conhecer, buscando e interpretando as normas jurídicas. Na situação em apreço o contrato foi qualificado – e correctamente – como de subempreitada, conceptualizado no artigo 1213.º do Código Civil, figura jurídica que tem como pressuposto a pré-existência de um contrato de empreitada. Aqui, o empreiteiro acorda com o dono da obra a realização da mesma. Na subempreitada o empreiteiro acorda com um terceiro a realização de toda, ou parte, da obra que se vinculou a realizar. Trata-se, pois, de um contrato subordinado, ou subcontrato, mantendo a sua distinção, ou individualidade, em relação à empreitada. O empreiteiro assume, na subempreitada a qualidade de dono da obra perante o subempreiteiro mas mantém aquela qualidade perante o dono da obra principal. (cf., v.g., Prof. Romano Martinez, “O Subcontrato”, 1989, 185 e 36; Prof. Carvalho Fernandes, “Da Subempreitada”, apud “Direito e Justiça”, XII (1998), 79). Os dois contratos tem, afinal, um objectivo comum, sendo esse a realização do interesse do dono da obra. Aqui chegados, pode concluir-se que se a empreitada tiver como objecto uma obra pública ajustada pelo primeiro empreiteiro a subempreitada também seguirá o regime de direito público (veja-se o artigo 266.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 59/99, de 2 de Março, com as alterações da Lei n.º 163/99 de 14 de Setembro e do Decreto-Lei n.º 159/2000 de 27 de Julho; os Drs. Oliveira Antunes e Costa Pouseiro, in “Subempreitada de Obras Públicas e Subcontratação”, 2001, 21 e ss; e, a propósito, o Prof. Marcello Caetano, in “Manual de Direito Administrativo”, I, 10.ª ed., 583 definindo o contrato de empreitada de obras públicas como o acordo pelo qual alguém se encarrega de trabalhos de construção, adaptação, reparação ou conservação de bens imóveis do domínio público, por conta de uma pessoa colectiva de direito público, com materiais subministrados por esta ou pelo empreiteiro, mediante certa retribuição.) A definição legal consta do artigo 2.º, n.º 3, do citado Decreto-Lei n.º 59/99, de 2 de Março: “Entende-se por empreitada de obras públicas o contrato administrativo, celebrado mediante o pagamento de um preço, independentemente da sua forma, entre um dono de obra pública e um empreiteiro de obras públicas e que tenha por objecto quer a execução, quer, conjuntamente, a concepção e a execução das obras mencionadas no n.º 1 do artigo 1.º, bem como das obras ou trabalhos que se enquadrem nas subcategorias previstas no diploma que estabelece o regime de acesso e permanência na actividade de empreiteiro de obras públicas, realizadas seja porque meio for e que satisfaçam as necessidades indicadas pelo dono da obra.” Sendo que da matéria de facto não resulta poder subsumir o contrato “sub judice” ao conceito de empreitada de obras públicas não lhe é aplicável – como não foi – o respectivo regime legal, mas o da lei civil. É certo que os outorgantes fizeram apelo a conceitos típicos do contrato de empreitada de obras públicas, como “preço global”, “série de preços”, constantes do artigo 8.º, n.º 1, alíneas a) e b) do Decreto-Lei n.º 59/99. Porém, tal não significou – nem sequer implicou – a adopção do regime de empreitada de obras públicas. Como se julgou no Acórdão recorrido – que, também enfatizou a inaplicabilidade daquele regime – como as partes se socorreram da terminologia da empreiteira de obras públicas “quando estipularam (livremente) as cláusulas contratuais vertendo essa classificação no contrato, conclui-se que se apropriaram de conceitos definidos no referido diploma, conceitos que tem um conteúdo muito preciso e que, com naturalidade, é adquirido pelos profissionais nas respectivas áreas de actividade.” Não podemos deixar de concordar, por duas razões: - O princípio da liberdade contratual constante do artigo 405.º do Código Civil, autoriza a livre fixação do conteúdo, e clausulado, dos contratos, desde que não contrariem disposições legais de natureza imperativa. Trata-se de afirmar um corolário da autonomia privada (cf., ainda, o artigo 398 do Código Civil) que só pode ser limitada por imperativo das normas que regulam o objecto negocial (artigo 280.º e ss do Código Civil) ou pelos que regulem especialmente alguns contratos. Tem ínsita a liberdade de contratar, ou não, a faculdade de escolher o contraente e “a possibilidade de, na regulamentação convencional dos seus interesses, se afastarem dos contratos típicos, ou paradigmáticos, disciplinados na lei (celebrando contratos atípicos) ou de incluírem em qualquer desses contratos paradigmáticos cláusulas divergentes do regulamento supletivo contido no Código Civil.” (Profs. Pires de Lima e A. Varela, in “Código Civil Anotado”, I, 3.ª ed., 353; Prof. Antunes Varela – “Das obrigações em geral”, 10.ª ed., I, 248, a destacar como restrições a “de assegurar a lisura e a correcção com que as partes devem agir na preparação e execução dos contratos, o de garantir quanto possível a justiça real, comutativa [não a simples justiça formal expressa pela igualdade jurídica dos contraentes] nas relações entre as partes, o de proteger a parte que dentro da relação contratual se considera económica e socialmente mais fraca e o preservar a integridade de certos valores essenciais à vida de relação, como sejam a moral pública, os bons costumes, a segurança do comércio jurídico e a certeza do direito.”; cf., ainda, o Prof. Menezes Cordeiro, in “Direito das Obrigações”, I, 1980, 93 e o Prof. Almeida Costa, apud “Direito das Obrigações”, 6.ª ed., 197). Com a evolução da sociedade e do comércio jurídico vem surgindo nova conceptualização dos vários institutos e a necessidade de criação de novíssimas formas de negociar adaptadas à realidade social e aos instrumentos financeiros disponíveis. Daí que – e não se olvide que o Código Civil já tem 44 anos de vigência – tenham entretanto aparecido na dogmática jurídica múltiplos contratos atípicos, por o clausulado - regra da maioria dos nominados dever ser actualizado, não só em sintonia com a necessidade de compatibilização internacional como, e “not the least”, para impedir a conflitualidade e agilizar a concertação. A amplitude que a lei deixa aos particulares para gerirem os seus interesses terá, por isso, de ser compatível com as liberdades de escolha do tipo contratual e de estipulação do respectivo clausulado. Isto dito, não admira, e antes se aceita como natural, que num contrato de subempreitada privado – sem as peias de ordem pública contratual – as partes possam legitimamente incluir cláusulas decalcadas do regime jurídico das empreitadas de obras públicas, por mais actual, com conceitos mais precisos e garantia de melhor sinalagma, sem que tal implique uma descaracterização do negócio ou a sua submissão a um ordenamento a que é alheio. No mais, vale sempre, e em sede interpretativa, o princípio geral da impressão do destinatário, por apelo à visão do profissional comum, como declaratário, no exercício da actividade questionada (artigo 236.º, n.º 1 do Código Civil). 3- “In casu” Aqui chegados, e verificando não ter existido “erro de aplicação de lei”, resta apurar se os factos conduziam a uma diferente decisão. A Autora alegou ter celebrado, em 22/2/2002, com a Ré, um contrato de subempreitada tendo-lhe esta adjudicado trabalhos orçados em 1.198.671,12 euros, quantia representativa do conjunto de vários preços unitários com diversas, por parcelares, margens de lucro; que em Janeiro de 2003, a Ré contratou outro empreiteiro, sem qualquer explicação prévia, para a execução de alguns trabalhos incluídos na proposta da Autora e que estavam orçamentados em 89.038,42 euros e 229.746,31 euros, sendo que estes eram os trabalhos que maior lucro lhe dariam pelo que sem eles não teria contratado; que, como consequência, deixou de auferir um lucro de 53.303,07 euros. A Ré contestou para, nuclearmente, dizer que não contratou com a Autora por um preço global mas por uma série de preços unitários apenas lhe competindo pagar os trabalhos realizados; que certos trabalhos ficaram fora da empreitada, que aceitou uma alteração à obra e apresentou um preço superior ao de outra empresa, o que levou o dono da obra – não a Ré – a com ela contratar. Mas a Autora não logrou provar que a Ré tivesse contratado outro empreiteiro “sem qualquer explicação prévia”; que nunca teria contratado com a Ré pelos preços indicados, se aqueles trabalhos não estivessem incluídos no contrato; que, por causa da conduta da Ré, tivesse deixado de auferir 54.303,07 euros (cf., as respostas negativas aos quesitos 4.º, 5.º, 6.º e 7.º). A Ré logrou provar tudo o que alegou (quesitos 17.º, 18.º, 19.º, 20.º e 21.º) com ênfase para o facto de a Autora ter aceite, sem reserva, a alteração e apresentado novo orçamento que não foi aceite. Não foi, assim, provada nenhuma das situações inseríveis nos artigos 1215.º e 1216.º do Código Civil, não podendo este Supremo Tribunal – e como se disse “ab initio” – proceder, sem mais, à alteração da matéria de facto fixada pelas instâncias, “maxime”, como pretende a recorrente quanto à prova do prejuízo (dano contratual positivo) ou dano “in contractu”. Outrossim, não pode fazer-se apelo a qualquer expectativa da Autora, pois tal teria de consistir numa situação activa, já com tutela jurídica, correspondente a um estádio de um processo complexo de formação sucessiva de um direito, o que aqui não ocorre (cf., Profs. Mota Pinto, “Teoria Geral do Direito Civil”, 3.ª ed., 180), Galvão Telles, in “Direito Geral das Sucessões”, 5.ª ed., 90 e Castro Mendes – “Direito Civil, Teoria Geral”, 1979, 11, 150). 4 – Conclusões Resta concluir que: Nos termos expostos, acordam negar a revista. Custas pela recorrente. Supremo Tribunal de Justiça, 9 de Fevereiro de 2010 Sebastião Póvoas (Relator) Alves Velho Moreira Camilo |