Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3378/08.6TJVNF.P1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: OLIVEIRA VASCONCELOS
Descritores: CAMINHO PÚBLICO
DESAFECTAÇÃO
Data do Acordão: 05/19/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática: DIREITO ADMINISTRATIVO - BENS DE DOMÍNIO PÚBLICO
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - RECURSOS
Doutrina: - Marcelo Caetano "in" Direito Administrativo, volume II, página 956; in” Manual …, volume II, 10ª edição, página 886.
- Pires de Lima e Antunes Varela "in" Código Civil Anotado, I,179.
Legislação Nacional: CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 684.º-A, 690º-A.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 10.07.13 “IN” COLECTÂNEA DE JURISPRUDÊNCIA/SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 2010 II 167.
ASSENTO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 89.04.19, IN DR, I SÉRIE, DE 89.06.02.
Sumário : - Segundo um Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 89.04.19,São dois os requisitos caracterizadores da dominialidade pública de um caminho: o uso directo e imediato do mesmo pelo público e a imemorabilidade do seu uso pelo público.
- O referido Assento deve ser interpretado de forma restritiva, no sentido de a publicidade dos caminhos exigir ainda a sua afectação a utilidade pública, ou seja, que a sua utilização tenha por objectivo a satisfação de interesses colectivos de certo grau de relevância.
- A dominialidade cessa por virtude do desaparecimento das coisas, ou em consequência do desaparecimento da utilidade pública que as coisas prestavam ou de surgir um fim de interesse geral que seja mais convenientemente preenchido noutro regime.
- Nesta situação estamos perante a chamada desafectação, que pode revestir a forma expressa (a lei tira o carácter dominial a toda uma categoria de bens ou declara sem utilidade pública determinada coisa) ou tácita (sempre que uma coisa deixa de servir ao seu fim de utilidade pública e passa a estar nas condições comuns aos bens do domínio privado da Administração).
- Assim, no caso de um caminho público, uma das formas de cessação da dominialidade consiste no desaparecimento ou extinção da utilidade pública que esse caminho se destina a prestar.
Decisão Texto Integral:


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Em 05.11.21, no Tribunal Judicial da Comarca de Vila Nova de Famalicão – 4º Juízo Cível - AA e BB, intentaram a presente acção declarativa contra CC e DD e contra a Freguesia de ....., todos do concelho de Vila Nova de Famalicão

pedindo
- que fosse decretado, e os réus condenados a reconhecer, que os autores são os legítimos proprietários e possuidores do prédio descrito nos arts. 1° a 11° da petição inicial;
- que fosse decretado, e os réus condenados a reconhecer que o caminho e o largo identificados nos arts. 15°, 22° a 25°, 31° e 36° da mesma petição inicial faz parte integrante do domínio público e que os autores têm o direito de nele passar em toda a sua extensão e sem embaraço;
- que os réus fossem condenados a absterem-se da prática de quaisquer actos lesivos desses direitos, nomeadamente deixando de dificultar ou impedir o acesso de e para o prédio dos autores, através do caminho público e do largo, repondo-o no mesmo estado em que se encontrava antes de o ocuparem, ou seja, demolindo as paredes construídas e repondo o piso no estado anterior, de forma a que a passagem e entrada no prédio dos autores se possa processar sem entraves, em qualquer local da sua extremas sul ou poente;
- que fosse ordenado o cancelamento de quaisquer registos efectuados em contrário ao aqui peticionado

alegando
em resumo, que
- são donos de um prédio, com a área total de 790 m2, que confrontava, dos lados sul e poente, com um caminho público, concretamente com caminho vicinal da freguesia de ....., separado do prédio por um muro de vedação, por si construído, onde os autores colocarem alguns tubos para a saída de águas, há mais de 20 anos;
- em 1997, os RR compraram um prédio, com as áreas coberta de 36 m2 e descoberta de 154 m2 e inscrito na respectiva matriz no artigo 2124, sito ao lado do prédio dos AA, com que confronta, numa pequena extensão, no limite sul/nascente deste;
- com o caminho confrontava também um prédio (agora) dos 1ºs réus;
- por força do alargamento da estrada ali existente, o caminho antigo deu origem a um largo - parcela de terreno de forma trapezoidal - largo esse situado em frente (sul) ao prédio dos autores;
- esse largo foi ocupado pelos 1ºs réus que o vedarem, aumentando a área do prédio, o que fizeram com a conivência da Junta de Freguesia;
- o caminho e esse largo, desde tempos imemoriais estava afecto ao trânsito das pessoas sem discriminação, para passagem a pé e de carro, sem oposição de ninguém, pelo que o caminho faz parte do domínio público;
- a actuação dos réus prejudica os autores, já que diminui a confrontação com a rua em cerca de 14 metros, e essa maior confrontação aumenta as possibilidades de fruição, rústica e urbana do seu prédio, bem como impede os autores de aceder e usar livremente o caminho.

Contestando
e também em resumo, os réus alegaram que
- o caminho, à excepção do lado sul do prédio dos réus, tem a configuração que hoje tem, e o caminho agora aberto resultou da cedência, no âmbito de uma permuta, de parte do prédio dos 1ºs réus com parte de 2ª ré, visando a construção de uma nova estrada a sul do prédio dos 1ºs réus e nenhum benefício tiveram estes com a permuta;
- tal parcela não está afecta à utilidade pública e, de contrário, teria sido desafectada na data em que foi alterado o traçado do cominho.

Proferido despacho saneador, fixada a matéria assente e elaborada a base instrutória, foi realizada audiência de discussão e julgamento.

Em 09.01.07, foi proferida sentença que julgando a acção parcialmente procedente, condenou os réus:
a) - a reconhecerem que os autores são legítimos proprietários e possuidores do prédio descrito nos arts. 1º a 11 da petição inicial;
b) - a reconhecerem que o caminho e o largo identificado nos arts. 15º, 22º a 25º, 31 e 36 da petição inicial,faz parte integrante do domínio público e que os autores têm o direito de nele passar em toda a sua extensão e sem embaraço;
c) – a absterem-se da prática de quaisquer actos lesivos desses direito, nomeadamente deixando de dificultar ou impedir o acesso de e para o prédio dos autores, através do caminho público e do largo a que se alude em b-, repondo-o no estado em que se encontrava antes de o ocuparem, ou seja, demolindo as paredes construídas e repondo o piso no estado anterior, de forma a que a passagem e entrada no prédio dos autores se possa processar sem entraves, em qualquer local das sua estremas sul e poente.


Os réus apelaram, com êxito, pois a Relação do Porto, por acórdão de 10.05.06, revogou a decisão recorrida, absolvendo os réus dos pedidos em causa.

Inconformados, os autores deduziram a presente revista, apresentando as respectivas alegações e conclusões.
Os recorridos contra alegaram, pugnando pela manutenção do acórdão recorrido.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

As questões

Tendo em conta que
- o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso - arts. 684º, nº3 e 690º do Código de Processo Civil;
- nos recursos se apreciam questões e não razões;
- os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido
são os seguintes os temas das questões propostas para resolução:
A) - Nulidades
B) - Pedido de alteração da matéria de facto
C) - Mérito da acção.

Os factos

São os seguintes os factos que foram dados como provados na Relação:
1. Em 14 de Agosto de 1970, os autores AA e esposa compraram a EE, FF, GG e HH, que lhes venderam, uma parcela de terreno para construção urbana, com a área de 430 m2, sita no Lugar ......, freguesia de ....., deste concelho, a desanexar da descrição predial nº 00000, e do artigo 589 e 49/50 do artigo 590 rústicos daquela freguesia, parcela essa devidamente demarcada.(a)
2. Essa aquisição do direito de propriedade foi titulada por escritura de 14 de Agosto de 1970, exarada a fls. 52 do livro C-44, do 2° Cartório Notarial de Vila Nova de Famalicão.(b)
3. Devido às obras inicialmente efectuadas pelos autores, esse prédio passou a ser composto por casa de habitação com a área coberta de 59 m2, quintal com 371 m2, sito no lugar ......., actual Rua ..........., nº ..., da freguesia de ....., deste concelho, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 00000 e então no artigo 1123 da matriz urbana daquela freguesia.(c)
4. Por sua vez, em 1 de Outubro de 1971, os autores adquiriram às mesmas pessoas uma outra parcela de terreno, com a área de 360 m2, sita no mesmo lugar da Laje, freguesia de ....., a confrontar do norte com o autor, do sul e poente com caminho público, e nascente com Dr. II.(d)
5. Essa parcela destinou-se ao arredondamento do quintal do prédio identificado em 3-) e foi desanexada da descrição predial nº 000000, e do artigo 589 e 49/50 do artigo 590, rústicos.)e)
6. Porém, como o preço foi pago em prestações, só titularam o negócio por escritura de 27 de Dezembro de 1978, exarada a fls. 20, do 00-00-00, do 2° Cartório Notarial de Vila Nova de Famalicão na qual vem referida as mencionadas confrontações.(f)
7. Ainda em 1973 os autores edificaram os muros de vedação do seu prédio e, de seguida, fizeram outras obras.(g)
8. No ano de 1974, os autores registaram em seu nome a aquisição do prédio referido em 1-) e 3-), mas nunca efectuaram o registo da parcela de terreno que compraram em 1978, referida em 4-).(h)
9. Por força das obras nele realizadas, esse prédio passou a estar inscrito na matriz sob os seguintes artigos urbanos da matriz de .....:
a)- Art0 1953: Casa para habitação de rés-do-chão com 4 divisões, com a superfície coberta de 112 m2 e quintal com 130 m2;
b)- Art0 2018: Casa de habitação de rés-do-chão com 4 divisões, um anexo para arrumos e outro para garagem, com a superfície coberta de 99,50 m2 e quintal com 458,20 m2.(i)
10. De qualquer forma, por si ante proprietários e ante possuidores, os autores estão, em exclusivo, na posse pública (de modo a poder ser conhecida por todos os interessados), contínua, pacifica, titulada e de boa-fé do referido prédio (tal como ficou após o arredondamento do quintal), cultivando-o, colhendo os respectivos frutos, edificando e venerando construções e culturas, incluindo produtos hortícolas e árvores de fruto, pagando as respectivas contribuições, posse essa que dura há mais de 1, 10, 15, 20, 30 e mais anos, com "animus domini", agindo na convicção de exercer um direito próprio, sem prejudicar ninguém nem direito alheio e em tudo se comportando como donos e por todos como tal sendo considerados, ininterruptamente, à vista de toda a gente e sem oposição de quem quer que seja.(j)
11. Por sua vez, por escritura exarada a folhas 2 a 4 verso do livro de escrituras diversas nº 316-8, do 2° Cartório Notarial de Vila Nova de Famalicão, outorgada em 9/9/1997, os 1°s Réus (CC e mulher) adquiriram a propriedade de um prédio urbano com a área coberta de 36m2 e quintal com 154 m2, descrito na conservatória do Registo Predial sob o nº 0000 de ..... e na matriz respectiva sob o artigo 2124.(l)
12. O prédio dos autores confronta dos seus lados sul e poente com caminho utilizado, indistinta e indiscriminadamente, pelas pessoas da freguesia do ....., que o consideram como público, caminho esse como consta das plantas existentes na Câmara Municipal, com cópia a fls. 29 e 193 dos processo .(1)
13. O artigo matricial do prédio dos 1°s réus tinha resultado da apresentação do Mod. 129 em 14/01/1986.(2)
14. Logo após a compra do prédio, mais concretamente em 15/01/1998, os 1°s Réus apresentaram um novo modelo 129, invocando que a área descoberta verdadeira do prédio que adquiriram era de 603 m2.(3)
15. As Finanças atribuíram um novo artigo ao prédio, que passou a ser o 0000 urbano de ....., que proveio do artigo 2124, passando a constar de superfície coberta a área de 36m2 e de quintal a área de 603m2.(4)
16. De qualquer modo, o certo é que o prédio dos 1°s réus fica situado ao lado do prédio dos autores, com o qual confronta numa pequena extensão, no limite sul/nascente deste (autores).(5)
17. O caminho referido em 12-) passa em frente à habitação dos autores, no sentido norte/sul, alterando o traçado na zona situada em frente ao quintal.(6)
18. Precisamente nesse local, o caminho junta-se a um outro que vem no sentido noroeste/sudeste, e formava então um só, que seguia nessa mesma direcção, na extrema sul/poente do prédio dos autores.
19. A partir daí, voltava a flectia para o sentido norte/sul, precisamente em frente ao prédio dos primeiros réus.(8)
20. O caminho em causa é descendente no sentido norte/sul e encontra-se quase todo ele a nível inferior ao prédio dos autores em cerca de 1 metro.(9)
21. Por isso, os autores colocaram no muro de vedação do seu prédio alguns tubos para a saída de águas, colocação essa que ocorreu faz mais de 20 anos.(10)
22. Em frente ao prédio que agora é dos primeiros réus, o caminho tinha cerca de 4 metros de largura, pelo que, fazendo uma curva, se tornava difícil transitar nele.(11)
23. Por isso, a Junta de Freguesia de ..... procedeu ao seu alargamento, retirando a curva supra descrita, de modo a endireitar o seu trajecto, abrindo um novo troço do caminho a sul/poente do prédio dos AA e poente dos RR.(12)
24. Para a abertura de uma nova estrada a sul do prédio dos RR, foi ocupada uma pequena parcela do prédio que agora é dos primeiros réus, situada na sua extrema sul/poente.(14)
25. Desta alteração resultou que, no lado sul e poente dos prédios dos autores e dos primeiros réus, respectivamente, passou a existir um largo e, mais a sul do prédio dos RR, um novo caminho, largo esse usado, indiscriminadamente, por quem o pretendesse .(15)
26. Os 1°s réus edificaram nova casa de habitação.(16)
27. Começaram por vedar uma zona mais afastada do prédio dos autores, colocando dois tranqueiros e, pouco depois, um portão voltado para o leito do antigo caminho.(17)
28. Os 1ºs réus vedaram o largo referido em 25-), construindo um muro com cerca de 60 cm, encimado por rede e arame farpado, numa altura de cerca de 2 metros.(19/21)
29. Assim, ocuparam uma faixa de terreno de forma trapezoidal, com 14 metros na confrontação do prédio dos autores, 11 metros na parte do portão referido em 27-), 4 metros na confrontação com o novo caminho e 11 metros até à construção com o prédio dos autores.(20)
30. Aquela parcela de terreno, agora ocupada pelos réus, era de livre acesso a todos os que ali passavam, quer a pé quer de veículo.(22)
31. Aliás, era por ele e para ele que se fazia a entrada para o prédio dos 1ºs réus.(23)
32. Por esse motivo também é que a parte do solo em questão se encontrava delimitada dos prédios confinantes - incluindo dos autores e dos réus que com ele nunca se confundiram.(24)
33 Assim, desde tempos imemoriais que todas as pessoas, de forma livre e indiscriminada, faziam passagem pela referida rua ou caminho, a pé e de carro.(25)
34. Aliás, também ali estacionam (pelo menos até 2004/2005) veículos e o mesmo encontrava-se afecto ao trânsito de pessoas sem discriminação, que o utilizavam sem dependência da autorização de quem quer que fosse.(26)
35. Tudo isso sucedendo desde tempos imemoriais, à vista de toda a gente e sem oposição de quem quer que seja.(27)
36. Tanto mais que se encontrava aberto e franqueado ao público, sem qualquer embaraço, ai transitando, sempre que necessário, pessoas, animais e veículos, designadamente para acesso aos prédios confrontantes.(28)
37. Aliás, mesmo a fachada da antiga casa existente no prédio dos 1°s réus encontrava-se voltada para esse caminho e alinhada com ele, no seu traçado inicial, que não após as alterações referidas em 23 e 25.(29)
38. Quando adquiriram o seu prédio, os autores levaram em conta o facto de o mesmo confrontar com a via considerada pública em toda a sua confrontação poente e (parte) sul.(30)
39. De facto, a confrontação do prédio em toda a extensão com a via pública pode aumentar as possibilidades da respectiva fruição, quer rústica, quer, eventualmente, urbana.(32)
40. O caminho a que aludem os autores, que confrontava dos seus lados sul e poente com o seu prédio, tem hoje a configuração e traçados constantes do doc. 1 e 2 junto com a contestação, e assim é há mais de 30 anos, excepto no lado sul do prédio.( 33/34)
41. O caminho agora aberto resultou de uma troca feita entre os 1°s réus e a Junta de Freguesia de ....., tendo aqueles cedido uma parcela de terreno do seu prédio, e esta a parcela de terreno de forma trapezoidal aludida em 29-).(35)
42. Aliás, os próprios autores têm disso perfeito conhecimento, um vez os autores demonstraram uma inequívoca intenção de adquirir à Junta de Freguesia de ....., parte da parcela de terreno agora em causa.(36/36)
43. Naquela parcela de terreno, de tempos a tempos, a 2ª ré procedia à limpeza das silvas que aqui cresciam e à sua manutenção.(38/39)
44. Acresce que, na altura da campanha politica, era a Junta que autorizava a colocação de cartazes de propaganda politica.(40)
45. De facto, quando foi executada a construção da nova estrada que confronta a sul com o prédio propriedade dos 1°s réus, esta ocupou parte do prédio propriedade dos mesmos.(42)
46. Ora, o desapossamento de tal parcela de terreno prejudicava seriamente os interesses patrimoniais dos 1ºs réus.(43)
47. A Junta de Freguesia de ..... acordou com os 1ºs réus efectuarem uma permuta.(44)
48. Ou seja, a parcela de terreno agora em causa faz parte do prédio propriedade dos 1ºs réus.(45)
49. Os 1°s réus só aceitaram a permuta dos terrenos, por se tratar de um benefício para toda a freguesia e seus moradores.(46)
50. Sendo certo que receberam uma parcela de terreno exactamente igual àquela que cederam.(47
Os factos, o direito e o recurso

A) – Nulidades

Em primeiro lugar, entendem os recorrentes que a Relação não se pronunciou sobre a questão da “inadmissibilidade da alteração da matéria de facto requerida pelos réus enquanto apelantes.
Não têm razão.
Desde logo, porque em rigor a questão não foi levantada.
Depois, porque manifestamente o acórdão recorrido aceitou essa admissibilidade, ao aludir aos pontos da matéria de afcto e aos meios de prova invocados pelos apelantes para sustentarem a alteração.

Em segundo lugar, entendem os recorrentes que no acórdão recorrido não foram especificados os fundamentos para a alteração da matéria de facto que nele foi efectuada.
Também não têm razão.
Como facilmente se constata pela análise do acórdão, nele foram minuciosamente escalpelizados os diversos pontos da matéria de facto impugnados pelos apelantes, com indicação dos diversos meios de prova – testemunhal, documental, por confissão, por presunção – com a respectiva análise crítica.

Finalmente, entendem os recorrentes que no acórdão recorrido não foram conhecidas a questão “da desnecessidade de terem de provar a natureza do caminho”.
Também não têm razão.
Em primeiro lugar, porque sendo os aqui recorrentes recorridos no recurso de apelação, só podiam levantar as questões da natureza das referidas do artigo 684º-A do Código de Processo Civil, o que na realidade não aconteceu.
Depois, a questão foi patentemente conhecida e no sentido da necessidade.
Se bem ou mal, é questão que aqui não cumpre conhecer, mas em sede do mérito da acção.

B) – Pedido de alteração da matéria de facto

Entendem os recorrentes que o pedido da alteração da matéria de facto feito pelos réus na sua apelação não devia ser admitido porque não foi feito de forma concreta e individualizada, como o exige o artigo 690º-A do Código de Processo Civil.
Não têm razão.
Conforme se constata facilmente pelo articulado das alegações e conclusões da apelação dos réus, estes referem expressamente as respostas a pontos da base instrutória que pretendiam ver alteradas, assim como os “concretos meios probatórios”, mencionando concretamente a prova testemunhal e documental que, no seu entender, impunham uma decisão diferente.

C) – Mérito da acção

Na sentença proferida na 1ª instância julgou-se a acção procedente quanto aos pedidos de reconhecimento da integração da parcela de terreno em causa no domínio público porque, face ao factos dados como provados, a referida parcela integrava um caminho que existia desde tempos imemoriais, destinado e afecto à utilidade pública e satisfação de interesses públicos comuns, passando, com alargamento da estrada, há cerca de 30 anos, onde dantes exista um caminho, a existir no local um largo, aberto ao público e de livre aceso a todos, factos estes que levavam à conclusão de que o caminho tinha “manifesto interesse público”.

No acórdão recorrido entendeu-se, aderindo a uma interpretação restritiva do Assento deste Supremo de 89.04.19 “in” DR, I série, de 89.06.02, que para um caminho ser considerado público não bastava que desde tempos imemoriais estivesse no uso directo e imediato do público, necessário era que esse uso directo e imediato ocorresse para “fins de utilidade pública”, entendendo-se assim que “a publicidade do caminho exige a sua afectação a utilidade pública”, uma utilização “que tenha por objecto a satisfação de interesses colectivos de certo grau e relevância”, havendo que ter em conta “o número normal de utilizadores, que tem de ser uma generalidade de pessoas, como é a hipótese de uma percentagem elevada dos membros de uma povoação, e, por outro lado, a importância que o fim visado tem para estes à luz dos seus costumes colectivos e das suas tradições e não de opiniões externas”.
E não existindo no caso concreto em apreço “factualidade que inequivocamente apontasse a dimensão da utilização colectiva e da relevância da utilidade do caminho para satisfazer os fins de ligação, comunicação e acesso (finalidade própria de um caminho, que se destina a “passar”, a ligar locais e localidades diferentes, e não propriamente e apenas a “estar”) viário das pessoas do ..... com outras povoações e/ou vice versa”, não se podia considerar o caminho em causa como público e, consequentemente, não podiam os réus serem condenados nos pedidos formulados pelos autores, acima enunciados, que pressupunham a natureza pública do caminho.

Os recorrentes entendem que os factos dados como provados apontam manifestamente para a existência daquela utilidade ou interesse público ou, quando muito, uma redução ou diminuição da área sobre que incidia aquele utilidade, mas nunca a sua extinção.
Com todo o respeito pelo entendimento da Relação, cremos que os recorrentes têm razão.

Nos termos do assento acima referido “são públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso directo e imediato do público”.
Assim são dois os requisitos caracterizadores da dominialidade pública de um caminho: o uso directo e imediato do mesmo pelo público e a imemorabilidade do seu uso pelo público.

O referido Assento deve ser interpretado, conforme jurisprudência quase unânime deste Supremo, de forma restritiva, no sentido de a publicidade dos caminhos exigir ainda a sua afectação a utilidade pública, ou seja, que a sua utilização tenha por objectivo a satisfação de interesses colectivos de certo grau de relevância – entre outros, ver o acórdão deste Supremo de 10.07.13 “in” Colectânea de Jurisprudência/Supremo Tribunal de Justiça, 2010 II 167.
Na verdade, a utilidade pública, “que consiste na aptidão das coisas para satisfazer necessidades colectivas, traduz o verdadeiro fundamento da sua publicidade” – Marcelo Caetano “in” Manual …, volume II, 10ª edição, página 886.
Postos estes conceitos, voltemos ao caso concreto em apreço.

Parece não haver dúvidas que, face aos factos assentes e dados como provados, temos que concluir que a parcela de terreno em causa era usada directa e imediatamente pelo público desde tempos imemoriais.
Para isso aponta o facto de desde tempos imemoriais sempre ser de livre acesso a todos os que ali passavam, quer a pé, quer com veículo, de por ela se fazer a entrada para o prédio dos réus, de se encontrar delimitada dos prédios confinantes, que com ela nunca se confundiram, de se encontrar afecta ao trânsito de pessoas sem discriminação, que a utilizavam sem dependência da autorização de quenquer que fosse, de tudo isto ser feito à vista de toda a gente e sem oposição de quenquer que fosse, de a Junta de Freguesia, de tempos a tempos, proceder à limpeza das silvas que cresciam no terreno e à sua manutenção, de ser esta Junta a autorizar a colocação de cartazes de propaganda política na parcela.
Estes factos são inequívocos sobre o uso da parcela pelo público desde tempos imemoriais.

Mas esse uso era feito na satisfação de interesses colectivos de certo grau de relevância?
Entendemos que sim.
O terreno era usado por todos para trânsito de pessoas, veículos e animais, designadamente para acesso aos prédios confinantes,
Daqui não pode deixar de se concluir que o mesmo era utilizado por uma generalidade de pessoas para nele transitarem a pé, com veículos ou com animais.
Não existe qualquer facto que nos permita concluir que o terreno era utilizado apenas por uma ou algumas pessoas e existia apenas para satisfazer os interesses particulares dessas pessoas.
Sendo assim, não podemos deixar de concluir que a existência do trânsito acima referido indicia que a utilização do terreno como caminho era feita na satisfação de um interesse colectivo.
E esse interesse era de particular relevância?
Entendemos que sim.
Na verdade, atento à existência do trânsito com a natureza acima referida, não pode deixar de se considerar que o caminho se destinava à satisfação de uma necessidade colectiva, sendo, em nosso entender e com todo o respeito pelo entendimento contrário vertido no acórdão recorrido, irrelevante saber para e de onde se processava o trânsito ou se havia outro caminho.
A questão terá mais a ver com desafectação da dominialidade pública do caminho, questão que a seguir trataremos.

No acórdão recorrido entendeu-se que mesmo que o caminho fosse considerado público, mesmo assim teria que se considerar que tal natureza tinha deixado de fazer sentido por ter cessado a dominialidade, uma vez que tinha deixado de servir o seu fim de utilidade pública, estando-se perante a figura de desafectação tácita.
Os recorrentes entendem que “nada nos autos permite concluir pela prática de qualquer acto de desafectação”.
Cremos que mais uma vez tem razão.

A este propósito, escreveu o Prof. Marcelo Caetano "in" Direito Administrativo, volume II, página 956, que "a dominialidade cessa por virtude do desaparecimento das coisas, ou em consequência do desaparecimento da utilidade pública que as coisas prestavam ou de surgir um fim de interesse geral que seja mais convenientemente preenchido noutro regime"
E esclarecendo melhor esta afirmação, salienta que no primeiro caso a dominialidade cessa porque o direito de propriedade pública se extinguiu (por exemplo, uma biblioteca que ardeu) e no segundo caso, embora as coisas continuem a existir, por decisão expressa da Administração ou com o seu consentimento tácito, deixam de ter utilidade pública ou perdem o seu carácter dominial.

Nesta situação estamos perante a chamada desafectação, que pode revestir a forma expressa (a lei tira o carácter dominial a toda uma categoria de bens ou declara sem utilidade pública determinada coisa) ou tácita (sempre que uma coisa deixa de servir ao seu fim de utilidade pública e passa a estar nas condições comuns aos bens do domínio privado da Administração).
Como exemplo de desafectação tácita, cita-se, correntemente, o caso do abandono do troço por onde corre uma estrada em virtude de construção de nova via - cfr. Pires de Lima e Antunes Varela "in" Código Civil Anotado I 179.
Assim, no caso de um caminho público, uma das formas de cessação da dominialidade consiste no desaparecimento ou extinção da utilidade pública que esse caminho se destina a prestar.
Há, pois, que averiguar das razões que conduziram à falta de utilização para verificar se a mesma resultou de desnecessidade ou impossibilidade de manutenção do caminho, razões estas que, para se considerar a desafectação tácita, se devem procurar na eventual modificação das circunstâncias de facto que originaram a afectação “ab initio” à satisfação de utilidade pública que era o objectivo da utilização colectiva.
Vejamos, então, o caso concreto em apreço.

No acórdão recorrido entendeu-se que da matéria de facto dada como assente e provada se podia concluir que com as obras realizadas pela Junta de Freguesia tinha deixado de existir um verdadeiro caminho, com a amplitude e extensão que antes tinha, ficando na parte sul do prédio dos autores a até à confluência com o prédio adquirido pelos réus CC, um largo, que não tinha o significado do anterior caminho.
Mais se conclui que a partir daí o terreno em causa deixou de ter afectação a todos, passando apenas a servir de acesso ao prédios desses réus e ao muro do prédio dos autores.
Disto tudo se concluiu que teria ocorrido uma modificação do “condicionalismo pressuposto pela qualificação jurídica”, pois que o bem tornou-se desnecessário ao fim de utilidade pública a que estava afectado. Com a mudança de trajecto do caminho, o traçado antigo deixou de ter interesse como via de passagem e ligação de relevante interesse para a comunidade local, passando a servir interesses restritos de alguns utentes vizinhos.”
Com todo o respeito, parece que os factos assentes e dados como provados não suportam essa conclusão.

O que sabe é apenas é que a Junta de Freguesia de ..... procedeu ao alargamento do caminho, retirando a curva em frente ao prédios dos réus, de modo a endireitar o seu trajecto, abrindo um novo troço do caminho a sul/poente do prédio dos autores e poente dos réus – resposta ao ponto 12º da base instrutória.
E que para a abertura de uma nova estrada a sul do prédio dos réus, foi ocupada uma pequena parcela do prédio que agora é destes réus, situada na sua extrema sul/poente – resposta ao ponto 14º da base instrutória.
E finalmente, que desta alteração resultou que, no lado sul e poente dos prédios dos autores e dos primeiros réus, respectivamente, passou a existir um largo e, mais a sul do prédio dos RR, um novo caminho, largo esse usado, indiscriminadamente, por quem o pretendesse – resposta ao ponto 15º da mesma base instrutória.

Deste factos apenas podemos concluir e como se refere na sentença proferida na 1ª instância, que em virtude do novo traçado do caminho teria havido uma redução da utilização do antigo traçado.
Mas nada nos permite concluir – porque, como se disse, não existem factos que para isso apontem – que este antigo traçado – ou parte dele – se tenha tornado desnecessário para fins de utilidade pública em virtude das obras efectuadas pela Junta.
E também não existem factos que nos permitam concluir pela exclusividade de utilização do dito caminho e largo por parte dos autores e dos réus, sem qualquer utilidade pública.
Dito doutro modo: não existem factos de onde se possa concluir com segurança que em virtude da construção do novo traçado do caminho e do largo, o espaço ou a parte do espaço que era utilizado para fins de utilidade pública deixou de ter essa utilidade e passou a estar nas condições comuns aos bens do domínio privado da Administração.
Logo, não é caso para se considerar que o terreno em causa tinha deixado de integrar o domínio público por desafectação tácita.

Concluímos, pois, merecer censura o acórdão recorrido e assim, ser de proceder as pretensões dos autores recorrentes.

A decisão

Nesta conformidade, acorda-se em conceder a revista, revogando-se o acórdão recorrido e repondo-se o decidido na sentença proferida na 1ª instância.
Custas pelos recorridos.

Lisboa, 19 de Maio de 2011

Oliveira Vasconcelos (Relator)
Serra Baptista
Álvaro Rodrigues