Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
Relator: | SANTOS BERNARDINO | ||
Descritores: | CONTRATO DE COMPRA E VENDA REGISTO PREDIAL TERCEIROS RESPOSTAS AOS QUESITOS | ||
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Nº do Documento: | SJ200312180025182 | ||
Data do Acordão: | 12/18/2003 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | T REL LISBOA | ||
Processo no Tribunal Recurso: | 9757/02 | ||
Data: | 02/06/2003 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA. | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA. | ||
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Sumário : | 1. O registo predial destina-se essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário: não tem natureza constitutiva, sendo o seu efeito simplesmente declarativo, não conferindo, a não ser excepcionalmente, quaisquer direitos. 2. A noção de terceiros, para efeitos de registo, agora constante do n.º 4 do art. 5º do Cód. Reg. Pred., é tributária de uma das posições doutrinais - a do Prof. Manuel de Andrade - que, acerca do conceito, se vinham digladiando desde há muito. 3. O aludido preceito tem, pois, a natureza de norma interpretativa. 4. Dele decorre que o titular de um direito real de garantia registado, sobre imóvel anteriormente vendido, mas sem o subsequente registo a favor do comprador, não é terceiro para efeitos de registo, uma vez que o seu direito e o do adquirente do imóvel não provêm de um autor comum. 5. Ocorrendo conflito entre uma aquisição por compra e venda anterior não levada ao registo e um arresto posterior registado, aquela obsta à eficácia deste último, prevalecendo sobre ele. 6. A compra e venda é, como decorre da própria definição legal do art. 874º do CC, um contrato oneroso. 7. A resposta negativa a um quesito apenas significa não se ter provado o facto quesitado, e não que se tenha provado o facto contrário, tudo se passando como se aquele facto não tivesse sido alegado. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: 1. Por apenso aos autos de procedimento cautelar de arresto que, pelo 15º Juízo Cível de Lisboa A requereu contra B, nos quais foi decretado arresto sobre o prédio urbano sito na Rua de S. Pedro da Caparica, n.º ...., da freguesia da Trafaria, concelho de Almada, veio C deduzir embargos de terceiro, com vista a obter o levantamento do decretado arresto. Alega, fundamentalmente, ser proprietário do mencionado prédio, por o haver adquirido, por escritura pública de compra e venda de 06.01.98, ao arrestado B e mulher, livre de quaisquer ónus ou encargos, tendo passado a utilizá-lo e a habitá-lo desde a data da outorga da escritura, sendo que, nessa data, o arresto não se achava registado. Tendo requerido, em 08.05.98, o registo do prédio a seu favor, apenas em 29.07.99 veio a ter conhecimento do arresto e do respectivo registo, efectuado em 03.04.98 - arresto que ofende o seu direito de propriedade e a posse que vem exercendo sobre o dito prédio. Recebidos os embargos e notificados os embargados (arrestante e arrestado), contestou o requerente do arresto, sustentando ser nulo, por simulado, o negócio jurídico translativo da propriedade, invocado pelo embargante, e acrescentando que este não tomou posse do prédio nem nele reside com carácter de permanência. Além disso, não registou a aquisição antes de ter sido registado o arresto, pelo que aquela é ineficaz em relação a este. Concluiu pela improcedência dos embargos. Replicou o embargante, no tocante à matéria de excepção alegada na contestação. Efectuada a audiência preliminar, na qual foi lavrado o despacho saneador e seleccionada a matéria de facto com interesse para a boa decisão da causa, seguiu o processo a sua subsequente tramitação; e, efectuada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, na qual a Ex.ma Juíza julgou improcedentes os embargos. O embargante interpôs, da sentença, o pertinente recurso de apelação. E com êxito, pois a Relação de Lisboa, em acórdão adrede proferido, declarou nula a sentença recorrida e julgou procedentes os embargos de terceiro, ordenando o levantamento do decretado arresto. Desta vez foi o apelado - o arrestante/embargado A - quem, inconformado, reagiu contra a decisão, trazendo a este Supremo Tribunal o presente recurso, de revista. Nas alegações de recurso, o recorrente formula as seguintes conclusões: 1ª - Tendo o arresto sido decretado e registado anteriormente ao registo da aquisição do direito de propriedade, é o primeiro oponível ao segundo; 2ª - Qualquer outra solução postergaria os princípios da certeza e da segurança do comércio jurídico adjacentes ao registo predial e que a esse devem continuar a presidir; 3ª - O acto de compra e venda é gratuito; 4ª - O recorrido não habita no imóvel. Posteriormente, após notificação para o fazer, o recorrente indicou como norma violada o art. 5º/1 do Cód. Reg. Predial. O recorrido apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso. Corridos os vistos legais, cumpre agora decidir. 2. São os seguintes os factos provados: I - Nos autos de que estes constituem apenso foi, em 01.04.98, decretado arresto sobre o prédio urbano sito na Rua de São Pedro da Caparica, n.º..., freguesia da Trafaria, concelho de Almada, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Almada sob o n.º 353 e inscrito na matriz sob o artigo 1599º da dita freguesia; II - D, na qualidade de procurador e em representação de B e esposa E, e C outorgaram contrato de compra e venda constante da escritura de fls. 11 e seguintes, exarada em 06.01.98, onde fizeram lavrar, designadamente, que Livre de quaisquer ónus ou encargos e pelo preço de 16.000.000$00, que já recebeu do segundo, (o primeiro outorgante) a este vende o prédio urbano sito em São Pedro da Caparica, Encosta de Pera, Quinta de Baixo, actualmente Rua de São Pedro da Caparica, n.º..., na freguesia da Trafaria, concelho de Almada, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Almada sob o n.º 353, da freguesia da Trafaria, registado a favor dos vendedores pela inscrição G-2, e inscrito na matriz da referida freguesia sob o artigo 1599º; III - Pela SLE - Electricidade do Sul, SA foi facturado ao embargante o valor de Esc. 3.300$00 relativo ao consumo de 11.03.99 a 13.04.99 no prédio identificado em I; IV - Entre o embargante e o SMAS - Município de Almada foi celebrado contrato de fornecimento de água e recolha de águas residuais a 22.06.99, relativo ao mesmo prédio; V - Entre o embargante e SLE - Electricidade do Sul, SA foi celebrado contrato de fornecimento de energia eléctrica a 15.12.98, respeitante ao aludido prédio; VI - O prédio urbano referido em I tem registado em 22.12.93 a aquisição a favor de B, arresto a 03.04.98, decretado a 01.04.98 nos autos em que estes embargos correm por apenso, e aquisição a 08.05.98 a favor do aqui embargante. 3. A Relação julgou procedentes os embargos porquanto considerou que não logra aqui aplicação o conceito de terceiros para efeitos de registo, definido no acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 3/99, deste Supremo Tribunal, e posteriormente acolhido no n.º 4 do art. 5º do Cód. do Reg. Predial (1) (introduzido pelo Dec-lei 533/99, de 11/12), uma vez que o embargante e o embargado são titulares de direitos que não provêm de um mesmo transmitente comum. "Sendo assim - conclui a Relação - o embargado não é terceiro, para efeitos do disposto no art. 5º, n.º 1 do Cód. Reg. Pred., pelo que lhe é oponível o direito de propriedade não registado do embargante". O recorrente dissente deste entendimento, sustentando que, por o arresto ter sido decretado e registado antes do registo da aquisição do direito de propriedade pelo embargante/recorrido, é o registo do arresto oponível ao da aquisição da propriedade. E esta é - como se alcança das conclusões da sua alegação de recurso - a questão nuclear que se coloca à apreciação deste Supremo Tribunal. Enfrentemo-la, pois. Em matéria de registo, vigora o princípio prior tempore potior jure (princípio da prioridade), com assento no art. 6º/1: "o direito inscrito em primeiro lugar prevalece sobre os que se lhe seguirem relativamente aos mesmos bens, por ordem da data dos registos e, dentro da mesma data, pelo número de ordem das apresentações correspondentes". Os factos sujeitos a registo podem ser invocados entre as próprias partes ou seus herdeiros, mesmo que não registados (art. 4º/1). Já no que tange à oponibilidade do registo predial a terceiros prescreve o art. 5º/1 que "os factos sujeitos a registo só produzem efeitos em relação a terceiros depois da data do respectivo registo". Significa isto que, inter partes, os factos sujeitos a registo são plenamente eficazes, mesmo que não registados; para com terceiros interessados, a sua eficácia depende do registo. Importa, todavia, ter presente que o registo predial se destina essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário (art. 1º), não tendo natureza constitutiva: entre nós, os actos existem fora do registo, sendo o efeito deste simplesmente declarativo, não conferindo, a não ser excepcionalmente, quaisquer direitos. O conceito de terceiros deve reflectir, por isso, essa função declarativa do registo e ser entendido à luz das finalidades publicitárias deste. Após longa e diversificada controvérsia doutrinal e jurisprudencial, o conceito de terceiros ganhou roupagem legal com o já acima aludido Dec-lei 533/99, de 11 de Dezembro, que aditou ao art. 5º do Código o n.º 4, do teor seguinte: Terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si. Esta formulação legal é tributária de uma das posições doutrinais que, acerca do conceito, se vinham digladiando desde há muito. O próprio legislador não deixou de o assinalar, escrevendo, no preâmbulo daquele diploma: Aproveita-se, tomando partido pela clássica definição de Manuel de Andrade, para inserir no art. 5º do Código do Registo Predial o que deve entender-se por terceiros, para efeitos de registo, pondo-se cobro a divergências jurisprudenciais geradoras de insegurança sobre a titularidade dos bens. Parece, assim, irrecusável a consideração deste n.º 4 como uma norma interpretativa, o que postula a sua integração na lei interpretada, nos termos do n.º 1 do art. 13º do CC, e a sua aplicação ao caso em apreço, não obstante a dedução dos embargos (04.08.99) ter precedido a entrada em vigor do Dec-lei 533/99 (11.01.2000). Neste sentido se tem, aliás, pronunciado este Supremo Tribunal (2). Do indicado normativo decorre que o ora recorrente, titular de um direito real de garantia registado sobre imóvel anteriormente vendido ao recorrido, mas sem o subsequente registo, não é terceiro para efeitos de registo, uma vez que o seu direito e o do adquirente do imóvel não provêm de um autor comum. O mesmo entendimento fora adoptado pelo acórdão deste Supremo Tribunal n.º 3/99, de 18.05.99, (uniformizador de jurisprudência) que, revendo a doutrina fixada pelo seu homólogo 15/97, de 20.05.97, retomou, na matéria, a posição de Manuel de Andrade (3), consagrando a orientação segundo a qual a inoponibilidade de direitos a um terceiro, para efeitos de registo, pressupunha que ambos os direitos tivessem advindo de um mesmo transmitente comum, excluindo "os casos em que o direito em conflito com o direito em conflito deriva de uma diligência judicial, seja ela arresto, penhora ou hipoteca judicial" (4). Flui, pois, do que fica referido que, ocorrendo conflito entre uma aquisição por compra e venda anterior não levada ao registo e um arresto posterior registado, aquela obsta à eficácia deste último, prevalecendo sobre ele (5), e de 29.02.2000, no proc. 1091/99, da 1ª Sec.. In casu, a compra efectuada em 06.01.98, pelo embargante, aqui recorrido, apesar de ter sido levada ao registo em data posterior ao registo do arresto, produz efeitos contra o embargado, ora recorrente, podendo aquele invocar triunfantemente perante este o seu direito de propriedade. Parafraseando o aludido acórdão n.º 3/99, há que atentar em que o imóvel arrestado, no caso dos autos, já havia saído do património do devedor: a propriedade transferiu-se por mero efeito do contrato de compra e venda (que o embargado arguiu de simulado, mas sem lograr a prova da simulação), independentemente de qualquer registo. Por isso, não podia garantir dívida daquele perante o credor arrestante. Como bem alheio que é, pode o seu titular embargar de terceiro. Sustenta ainda o recorrente que o negócio de compra e venda aqui em causa é gratuito, pelo que se presume de má fé. É, porém, evidente o erro em que labora. Desde logo porque uma das características essenciais do contrato de compra e venda é, como resulta da própria definição legal do art. 874º do CC, a sua natureza de contrato oneroso. Nem, por outro lado, está provado que não tenha sido pago o preço, como alegou o recorrente. A resposta de "não provado" ao quesito 1º - O embargante satisfez o pagamento do preço referido na escritura? - não tem aquele significado. A resposta negativa a um quesito apenas significa não se ter provado o facto quesitado, e não que se tenha provado o facto contrário, tudo se passando como se aquele facto não tivesse sido alegado. Acresce que a alegação de não ter o embargante pago o preço da venda foi trazida aos autos pelo embargado, como suporte fáctico do vício de simulação do contrato de compra e venda pelo qual se operou a transferência do prédio em causa para aquele. Sobre ele impendia o ónus da prova dos factos integradores da simulação, o que não logrou satisfazer. O alegado carácter gratuito da compra e venda, foi o fundamento utilizado pela Ex.ma Juíza para julgar improcedentes os embargos, como se alcança do passo seguinte da sentença: Uma vez que não se apurou o pagamento do preço (veja-se a resposta negativa ao artigo 1º da base instrutória), tal acto é gratuito, pelo que não carece de efectuar-se a alegação e prova de que foi a mencionada compra e venda efectuada de má fé, sendo impugnável pelo credor ainda que o devedor e terceiro tivessem agido de boa fé. Assim, a impugnação que o arrestante/exequente faz da compra e venda em que o embargante funda os embargos de terceiro que deduz, tem de julgar-se procedente e, nesta medida, ser susceptível de execução o património do obrigado, nos termos preceituados no art. 616º do Código Civil. Ou seja: os embargos foram julgados improcedentes, na 1ª instância, com fundamento na procedência de impugnação pauliana da compra e venda. Mas esta questão (da impugnação pauliana) não havia sido suscitada no processo, era estranha ao objecto deste; e, não sendo de conhecimento oficioso, dela não podia ter curado a sentença da 1ª instância. Por isso mesmo, foi tal sentença fulminada pela Relação com o anátema da nulidade, em termos que se têm por incontestáveis. E o ora recorrente não reagiu contra essa parte do acórdão - contra a parte em que declarou nula a sentença - pelo que carece de sentido e não tem qualquer efeito útil retomar, é certo que sem convicção, a (errónea) tese da gratuitidade do negócio. Inócua e irrelevante é também a afirmação levada à última conclusão da alegação do recorrente. Não se vislumbra, na verdade, qual o efeito jurídico que este pretende extrair da afirmação - para mais, improvada - de que "o recorrido não habita no imóvel". 4. Nos termos que ficam expostos, nega-se a revista. Custas pelo recorrente. Lisboa,18 de Dezembro de 2003 Santos Bernardino Bettencourt de Faria Moitinho de Almeida -------------------------------- (1) São deste Código todos os normativos citados na exposição subsequente sem indicação de origem. (2) Sic, nos acórdãos de 30.04.2003, na revista 996/03, da 7ª Sec., e de 26.05.2003, na revista 1416/03, da 6ª Sec. (3) O citado acórdão 3/99 fixou a regra seguinte: Terceiros, para efeitos do disposto no artigo 5º do Código do Registo Predial, são os adquirentes, de boa fé, de um mesmo transmitente comum, de direitos incompatíveis, sobre a mesma coisa. (4) Cf. Ac. de 07.07.99, deste Supremo Tribunal, na Col. Jur. (Acs. do STJ) VII, 2, 164. (5) Neste sentido, mas com referência, não a arresto mas a penhora, cf. os Acs. deste Supremo Tribunal, de 10.02.2000 e de 17.02.2000, nos proc. 1223/99 e 1061/99, respectivamente, ambos da 2ª Sec. |