Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1012/15.5T8VRL-BD.G1.S2
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: JOSÉ RAINHO
Descritores: ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA
INSOLVÊNCIA
GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
CONTRATO-PROMESSA
DEVER DE RETENÇÃO
SOCIEDADE COMERCIAL
SÓCIO GERENTE
CONSUMIDOR
Data do Acordão: 10/17/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL –DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / GARANTIAS ESPECIAIS DAS OBRIGAÇÕES / DIREITO DE RETENÇÃO / CASOS ESPECIAIS.
Doutrina:
- Calvão da Silva, Compra e Venda de Coisas Defeituosas, conformidade e segurança, p. 111 e ss.;
- Miguel Pestana de Vasconcelos, Cadernos de Direito Privado, n.º 33, p. 3 e ss.;
- Revista de Direito da Insolvência, n.º 2, p. 136 e 137.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 755.º, N.º 1, ALÍNEA F).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA N.º 4/2019, IN DR, 1ª SÉRIE, DE 25 DE JULHO DE 2019.
Sumário :
I - Apenas as pessoas singulares, e não também as pessoas coletivas, poderão ser havidas, pelo menos em princípio, como consumidores, pelo que os créditos destas últimas não podem beneficiar, em sede de graduação de créditos em processo de insolvência, do direito de retenção previsto na alínea f) do n.º 1 do art. 755.º do Código Civil.

II - Destinando-se a fração prometida vender pelo insolvente à residência do gerente da sociedade promissária, destinou-se ainda a ser afetada aos interesses ou fins prosseguidos com a atividade societária.

III - Este destino não é identificável com o uso privado, pessoal, familiar ou doméstico subjacente ao conceito restrito de consumidor, tal como adotado no AUJ n.º 4/2019.
Decisão Texto Integral:

Processo n.º 1012/15.5T8VRL-BD.G1.S2

Revista

Tribunal recorrido: Tribunal da Relação de Guimarães

                                                           +

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção):

I - RELATÓRIO

No apenso de reclamação de créditos, formado na sequência da declaração de insolvência de AA, Lda., a correr termos no Juízo Local Cível de ... - Juiz 1 - do Tribunal Judicial da Comarca de ..., veio o Credor BB, S.A., depois substituído processualmente por CC, S.A. e DD, S.A., impugnar a lista de credores reconhecidos quanto ao crédito (no montante de € 161.124,87) da Credora EE, Lda.

Visou, entre o mais, contestar a qualificação de tal crédito como garantido pelo direito de retenção (sobre a fração autónoma designada pela letra “I”, integrante do prédio urbano sito na freguesia e concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...).

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A Credora EE, Lda. respondeu à impugnação, concluindo pela sua improcedência.

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Seguindo o procedimento seus devidos termos, veio, a final, a ser proferida sentença, onde se decidiu, no que aqui importa:

“a) julgar parcialmente precedente a impugnação suscitada pelo BB, S.A. relativamente ao crédito reconhecido sob o n.º 22, a EE, Lda., na lista da ref. n.º ... (cfr. artigo 129.°, n.º 1, do C.I.R.E.),

e, consequentemente,

b) decide-se reconhecer o crédito reclamado por EE, Lda., no montante de € 161.124,87 (…) o qual se qualifica como comum.”

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Inconformada com o assim decidido, apelou a Credora EE, Lda., sustentando que o seu crédito havia de ter sido qualificado como garantido pelo direito de retenção.

Fê-lo sem êxito, pois que a Relação de Guimarães, por maioria, confirmou a sentença.

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Mantendo-se insatisfeita, pede a Credora revista.

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Introduziu o recurso como revista excecional.

Porém, a formação a que alude o n.º 3 do art. 672.º do CPCivil mandou distribuir o recurso como revista normal, por isso que a decisão recorrida continha voto de vencido, razão pela qual não estava formada a dupla conformidade decisória que é pressuposto da revista excecional.

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No seu exame preliminar o relator considerou admissível a revista.

Juízo que aqui se reitera. Pois que, tendo a decisão recorrida sido tomada apenas por maioria e não havendo qualquer obstáculo em termos de requisitos gerais da admissibilidade dos recursos, a revista ordinária é automaticamente cabível, não havendo qualquer espaço para se falar em revista excecional.

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Da sua alegação extrai a Recorrente cento e trinta e sete conclusões.

No que realmente interessa para o caso – pois que é a única questão que está em discussão - sustenta nessas conclusões que, diferentemente do que se considerou no acórdão recorrido, assume a qualidade de consumidor no contrato-promessa de compra e venda de que emerge o seu crédito (correspondente ao montante do sinal que prestou), razão pela qual o crédito deve ser havido como garantido pelo direito de retenção.

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Não se mostra oferecida qualquer contra-alegação.

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Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

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II - ÂMBITO DO RECURSO

Importa ter presentes as seguintes coordenadas:

- O teor das conclusões define o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, sem prejuízo para as questões de oficioso conhecimento, posto que ainda não decididas;

- Há que conhecer de questões, e não das razões ou argumentos que às questões subjazam;

- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido.

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É questão a conhecer:

- Qualidade de consumidor da Recorrente e natureza do seu crédito.

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III - FUNDAMENTAÇÃO

De facto

Estão provados os factos seguintes:

1. Por sentença proferida em 10/07/2015, transitada em julgado, foi declarada a insolvência de AA, Lda.

2. Consta dos autos um documento denominado “Contrato Promessa de Compra e Venda”, na qual intervieram AA (na qualidade de gerente da insolvente) e FF e GG (na qualidade de gerentes da EE), datado de 27/09/2012, no qual foi declarado que a insolvente prometia vender, livre de quaisquer ónus e encargos, à EE, que por sua vez prometia comprar, «( ... ) a fracção autónoma “I”, habitação tipo T4, situada no 3.° andar esquerdo e andar recuado, com acesso pela entrada A, da qual fazem parte integrante dois lugares de garagem designados pelos números um e dois, situados na Cave, em regime de propriedade horizontal, do prédio urbano edificado no lote 18 do ..., da Freguesia de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ... e inscrito na matriz sob o artigo ....°», ajustando-se como preço o montante de € 235.000,00 (englobando € 161.124,87, a título de sinal e princípio de pagamento, “correspondente ao saldo devedor da primeira outorgante, na Conta Corrente dos serviços prestados pela Segunda Outorgante” e o montante de € 73.875,13, a pagar no acto da outorga do contrato prometido), estipulando-se que caberia à insolvente a marcação do negócio definitivo, convencionando-se ainda que “( ... ) a Segunda Outorgantes entra de imediato, no uso, gozo e fruição do imóvel, exercendo sobre a fracção e seus lugares de garagem todos os actos de domínio e posse, obrigando-se a promitente compradora a liquidar as despesas de condomínio, contribuição autárquica ou outros impostos, para o que ficam com as chaves do imóvel”, bem como que “(... ) no caso de incumprimento do presente contrato, por parte da Primeira Outorgante, designadamente na outorga do contrato prometido, tem a Segunda Outorgante a faculdade de exigir em dobro do que prestou a título de sinal”, e nos demais termos apostos no documento (cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido ).

3. Em 15/10/2015 o Sr. Administrador da Insolvência outorgou título de constituição de propriedade horizontal na Conservatória do Registo Predial de ..., relativamente ao prédio urbano sito na freguesia e concelho de ..., descrito Conservatória do Registo Predial sob o n.º ... e inscrito na matriz predial sob o artigo 21.°, daí resultando a constituição das frações autónomas A, B, C, D, E, F, G, H, I, J, K, L, M, N, O e P, nos termos vertidos nesse ato (cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).

4. Em 14/10/2015 o Sr. Administrador da Insolvência outorgou título de constituição de propriedade horizontal na Conservatória do Registo Predial de ..., relativamente ao prédio urbano sito na freguesia e concelho de ..., descrito Conservatória do Registo Predial sob o n.º ... e inscrito na matriz predial sob o artigo 22.°, daí resultando a constituição das frações autónomas A, B, C, D, E, F, G, H, I, J, K, L, M, N, O e P, nos termos apostos nesse acto (cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).

5. Em 15/09/2014 os prédios descritos sob os n.ºs ... e ... foram penhorados no processo executivo n.º 414/14.9TBVRL, que correu termos no Juízo de Execução de Chaves.

6. Após as penhoras efetuadas no processo n.º 414/14.9TBVRL a EE instaurou embargos de terceiro, liminarmente admitidos, cuja instância foi posteriormente julgada extinta, por inutilidade superveniente da lide.

7. As frações autónomas integrantes do prédio descrito sob o n.º ... foram apreendidas para a massa insolvente sob as verbas n.ºs 20 a 35.

8. As frações autónomas integrantes do prédio descrito sob o n.º ... foram apreendidas para a massa insolvente sob as verbas n.ºs 36 a 51.

9. Foram inscritos no registo relativo às frações autónomas integrantes do prédio descrito sob o n.º ... os seguintes factos:

- aquisição do direito de propriedade a favor da insolvente - cfr. ap. n.º 1, de 09/12/1991.

-hipoteca para garantia de todas e quaisquer obrigações ou responsabilidades, que existam ou venham a existir em nome da insolvente até ao limite de € 5.906.630,00, e emergentes de ou resultantes de operações de crédito que lhe tenham sido concedidas, ou venham a sê-lo pelo BB, por contratos de empréstimo ou de abertura de crédito, por financiamentos por livranças, por descontos de papel comercial, por crédito por assinatura, por descoberto em conta de depósitos à ordem e por créditos documentários de importação. Taxa de juro anual de 4,135 %, acrescida de 4 % em caso de mora a título de cláusula penal e despesas € 184.000,00 - cfr. ap. n.º 3043, de 07/04/2009.

10. Foram inscritos no registo relativo às frações autónomas integrantes do prédio descrito sob o n.º ... os seguintes factos:

 -aquisição do direito de propriedade a favor da insolvente - cfr. ap. n.º 1, de 09/12/1991.

- hipoteca para garantia de todas e quaisquer obrigações ou responsabilidades, que existam ou venham a existir em nome da insolvente até ao limite de € 5.906.630,00, e emergentes de ou resultantes de operações de crédito que lhe tenham sido concedidas, ou venham a sê-lo pelo BB, por contratos de empréstimo ou de abertura de crédito, por financiamentos por livranças, por descontos de papel comercial, por crédito por assinatura, por descoberto em conta de depósitos à ordem e por créditos documentários de importação. Taxa de juro anual de 4,135 %, acrescida de 4 % em caso de mora a título de cláusula penal e despesas € 184.000,00 - cfr. ap. n.º 3043, de 07/04/2009.

11. Em 23/09/2015 realizou-se assembleia de apreciação de relatório, decorrendo da ata respetiva que no decurso da diligência o Sr. Administrador da Insolvência declarou:

“( ... ) quanto à primeira questão, do cumprimento dos contratos o Sr. Administrador de Insolvência só cumpre contratos que estejam, de acordo com o art. 106° do CIRE que demonstrem eficácia real; quanto à questão de direitos de crédito com direito de retenção, só poderá fazê-lo depois de existir a propriedade horizontal do lote 17 em lote 18, e caso entenda que se verifiquem todos os pressupostos que fundamente a reclamação de crédito garantido por direito de retenção. Aquando a entrada no processo da relação definitiva de credores ( ... ).”

12. A insolvente possui como objecto social a exploração de construção civil.

13. A EE possui como objecto social a realização de instalações elétricas, montagem de redes elétricas de baixa, média e alta tensão, instalações de iluminação, sinalização e segurança, telecomunicações, ventilação, aquecimento e condicionamento de ar, reparação de artigos elétricos e eletrodomésticos.

14. A EE realizou todos os serviços de eletricidade nas obras executadas pela insolvente no período compreendido entre os anos de 2007 e 2012.

15. (...) daí resultando na conta-corrente das relações entre a insolvente e a EE um saldo a favor desta no montante de € 161.124,87, por referência a 25/09/2012.

16. Em 27/09/2012 as chaves de acesso ao edifício e ao apartamento correspondente à fração autónoma designada pela letra “I”, integrante do prédio urbano sito na freguesia e concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ..., foram entregues pelo gerente da insolvente aos representantes da EE.

17. (...) embora tenham ainda sido efetuados alguns ajustes no apartamento posteriormente pelos colaboradores da insolvente.

18. A partir do ano de 2013 o gerente da EE, GG, passou a residir no apartamento com a sua família.

19. (...) utilizando para o efeito, numa fase inicial, uma ligação à eletricidade de obra e a água de um poço utilizado pela insolvente no decurso das obras de construção dos edifícios implantados nos prédios descritos sob os n.ºs ... e ....

20. (...) deixando os colaboradores da insolvente de ter acesso ao apartamento a partir do ano de 2013.

21. Em 02/09/2015 a EE solicitou a colocação de um contador de água provisório para a fracção “I” e em 12/06/2018 foi instalado um contador de eletricidade em nome da EE para esse imóvel.

22. Quando foi entregue à EE a fração “I” encontrava-se em condições de ser habitada.

23. Com a celebração do contrato-promessa a EE pretendeu a futura aquisição do imóvel, para aí viver o seu gerente, GG.

24. Em 06/10/2014 o Sr. Agente de Execução nomeado no processo n.º 414/14.9TBVRL procedeu ao arrombamento e mudança de fechaduras das portas de acesso aos edifícios implantados nos prédios descritos sob os n.ºs ... e ....

De direito

A única questão que importa decidir no presente recurso é a da natureza, se garantido se comum, do crédito da ora Recorrente.

O acórdão recorrido entendeu que a Recorrente não detinha a qualidade de consumidor, pelo que o seu crédito não podia beneficiar do direito de retenção previsto na alínea f) do n.º 1 do art. 755.º do CCivil, antes teria que ser havido como comum.

É certo que, vista a orientação estabelecida no AUJ n.º 4/2014, tal qualidade de consumidor é imprescindível para a qualificação do crédito como garantido pelo direito de retenção.

Deverá a ora Recorrente ser havida como consumidor?

Cremos que não.

A diversidade de entendimentos acerca do conceito de consumidor acabou por levar à prolação do AUJ n.º 4/2019 (publicado no Diário da República, 1ª série, de 25 de julho de 2019). Este AUJ, depois de expressar que seria preferível a adoção de um conceito de consumidor que atendesse às notas tipológicas consagradas no art. 2.º, n.º 1, da Lei de Defesa do Consumidor (Lei n.º 24/96), definiu a seguinte orientação:

“Na graduação de créditos em insolvência, apenas tem a qualidade de consumidor, para os efeitos do disposto no Acórdão n.º 4 de 2014 (…), o promitente-comprador que destina o imóvel, objeto de traditio, a uso particular, ou seja, não o compra para revenda nem o afeta a uma atividade profissional ou lucrativa”.

Tal AUJ, adotou, pois, um conceito restrito de consumidor, de modo que será consumidor apenas o promitente-comprador de imóvel que destina o bem a uso particular (não profissional), o que, nas próprias palavras do acórdão, “corresponde dominantemente ao sujeito que o pretende adquirir para habitação”, ficando de fora todas aquelas situações em que o bem é destinado a revenda, a uso comercial ou a qualquer outra finalidade lucrativa ou profissional.

Já ia nesta linha Calvão da Silva (Compra e Venda de Coisas Defeituosas, conformidade e segurança, pp. 111 e seguintes), ao aduzir que consumidor é a “pessoa que adquire um bem ou um serviço para uso privado - uso pessoal, familiar ou doméstico (…) de modo a satisfazer necessidade pessoais e familiares, mas não já aquele que obtém ou utiliza bens ou serviços para satisfação das necessidades da sua profissão ou empresa".

Questão conexa, mas diferente (e que o dito AUJ não solucionou, até porque tal não era objeto de decisão), é a de saber se no conceito de consumidor devem também caber as pessoas coletivas. Calvão da Silva (ob. e loc. cit.) defendeu que não, esclarecendo que “…a letra da lei [Lei de Defesa do Consumidor] não especifica que o consumidor seja uma pessoa física ou pessoa singular. Normalmente, porém, a doutrina e as Directivas comunitárias excluem as pessoas colectivas ou pessoas morais. E cremos ser esta também a melhor interpretação do nº 1 do art. 2º da Lei nº 24/96: todo aquele que adquira bens ou serviços destinados a uso não profissional - ao seu uso privado, pessoal, familiar ou doméstico, portanto, por oposição a uso profissional - será uma pessoa singular, com as pessoas colectivas a adquirirem os bens ou os serviços no âmbito da sua capacidade, segundo o princípio da especialidade do escopo, para a prossecução dos seus fins, actividades ou objectos profissionais (art. 160° do Código Civil e art. 6° do Código das Sociedades Comerciais". Mais esclarecia que está subjacente à dita Lei a "ideia básica do consumidor como parte fraca, leiga, profana, a parte débil economicamente ou menos preparada tecnicamente de uma relação de consumo concluída com um contraente profissional, uma empresa". O autor concluía que «nos termos do nº 1 do art. 2º da Lei nº 24/96, deve considerar-se “consumidor todo aquele (pessoa singular) a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados (exclusivamente) a uso não profissional (…)».

Miguel Pestana de Vasconcelos (Cadernos de Direito Privado, n.º 33, pp. 3 e seguintes) sustenta que é ponderada e equilibrada, devendo orientar o intérprete na concretização do consumidor para este efeito, a definição resultante dos artigos 10.º, n.º1 e 11.º, n.ºs 1 e 2 do anteprojeto do Código do Consumidor. Assim, será consumidor a pessoa singular que atue para a prossecução de fins alheios ao âmbito de uma atividade profissional. O autor mais aduz que pode estender-se o conceito às pessoas coletivas, se provarem que não dispõem nem deveriam dispor de competência específica para a transação em causa e desde que a solução se mostre de acordo com a equidade.

O ponto de vista destes dois autores parece dever ser acolhido, de sorte que apenas as pessoas singulares poderão ser havidas, pelo menos em princípio, como consumidores, nos termos e para os efeitos em presença. De resto, em vária outra legislação tendente à proteção do consumidor (por exemplo, nos casos dos Decretos-Leis n.ºs 133/2009 [contratos de crédito aos consumidores], 74-A/2017 [regime dos contratos de crédito relativos a imóveis], 57/2008 [práticas comerciais enganosas] e 24/2014 [contratos celebrados à distância]) a lei confina declaradamente a qualidade de consumidor às pessoas singulares. E segundo se informa na Revista de Direito da Insolvência, n.º 2, pp. 136 e 137, a nível internacional a generalidade dos diplomas europeus respeitantes ao direito do consumo define consumidor como “pessoa singular que atua com fins alheios às suas atividades comerciais ou profissionais”.

Deste modo, sendo a ora Recorrente uma sociedade comercial, não será passível de ser havida como consumidor. O que afasta a possibilidade de gozar do direito de retenção por que pugna.

Mas cremos que uma outra razão sempre afastará a pretendida qualificação da Recorrente como consumidor. E essa razão está adequadamente exposta no acórdão recorrido, tal como resulta da seguinte passagem (p. 25):

“[V]erifica-se (…) que a recorrente possui como objeto social a realização de instalações elétricas, montagem de redes elétricas de baixa, média e alta tensão, instalações de iluminação, sinalização e segurança, telecomunicações, ventilação, aquecimento e condicionamento de ar, reparação de artigos elétricos e eletrodomésticos.

Mais se provou que, com a celebração do contrato-promessa, a recorrente pretendeu a futura aquisição do imóvel para aí viver o seu gerente.

Poder-se-ia daqui inferir que a promitente-compradora não destinou a fração prometida comprar a uma finalidade comercial, nem atuou na prossecução do seu objeto social, o que legitimaria a sua subsunção à qualidade de sujeito final na transação do bem, ou seja, ao preenchimento da noção de consumidor.

Todavia, ao alocar a fração prometida comprar à residência do seu gerente, essa afetação não deixa de traduzir a satisfação de um interesse societário da própria empresa, o que não se compagina com um mero uso privado ou um uso não profissional da coisa objeto do contrato prometido.”

Exatamente como se significa nesta passagem, o fim visado com o contrato-promessa em presença, embora não se identifique, na aparência ou diretamente, com o objeto social da sociedade Recorrente, tem, contudo, a ver com a atividade profissional da sociedade. Efetivamente, visou-se necessariamente com tal contratação satisfazer um interesse funcional ou organizacional da sociedade, na medida em que a fração em causa, ao ser destinada à residência do gerente, destinava-se também a ser afetada aos interesses ou aos fins inerentes à atividade da própria sociedade (vem a propósito observar que, nos termos do art. 6.º do Código das Sociedades Comerciais, a capacidade da sociedade compreende os direitos e as obrigações necessários ou convenientes à prossecução do seu fim, e não todos e quaisquer direitos e obrigações). O que, portanto, se reconduz a uma afetação que tem ainda a ver com o âmbito empresarial da Recorrente. Ora, como parece óbvio, nada disto é identificável com o uso privado, pessoal, familiar ou doméstico subjacente ao conceito restrito de consumidor, tal como adotado no citado AUJ n.º 4/2019.

Além disso, e na melhor das hipóteses para a Recorrente - posto que a admitir como bom o entendimento do segundo dos autores acima citados -, é de dizer que não há (na matéria de facto provada) o menor indício que leve a supor que a Recorrente, que é uma sociedade da mesma natureza (sociedade por quotas) da sociedade Insolvente, funcionou como parte fraca, leiga, profana, débil economicamente ou menos preparada tecnicamente na relação que estabeleceu com a promitente-vendedora. Ou seja, que lhe faltou competência específica para a transação em causa. E assim, pegando inclusivamente na própria argumentação da Recorrente – aí onde, algures na alegação que produziu no presente recurso, escreve que “É, então, «consumidor a pessoa singular (…)». Podendo estender-se o conceito às pessoas coletivas, se provarem que não dispõem nem deveriam dispor de competência específica para a transação (…)” – não pode senão concluir-se que não há qualquer fundamento para se lhe fazer estender a qualidade de consumidor.

Afigura-se, deste modo, que o acórdão recorrido ajuizou bem ao ter, confirmando a sentença da 1ª instância, considerado o crédito da Recorrente como desprovido da garantia do direito de retenção, cabendo-lhe, isso sim, a natureza de crédito comum.

Consequentemente, improcede o recurso.

IV - DECISÃO

Pelo exposto acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista, confirmando o acórdão recorrido.

Regime de custas:

A Recorrente é condenada nas custas do presente recurso.

                                                           +

Sumário (art.s 663º, nº 7 e 679º do CPCivil).

                                                           ++

Lisboa, 17 de outubro de 2019

José Rainho (Relator)

Graça Amaral

Henrique Araújo