Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
417/10.2TTVNF.P1.S1
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: PINTO HESPANHOL
Descritores: DESPEDIMENTO COM JUSTA CAUSA
DIREITO A RESERVA SOBRE A INTIMIDADE
PROTECÇÃO DE DADOS
DEVER DE LEALDADE
Data do Acordão: 06/20/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Indicações Eventuais: PARECER N.º 121/80 DO CONSELHO CONSULTIVO DA PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA, PUBLICADO NO BOLETIM DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, N.º 309, PÁGINAS 121, E DIÁRIO DA REPÚBLICA, II SÉRIE, DE 25 DE FEVEREIRO DE 1982, E, MAIS RECENTEMENTE, O PARECER N.º 95/2003, DAQUELE CONSELHO CONSULTIVO, IN DIÁRIO DA REPÚBLICA, II SÉRIE, N.º 54, DE 4 DE MARÇO DE 2004.
Área Temática: DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS/ DIREITOS DA PERSONALIDADE
DIREITO CONSTITUCIONAL - DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS PESSOAIS
DIREITO DO TRABALHO - DIREITOS DE PERSONALIDADE - CESSAÇÃO DO CONTRATO
Doutrina: - GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4.ª edição revista, Coimbra Editora, 2007, p. 467.
- MANUEL DA COSTA ANDRADE, Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, Coimbra Editora, 1992, pp. 94-96.
- MONTEIRO FERNANDES, Direito do Trabalho, 12.ª edição, Almedina, Coimbra, 2005, pp. 231-234.
- PAULO MOTA PINTO, O direito à reserva sobre a intimidade da vida privada, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Volume LXIX, Coimbra, 1993, pp. 504-524.
- PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, vol. II, Coimbra Editora, 1968, p. 2.
- RITA AMARAL CABRAL, O Direito à Intimidade da Vida Privada (Breve reflexão acerca do artigo 80.º do Código Civil), Separata dos Estudos em Memória do Professor Paulo Cunha, Lisboa, 1988, pp. 26-27, 31.
- RABINDRANATH VALENTINO ALEIXO CAPELO DE SOUSA, O Direito Geral de Personalidade, Coimbra Editora, 1995, p. 323, nota 815.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 80.º, 342.º N.ºS 1 E 2, 762.º, N.º2.
CÓDIGO DO TRABALHO (CT) / 2009: - ARTIGOS 16.º., 17.º, N.º4, 126.º, N.º1, 128.º, 351.º, 381.º, 387.º, N.OS 1 E 3, 389.º, 390.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 26.º, N.º1, 53.º.
LEI N.º 67/98, DE 26 DE OUTUBRO - LEI DE PROTECÇÃO DE DADOS PESSOAIS: - ARTIGOS 14.º, N.º1, 17.º, N.º1.
(AUTORIZAÇÃO DE ISENÇÃO N.º 1/99, DISPONÍVEL IN HTTP://WWW.CNPD.PT/BIN/DECISOES/1999/HTM/ISE/ISE001-99.HTM)
Legislação Comunitária: RESOLUÇÃO 1165 (1998), APROVADA PELA ASSEMBLEIA PARLAMENTAR DO CONSELHO DA EUROPA, EM 26 DE JUNHO DE 1998, SOBRE O DIREITO À RESERVA DA VIDA PRIVADA («DROIT AU RESPECT DE LA VIE PRIVÉE» ― «RIGHT TO PRIVACY»), CUJO TEXTO INTEGRAL PODE SER CONSULTADO NO ENDEREÇO ELECTRÓNICO SEGUINTE: //ASSEMBLY.COE.INT/DOCUMENTS/ADOPTEDTEXT/TA98/ERES1165.HTM
Referências Internacionais: DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DO HOMEM:
- ARTIGO 12.º.
CONVENÇÃO EUROPEIA DOS DIREITOS DO HOMEM:
- ARTIGO 8.º, N.º1.
PACTO INTERNACIONAL SOBRE OS DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS: - ARTIGO 17.º
Sumário :
1. Perante o acervo factual provado, a divulgação do recibo de vencimento de outra trabalhadora da empresa e que foi entregue à autora, por engano, não constitui violação do direito à reserva da intimidade da vida privada daquela, nos termos estabelecidos no artigo 16.º do Código do Trabalho de 2009.

2. Uma vez que a autora não teve conhecimento dos dados relativos ao cálculo e pagamento de retribuições atinentes a outra colega de trabalho, por virtude do exercício das suas funções profissionais, mas antes em resultado de erro por parte da empregadora, não se verifica qualquer dever de sigilo profissional reportado à autora, que, assim, por virtude da provada divulgação daqueles dados pessoais da colega de trabalho, não violou o correspondente direito de protecção.

3. A conduta da autora — divulgar o recibo de vencimento de outra trabalhadora, que lhe foi entregue, por engano, e apossar-se de um documento que estava sobre a secretária do Director de Produção, fotocopiando-o e divulgando-o — violou, grave e culposamente, o dever de lealdade para com a entidade empregadora, e pôs em crise a permanência da confiança em que se alicerçava a relação de trabalho, a qual, insubsistindo, torna imediata e praticamente impossível a sua manutenção, verificando-se justa causa para o despedimento.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

                                                    I

1. Em 29 de Junho de 2010, no Tribunal do Trabalho de Vila Nova de Famalicão, Secção Única, AA, intentou acção especial de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento, nos termos do artigo 98.º-B e seguintes do Código de Processo do Trabalho, na redacção conferida pelo Decreto-Lei n.º 295/2009, de 13 de Outubro, contra BB – ..., S. A., opondo-se ao respectivo despedimento, efectivado em 14 de Junho de 2010, sendo que, frustrada a tentativa de conciliação na audiência de partes, a entidade empregadora foi notificada para apresentar articulado a motivar o despedimento e juntar o correspondente procedimento disciplinar.

A empregadora apresentou aquele articulado e o correspectivo procedimento disciplinar, alegando que o despedimento é lícito, porque a trabalhadora deu ampla publicidade ao facto de constar a atribuição de uma gratificação eventual no recibo de vencimento de outra trabalhadora da empresa, que lhe foi entregue por engano, o que provocou descontentamento geral entre os respectivos trabalhadores e originou que fossem efectuados comentários maledicentes sobre a sua colega de trabalho.

Mais alegou que, passado cerca de um mês sobre a divulgação do conteúdo daquele recibo, a dita trabalhadora, aproveitando a circunstância de ter tido acesso ao gabinete de um dos seus directores, apossou-se de um documento de acesso restrito que nele se encontrava, tendo-lhe dado publicidade, e obrigando a antecipar, por essa circunstância, uma reestruturação de funções que estava ainda a ser ponderada.

Conclui, assim, que a trabalhadora violou os seus deveres de lealdade para com a empregadora e colegas de trabalho, «divulgando as condições remuneratórias, num caso, e lançando suspeitas de infidelidade sobre quem com ela partilhou espaço de trabalho, no outro», tendo sido irremediavelmente quebrado o elo de confiança que o contrato de trabalho necessariamente pressupõe, uma vez que são insanáveis as dúvidas sobre a idoneidade da sua conduta futura, pelo que deve ser confirmada a regularidade e licitude do operado despedimento da trabalhadora.

A trabalhadora contestou, admitindo parte dos factos alegados pela ré, mas impugnou a sua ampla divulgação e as consequências invocadas pela mesma, tendo deduzido pedido reconvencional, em que pediu: a) se declarasse a ilicitude do seu despedimento; b) a condenação da ré a pagar-lhe € 2.000, a título de indemnização dos danos não patrimoniais emergentes do despedimento ilícito; c) a condenação da ré a pagar-lhe a importância correspondente ao valor das retribuições que deixou de auferir desde a data do despedimento até ao trânsito em julgado da sentença que vier a ser proferida; d) a condenação da ré a reintegrá-la «no estabelecimento da empresa, sem prejuízo da sua categoria e antiguidade, ou, em alternativa que se guarda até ao termo da discussão em audiência final de julgamento, deve ser a Ré condenada a indemnizar a A. à razão de quarenta e cinco dias de retribuição base por cada ano completo ou fracção de antiguidade, atendendo ao valor da retribuição e ao grau de ilicitude decorrente do disposto no art. 381.º do C.T., contando-se todo o tempo decorrido desde a data do despedimento até ao trânsito em julgado da decisão judicial, em quantia que no presente se liquida provisoriamente em € 31.395»; e) a condenação da ré a pagar-lhe juros de mora legais, até efectivo e integral pagamento, contados a partir da citação; f) a condenação da ré a pagar-lhe «juros à taxa anual de 5%, a acrescer aos peticionados na alínea anterior, sobre o montante pecuniário em que a final for condenada, desde o trânsito em julgado da douta sentença que vier a ser proferida e, igualmente, até integral e efectivo cumprimento».

A empregadora respondeu, aduzindo a improcedência da invocada excepção do cumprimento das obrigações contratuais e do pedido reconvencional formulado.

No despacho saneador, afirmou-se a validade da instância e procedeu-se à selecção da matéria de facto assente e controvertida, a qual foi objecto de reclamação por parte da empregadora, que foi parcialmente atendida.

Após o julgamento, no qual a trabalhadora optou pela reintegração no posto de trabalho, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e a reconvenção parcialmente procedente, absolvendo a trabalhadora do pedido de declaração da licitude do despedimento, declarando ilícito o respectivo despedimento e condenando a empregadora (1) a reintegrar a trabalhadora e a pagar-lhe (2) «todas as retribuições vencidas desde a data do despedimento e que se vençam até ao trânsito em julgado desta decisão, deduzindo-se ao montante obtido o valor que a trabalhadora tenha recebido com a cessação do contrato de trabalho e que não teria recebido se não fosse o despedimento, bem como qualquer quantia que a trabalhadora tenha recebido a título de subsídio de desemprego, sendo a quantia entregue pela empregadora à segurança social», (3) «juros de mora à taxa de 4%, sobre as quantias referidas em 2, desde a citação quanto às retribuições já vencidas na data em que esta se verificou e desde a data desta decisão quanto às retribuições entretanto vencidas, e até integral pagamento, aplicando-se qualquer alteração que venha a ser introduzida à taxa de juro civil enquanto aquele não se verificar» e (4) «juros compulsórios de 5% sobre as quantias referidas em 2 e 3 desde a data do trânsito em julgado desta decisão».

2. Inconformada, a entidade empregadora apelou para o Tribunal da Relação do Porto, que julgou o recurso de apelação procedente, revogou a sentença recorrida e declarou lícito o despedimento, absolvendo a empregadora dos pedidos contra si deduzidos, sendo contra o assim deliberado que a trabalhadora se insurge, mediante recurso de revista, no qual formulou as conclusões seguintes:

                «1.ª   A Veneranda Relação do Porto, decidindo do recurso de apelação da sentença da primeira instância, interposto pela ré, proferiu acórdão revogatório da sentença recorrida, esta emanada do Tribunal do Trabalho de Vila Nova de Famalicão, e veio declarar lícito o despedimento da autora AA levado a cabo pela ré “BB – .... S. A.”, pelo que absolveu a mesma ré dos pedidos em que foi condenada.
                  2.ª   O acórdão do Tribunal da Relação do Porto que ora se põe em crise consigna, sumariamente, o seguinte:
                      I.    Constituem justa causa de despedimento os seguintes comportamentos da trabalhadora:
                           a) Ao ser-lhe entregue, por engano, o recibo de vencimento de uma colega de trabalho e ao constatar [que] no mesmo constava uma gratificação eventual de 500,00 euros, atribuída à mencionada colega, mostrou o mesmo a dois trabalhadores, tendo tirado uma cópia do mesmo que mostrou a outro colega.
                                Tal divulgação permitiu que a generalidade dos trabalhadores da empresa tivesse conhecimento desse conteúdo e em particular que a empregadora havia atribuído à dita trabalhadora uma gratificação ocasional de 500,00 euros.
                                Tal divulgação causou na empresa grande mau estar, tendo este dado causa a paralisações, por cerca de 40 trabalhadores, por duas vezes, no dia 08/04, em tempo total de uma hora e vinte minutos, tendo como objectivo provocar que a empresa desse explicações sobre o porquê do pagamento da dita gratificação.
                                E a mesma situação — divulgação pela generalidade dos trabalhadores da empresa — gerou um clima de hostilidade em relação à trabalhadora visada, com comentário[s] relativos aos motivos pelos quais a gratificação havia sido atribuída e paga, e que não estavam relacionados com o seu desempenho profissional, situação que lhe vem infligindo sofrimento.
                           b) Cerca de um mês após, a Autora autora/trabalhadora enquanto desempenhava tarefas no gabinete do Director de Produção, leu o conteúdo de um documento que se encontrava na secretária do referido gabinete, consistente num plano de reestruturação da secção que a afectavam a ela e a um outro trabalhador, apropriou-‑se dele temporariamente, fotocopiou-o e voltou a colocá-lo na referida secretária, tendo-o exibido ao seu superior hierárquico, que, por sua vez, comunicou ao Director dos Recursos Humanos que o teor do documento era do conhecimento da trabalhadora e estava em seu poder, determinando que fossem de imediato atribuídas aos dois funcionários em causa no documento novas funções.
                     II.   Tais comportamentos são violadores do dever de lealdade para com a entidade empregadora e de respeito a uma colega de trabalho, bem como do direito de reserva da intimidade da vida privada desta ― arts. 128.º, n.º 1, alíneas a) e f), [e] 16.º, ambos do Código do Trabalho.
                    III.  A Lei da Protecção de Dados Pessoais aplica-se ao processamento das retribuições, estando vedada ao empregador e aos seus colaboradores, aqui se incluindo os restantes trabalhadores, o acesso indevido a esse dado, bem como a divulgação mesmo que legítima.
                  3.ª   A matéria de facto dada como provada pela primeira instância não foi alterada pelo Tribunal da Relação do Porto.
                  4.ª   O presente recurso versa exclusivamente matéria de direito, radicando o fundamento da revista na violação de lei substantiva, ao abrigo da al. a) do n.º 1 do art. 722.° do Cód. Proc. Civ.
                  5.ª   Os comportamentos da recorrente pretensamente constitutivos de duas causas justas de despedimento, sumariados na cláusula 2.ª antecedente, não constituem violações dos deveres de lealdade para com a entidade empregadora e de respeito a uma colega de trabalho, tal como as als. f) e a), respectivamente, do n.º 1 do art. 128.º do Cód. Trab. as configuram.
                  6.ª   Quanto ao direito à reserva da intimidade da vida privada, determina o n.º 2 do art. 16.º do Cód. Trab. que: abrange quer o acesso, quer a divulgação de aspectos atinentes à esfera íntima e pessoal das partes, nomeadamente relacionados com a vida familiar, afectiva e sexual, com o estado de saúde e com as convicções políticas e religiosas.
                  7.ª   A retribuição, ou melhor, o teor do recibo de remunerações de um trabalhador não está abrangido pela hipótese ou previsão da norma legal citada.
                  8.ª   A recorrente, que, por engano da própria empregadora na distribuição dos recibos de vencimentos mensais, recebeu em mão um documento que lhe não pertencia, mas dizia respeito a uma colega de trabalho, não estava obrigada a guardar sigilo do teor desse documento.
                  9.ª   A recorrente não cometeu um acto ilícito, de ofensa à reserva da intimidade da vida privada da referida colega, por ter exibido, só a três colegas e só parte — a existência de uma “gratificação eventual” de € 500,00 ― do teor do recibo de vencimentos de outra colega de trabalho, porque isso não colide com a esfera privada dessa colega, muito menos colide com a reserva da intimidade da vida privada, que é um conceito mais restrito que o de esfera privada do trabalhador.
                10.ª  A Lei da Protecção de Dados Pessoais, aprovada pela Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro, regula o processamento e tratamento de retribuições, prestações, abonos de funcionários ou empregados, não regula a reserva da intimidade da vida privada do trabalhador.
                11.ª  A Lei da Protecção de Dados Pessoais, aprovada pela Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro, de que o acórdão recorrido lança mão para fundamentar a decisão proferida, não é aplicável no caso em mérito.
                12.ª  Em face da matéria de facto dada como provada na douta sentença proferida na primeira instância e que o acórdão da Veneranda Relação do Porto, ora em apreço, não alterou, força é que se conclua que não se verificou justa causa de despedimento da recorrente, por não preenchimento da noção fixada pelo art. 351.º do Cód. Trab.
                13.ª  Jamais a recorrente praticou factos que, a considerarem-se ilícitos disciplinares laborais — o que se não concebe nem concede ―, se revestissem de culpa, gravidade e consequências adequadas a determinar a impossibilidade imediata e definitiva da manutenção da relação laboral.
                14.ª  Portanto — o que a título subsidiário se alega ―, sempre a decisão punitiva de despedimento seria inadequada e desproporcionada às supostas infracções e culpa da recorrente, perante o que regem os arts. 330.º, n.º 1, e 351.º, n.os 1 e 3, do Cód. Trab.
                15.ª  À luz do exposto e dos arts. 338.º e 381.º, al. c), do Cód. Trab, o despedimento da recorrente foi ilícito.
                16.ª  Consequentemente, a recorrente adquiriu o direito a receber da recorrida o valor das retribuições que deixou de auferir desde a data do despedimento até ao trânsito em julgado da douta decisão final (art. 390.º, n.º 1, do Cód. Trab.).
                17.ª  E o direito a ser reintegrada no mesmo estabelecimento da recorrida, sem prejuízo da sua categoria e antiguidade — art. 389.º, n.º 1, al. b), 1.ª parte, do Cód. Trab.
                18.ª  Outrossim, a recorrente tornou-se credora da recorrida pelos juros de mora, à taxa legal estipulada no art. 559.º, n.º 1, do Cód. Civ., e na Portaria n.º 291/03, de 8/4, ou seja, 4% ao ano, atentas as disposições legais que regulam a mora do devedor ― arts. 804.º e ss. do Cód. Civ. —, a partir da data da citação, até efectivo e integral cumprimento.
                19.ª  A recorrente tem ainda direito à sanção pecuniária compulsória prevista no n.º 4 do art. 829.º-A do Cód. Civ., que consiste em juros, à taxa anual de 5% (a repartir em partes iguais pelo recorrido e pelo Estado), a acrescer aqueloutros, sobre o montante pecuniário em que a recorrida foi condenada, desde o trânsito em julgado da douta decisão final e, igualmente, até integral e efectivo cumprimento.
                20.ª  A douta sentença proferida na primeira instância é, também, quanto à matéria de direito, inatacável.
                21.ª  O acórdão da Veneranda Relação do Porto, de que se recorre, fez uma errada interpretação e aplicação da lei.
                22.ª  O acórdão recorrido violou as normas jurídicas ínsitas nos arts. 16.º, n.º 2, 128.º, n.º 1, als. a) e f), 330.º, n.º 1, 338.º, 351.º, n.os 1 e 3, 381.º, al. c), 389.º, n.º 1, al. b), 1.ª parte, e 390.º, n.º 1, todos do Cód. Trab.
                23.ª  E deve ser revogado e substituído por outro que julgue a acção conforme é de Direito, a saber, conforme ao doutamente decidido pela primeira instância.»

A recorrida contra-alegou, defendendo a confirmação do julgado.

Neste Supremo Tribunal, o Ex.mo Procurador-Geral-Adjunto concluiu que a revista devia improceder, parecer que, notificado às partes, não obteve resposta.

3. No caso vertente, a única questão posta é a de saber se o despedimento da trabalhadora foi ilícito, por não ocorrer justa causa para aplicar tal sanção disciplinar.

Corridos os «vistos», cumpre decidir.

                                              II

1. O tribunal recorrido deu como provados os factos seguintes:
A) A empregadora dedica-se à fabricação de instrumentos e equipamentos ópticos não oftálmicos, nomeadamente, câmaras fotográficas e aparelhos de observação;
B) A trabalhadora foi admitida ao serviço da empregadora, em 01/03/1976, para, sob as ordens e direcção desta, desempenhar as funções inerentes à categoria profissional de Operadora de Máquinas Pantógrafo;
C) A trabalhadora exercia, à data do despedimento, funções de apoio ao serviço de manutenção;
D) Mediante uma retribuição mensal de base de € 598 (quinhentos e noventa e oito euros), acrescida de um subsídio de alimentação de € 5 (cinco euros), por cada dia completo de serviço efectivo;
E) No exercício das suas funções, a trabalhadora sempre prestou serviço à empregadora, nas instalações desta, sitas em Vila Nova de Famalicão;
F) No dia 15/04/2010, foi instaurado pela empregadora processo disciplinar contra a trabalhadora, junto aos autos e cujo teor aqui se considera reproduzido;
G) No dia 30/03/2010, foi entregue à trabalhadora, por engano, o recibo de vencimento da colega de trabalho CC;
I) Quando a trabalhadora analisou o recibo que lhe havia sido entregue deparou-se com uma gratificação eventual de 500 euros, atribuída a uma colega de trabalho de nome CC, tendo mostrado esse recibo a DD e EE e a cópia ao colega FF, neste caso, a pedido deste;
J) Descoberto o engano, a trabalhadora telefonou ao Sr. Eng. GG a propósito do recibo;
L) À trabalhadora, o Sr. Eng. GG respondeu que nesse dia (30/03/2010) já não tinha tempo para falar com ela, mas que a receberia no dia seguinte;
M) No dia seguinte, a trabalhadora devolveu o referido recibo ao Director de Produção, Eng. GG, bem como uma cópia que afirmou ser a única;
N) A trabalhadora devolveu o recibo ao Eng. GG no dia seguinte a este lhe ter sido entregue, numa reunião realizada com este;
O) A cópia foi entregue ao referido Eng. em momento posterior à devolução do recibo;
P) A trabalhadora, antes de ter devolvido o recibo de vencimento da colega e respectiva cópia, referiu aos três colegas de trabalho referidos em I) o que constava do seu teor e nomeadamente a existência de uma retribuição denominada gratificação eventual que dele constava, tendo mostrado o recibo a dois desses três colegas e a cópia ao terceiro deles;
Q) Todos estes colegas manifestaram descontentamento pelo facto de ter sido pago pela empresa o referido prémio àquela trabalhadora;
R) A generalidade dos trabalhadores da empresa teve conhecimento do facto ― pagamento de uma gratificação eventual a uma trabalhadora ― gerando um clima de hostilidade em relação à mesma — CC ― com comentários relativos aos motivos pelos quais a gratificação havia sido atribuída e paga, e que não estavam relacionados com o seu desempenho profissional, situação que lhe vem infligindo sofrimento;
S) Ao mesmo tempo, no grupo de trabalho que coordenava, a trabalhadora CC viu-se confrontada com diminuição de rendimento por parte das colegas, em pretensa demonstração de que “quem não recebe prémio não precisa de trabalhar tanto”;
T) Por causa desta situação, ocorreram paralisações, por cerca de 40 trabalhadores, por duas vezes, no dia 08/04, em tempo total de uma hora e vinte minutos, tendo como objectivo provocar que a empresa desse explicações sobre o porquê do pagamento da dita gratificação;
U) Ocorreu, em 12/04, um plenário que teve lugar no dia doze do mesmo mês, a que assistiram cerca de 140 trabalhadores, no qual foram colocadas questões sobre o referido pagamento;
V) A trabalhadora não podia deixar de prever que a remuneração “gratificação eventual” dele constante — pelo seu carácter inusual, personalizado e positivamente discriminatório, face ao ambiente igualitarista e sistematicamente negador do reconhecimento devido a superiores desempenhos que na fábrica se vive ― determinaria reacção por parte dos trabalhadores da empresa;
X) No dia 29/04/2010, a trabalhadora cumpria mais uma ordem de mudança de mobiliário no gabinete do Sr. Eng. GG;
Z) Sobre [e não «Sob» como, por lapso ostensivo, consta na sentença da 1.ª instância e no aresto recorrido, pois, o que se perguntava no artigo 22.º da Base Instrutória era se «Sobre uma secretária deste, notou um documento em que se mencionavam trabalhos que ela e o seu colega HH deixariam de fazer», facto que mereceu a resposta «Provado» ― cf. decisão sobre a matéria de facto, a fls. 171o que se rectifica, nos termos dos artigos 249.º e 295.º do Código Civil] uma secretária deste, notou um documento em que se mencionavam trabalhos que ela e o seu colega HH deixariam de fazer;
AA) A trabalhadora leu este documento, que consta dos autos a fls. 40 e cujo teor aqui se considera integralmente reproduzido, pegou nele e tirou uma fotocópia do mesmo e voltou a colocá-lo onde este se encontrava;
BB) Tal documento é uma folha de papel impressa, sem o timbre da empregadora e sem qualquer assinatura;
CC) A trabalhadora exibiu aquela cópia ao seu superior hierárquico que, por sua vez, comunicou ao Director dos Recursos Humanos que o teor do documento era do conhecimento da trabalhadora e estava em seu poder, determinando que fossem de imediato atribuídas aos dois funcionários em causa no documento novas funções, sendo esse o objectivo da empresa quando determinou a sua elaboração, de modo a que tais funções passassem a ser exercidas por outras pessoas;
DD) Até à instauração deste processo disciplinar não eram conhecidos litígios entre a trabalhadora e a empregadora, nunca tendo sido sujeita a qualquer processo ou sanção disciplinar em mais de 34 anos de trabalho;
EE) A trabalhadora sentiu este despedimento como uma injustiça, considerando os factos em causa os anos de serviço mantidos com a empregadora;
FF) A idade da trabalhadora constitui um obstáculo à obtenção de novo emprego em período de severa crise económica;
GG) Estes factos provocaram — e continuam a provocar ― a alteração do equilíbrio emocional da A., a sua irritação nervosa e ansiedade.
H) Do processo disciplinar referido na alínea F) faz parte a nota de culpa, [que] foi enviada à trabalhadora através de carta registada com A/R, datada de 7 de Maio de 2010, onde a recorrente imputa aquela os seguintes factos:
«1. No dia trinta de Março de 2010 foi-lhe entregue, por engano, o recibo de vencimento da colega de trabalho CC.
2. Em vez de proceder à sua imediata devolução, tratou de dar ampla publicidade à remuneração “gratificação eventual” que dele constava.
3. Tirou fotocópias,
4. E exibiu-as ostensivamente a diversos colegas, fomentando o seu descontentamento por não terem, igualmente, recebido tal prémio.
5. Só no dia seguinte o devolveu ao Director de Produção, bem como, a instâncias deste, uma cópia que afirmou ser a única.
6. Deste acto resultou um ambiente de hostilidade que diariamente se manifesta contra a trabalhadora CC, através de comentários soezes e alusões maliciosas que lhe vêm infligindo sofrimento.
7. Ao mesmo tempo, no grupo de trabalho que coordena, vê-se confrontada com diminuição de rendimento por parte das colegas, em pretensa demonstração de que “quem não recebe prémio não precisa de trabalhar tanto”.
8. A conduta da arguida determinou, por outro lado, manifestações que terão seriamente afectado valores morais e patrimoniais da arguente,
9. Encontrando-se a sua máxima expressão nas paralisações empreendidas por cerca de quarenta trabalhadores, por duas vezes, no dia oito de Abril, em tempo total de uma hora e vinte minutos,
10. Bem como no plenário que teve lugar no dia doze do mesmo mês, a que assistiram cerca de 140 trabalhadores, e esteve dominado pelo mesmo tema, durante uma hora e quinze minutos.
11. Entretanto, no dia vinte e nove do mesmo mês de Abril, enquanto desempenhava uma tarefa no gabinete do Director de Produção, Sr. Eng.º GG, ter-se-á apropriado abusivamente de um documento depositado sobre a sua secretária,
12. Consistente num plano de reestruturação da secção de Manutenção, onde trabalhava:
13. Fotocopiou-o.
14. E deu-lhe publicidade, precipitando a sua execução que, sem preparação prévia, ocasionou, também, prejuízos à arguente» [facto aditado pelo Tribunal da Relação, com a nota de que foi enunciado como alínea H), «[u]ma vez que não existe a alínea H nos factos dados como provados pelo Tribunal a quo»];
II) A Recorrente através da decisão final, entregue à trabalhadora no dia 14/06/2010, comunicou-lhe, face aos factos imputados na nota de culpa que se encontravam provados, «a decisão de aplicar a sanção de despedimento com justa causa, com efeitos imediatos».

Os factos materiais fixados pelo tribunal recorrido não foram objecto de impugnação pelas partes, nem se vislumbra qualquer das situações referidas no n.º 3 do artigo 729.º do Código de Processo Civil, pelo que será com base nesses factos que há-de ser resolvida a questão suscitada no recurso.

2. A trabalhadora alega que os comportamentos pretensamente constitutivos de justa causa de despedimento «não constituem violações dos deveres de lealdade para com a entidade empregadora e de respeito a uma colega de trabalho, tal como as als. f) e a), respectivamente, do n.º 1 do art. 128.º do Cód. Trab. as configuram», que o teor do recibo de remunerações de um trabalhador não está abrangido pela previsão do n.º 2 do artigo 16.º do Código do Trabalho e que «não cometeu um acto ilícito de ofensa à reserva da intimidade da vida privada da referida colega, por ter exibido, só a três colegas e só parte — a existência de uma “gratificação eventual” de € 500,00 ― do teor do recibo de vencimentos de outra colega de trabalho, porque isso não colide com a esfera privada dessa colega, muito menos colide com a reserva da intimidade da vida privada, que é um conceito mais restrito que o de esfera privada do trabalhador», sendo que a Lei da Protecção de Dados Pessoais, aprovada pela Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro, regula o processamento e tratamento de retribuições, prestações, abonos de funcionários ou empregados, não a reserva da intimidade da vida privada do trabalhador, não se verificando, assim, justa causa de despedimento, por não preenchimento da noção fixada pelo artigo 351.º do Código do Trabalho.

E propugna, igualmente, que jamais praticou factos que, a considerarem-se ilícitos disciplinares laborais, «se revestissem de culpa, gravidade e consequências adequadas a determinar a impossibilidade imediata e definitiva da manutenção da relação laboral», por conseguinte, «sempre a decisão punitiva de despedimento seria inadequada e desproporcionada às supostas infracções e culpa da recorrente, perante o que regem os arts. 330.º, n.º 1, e 351.º, n.os 1 e 3, do Cód. Trab.», pelo que o seu despedimento foi ilícito, tendo direito à reintegração e compensações previstas na lei.

A sentença do tribunal de primeira instância, no tocante à divulgação do teor de um recibo que pertencia a outra trabalhadora da empresa e que foi entregue à autora, por engano, considerou não existir qualquer comportamento ilícito praticado pela trabalhadora, e quanto ao facto de se ter apossado de documento depositado sobre a secretária do Director de Produção, consistente num plano de reestruturação da secção onde trabalhava, fotocopiando-o e dando-lhe publicidade, entendeu  que tal comportamento, embora violador do dever de lealdade previsto na alínea f) do n.º 1 do artigo 128.º do Código do Trabalho, atento o circunstancialismo envolvente, não assume «a gravidade que se exige para que a relação laboral se torne praticamente impossível, no sentido de ser inexigível à empregadora a manutenção do vínculo laboral», tendo concluído pela ilicitude do despedimento operado pela empregadora.

Diversamente, o aresto recorrido concluiu que o apurado comportamento da autora violou, grave e culposamente, o dever de lealdade previsto na alínea f) do n.º 1 do artigo 128.º do Código do Trabalho, e que além deste dever foram ainda violados os deveres de respeito para com outra trabalhadora, bem como o direito de reserva da intimidade da vida privada [artigo 128.º, n.º 1, alínea a), e 16.º, ambos do Código do Trabalho], «comportamentos deveras graves e que, dada [a] natureza dos mesmos, são susceptíveis de porem em causa a confiança que tem de existir entre as partes, pelo que constituem justa causa de despedimento. Na verdade, perante a gravidade destes factos não é exigível à entidade patronal que tenha uma relação de confiança laboral com a Autora, sendo, assim, impossível a manutenção da relação laboral.»

E a este propósito, teceu ainda as considerações seguintes:

                    «Que confiança pode ter uma entidade patronal numa pessoa que se praticou os factos acabados de expor?
                      É adequado e proporcional exigir à Recorrente que suporte nos seus quadros uma pessoa que praticou os factos que a Autora praticou?
                      A resposta não pode deixar de ser negativa.  
                      Inexistem, assim, razões para desvalorizar a conduta da Autora, quer sob o ponto de vista da sua ilicitude, quer da sua culpabilidade, em termos que pudessem afastar a verificação da justa causa de despedimento.
                      O comportamento da Autora, violador do dever de lealdade na sua dimensão de honestidade para com a entidade empregadora, afrontou, de forma grave, o princípio da confiança que necessariamente subjaz à relação laboral. Isto para já não falar na violação dos outros deveres relacionados com uma sua colega de trabalho.
                      Estamos perante condutas cuja gravidade só a sanção de despedimento se mostra adequada a repor o equilíbrio contratual que foi quebrado com a sua prática. A Autora destruiu de forma irremediável a confiança que a sua entidade empregadora nela depositava. Na verdade, perante os comportamentos por si assumidos é legítimo à Recorrente interiorizar a dúvida sobre a idoneidade futura da sua conduta. E a reiteração dos seus comportamentos é mais do que suficiente para interiorizar essa dúvida, pois quem não se inibe de praticar actos reiterados de deslealdade, é bem capaz de no futuro continuar nessa prática.
                      E, por isso, seria absolutamente chocante e intolerável impor à entidade patronal a continuação da relação laboral, pelo que a única sanção adequada será a do despedimento imediato da Autora.
                      O despedimento da Autora é assim a única sanção adequada a repor o equilíbrio contratual, rompido pela sua conduta lamentável.»

2.1. A proibição dos despedimentos sem justa causa recebeu expresso reconhecimento constitucional no artigo 53.º da Lei Fundamental, subordinado à epígrafe «Segurança no emprego» e inserido no capítulo III («Direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores»), do Título II («Direitos, liberdades e garantias») da Parte I («Direitos e deveres fundamentais»).

No plano infraconstitucional, estando em causa um despedimento efectuado em 14 de Junho de 2010, há que atender à disciplina legal do despedimento por facto imputável ao trabalhador contida no Código do Trabalho de 2009, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro, em vigor a partir de 17 de Fevereiro de 2009, diploma a que pertencem os demais preceitos a citar adiante, sem menção da origem.

De acordo com o n.º 1 do artigo 351.º constitui justa causa de despedimento «o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho».

O conceito de justa causa formulado neste normativo integra, segundo o entendimento generalizado tanto na doutrina, como na jurisprudência, três elementos: a) um elemento subjectivo, traduzido num comportamento culposo do trabalhador, por acção ou omissão; b) um elemento objectivo, traduzido na impossibilidade da subsistência da relação de trabalho; c) o nexo de causalidade entre aquele comportamento e esta impossibilidade.

Ora, verifica-se a impossibilidade prática da subsistência da relação laboral, quando se esteja perante uma situação de absoluta quebra de confiança entre a entidade patronal e o trabalhador, susceptível de criar no espírito do empregador a dúvida sobre a idoneidade futura da conduta daquele.

Na concretização do critério geral para determinação da justa causa, o n.º 2 do artigo 351.º indica alguns comportamentos do trabalhador que podem configurar justa causa de despedimento, indicação que assume clara natureza exemplificativa.

Por outro lado, os deveres do trabalhador são listados no artigo 128.º, sendo que o incumprimento baseado no comportamento ilícito e culposo do trabalhador tanto pode proceder do desrespeito de deveres principais, como o dever de realizar o trabalho com zelo e diligência [alínea c)], de deveres secundários, como o dever de velar pela conservação e boa utilização dos bens relacionados com o seu trabalho [alínea g)], ou de deveres acessórios de conduta, deduzidos do princípio geral da boa fé no cumprimento das obrigações, acolhido no n.º 2 do artigo 762.º do Código Civil e reiterado no n.º 1 do artigo 126.º do Código do Trabalho, figurando, entre eles, o dever de guardar lealdade ao empregador, nomeadamente não negociando por conta própria ou alheia em concorrência com ele, nem divulgando informações referentes à sua organização, métodos de produção ou negócios [alínea f)], que são apenas afloramentos do dever de lealdade, como flui do termo «nomeadamente» aí utilizado.

Como afirma MONTEIRO FERNANDES, «em geral, o dever de fidelidade, de lealdade ou de “execução leal” tem o sentido de garantir que a actividade pela qual o trabalhador cumpre a sua obrigação representa de facto a utilidade visada, vedando-lhe comportamentos que apontem para a neutralização dessa utilidade ou que, autonomamente, determinem situações de “perigo”(-) para o interesse do empregador ou para a organização técnico-laboral da empresa(-)», sendo que «o dever geral de lealdade tem uma faceta subjectiva que decorre da sua estreita relação com a permanência de confiança entre as partes (nos casos em que este elemento pode considerar-se suporte essencial de celebração do contrato e da continuidade das relações que nele se fundam)» e que, encarado de um outro ângulo, «apresenta também uma faceta objectiva, que se reconduz à necessidade do ajustamento da conduta do trabalhador ao princípio da boa fé no cumprimento das obrigações», «com o sentido que lhe é sinalizado pelo art. [126.º]/1 CT», donde promana, «no que especialmente respeita ao trabalhador, o imperativo de uma certa adequação funcional — razão pela qual se lhe atribui um cariz marcadamente objectivo — da sua conduta à realização do interesse do empregador, na medida em que esse interesse esteja “no contrato”, isto é, tenha a sua satisfação dependente do cumprimento (e do modo do cumprimento) da obrigação assumida pela contraparte» (Direito do Trabalho, 12.ª edição, Almedina, Coimbra, 2005, pp. 231-234).

Tal como determina o n.º 3 do artigo 351.º, «[p]ara apreciação da justa causa deve atender-se, no quadro de gestão da empresa, ao grau de lesão dos interesses do empregador, ao carácter das relações entre as partes ou entre o trabalhador e os seus companheiros e às demais circunstâncias que no caso se mostrem relevantes».

Nesta conformidade, a determinação em concreto da justa causa resolve-se pela ponderação de todos os interesses em presença, face à situação de facto que a gerou. Há justa causa quando, ponderados esses interesses e as circunstâncias do caso que se mostrem relevantes — intensidade da culpa, gravidade e consequências do comportamento, grau de lesão dos interesses do empregador, carácter das relações entre as partes —, se conclua pela premência da desvinculação.

Por conseguinte, o conceito de justa causa liga-se à inviabilidade do vínculo contratual, e corresponde a uma crise contratual extrema e irreversível.

Refira-se que, na acção de impugnação do despedimento, o ónus probatório cabe ao trabalhador quanto à existência do contrato de trabalho e ao despedimento, recaindo sobre o empregador quanto à verificação da justa causa de despedimento (artigos 342.º, n.os 1 e 2, do Código Civil e 387.º, n.os 1 e 3, do Código do Trabalho).

2.2. Resulta da matéria de facto apurada que, no dia 30 de Março de 2010, foi entregue à trabalhadora, por engano, o recibo de vencimento de uma sua colega de trabalho e que, analisando o recibo que lhe havia sido entregue, verificou que era atribuída uma gratificação eventual de 500 euros à mesma colega, «tendo mostrado esse recibo a DD e EE e a cópia ao colega FF, neste caso, a pedido deste», sendo que, no dia seguinte, devolveu o referido recibo ao Director de Produção, Eng. GG, bem como uma cópia que afirmou ser a única, em momento posterior à devolução do recibo, numa reunião realizada com aquele director [factos provados G), I) e M) a O)].
           
Também ficou demonstrado que:

             «P)   A trabalhadora, antes de ter devolvido o recibo de vencimento da colega e respectiva cópia, referiu aos três colegas de trabalho referidos em I) o que constava do seu teor e nomeadamente a existência de uma retribuição denominada gratificação eventual que dele constava, tendo mostrado o recibo a dois desses três colegas e a cópia ao terceiro deles;
               R)   A generalidade dos trabalhadores da empresa teve conhecimento do facto ― pagamento de uma gratificação eventual a uma trabalhadora ― gerando um clima de hostilidade em relação à mesma — CC ― com comentários relativos aos motivos pelos quais a gratificação havia sido atribuída e paga, e que não estavam relacionados com o seu desempenho profissional, situação que lhe vem infligindo sofrimento;
               S)   Ao mesmo tempo, no grupo de trabalho que coordenava, a trabalhadora CC viu-se confrontada com diminuição de rendimento por parte das colegas, em pretensa demonstração de que “quem não recebe prémio não precisa de trabalhar tanto”;
               T)   Por causa desta situação, ocorreram paralisações, por cerca de 40 trabalhadores, por duas vezes, no dia 08/04, em tempo total de uma hora e vinte minutos, tendo como objectivo provocar que a empresa desse explicações sobre o porquê do pagamento da dita gratificação;
               V)   A trabalhadora não podia deixar de prever que a remuneração “gratificação eventual” dele constante — pelo seu carácter inusual, personalizado e positivamente discriminatório, face ao ambiente igualitarista e sistematicamente negador do reconhecimento devido a superiores desempenhos que na fábrica se vive ― determinaria reacção por parte dos trabalhadores da empresa;
               X)   No dia 29/04/2010, a trabalhadora cumpria mais uma ordem de mudança de mobiliário no gabinete do Sr. Eng. GG;
               Z)   Sobre uma secretária deste, notou um documento em que se mencionavam trabalhos que ela e o seu colega HH deixariam de fazer;
             AA)  A trabalhadora leu este documento, que consta dos autos a fls. 40 e cujo teor aqui se considera integralmente reproduzido, pegou nele e tirou uma fotocópia do mesmo e voltou a colocá-lo onde este se encontrava;
             BB)  Tal documento é uma folha de papel impressa, sem o timbre da empregadora e sem qualquer assinatura;
             CC)  A trabalhadora exibiu aquela cópia ao seu superior hierárquico que, por sua vez, comunicou ao Director dos Recursos Humanos que o teor do documento era do conhecimento da trabalhadora e estava em seu poder, determinando que fossem de imediato atribuídas aos dois funcionários em causa no documento novas funções, sendo esse o objectivo da empresa quando determinou a sua elaboração, de modo a que tais funções passassem a ser exercidas por outras pessoas;
             DD) Até à instauração deste processo disciplinar não eram conhecidos litígios entre a trabalhadora e a empregadora, nunca tendo sido sujeita a qualquer processo ou sanção disciplinar em mais de 34 anos de trabalho.»

2.2.1. O direito à reserva da intimidade da vida privada, como direito fundamental inerente à própria dignidade do Homem, é proclamado nos diversos instrumentos internacionais de protecção dos direitos do Homem (a Declaração Universal dos Direitos do Homem faz-lhe referência no artigo 12.º, estando também consagrado no artigo 17.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e no n.º 1 do artigo 8.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem).

A Constituição, no n.º 1 do artigo 26.º, com a epígrafe «Outros direitos pessoais», consagra o direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar como direito fundamental pessoal, reconhecendo a todos «os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação».
Segundo GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, «o direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar analisa-se principalmente em dois direitos menores: (a) o direito a impedir o acesso de estranhos a informações sobre a vida privada e familiar e (b) o direito a que ninguém divulgue as informações que tenha sobre a vida privada e familiar de outrem» (Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4.ª edição revista, Coimbra Editora, 2007, p. 467).

Tem-se entendido que «a reserva da vida privada que a lei protege compreende os actos que devem ser subtraídos à curiosidade pública, por naturais razões de resguardo e melindre, como os sentimentos, os afectos, os costumes da vida e as vulgares práticas quotidianas, as dificuldades próprias da difícil situação económica e as renúncias que implica e até por vezes o modo particular de ser, o gosto pessoal de simplicidade que contraste com certa posição económica ou social; os sentimentos, acções e abstenções que fazem parte de um certo modo de ser e estar e que são condição da realização e do desenvolvimento da personalidade. Tratar-se-á, numa delimitação possível ou de simples referência de critérios, dos sectores ou acontecimentos da vida de cada indivíduo relativamente aos quais é legítimo supor que a pessoa manifeste uma exigência de discrição como expressão de um direito ao resguardo» (cf. Parecer n.º 121/80 do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 309, páginas 121, e Diário da República, II Série, de 25 de Fevereiro de 1982, e, mais recentemente, o Parecer n.º 95/2003, daquele Conselho Consultivo, in Diário da República, II Série, n.º 54, de 4 de Março de 2004, que se acompanhará na subsequente exposição).

No entanto, a delimitação do conceito de vida privada não é fácil — sobre a dificuldade de definição de um conceito de privacidade e as diversas dimensões do conceito de «privacy», que alguns definem como o «direito a ser deixado só ou a ser deixado em paz», cf. PAULO MOTA PINTO, O direito à reserva sobre a intimidade da vida privada, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Volume LXIX, Coimbra, 1993, pp. 504-524, e a Resolução 1165 (1998), aprovada pela Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, em 26 de Junho de 1998, sobre o direito à reserva da vida privada («droit au respect de la vie privée» ― «Right to privacy»), cujo texto integral pode ser consultado no endereço electrónico seguinte: //assembly.coe.int/documents/adoptedtext/ta98/eres1165.htm ― sendo a extensão da reserva variável em função de circunstâncias concretas e da maior ou menor notoriedade das pessoas envolvidas.

Assim o exprime, aliás, o artigo 80.º do Código Civil, que, depois de afirmar que «todos devem guardar reserva quanto à intimidade da vida privada de outrem» (n.º 1), apresenta dois critérios de que poderá socorrer-se o intérprete na delimitação do âmbito de tutela do direito à intimidade da vida privada, dispondo que «a extensão da reserva é definida conforme a natureza do caso e a condição das pessoas» (n.º 2).

De facto, a notoriedade de certas pessoas reduz o objecto do direito de reserva à intimidade da vida privada. A relevância social de certas pessoas, pelas funções que desempenhem, pela profissão que exercem, pela celebridade que alcançaram ou pela proeminência social que atingiram, pode justificar que factos ou circunstâncias da vida privada e peculiaridades que esta apresente sejam transmitidos ao conhecimento do público por exigências de interesse público. Em tais casos, a colectividade tem interesse, que deve ser considerado legítimo, em conhecer factos da vida de personagens que, consciente ou inconscientemente, ou mesmo por força da natureza das relações sociais, se expõem à publicidade. Nestes casos, e muito embora a reserva da intimidade conserve sempre um círculo inultrapassável, «a vida privada tenderá a abranger menos aspectos e a ser mais limitada do que a das pessoas que cultivam o que LYON-CAEN chamou de jardim secreto, ou seja, que vêem no anonimato e na conservação de uma esfera de isolamento, condições indispensáveis à sua felicidade» — cf. RITA AMARAL CABRAL, O Direito à Intimidade da Vida Privada (Breve reflexão acerca do artigo 80.º do Código Civil), Separata dos Estudos em Memória do Professor Paulo Cunha, Lisboa, 1988, pp. 26-27.

Por outro lado, a extensão da reserva é também condicionada pela natureza do caso. Trata-se não já de atender a elementos subjectivos, mas a caracteres objectivos; de traços específicos que caracterizam e envolvem uma determinada situação concreta independentemente da pessoa considerada. Serão os casos, em princípio, de actos ocorridos em público, acessíveis, por isso, ao conhecimento e à apreensão de quem os tenha observado, ou o carácter histórico de determinado evento. O critério objectivo inerente à natureza do caso significará que não será admissível que interesse à reserva tudo quanto é exterior ao sujeito, no sentido de que não pode ser individualizado o que, por definição, é público.

Mas isto apenas como critério geral. É que não será possível admitir que elementos da vida privada de uma pessoa se tornem em actividades públicas pelo simples facto de a pessoa se encontrar em lugar público ou acessível ao público.
 
Por isso, afigura-se útil aplicar na densificação do conceito de vida privada a chamada «teoria dos três graus ou das três esferas», de criação jurisprudencial alemã.

Segundo essa construção, podem diferenciar-se: a esfera da vida íntima ou da intimidade, correspondente a um domínio inviolável e intangível da vida privada, subtraído ao conhecimento de outrem; a esfera da vida privada propriamente dita, que abrange factos que cada um partilha com um núcleo limitado de pessoas; e a esfera da vida pública ou da vida normal de relação, envolvendo factos susceptíveis de serem conhecidos por todos, que respeita à participação de cada um na vida da colectividade (cf. MANUEL DA COSTA ANDRADE, Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, Coimbra Editora, 1992, pp. 94-96).
O direito à reserva sobre a intimidade da vida privada tutela a primeira esfera, «mas já não abrangerá a actividade profissional que, tendo relações estreitíssimas com a pessoa, constitui, simultaneamente, uma das mais importantes manifestações da sua actividade social e cívica» (cf. RITA AMARAL CABRAL, ibidem, p. 31, e RABINDRANATH VALENTINO ALEIXO CAPELO DE SOUSA, O Direito Geral de Personalidade, Coimbra Editora, 1995, p. 323, nota 815).

Tudo para concluir que, perante o acervo factual provado, a divulgação do recibo de vencimento de outra trabalhadora da empresa e que foi entregue à autora, por engano, não constitui violação do direito à reserva da intimidade da vida privada daquela, nos termos estabelecidos no artigo 16.º do Código do Trabalho de 2009 e de harmonia com o qual «[o] empregador e o trabalhador devem respeitar os direitos de personalidade da contraparte, cabendo-lhes, designadamente, guardar reserva quanto à intimidade da vida privada» (n.º 1), e que «abrange quer o acesso, quer a divulgação de aspectos atinentes à esfera íntima e pessoal das partes, nomeadamente relacionados com a vida familiar, afectiva e sexual, com o estado de saúde e com as convicções políticas e religiosas» (n.º 2).

2.2.2. Mas já estará em causa, neste aspecto, o direito à protecção de dados pessoais, contido no artigo 17.º do Código do Trabalho de 2009, o qual estipula, no seu n.º 4, que «os ficheiros e acessos informáticos utilizados pelo empregador para tratamento de dados pessoais do candidato a emprego ou trabalhador ficam sujeitos à legislação em vigor relativa à protecção de dados pessoais».

Tal como fundada e desenvolvidamente se conclui no aresto recorrido, a Lei da Protecção de Dados Pessoais, aprovada pela Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro, aplica-se ao processamento das retribuições (cf. a Autorização de Isenção n.º 1/99, disponível in http://www.cnpd.pt/bin/decisoes/1999/htm/ise/ise001-99.htm), devendo o empregador, responsável pelo tratamento dos dados pessoais referentes ao cálculo e pagamento de retribuições, prestações acessórias, outros abonos e gratificações, «pôr em prática as medidas técnicas e organizativas adequadas para proteger os dados pessoais contra a destruição, acidental ou ilícita, a perda acidental, a alteração, a difusão ou o acesso não autorizados, nomeadamente quando o tratamento implicar a sua transmissão por rede, e contra qualquer outra forma de tratamento ilícito» (artigo 14.º, n.º 1, da Lei de Protecção de Dados Pessoais), sendo que «[o]s responsáveis do tratamento de dados pessoais, bem como as pessoas que, no exercício das suas funções, tenham conhecimento dos dados pessoais tratados, ficam obrigados a sigilo profissional, mesmo após o termo das suas funções» (artigo 17.º, n.º 1, da citada Lei).

No caso concreto, uma vez que a autora não teve conhecimento dos dados relativos ao cálculo e pagamento de retribuições atinentes a outra colega de trabalho, por virtude do exercício das suas funções profissionais, mas antes em resultado de erro por parte da empregadora, que era a responsável pelo tratamento automatizado e pela protecção dos sobreditos dados pessoais, não se verifica qualquer dever de sigilo profissional reportado à autora, que, assim, por via da divulgação dos referidos dados pessoais da colega de trabalho, não violou o correspondente direito de protecção.

Refira-se, ainda, neste plano de consideração, que não resulta da matéria de facto provada que sejam de imputar à autora os comentários relativos aos motivos pelos quais a gratificação havia sido atribuída e paga à sua colega de trabalho, «e que não estavam relacionados com o seu desempenho profissional, situação que lhe vem infligindo sofrimento [àqueloutra trabalhadora]» [facto provado R)], pelo que, neste domínio, também não vislumbra ofensa ao dever de respeitar e tratar com urbanidade e probidade a trabalhadora a quem foi paga a gratificação em causa.

2.2.3. O que se provou, afinal, é que a autora, tendo-lhe sido entregue, por engano, um recibo de vencimento de uma colega de trabalho, cuja responsabilidade de processamento e de protecção dos inerentes dados pessoais é da empregadora, em vez de o devolver, prontamente e sem delongas, aproveitou essa oportunidade para divulgar «aos três colegas de trabalho referidos em I) o que constava do seu teor e nomeadamente a existência de uma retribuição denominada gratificação eventual que dele constava, tendo mostrado o recibo a dois desses três colegas e a cópia ao terceiro deles» [facto provado P)], sendo que não podia «deixar de prever que a remuneração “gratificação eventual” dele constante […] determinaria reacção por parte dos trabalhadores da empresa», violando, por esta forma, grave e culposamente, o dever de lealdade estabelecido na alínea f) do n.º 1 do artigo 128.º do Código do Trabalho de 2009, que se reconduz, como já se aludiu supra, «à necessidade do ajustamento da conduta do trabalhador ao princípio da boa fé no cumprimento das obrigações», relacionando-se com a ideia de boa fé as ideias de fidelidade, lealdade, honestidade e confiança na realização e cumprimento dos negócios jurídicos (cf. PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, vol. II, Coimbra Editora, 1968, p. 2).

E o mesmo se deve afirmar relativamente à conduta assumida pela autora ao apossar-se de documento que se achava sobre a secretária do Director de Produção e a que teve acesso durante a execução de uma ordem de mudança de mobiliário no gabinete do referido Director, tendo a autora lido tal documento, pegado nele, tirado fotocópia do mesmo e voltado a colocá-lo onde este se encontrava [factos provados X), Z) e AA)], exibindo «aquela cópia ao seu superior hierárquico que, por sua vez, comunicou ao Director dos Recursos Humanos que o teor do documento era do conhecimento da trabalhadora e estava em seu poder, determinando que fossem de imediato atribuídas aos dois funcionários em causa no documento novas funções, sendo esse o objectivo da empresa quando determinou a sua elaboração, de modo a que tais funções passassem a ser exercidas por outras pessoas» [facto provado CC)].

Tal comportamento da autora — apossar-se de documento que estava sobre a secretária do Director de Produção, fotocopiando-o e divulgando o respectivo teor — violou, também, grave e culposamente, o dever de lealdade para com a entidade empregadora, tomado este no sentido de necessidade do ajustamento da conduta do trabalhador ao princípio da boa fé no cumprimento das obrigações (artigo 128.º, n.º 1, alínea f) do Código do Trabalho de 2009).

2.3. Verificada a existência de comportamentos ilícitos e culposos por parte da trabalhadora, terá de se ponderar se o respectivo despedimento, sanção máxima disciplinar, é proporcional à gravidade da infracção e à culpabilidade da infractora.
Nesta parametrização, o apurado comportamento da autora não pode deixar de considerar-se particularmente grave e censurável, já que, em relação aos factos ocorridos em 30 de Março de 2010, não podia deixar de prever que a divulgação da atribuição da gratificação constante do recibo de vencimento, que lhe foi entregue, por engano, «determinaria reacção por parte dos trabalhadores da empresa», o que efectivamente sucedeu, tal como se acha explicitado nos factos provados R) a V).

Acresce que, passado cerca de um mês, mais precisamente no dia 29 de Abril de 2010, a autora reiterou o seu comportamento violador do dever de lealdade para com a entidade empregadora, ao apossar-se de um documento, que estava sobre a secretária do Director de Produção, fotocopiando-o e exibindo-o ao respectivo superior hierárquico, sendo de reconhecer que a sobredita conduta, globalmente e nas circunstâncias concretas em que ocorreu, teve necessariamente como consequência a perda de confiança na autora e que, uma vez frustrada, é susceptível de criar na empregadora fortes dúvidas acerca da idoneidade futura do seu comportamento.

Refira-se, ainda, que a antiguidade da autora é, sem dúvida, um elemento a ponderar, mas não pode sobrepor-se à gravidade dos actos praticados; aliás, a dita antiguidade permitia-lhe ter plena consciência das consequências que a sua conduta iria provocar na permanência da confiança em que assentava a relação de trabalho.

Neste contexto, a autora, com o seu comportamento grave e culposo, pôs em crise a permanência da confiança em que se alicerçava a relação de trabalho e que, insubsistindo, torna imediata e praticamente impossível a respectiva manutenção, que não é razoável exigir à entidade empregadora, verificando-se, assim, justa causa para o despedimento, nos termos do artigo 351.º, n.º 1, do Código do Trabalho de 2009.

É, assim, lícito o despedimento, não tendo a autora direito a ser reintegrada, nem a qualquer compensação, na medida em que tais efeitos dependem da ilicitude do despedimento (artigos 381.º, 389.º e 390.º do Código do Trabalho de 2009).
                                              III

Pelo exposto, decide-se negar a revista e confirmar o acórdão recorrido, embora com diferente fundamentação.

Sem custas, dada a isenção de que goza a autora, nos termos do artigo 4.º, n.º 1, alínea h), do Regulamento das Custas Processuais, na redacção introduzida pela Lei n.º 7/2012, de 13 de Fevereiro, que entrou em vigor no dia 29 de Março de 2012 e que, relativamente aos processos já então pendentes, se aplica aos actos praticados a partir da sua entrada em vigor, mantendo-se a isenção de custas aplicada com base na anterior redacção daquele Regulamento (artigo 8.º, n.os 2 a 4, da Lei n.º 7/2012).

Anexa-se o sumário do acórdão, nos termos do artigo 713.º, n.º 7, do Código de Processo Civil, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto.

Lisboa, 20 de Junho de 2012


Pinto Hespanhol (Relator)

Fernandes da Silva

Gonçalves Rocha