Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03B3893
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: QUIRINO SOARES
Descritores: LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Nº do Documento: SJ200312110038937
Data do Acordão: 12/11/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 4154/03
Data: 05/29/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA.
Sumário : 1. A verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assente em provas, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico - sociológico.
2. Por outro lado, a ousadia de uma construção jurídica julgada manifestamente errada não revela, por si só, que o seu autor a apresentou como simples cortina de fumo da inanidade da sua posição processual, de autor ou réu.
3. Há que ser, pois, muito prudente no juízo sobre a má fé processual.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

1. "A", demandou a que foi sua advogada, B, para, por ela, ser indemnizada dos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes da má execução de mandato forense.
A acção terminou pela condenação da ré a pagar € 1000 de indemnização à autora e pela condenação desta na multa de € 250 e igual quantia de indemnização à ré, como litigante de má fé.
A Relação confirmou o julgado, e, agora, em revista pedida pela autora, são suscitadas as seguintes questões:
· o processo deve baixar á Relação, para que, ali, seja dado cumprimento ao artº712º, CPC (1), uma vez que, na apelação, fora pedida a reapreciação da matéria de facto;
· a recorrida não preparou devidamente a conferência de interessados do inventário em que representou a recorrente;
· a recorrente não litigou de má fé, pois, por culpa da advogada, não sabia a que se destinava a conferência de interessados.
Houve contra-alegações da recorrida, defendendo a decisão impugnada.
2. São os seguintes os factos tidos como provados nas instâncias:
· em 13 de Janeiro de 1992, a autora outorgou a favor da ré a procuração forense de fls.10, que foi apresentada nos autos de divórcio litigioso nº1038/91, em que foi autor C, ex-cônjuge da autora;
· nesses autos de divórcio, foi deduzido pedido reconvencional pela ora autora, não tendo esta, por intermédio da sua advogada, apresentado ali quaisquer meios de prova, nomeadamente o respectivo rol de testemunhas;
no mesmo processo de divórcio foi proferida sentença, certificada a fls.85 a 90;
· no processo de inventário com o nº1038-B/91, pelo cabeça-de-casal C foi apresentada a relação de bens de fls.22 a 28, sendo a verba nº1 um depósito bancário no montante de 2.646.000$00;
· no identificado processo de inventário, decorreu, no dia 11 de Janeiro de 1995, a conferência de interessados documentada a fls.19 a 21, não tendo a autora licitado sobre qualquer dos imóveis relacionados;
· a reclamação contra a relação de bens, documentada a fls.29 a 33, apresentada pela ré no mesmo processo de inventário, foi indeferida por ter sido apresentada fora do prazo legal;
· por intermédio de outro advogado, a autora obteve, em 1999, a repetição da conferência de interessados quanto aos bens imóveis relacionados;
· nessa segunda conferência, a autora ficou com três prédios, sendo um deles uma moradia e só teve de pagar tornas no valor de 3.817.950$00;
· em 10 de Março de 1993, a ré, na qualidade de mandatária da ora autora, apresentou, no Tribunal Judicial de Almada, o requerimento de fls.91 a 92-A, que deu origem ao processo tutelar cível de regulação do exercício do poder paternal respeitante à menor D, filha da ora autora e do seu ex-cônjuge, processo que tomou o nº1038-D/91;
· na conferência de pais, realizada em 14 de Abril de 1993, e no âmbito deste último processo, pelas declarações da menor foi indiciada a prática de um crime de violação o que determinou a remessa de certidão para o Ministério Público, encontrando-se pendente no 1º Juízo Criminal de Almada o respectivo processo crime, com o nº586/93.4TAALM;
· desde data não apurada, mas situada pelo menos no ano de 1993, a autora viveu angustiada e em desespero, tendo passado noites sem conseguir dormir, factos que afectaram também a sua saúde física;
· a ré falou com a autora antes da conferência de interessados acima mencionada, sobre a finalidade dessa diligência e a juíza que presidiu a esse acto, no início do mesmo, esclareceu as partes e prestou esclarecimentos às partes sobre a forma como a diligência se processaria e quanto às consequências das tomadas de posição que as mesmas entendessem aí dever assumir;
· a quantia do mencionado depósito bancário, relacionada como verba nº 1, no inventário, foi transferida, em data anterior a 11 de Janeiro de 1995, por ordem da autora, para conta de que era a única titular e onde tal quantia se manteve depositada, mesmo depois da propositura da acção de divórcio;
· a autora, confrontada com uma fotocópia do documento bancário referente à dita transferência, então exibida pelo seu ex-marido, ou pelo mandatário deste, expressamente acordou em que aquela verba nº1 lhe fosse adjudicada;
· ao longo da conferência de interessados, a ré prestou esclarecimentos à autora e aconselhou-a no sentido de que licitasse nas verbas em que estivesse interessada, nomeadamente nas verbas correspondentes a bens imóveis;
· e mesmo a juíza que presidiu à diligência, após explicar à autora, com toda a clareza, o fim e a dinâmica do processamento da conferência, concedeu-lhe todo o tempo necessário para que ela ponderasse na decisão que entendesse dever pessoalmente tomar;
· a decisão da autora de não licitar nas verbas correspondentes a bens imóveis por valor superior ao oferecido pelo cabeça-de-casal foi livre.
3. A recorrente não impugnou a decisão da matéria de facto, perante o tribunal da Relação, e, por isso, não tem razão quando afirma que o acórdão recorrido omitiu pronúncia sobre o assunto.
· Acerca da regularidade do cumprimento do mandato judicial, a recorrente, tal como na Relação, só põe em causa a actuação da recorrida na conferência de interessados do inventário subsequente ao divórcio.
Sobre isso, o acórdão recorrido foi suficientemente explícito.
Do conjunto dos factos provados a esse respeito, não se pode inferir que a recorrida foi menos diligente ou ignorante das leges artis na preparação daquele acto e posterior intervenção nele. Que tenha violado, ao fim e ao cabo, os deveres deontológicos.
· A recorrente foi condenada como litigante de má fé, por ter alegado falsamente que a recorrida lhe não explicou as consequências das licitações que iriam ter lugar, e que não a aconselhou sobre tomadas de posição ou estratégias de actuação.
O Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a entender que a garantia de um amplo direito de acesso aos tribunais e do exercício do contraditório, próprias do estado de direito, são incompatíveis com interpretações apertadas do artº456º, CPC, nomeadamente, no que respeita às regras das alíneas a e b, do nº2.
Não é, por exemplo, por se não ter provado a versão dos factos alegada pela parte e se ter provado a versão inversa, apresentada pela parte contrária, que se justifica, sem mais, a condenação da primeira por má fé.
A verdade revelada no processo é a verdade do convencimento do juiz, que sendo muito, não atinge, porém, a certeza das verdades reveladas.
Com efeito, a verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assente em provas, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico - sociológico.
Por outro lado, a ousadia de uma construção jurídica julgada manifestamente errada não revela, por si só, que o seu autor a apresentou como simples cortina de fumo da inanidade da sua posição processual, de autor ou réu.
Há que ser, pois, muito prudente no juízo sobre a má fé processual.
No caso, a prova de que a ré falou com a autora antes da conferência de interessados acima mencionada, sobre a finalidade dessa diligência, e de que, ao longo da conferência de interessados, prestou esclarecimentos à sua cliente e a aconselhou no sentido de que licitasse nas verbas em que estivesse interessada, nomeadamente nas verbas correspondentes a bens imóveis, prova que, na verdade, contraria grande parte da aludida alegação da autora, foi substancialmente apoiada em testemunhas, é, pois, o resultado do convencimento livre do juiz, e, nessa medida, serve os objectivos do processo, que são os da realização da justiça, mas já não os do controlo da honestidade processual dos intervenientes.
4. Por todo o exposto, concedem parcialmente a revista, e, em consequência, revogam a decisão recorrida na parte em que confirmou a condenação da recorrente como litigante de má fé.
Custas, aqui e na Relação, na proporção do vencido.
Em 1ª instância, como, ali, decidido.
Lisboa, 11 de Dezembro de 2003
Quirino Soares
Neves Ribeiro
Araújo Barros
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(1) Código de Processo Civil