Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
046893
Nº Convencional: JSTJ00019872
Relator: FERREIRA DIAS
Descritores: BURLA AGRAVADA
FALSIFICAÇÃO DE TÍTULO DE CRÉDITO
CONCURSO DE INFRACÇÕES
ERRO NA APRECIAÇÃO DAS PROVAS
ERRO NOTÓRIO
Nº do Documento: SJ199407060468933
Data do Acordão: 07/06/1994
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: BMJ N439 ANO1994 PAG413
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: REJEITADO O RECURSO.
Área Temática: DIR CRIM - TEORIA GERAL / CRIM C/SOCIEDADE / CRIM C/PATRIMÓNIO.
DIR PROC PENAL - RECURSOS.
Legislação Nacional: CP82 ARTIGO 72 ARTIGO 237 ARTIGO 244 N1 ARTIGO 313 ARTIGO 314 C.
CPP87 ARTIGO 410 N2 ARTIGO 426 ARTIGO 433 ARTIGO 445 N1.
LOTJ87 ARTIGO 29.
Jurisprudência Nacional: ASSENTO STJ DE 1992/02/19 IN DR DE 1992/04/09.
Sumário : I - Está fixada por assento (de 19 de Fevereiro de 1992, no Diário da República de 9 de Abril 2. série) que a burla por falsificação de documento, inclusive cheque, constitui um concurso real de infracções.
II - Só o erro evidente para o homem médio e que ressalte do próprio texto da decisão permitirá ao Supremo Tribunal de Justiça a reapreciação da prova.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
1 - Mediante acusação do Digno Magistrado do Ministério
Público, respondeu, em processo comum e com a intervenção do Tribunal Colectivo da Comarca de Viana do Castelo, o arguido A, casado, industrial, de 48 anos.
2 - Realizado o julgamento, foi ele condenado pela prática das seguintes infracções:
- um crime de falsificação previsto e punível pelos artigos 237 e 244 n. 1 do Código Penal: na pena de dois anos e seis meses de prisão; e
- um crime de burla agravada previsto e punível pelos artigos 313 e 314 alínea c) do citado diploma: na pena de três anos de prisão.
Operado o cúmulo, nos termos do artigo 78 do Código
Penal, foi o arguido condenado na pena única de quatro anos de prisão.
Foi outrossim condenado na parte fiscal.
Nos termos do artigo 14 n. 1 alínea b) da Lei n. 23/91, de 4 de Julho, declarou-se perdoado um ano de prisão.
3 - Inconformado com tal decisão, dela interpôs recurso o arguido motivando-o nos seguintes termos:
- O arguido não sabia, porque não podia saber, segundo as regras da experiência comum, que o
Banco queixoso iria pagar o cheque, falsificado após o ter visado, obtendo dessa forma um locupletamento à custa dessa instituição de crédito;
- Ao considerar como provada matéria fáctica contrária a esta, o acórdão recorrido cometeu um erro notório na apreciação da prova;
- Em consequência, deverá mandar eliminar da matéria de facto considerada assenta que é "com a alteração efectuada, o arguido sabia que o banco sacado pagaria o montante constante do cheque por ele alterado, assim obtendo um locupletamento à custa desse Banco";
- Mas, eliminada da matéria fáctica a obtenção do locupletamento do arguido à custa do banco sacado, desaparece dos autos a verificação dum prejuízo patrimonial para o queixoso, que é requisito indispensável à existência do crime de burla;
- Daí dever o arguido ser absolvido da prática do crime de burla porque se encontra condenado;
- Sem, prescindir, a melhor solução doutrinal e jurisprudencial é a que considera que a norma que prevê e pune a burla já engloba a actividade da falsificação, quando esta envolve necessariamente o erro ou engano sobre os factos astuciosamente provocados, aludidos no artigo 313 n. 1 do Código
Penal, e sendo tal engano a consequência inevitável da falsificação;
- E nesta hipótese não se pretenda que são diferentes os bens jurídicos que os dois crimes
(burla e falsificação) viram proteger, pois só em concreto se pode decidir quais são esses bens;
- Por isso, no presente caso, verifica-se o concurso aparente de infracções ou de normas que as prevêm, ou seja que o recorrente seja punido, em abstracto, com maior severidade, ou seja pela prática do crime de burla; e
- Finalmente, a confissão do arguido de relevante interesse para a descoberta da verdade, o não ocorrer muita intensidade dolosa e o facto de o arguido necessitar com urgência de estar à testa da sua indústria para evitar o seu descalabro económico e poder prover ao sustento de duas filhas de tenra idade, aconselham à diminuição da pena que lhe foi aplicada.
Contra-motivou o Ministério Público, chegando em tal destra peça processual na direcção de que o recurso não merece provimento, devendo manter-se a decisão recorrida.
4 - Subiram os autos a este Alto Tribunal e, proferido o despacho preliminar, nele se constatou que o recurso era manifestamente improcedente.
Levado o processo à conferência, depois dos vistos dos Excelentíssimos Adjuntos, cumpre apreciar e decidir:
É convalido que a este Supremo Tribunal compete, em princípio, o reexame da matéria de direito, dada a sua dignidade de Tribunal de revista e atento o que preceituam os artigos 433 e 29, respectivamente, do
Código de Processo Penal e da Lei n. 38/87, de 23 de
Dezembro.
E diremos, em princípio, exactamente porque em determinadas circunstâncias - as enumeradas nas diversas alíneas do n. 2 do artigo 410 daquele primeiro diploma - é lícito a este Supremo Tribunal imiscuir-se na matéria de facto.
O recorrente invocou, na sua motivação, a circunstância da existência de um erro notório na apreciação da prova e, consequentemente, impetra que, por via dessa anomalia, este Supremo Tribunal elimine do complexo fáctico, dado como certificado, que o arguido "sabia que o Banco sacado pagaria o montante do cheque por ele alterado, assim obtendo um locupletamento à custa desse
Banco, uma vez que tal matéria não foi provada em julgamento.
Não lhe assiste qualquer razão, pela seguinte ordem de considerações:
O erro notório na apreciação da prova como, aliás, qualquer dos outros vícios especificados, têm de resultar do próprio texto decisório - e só dele - por si ou conjugado com as regras da experiência comum.
Por outro lado, ele só existe quando tal circunstância
é de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja quando o homem médio facilmente se dá conta (confira Maia Gonçalves in Código de Processo Penal Anotado - 1992 - 5 edição - a Página 568).
Ora, debruçando-nos com toda a atenção sobre o texto da decisão, nele não se detecta qualquer erro notório na apreciação da prova, com o significado que lhe deixamos emprestado, como é lógico.
Por outra banda, mesmo que tal se verificasse - o que repudiamos - nunca a este Supremo Tribunal era permitido ordenar a supressão ou eliminação de qualquer facto dado como testificado, mas tão simplesmente, uma vez verificado o vício, determinar o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do objecto do processo ou a questões concretamente identificadas na decisão do reenvio, como expressamente impõe o artigo 426 do Código de Processo
Penal.
Assim, não se verificando o vício apontado pelo agravante nem qualquer outro, positivamente que este
Tribunal Supremo terá de considerar, como aliás se considera, como insindicável e intocável, em toda a sua plenitude, toda a matéria fáctica dada como certificada pela 1 Instância.
E, com isto, passemos ao segundo fundamento em que se alicerça o recorrente, ou seja ao problema de saber se existe ou não um concurso real de infracção entre o crime fim de burla e o crime meio de falsificação.
O apelante defendeu a tese negativa, concretizada na posição de que a norma que prevê e pune a burla já engloba a actividade da falsificação.
Também, neste aspecto, lhe padece razão.
Sustentar, como sustentou, tal doutrina o recorrente está a lutar contra jurisprudência obrigatória.
Na verdade, o Acórdão de 19 de Fevereiro de 1992, in Diário da República de 9 de Abril de 1992 veio determinar, com força obrigatória para os Tribunais Judiciais, nos termos do artigo 445 n. 1 do Código de
Processo Penal, a seguinte jurisprudência:
"...No caso de a conduta do agente preencher as previsões de falsificação e de burla do artigo 228 n. 1 alínea a), e do artigo 313 n. 1, respectivamente, do Código Penal, verifica-se concurso real ou efectivo de crime..."
"Ad cavendum" e medida das penas .
Também neste aspecto tem o recorrente de abater bandeira, na medida exacta em que não pode lograr qualquer êxito, já que as penas se apresentam criteriosa e equilibradamente doseadas e de harmonia com os cânones estatuídos no artigo 72 do Código Penal, não se vislumbrando qualquer viabilidade de serem reduzidas.
Em conclusão e para terminar:
O recurso interposto pelo arguido é manifestamente improcedente.
5 - Dest'arte e pelos expostos fundamentos, decidem os juizes deste Supremo Tribunal de Justiça rejeitar o recurso, ao abrigo dos artigos 417 n. 2 alínea c), 419 n. 4 alínea a) e 420 ns. 1 e 4 do Código de Processo
Penal.
Condena-se o agravante no pagamento de 5 UCS.
Lisboa, 6 de Julho de 1994.
Ferreira Dias;
Silva Reis;
Castanheira da Costa.
Decisão impugnada:
Acórdão de 7 de Fevereiro de 1994 do 2 Juízo de Viana do Castelo.