Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03A4098
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: AFONSO DE MELO
Descritores: VENDA EXECUTIVA
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
CADUCIDADE
Nº do Documento: SJ200401190040986
Data do Acordão: 01/19/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL GUIMARÃES
Processo no Tribunal Recurso: 445/03
Data: 03/21/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Sumário : 1. A transferência para o adquirente dos direitos do executado sobre a coisa vendida nos termos do art. 824º, n.º 1, do C.Civil, é uma aquisição derivada, tal como sucede na venda voluntária, a que se aplica o disposto no art. 1057º do mesmo Código.
2. Deve considerar-se porém o disposto no art. 819º, também do C.Civil, aplicando-se a regra do art. 1057º à locação quando registada ou constituída antes da penhora.
3. O n.º 2 do citado art. 824º não previu a caducidade do arrendamento porque o art. 1057º estabeleceu a regra da sua transmissão .
Não há assim lacuna legal que permita a sua aplicação analógica ao arrendamento
4. Não é exacto que o art. 695 do C.Civil compreende nos ónus dos bens hipotecados o arrendamento porque este caduca no caso de venda judicial, contra o disposto no art. 1057, por estar incluído na previsão do art. 824º, n.º 2.
Decisão Texto Integral: ACORDAM do Supremo Tribunal de Justiça

A "A", intentou em 18/09/2000, no Tribunal Judicial de Vila Nova de Cerveira, acção em processo comum ordinário contra B, C, D e E, pedindo que:
a) Se declare ser a legítima proprietária do prédio misto identificado no art. 4º da petição inicial
b) Se declare nulo o "contrato de arrendamento" exarado na escritura pública de 9/12/1993 documentada a fls. 25, 29.
c) Subsidiariamente, se declare a caducidade daquele contrato.
d) Se condenem os RR a restituir-lhe aquele prédio e a pagar-lhe 300.000$00 por cada mês que, a partir da citação, continuem a recusar a entrega".
Alegou, em resumo:
Adquiriu o prédio por efeito de despacho de adjudicação de 26/02/1999, proferido no processo de falência da Sociedade F, e de escritura pública de 28/06/2000.
Eram sócios daquela sociedade o irmão e cunhada do R. E, pais dos RR C e D.
Aqueles sócios e os dois filhos constituíram, em 28/04/1995, a sociedade R. B.
A sociedade F, constituiu a seu favor, por escritura pública de 9/12/1993, hipoteca, registada, sobre o prédio.
Por escritura pública de 13/02/1996, a mesma sociedade, representada pelo pai dos RR C e D, deu o prédio de arrendamento à R. B, representada pelo R C.
O contrato é nulo por simulação e ser contrário à ordem pública e ofensivo dos bons costumes.
E caducou por efeito da venda do prédio no processo de falência.
Tem sido impedida pelos RR de tomar posse do prédio, tendo com isso danos consideráveis.
Contestaram os três primeiros RR por impugnação, concluindo que deviam ser absolvidos do pedido.
Na sentença final foi julgado procedente o primeiro pedido e julgados improcedentes os restantes.
A Relação, julgando procedente a apelação da A:
a) "Declarou a caducidade do contrato de arrendamento, por via do despacho de adjudicação do imóvel à A, e o cancelamento dos respectivos direitos reais, ao abrigo dos arts. 824º, n.º 2, do C.Civil e 888º do C.P.Civil.
b) Condenou os RR a pagarem à A uma indemnização pela ocupação ilícita do imóvel, à razão de 120.000$00 por mês, desde a citação até à entrega do imóvel à A."
Nesta revista os RR contestantes concluíram.
a) O acórdão recorrido cometeu a nulidade de omissão de pronúncia nos termos do art. 668º, n.º 1 d), do CPC, pois, declarando a caducidade do contrato de arrendamento, estava compelido ex officio a declarar a sua renovação nos termos do art. 1056º do C.Civil.
b) O contrato de arrendamento não caduca nos termos do art. 824º, n.º 2, do C.Civil sucedendo o adquirente do direito com base na qual foi celebrado o contrato nos direitos e obrigações do locador, nos termos do art. 1057º do mesmo Código.
c) O acórdão recorrido, quanto à condenação no pagamento da indemnização, fez uma errada interpretação e aplicação do disposto nos arts. 483º, 562º, 564º e 566º do C.Civil, e devia ter aplicado o disposto nos arts. 1038º, alínea i), e 1045º do mesmo Código.
A recorrida alegou, sustentando a improcedência do recurso.
Remetem genericamente para a matéria de facto fixada pela Relação - arts. 713º n.º 6, e 726º do CPC.
Salientam a seguinte, que respeita concretamente ao objecto da revista:
1 - "Corre termos no Tribunal de Vila Nova de Cerveira o processo de falência da sociedade F, declarada falida em 10/10/1997.
2 - Do activo da sociedade fazia parte o prémio misto composto de um barracão com dois quartos de banho, anexo e logradouro, situado no lugar de Gontige, freguesia de Reboredo, inscrito na matriz urbana sob. n.º 323 e rústica sob o n.º 944, que a Autor adquiriu pelo preço de 20.000.000$00, por despacho da adjudicação de 26/02/1999 e da correspondente escritura de compra e venda de 28/06/2000.
3 - Tal prédio tinha sido dado de hipoteca à A., que a registou, por escritura de 9/12/1993.
4 - Por escritura pública de 13/02/1996, a F, deu de arrendamento à Ré B, mediante a renda mensal de 50 000$00, aquele prédio destinado a armazém de produtos alimentares, bebidas, tabaco, gás ou qualquer outro fim (arrendamento pelo prazo de 1 ano, renovável nos termos da lei)
5 - A Ré "B, Ldª" foi constituída por escritura pública de 28/04/1995 pelos RR C e D e seus pais.
6 - Os Réus B, C e D nunca foram notificados da escritura pública de 28/06/2000.
7 - A partir da data do primeiro leilão foi do conhecimento do A a existência do contrato de arrendamento.
8 - Na sequência da escritura de 28/06/2000, a A pretende entrar na posse do descrito prédio, tendo sido impedida pelos RR., que invocaram o contrato de arrendamento.
9 - O prédio pode ser dado de arrendamento pelo menos por 120.000.000$00 mensais."
1. Nulidade do acórdão - artºs 660º, n.º 2, primeira parte, 713º, n.º 2, 668º, n.º 1 d), primeira parte, e 716º n.º 1, do CPC.
A questão da renovação do contrato nos termos do art. 1056 do C.Civil só foi suscitada nesta revista.
Não foi assim submetida à apreciação da Relação, nem se trata de excepção de que esta devesse conhecer oficiosamente.
É assim manifestamente destituída de fundamento a arguição da nulidade.
2. Caducidade do contrato de arrendamento - art. 824º, n.º 2, do C.Civil.
O art. 824º n.º 2, do C.Civil, completado pelo art. 888º do CP Civil, dispõe sobre os efeitos da venda executiva quanto à caducidade dos direitos reais de garantia e dos direitos reais de gozo.
O arrendamento é um direito pessoal de gozo - art. 1682º A, nºs 1 a) e 2, do C.Civil.
Sujeito a registo apenas se celebrado por mais de 6 anos - art. 2º, n.º 1 m), do C.R.Predial.
O art. 1057º do C.Civil prevê a transmissão da posição contratual do locador, determinando que a locação acompanha a transmissão do direito com base no qual foi celebrado o contrato, sem prejuízo das regras do registo (emptio non tollit locatum).
Aplicável à venda no processo de falência, que se faz segundo as modalidades estabelecidas no processo de execução e onde se reconheceu também aí a necessidade de tutelar o arrendatário - arts. 170º, n.º 2, e 181º do CPEREF (1).
O adquirente, sucedendo assim nos direitos e obrigações do locador, não pode invocar a ignorância do contrato de locação, salvo se estava sujeito a registo que não foi feito, aplicando-se então o disposto no art. 1029º, n.º 2, do C.Civil, hoje art. 7º, n.º 3, do RAU, quanto ao prazo de oposição do contrato.
A venda executiva transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida - art. 824º, n.º 1, do C.Civil.
Trata-se de uma aquisição derivada, tal como sucede na venda voluntária (2).
Aplica-se-lhe o disposto no citado art. 1057º.
Deve porém considerar-se o disposto no art. 819º do mesmo Código.
Isto porque a penhora se dirige aos posteriores actos de transmissão dos direitos do executado, como observa a propósito Lebre de Freitas. (3)
Os efeitos da penhora estendem-se portanto aos efeitos de venda, havendo entre elas uma relação de prejudicialidade - dependência. (4)
Assim, deve entender-se que a regra emptio non tollit locatum estabelecida no art. 1057º do C.Civil aplica-se à locação quando registada ou constituída antes da penhora (do seu registo, entenda-se). (5)
O arrendamento que se pretende ver caducado não está sujeito a registo.
Foi anterior à declaração da falência e, assim, à posterior apreensão dos bens e registo nos termos do art. 178º do CPEREF, que aliás nem foi alegado nem se mostra provado.
Sustenta a recorrida nas suas alegações que o arrendamento caducou nos termos do art. 824º n.º 2, do C.Civil, porque:
a) Há analogia entre os direitos reais ali referidos e o arrendamento.
b) O prédio vendido judicialmente estava hipotecado.

A analogia é um meio de preenchimento de lacuna legal - art. 10º, nºs 1 e 2, do C.Civil - que aqui não há.
Não previu o art. 824º n.º 2, a caducidade do arrendamento porque o art. 1057º do mesmo Código estabeleceu a regra da sua transmissão.
Quanto à hipoteca dá-se por assente o que não está demonstrado.
Que o art. 695º do C.Civil compreende nos ónus dos bens hipotecados o arrendamento porque este caduca no caso de venda judicial, contra o disposto no art. 1057º do mesmo Código, por estar incluindo na previsão do art. 824º, n.º 2.
3. Não tendo caducado o arrendamento não tem fundamento o pedido de indemnização.
Nestes termos concedem a revista para se manter, com os fundamentos referidos, a decisão da primeira instância quanto à absolvição dos pedidos ora em discussão.
Custas pela recorrida.

Lisboa, 19 de Janeiro de 2004
Afonso de Melo
Fernandes Magalhães
Azevedo Ramos
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(1) Sobre a imposição legal protectora do arrendatário também no processo de falência, Maria do Rosário Epifânio, Os Efeitos Substantivos da Falência, p. 364.368.
(2) Lorenzo Campagna, Avente Causa, Enciclopedia Del Diritto, IV p. 601.
(3) Acção Executiva, 2ª ed. p. 213.
(4) Acção Executiva, 2ª ed. p. 213.
(5) A. Bonsignori, Effetti della vendita forzata e dell’assegnazione, p. 57-58.
Veja-se a recente redacção do art. 819º do C.Civil dada pelo DL n.º 38/03, de 8/03, confrontada com a anterior.
Neste sentido, Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, p. 390; Amâncio Ferreira, Curso de Processo Executivo, p. 410-411; Romano Martinez Venda Executiva, Aspectos do Novo Processo Civil p. 330-334.