Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5001/07.5TBALM.L1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: TÁVORA VICTOR
Descritores: ENFITEUSE
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
USUCAPIÃO
REGISTO PREDIAL
Data do Acordão: 03/26/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITOS REAIS / ENFITEUSE.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 1491.º, 1492.º, 1497.º, 1498.º, 1501.º ALÍNEAS A), B) E D) (HOJE REVOGADOS).
CÓDIGO CIVIL DE 1967: - ARTIGO 1653.º.
CÓDIGO DE REGISTO PREDIAL (CRPRED): - ARTIGO 7.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 96.º, N.º 2 (ANTERIOR 101.º)
D.L. N.º 195-A/76 DE 16 DE MARÇO, COM AS ALTERAÇÕES DA LEI N.º 22/87, DE 24-6 E DA LEI 108/97: - ARTIGO 1.º
D.L. N.º 233/76, DE 2 DE ABRIL, ALTERADO PELO D.L. N.º 82/78, DE 2 DE MAIO: - ARTIGO 1.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 17/11/2011, PROCESSO N.º 447/08.4TBCBR.C1.S1; 12-07-2011, PROCESSO N.º 899/04.1TBSTB. E1.S1; DE 24-6-2004, PROCESSO N.º 03B3843, TODOS EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I - O contrato de aprazamento ou enfiteuse, ao contrário do de arrendamento, caracterizava-se por ser um contrato perpétuo em que as pessoas que adquiriam as parcelas construíram as respectivas infra-estruturas, circunstância que se compreendia à luz da estabilidade daquele contrato.

II - Houve por parte do legislador a preocupação de facilitar a prova da enfiteuse por usucapião, mas nunca equiparar a mesma ao regime do arrendamento de longa duração.

Decisão Texto Integral:
1. RELATÓRIO.

Acordam em conferência no Supremo Tribunal de Justiça. 

AA intentou, em 26.9.2007, no Tribunal Judicial de Almada, contra Município de Almada/Câmara Municipal de Almada, acção declarativa com regime processual experimental, ao abrigo do Dec-Lei n.º 108/2006, de 8.6.

O A. alegou, em síntese, que há mais de quarenta anos é rendeiro/enfiteuta/cultivador directo das “Terras da BB” sitas na freguesia da Costa da Caparica. O R. comprou, por escrituras de 16.11.71 e 17.3.72, a chamada “Quinta do CC”, vulgo “Terras da BB”. O A. aí trabalha a terra e fez benfeitorias, nomeadamente construindo edificações, de que é proprietário e pagando renda. O A. adquiriu a propriedade das ditas parcelas de terreno por usucapião e acessão industrial, devendo o R. reconhecer-lhe tal direito.

O A. terminou pedindo que a acção fosse julgada procedente por provada e em consequência:

a) Se declarasse ser o A. o legítimo proprietário das parcelas e edificações dos autos;

b) Se condenasse o R. a reconhecer tal direito e a abster-se de quaisquer actos turbadores do seu exercício;

Mais pediu que, “em consequência”:

1. Se declarasse ser o A. legítimo enfiteuta/rendeiro/ utilizador possuidor dos seus invocados direitos e,

2. Se condenasse o R. a reconhecer ao A. os referidos direitos e, por via desse reconhecimento, se declarasse judicialmente constituída a enfiteuse, por usucapião, seguindo-se, depois, os trâmites legais relativos à extinção da enfiteuse em causa, colocando o A. na situação de pleno proprietário, radicando a propriedade plena no enfiteuta, na linha expressamente confirmada pela Constituição.

O R. contestou, negando os factos alegados pelo A. e concluindo pela improcedência da acção, por não provada e consequente absolvição do pedido.

Em 09.6.2008 foi proferido despacho em que se absolveu o R. da instância, por ilegitimidade processual passiva.

O A. agravou desse despacho e em 05.3.2009 o Tribunal da Relação revogou-o, determinando que os autos prosseguissem a sua normal tramitação.

Foi proferido saneador tabelar e procedeu-se à selecção da matéria de facto assente e controvertida.

Por despacho de 09.10.2009 foi rejeitado o rol de testemunhas entretanto apresentado pelo R., por ser extemporâneo face ao disposto no art.º 8.º n.º 5 do Dec.-Lei n.º 108/06, de 08.6.

O R. agravou deste despacho, o qual foi recebido com subida diferida.

Realizou-se audiência de discussão e julgamento e, em 13.06.2011, foi proferida sentença em que se julgou a acção procedente por provada e, em consequência, julgou-se procedente o pedido formulado e declarou-se o direito de propriedade da A. sobre a parcela “acima identificada”, condenando-se o R. a reconhecer esse direito.

O Réu apelou da sentença, apresentando alegações tendo a Relação decidido Julgar a apelação procedente e consequentemente, revogando a sentença recorrida, declarar a acção não provada e improcedente e absolvendo o R. dos pedidos.

De novo inconformado recorre, agora de revista, o Autor DD, tendo, no termo de tudo quanto alegou, pedido a revogação do Acórdão em análise.

Foram para tanto apresentadas as seguintes,

Conclusões.

1) Deparamo-nos no presente processo com uma análise comparativa ou "bifronte" de Pareceres de Jurisconsultos:

- Da autoria do Sr. Prof. Menezes Cordeiro, fls. 126-201; e da autoria do Sr. Prof. Gomes Canotilho, do Sr. Dr. Abílio Vassalo Abreu, fls. 688-998; e do Sr. Prof. Bacelar Gouveia, fls. .

2) E, enquanto o TRLx concordou com o 2º Parecer, o recorrente, por sua vez acompanha a posição do Prof. Menezes Cordeiro.

3) O A. AA sente que está bem escudado, ancorado e seguro na sabedoria do douto Parecer do Sr. Prof. Menezes Cordeiro, que prima pela brevidade, consistência e clareza histórico-jurídica.

4) Também a Sentença do TJ Almada de 13-06-2011, de fls. assentiu com o Parecer do Sr. Prof. Menezes Cordeiro, bem como com o Acórdão do TR Porto de 08-11-2010, in www.dgsi.pt.

5) Por sua vez, os interessantes estudos referidos nos Pontos 26 e 27 dão razão ao recorrente.

6) A enfiteuse é de feição multifacetada e de natureza real tendencialmente perpétua, devendo privilegiar-se os indícios materiais, em detrimento de meras qualificações vocabulares atribuídas pelos interessados.

7) Sucessivas gerações de agricultores mais que bicentenárias da Costa de Caparica fizeram prolongada e alargadamente dos solos estéreis, das areias, das dunas, as terras francas, arena-argilosas, as actuais hortas férteis da Costa de Caparica.

8) Outros querem-se apropriar delas!

9) E o A./ora recorrente, este homem agricultor da Costa de Caparica, exerceu e continua a exercer largamente a sua acção produtiva naquela terra/solo que lhe está adstrita) por sucessão/transmissão de seus antecessores mais que bicentenários.

10) Deste modo e neste contexto temporal-espacial, o A. enraizado numa sucessão hereditária mais que bicentenária foi e é enfiteuta e preencheu/preenche cumulativamente todos os requisitos legais.

11) Consequentemente, o A. AA é proprietário das parcelas/talhões cultivados nas Terras da BB da Caparica, como está correctamente reconhecido pela Sentença do TJ de Almada de 13-06-2011, de fls.

12) Com o documento que ora se requer a junção aos autos (Doc. n.º 1) Parecer técnico - económico agrário sobre capital benfeitorias em agricultura, por Alberto de Alarcão, Investigador e Professor Coordenador fica claramente comprovada a perpetuidade da relação enfitêutica com e para além da relação contratual, porquanto o contrato não esgota nem exaure a enfiteuse.

Na verdade, o contrato não aniquila a Enfiteuse.

13) As normas aplicadas pela sábia Sentença do T.I ALMADA de 13-06-2011, não enfermam seguramente de qualquer ilegalidade ou inconstitucionalidade, louvando-se o A. AA no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 159/2007, de 06- 03-2007.

14) Compete agora ao STJ desempatar a análise comparativa ou "bifronte" entre 2 Pareceres e 2 Decisões do TJ Almada e do TRlx.

15) No caso vertente está estabelecida toda a sequência de transmissão do domínio útil dos prédios rústicos e urbanos desde o bisavô até à própria justificante A., com comprovação plena da invocada "posse pública, pacífica e contínua do A. e antecessores, com o respectivo animus, integrando também o alegado regime foreiro e sua extinção, radicando a plena propriedade no A. enfiteuta e justificante.

16) E, provada essa posse, a acção teria de ser, como foi julgada procedente no TJ Almada, na sua parte útil e dinâmica, qual seja a do reconhecimento da propriedade dos ditos prédios, colocando o A. na situação de pleno proprietário, radicando a propriedade plena no enfiteuta.

17) Está ainda por apreciar e decidir a magna questão da legalidade/constitucionalidade profusamente abordada quer nos Pareceres juntos aos autos pelas partes, quer nos Acórdãos dos Tribunais Superiores expressamente referenciados pelo A. e pelo Réu Município de Almada, que revelam oposição frontal.

18) Donde, face às razões legais e constitucionais expandidas, deve decidir-se dar a revista, com as legais consequências.

Contra-alegou o Município de Almada pugnando pela manutenção do decidido em 2ª instância.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.


*

2. FUNDAMENTOS.

O Tribunal da Relação deu como provados os seguintes,

     2.1. Factos.

     2.1.1. Por escrituras públicas de compra e venda em 16/11/1971 e 17/03/1972, o Réu adquiriu a particulares a chamada “Quinta do CC”, vulgo “Terras da BB”, com a área de 67.587,75 m2 e 270.350,00 m2, respectivamente descritas na Conservatória do Registo Predial de Almada sob os nº 757, 761, 765, 767, 783, 15467, 15468, 790, 15473 e 15472, freguesia da Costa da Caparica, concelho de Almada – Alínea A) da matéria de facto assente.

    2.1.2. À data existiam explorações agrícolas nos terrenos referidos em 1. – Alínea B) da matéria de facto assente.

    2.1.3. Em 17 de Julho de 1972, o Réu dirigiu aos cultivadores das referidas terras cartas registadas com A/R para entregarem a mesmas em 30 de Setembro seguinte – Alínea C) da matéria de facto assente.

    2.1.4. Os cultivadores não entregaram as terras por considerarem que as podiam reter até serem pagos dos melhoramentos que nelas fizeram – Alínea D) da matéria de facto assente.

    2.1.5. O A., há mais de vinte anos, e os seus antecessores há mais de cem anos, através de acordo verbal celebrado com os anteriores proprietários, têm vindo a explorar e cultivar directamente o talhão nº 22, inserido no lote 1, grupo A, do prédio referido em 1. supra, com a área total de 17.310 m2, com a área de construção de 257 m2 – artigo 1º da Base Instrutória.

    2.1.6. Pelo pagamento da contrapartida anual de 7,00 – artigo 2º da Base Instrutória.

    2.1.7. Aos olhos de todos, pacificamente - artigo 3º da Base Instrutória.

    2.1.8. A mencionada parcela confronta:

    Norte - com talhão 16 e EE;

    Sul - com talhão 21 e 23;

    Este - com arriba fóssil;

    Oeste - com caminhos municipais de acesso – artigo 4º

da Base Instrutória.

2.1.9. Pelo acesso às Terras da BB passam bicicletas, motorizadas, camionetas carregadas de adubos e detritos orgânicos, quaisquer materiais para obras ou trabalhos e o produto agrícola para ser vendido nos mercados da Costa da Caparica, Almada e Lisboa – artigo 5º da Base Instrutória.

   2.1.10. FF, antecessor do Autor, fez na referida parcela as edificações aí existentes e plantou árvores.

2.1.11. É o Autor quem, há mais de 20 anos, explora e cultiva a referida parcela.

2.1.12. Desde a mencionada altura os produtos agrícolas cultivados na parcela pelo Autor são vendidos diariamente, durante todo o ano, nos mercados dos concelhos de Almada e Lisboa – artigo 8º da Base Instrutória.

2.1.13. Existe um caminho bicentenário que dá acesso à referida parcela com entrada proibida a estranhos e feito pelos antecessores do Autor – artigo 9º da Base Instrutória.

    2.1.14. Exclusivamente afecto à actividade do Autor e utilizado por si – artigo 10º da Base Instrutória.

    2.1.16. E que dá acesso à via pública – artigo 11º da Base Instrutória.

    2.1.17. Durante os últimos 20 anos o Autor erigiu edificações para habitação e apoio à sua actividade agrícola na parcela referida em 1 – artigo 13º da Base Instrutória.

     2.1.18. No que o R. nunca interferiu – art.º 14º da Base Instrutória.

     2.1.19. E aí habita numa casa – artigo 15.º da Base Instrutória.

     2.1.20. E já lá habitavam os seus ascendentes falecidos – artigo 16.º da Base Instrutória.

     2.1.21. De acordo com os valores praticados na zona, para terrenos agrícolas, a parcela aqui em causa tem um valor de cerca de € 78.000,00 – artigo 17º da Base Instrutória.

     2.1.22. De acordo com os critérios de valor de construção por m2, para o concelho de Almada, as edificações instaladas na parcela dispõem do valor de 105.000,00 – artigo 18º da Base Instrutória.


+

    

     2.2. O Direito.

     Nos termos do preceituado nos arts.º 608.º nº 2, 635.º nº 3 e 690.º nº 1 do Código de Processo Civil, e sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal. Nesta conformidade e considerando também a natureza jurídica da matéria versada, cumpre focar os seguintes pontos:

     - Breve bosquejo da questão em análise.

     - Da qualificação e alcance das relações contratuais existentes entre as partes. Solução do caso.


+

     2.2.1. Breve bosquejo da questão em análise.

    O Autor AA intentou a presente acção contra o Município de Almada pretendendo que, na sua procedência, se declare o mesmo proprietário Quinta do CC, também denominada Terras da BB. Invoca que adquiriu a propriedade das parcelas de terreno por usucapião e acessão industrial.

    O R., por seu turno, nega-se a reconhecer tal direito e pede a improcedência da acção.

     A enfiteuse de raízes antigas no direito português surge caracterizada no artigo 1491.º do Código Civil de 1967, na sua versão primitiva, onde pode ler-se que “1. Tem o nome de emprazamento, aforamento ou enfiteuse o desmembramento do direito de propriedade em dois domínios, denominados directo e útil.

     2. O prédio sujeito ao regime enfitêutico pode ser rústico ou urbano e tem o nome de prazo.

     3. Ao titular do domínio directo dá-se o nome de senhorio e ao do domínio útil, o de foreiro ou enfiteuta”.

     Na enfiteuse há a salientar ainda que ao enfiteuta cabe o dever de pagar ao senhorio anualmente o foro que em caso de enfiteuse urbana será em dinheiro.

     Com o DL 233/76 de 2 de Abril alterado posteriormente pelo DL 82/78, de 2 de Maio, foi extinta a enfiteuse, verificando-se a transmissão para a titularidade do enfiteuta do prédio deixando o domínio directo de existir na esfera jurídica do senhorio. Como decorre do artigo 1492º do Código Civil a enfiteuse tem natureza perpétua, mau grado em certos casos susceptível de remição.

     Tendo em linha de conta o pedido formulado pelo A. de constituição da enfiteuse por usucapião, os factos integrantes da mesma terão que ser aferidos em função das exigências legais, quer genéricas quer características específicas para este instituto a saber os artigos 1497º e 1498º do Código Civil, hoje revogados.   

    É perante este quadro legal acima genericamente apontado que importa dirimir as questões que nos são colocadas por A. e R., realçando também a restante legislação surgida após 25 de Abril de 1974, depois ou ainda antes da entrada em vigor da Constituição da República.


+

    2.2.2. Da qualificação e alcance das relações contratuais existentes entre as partes. Solução do caso.

     A tipificação da relação jurídica entre as partes passa pelo respectivo enquadramento na figura contratual pertinente. O A. recorrente pretende que existiu outrora um contrato de arrendamento, não adiantando qual o respectivo tipo. Se por um lado tal arrendamento não poderia qualificar-se de urbano - já que à data da respectiva celebração o terreno nada tinha edificado, tendo sido ali só posteriormente erguidas várias casas - não é menos verdade que não pode reconduzir-se o contrato à categoria de arrendamento rural, já que os locais onde foram construídas as casas em análise não tinham actividade agrícola e acabaram, aliás, por ser consideradas como parcelas de um prédio urbano.

     Por seu turno o R. sustenta que entre as partes vigorava um contrato de enfiteuse constituído ainda no domínio do Código de Seabra.

     Estatui o artigo 1653.º do Código de Seabra, que “Dá-se o contrato de aprazamento ou enfiteuse quando o proprietário de qualquer prédio transfere o seu domínio útil para outra pessoa, obrigando-se esta a pagar-lhe anualmente certa pensão determinada a que se chama foro ou cânone[1]. Estamos aqui, ao contrário do que sucede no arrendamento, perante um contrato perpétuo em que as pessoas que adquiriram as parcelas construíram as respectivas infra-estruturas, o que só se compreende à luz da estabilidade do mesmo.

    O principal traço caracterizador da relação entre o senhorio e o foreiro é a sua perpetuidade; e ainda que o contrato seja celebrado com o título de emprazamento, aforamento ou enfiteuse, se estipulado por tempo limitado, seria tido como arrendamento.

     Uma vez constituída, a enfiteuse era transmissível via hereditatis.

     O artigo 1.º do DL 233/76 de 2 de Abril veio extinguir no seu n.º 1 a enfiteuse relativa a prédios urbanos. E o n.º 2 esclarece que “o enfiteuta fica investido a partir da entrada em vigor deste Diploma na titularidade do direito da propriedade plena do prédio. O n.º 3 veda por seu turno a enfiteuse para o futuro, sendo nulos os actos tendentes à sua constituição.

     Por seu turno também o DL 195-A/76 de 16 de Março extinguiu a enfiteuse nos prédios rústicos – “é abolida a enfiteuse a que se acham sujeitos os prédios rústicos transferindo-se o domínio directo deles para o titular do domínio útil – artigo 1.º.

     Trata-se de Diplomas que de certo modo anteciparam o que veio a ser consagrado na Constituição da República Portuguesa onde se estatuía no artigo 101º - hoje no artigo 96º nº 2 – “são proibidos os regimes de aforamento e colonia e serão criadas condições aos cultivadores para a efectiva abolição do regime de parceria agrícola”.

    Contudo os estatutos do foreiro no contrato de enfiteuse e o do arrendatário são distintos; enquanto este último tem cariz obrigacional, o primeiro assume a natureza real, considerando, desde logo, para além da característica de perpetuidade já abordada, a de usar e fruir o imóvel como se fosse o seu único proprietário (artigo 1501º alínea a) a faculdade de constituir ou extinguir servidões ou o direito de superfície e ainda o poder de hipotecar o direito de superfície (artigo 1501º alínea b); o direito real de preferência na venda ou dação em cumprimento do domínio directo artigo 1501º alínea d); o direito de remição do foro;

    Finalmente o próprio modus constituendi da enfiteuse por contrato, testamento ou usucapião é diverso do do contrato de arrendamento.

    Tendo no entanto em vista atenuar de algum modo os efeitos da extinção da usucapião, foram, pela Lei nº 22/87 de 24 de Junho, introduzidos ao artigo 1º do DL 195-A/76 de 16 de Março dois outros números 4 e 5 tendo o primeiro a seguinte redacção “No caso de não haver registo anterior ou contrato escrito o registo da enfiteuse poderá fazer-se com base em usucapião reconhecida mediante justificação notarial ou judicial”.

    Por seu turno a Lei 108/97 veio introduzir no nº 5 a seguinte redacção:

     Considera-se que a enfiteuse se constituiu por usucapião se:

    a) Desde, pelo menos, 15 de Março de 1946 até à extinção da enfiteuse, o prédio rústico, ou a sua parcela, foi cultivado por quem não era proprietário com a obrigação para o cultivador de pagamento de uma prestação anual ao senhorio;

     b) Tiverem sido feitas pelo cultivador ou seus antecessores no prédio ou sua parcela benfeitorias, mesmo que depois de 16 de Março de 1976, de valor igual ou superior a, pelo menos, metade do valor do prédio ou da parcela, considerados no estado de incultos e sem atender a eventual aptidão para urbanização ou outros fins não agrícolas.»

    A legislação fazia recair sobre o titular do domínio útil, a parte mais fraca na relação, um ónus da prova particularmente difícil, desde logo tendo em linha de conta a longa abrangência temporal que a mesma teria que cobrir.   

Na verdade os factos integradores da usucapião careceriam de prova muito antiga havendo muita dificuldade em consegui-la. Assistimos assim à emergência de um conjunto de presunções legais que facilitam à parte mais débil a prova do seu direito.

    O nº 5 do normativo e Diploma citados veio balizar no tempo o período a assegurar, em ordem a que se possa verificar constituída a usucapião nos termos aludidos.

     Por seu turno o nº 6 do artigo primeiro do Diploma imediatamente citado, aditado pela   Lei 108/97, veio estatuir que “Pode pedir o reconhecimento da constituição por enfiteuse por usucapião quem tenha sucedido ao cultivador inicial por morte ou por negócio entre vivos, mesmo que sem título, desde que as sucessões hajam sido acompanhadas das correspondentes transmissões da posse.

     Assistimos assim, atenta a dificuldade probatória, à emergência de um conjunto de presunções legais que facilita à parte mais débil a prova do seu direito. O normativo e Diploma citados vieram balizar no tempo o período a assegurar em ordem a que se possa verificar completo o usucapião, isto é desde Março de 1946 até à data de extinção do instituto a que acrescem a obrigação de pagamento pelo cultivador de uma prestação anual ao senhorio e desde que tenham sido feitas as benfeitorias palpáveis devidamente quantificadas.

    O Prof. Menezes Cordeiro – em que a sentença de 1ª instância se louva - face aos normativos em análise entende que o Legislador pretendeu, com as alterações em causa, equiparar o arrendamento de longa duração à enfiteuse com dispensa de inversão do título de posse; cfr. Parecer junto a fls. 126 a 201.

    No entanto, e como o muito e merecido respeito, é nosso entendimento de que não é possível “dar o salto” que o Autor preconiza… e isto por contender com os requisitos da usucapião, considerando, desde logo, que independentemente da maior ou menor dificuldade que apresente no que toca à verificação dos respectivos requisitos, não deixa de exigir que os mesmos se encontrem verificados para que possa falar-se de usucapião, seja esta vocacionada ou não para a enfiteuse. Mas, desde logo, dos factos provados não se vislumbra sequer indiciariamente a existência de posse, elemento vital e incontornável, já que ela constitui o elemento indispensável ao cumprimento da usucapião. Acompanhamos assim in casu a tese preconizada pelo Parecer dos Profs. Gomes Canotilho e Vassalo de Abreu, isto sem desdouro do que vem doutamente referido no Parecer do Prof. Meneses Cordeiro defendendo solução oposta. Houve, por parte do Legislador, a preocupação de facilitar a prova da enfiteuse por usucapião, mas nunca equiparar a mesma ao regime do arrendamento de longa duração. Acresce até que a própria alegação dos A. se mostra algo tíbia na enumeração dos alicerces da sua tese, como bem se pode ver da pormenorização feita pela Relação a fls. 1216 s onde se explana que os conceitos de enfiteuse e arrendamento coexistem nos articulados do Autor para caracterizar a mesma realidade. Quanto à aquisição plena do terreno do Autor com base na acessão industrial imobiliária, também aqui a acção claudica, desde logo porque não é feita a prova que o Réu ao levar a cabo as obras no prédio desconhecia que o mesmo era alheio ou que estivesse para tanto autorizado pelo respectivo proprietário. Tais requisitos teriam que ser alegados e provados pelo Autor, o que não sucedeu. Tal basta também para afastar a alegação de inconstitucionalidade que o Autor pretende ver na Legislação ordinária que aboliu a enfiteuse – o DL 195-A/96 e Diplomas conexos – por violarem a orientação constitucional programática de extinção da enfiteuse. Na verdade, a legislação em causa não coarcta o que quer que seja limita-se a estabelecer uma iter para chegar a tal resultado e que passa previamente pela prova da constituição da enfiteuse já que só pode extinguir-se uma realidade consistente. Como corolário deste entendimento teremos de concluir que se encontra ilidida o estatuído no artigo 7.º do Código de Registo Predial quanto à presunção de propriedade dos AA. derivada do registo[2].

     Tal significa pois que a revista terá que ser negada.


*

3. DECISÃO.

Pelo exposto acorda-se em negar a revista.

Custas pelo recorrente.

Lisboa, 26 de Março de 2015

Távora Victor (Relator)

Granja da Fonseca

António da Silva Gonçalves

  _____________

 [1] Este instituto chegou como vimos a figurar no actual Código Civil, na sua versão primitiva com a redacção apontada, quiçá mais incisiva que a do Código de Seabra mas de alcance equivalente.

3. Ao titular do domínio directo dá-se o nome de senhorio e ao do domínio útil, o de foreiro ou enfiteuta”.

 [2] Cfr. por todos Acs. deste Supremo Tribunal de Justiça de 17/11/2011 in P. 447/08.4TBCBR.C1.S1); 12-07-2011 (P. 899/04. 1TBSTB. E1.S1); 24-6-2004 in (P. 03B3843), todos nas Bases da DGSI.