Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2100/07.7TAOER-D.L1-A.S2
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: TERESA DE ALMEIDA
Descritores: RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
DECISÃO SINGULAR
ACÓRDÃO
INADMISSIBILIDADE
Data do Acordão: 02/28/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (PENAL)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I. As decisões em confronto (a recorrida e fundamento) têm natureza diversa: uma decisão singular e um acórdão.

II. A lei é, como vimos, clara no seu texto, referindo-se, sempre, a acórdãos, seja o Tribunal emitente o Supremo Tribunal de Justiça ou um dos Tribunais de Relação.

III. A excecionalidade do recurso justifica plenamente que apenas relevem decisões colegiais, suscetíveis de decidirem sobre o mérito, resultado de julgamento em conferência.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça

I - Relatório

1. AA, arguido identificado nos autos, veio interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, nos termos e ao abrigo do disposto nos artigos 437.º e ss. do CPP, da Decisão Singular proferida pelo Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça em 09.11.2023, transitada em julgado em 18.12.2023, alegando encontrar-se esta em oposição com o decidido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17.03.2016, no âmbito do processo n.º 587/09.2GBSSB-A.S1, transitado em julgado em 7.04.2016, que indica como Acórdão fundamento.

2. São do seguinte teor as conclusões formuladas na motivação apresentada pelo Recorrente: (transcrição)

“A. A decisão recorrida foi proferida em 09.11.2023 pelo Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça e consistiu no indeferimento da reclamação apresentada contra a não admissão de recurso para o STJ, uma vez que, nos termos do art. 432.º, al. b), e 400.º, n.º 1, al. c), do CPP, o recurso não seria admissível. Dessa decisão houve reclamação para a Conferência, que foi indeferida por nova decisão singular de 04.12.2023.

B. O acórdão fundamento é o acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, 5.ª Secção, em 17.03.2016, no âmbito do processo n.º 587/09.2GBSSB-A.S1, já transitado em julgado, e disponível em www.dgsi.pt, cuja certidão, com menção do trânsito em julgado, se protesta juntar, no prazo que o Tribunal venha a fixar para o efeito.

C. In casu, estamos perante uma situação em que a decisão final proferida não reveste a natureza de acórdão stricto sensu mas de decisão singular, a qual, porém, tendo sido proferida pelo Vice-Presidente do Supremo Tribunal, ao abrigo do art. 405.º, n.º 4, do CPP, é definitiva. Neste(s) caso(s), a norma do artigo 437.º, n.º 1 do CPP, tem de ser interpretada extensivamente, devendo entender-se que as decisões singulares definitivas (como aquela de que ora se recorre) devem equiparar-se a acórdãos proferidos por tribunais colegiais, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 437.º, n.º 1 do CPP, sob pena de se violarem garantias de defesa e, bem assim, de se violar o direito ao recurso (cfr. artigo 32.º, n.º 1 da CRP).

D. Por cautela, caso assim se não entenda, deixa-se arguido que o entendimento normativo dado o artigo 437.º, n.º 1 do CPP, no sentido de que não cabe recurso, para o pleno das secções criminais, de decisões singulares definitivas proferidas pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça – ou pelo Vice-Presidente em sua substituição –, quando, no domínio da mesma legislação, tenha sido proferido acórdão pelo Supremo Tribunal de Justiça que, relativamente à mesma questão de direito, com ela esteja em contradição por assentar em solução jurídica oposta, é inconstitucional por violação das garantias de defesa e do direito ao recurso consagrados no artigo 32.º, n.º 1 da CRP.

E. Com efeito, não há qualquer razão substancial para admitir o recurso de fixação de jurisprudência quando a oposição é entre dois acórdãos e não a admitir quando a oposição seja entre uma decisão singular definitiva e um acórdão.

Aquilo que a ordem jurídica pretende garantir é o direito ao recurso de fixação de jurisprudência quando ocorra uma divergência material entre decisões proferidas pelo STJ, sendo desproporcional, à luz dos princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade, ínsitos no art. 18.º da CRP, tratar de forma diferente a divergência entre acórdãos e entre decisões singulares definitivas e acórdãos.

F. O presente recurso está a ser interposto no prazo de 30 dias após o trânsito em julgado da segunda decisão singular, o que ocorreu em 18.12.2023, tendo em conta que a primitiva decisão singular de 09.11.2023 foi ainda objeto de uma reclamação do Recorrente para a Conferência, a qual foi indeferida por nova decisão singular de 04.12.20234.

G. Se for entendido que o prazo de 30 dias se deve contar em relação à data da decisão prolatada em 09.11.2023 (acrescido do prazo de 10 dias) e não em relação ao trânsito em julgado do incidente de reclamação (o que ocorreu em 18.12.2023), nesse caso, o recurso seria ainda tempestivo por força do art. 107.º-A do CPP, requerendo-se, nessa hipótese, que seja o Requerente notificado para proceder a tal pagamento.

(Como o Recorrente teve oportunidade de reconhecer por requerimento de 18.12.2023, o indeferimento desta segunda reclamação encontra-se justificado, nos termos da decisão singular de 04.12.2023.)

H. Na decisão singular recorrida, entende-se que o acórdão do Tribunal da Relação é irrecorrível por não ter conhecido do objeto do processo, nem ter julgado do mérito da causa, tendo outrossim sido proferido em procedimento específico da execução da pena suspensa, já depois da decisão final do objeto do processo. Neste sentido, tenha-se em conta o segmento que ora se transcreve dessa decisão:

«(…) No caso concreto, o acórdão de que o reclamante pretende recorrer, proferido em recurso, não conheceu do objeto do processo nem julgou do mérito da causa, sendo antes proferido em procedimento específico da execução da pena suspensa, previsto nos artigos 492.º e seguintes do CPP, isto é, já depois da decisão final do objeto do processo.

A causa, com o sentido da determinação do direito do caso - culpa e pena - terminou com a decisão condenatória, sendo as fases posteriores procedimentos consequentes de execução.

O recurso não é, assim, admissível (artigos 432. °, alínea b), e 400. °, n.º 1, alínea c), do CPP).

(…)».

I. No acórdão fundamento é expressamente referido que a decisão que revoga a suspensão da execução da pena integra a decisão final e, nessa medida, equipara-se à sentença condenatória, o que, por identidade de razões, se deve considerar igualmente para a decisão que, em recurso, considera incumprida a condição da suspensão da execução da pena (revogando a decisão que a julgara cumprida, muito embora conceda ainda um prazo suplementar para o seu cumprimento). Em abono desta decisão, pode ler-se no texto do acórdão o seguinte:

«(…) de acordo com o que, sem divergências, tem constituído a jurisprudência deste Supremo Tribunal, despacho que põe fim, ou termo, ao processo é o que faz cessar a relação jurídico-processual, por razões substantivas (conhecimento do mérito da causa) ou meramente adjectivas.

Mas também é verdade que o despacho que revoga a suspensão da execução da pena, enquanto põe fim à pena de substituição em causa e efectiva a execução desta, além de não se limitar a dar mera sequência à decisão condenatória que, antes prolatada, suspendeu a pena de prisão aplicada, faz dela parte integrante.

Efectivamente, como se considerou no acórdão de 20.02.2013 deste Supremo Tribunal, prolatado no Processo n.º 2471/02.1TAVNG-B.S1, da 5ª Secção, o despacho que a suspensão da execução da pena de prisão, mais do que dar sequência à “execução” da pena de prisão antes imposta, aprecia factos que, no entretanto chegados ao conhecimento do tribunal, põem em causa a suspensão condicional (porque disso, afinal, se trata) da referida pena de prisão, o que implica a formulação, por parte do mesmo, um juízo autónomo, fundado em determinado facto (v.g. o cometimento, pelo agente, de um crime durante o período de suspensão, que ponha em causa os fins que determinaram a imposição da referida pena de substituição) ou em certa omissão (v.g. o incumprimento, por parte do agente, das condições a que ficou condicionada a suspensão da execução da pena) que, imputáveis ao condenado, hão--de ser apreciados em função da sua culpa.

Na realidade, mal se compreenderia que, face aos efeitos profundos, definitivos e sobremaneira gravosos que, relativamente à pena de substituição imposta na sentença condenatória, produz a decisão que a revogue [na sequência de uma fase destinada (artigo 495.º, número 2, do Código de Processo Penal) à recolha da prova, à obtenção do parecer do Ministério Público, à audição do condenado, na presença do técnico que apoia e fiscaliza o cumprimento das condições da suspensão], esta não fizesse parte integrante da mesma sentença condenatória.

Daí, partilhar-se do entendimento de que o despacho que revogar a suspensão da execução da pena não pode deixar de integrar-se na decisão final, dando efectividade à condenação cuja execução ficou, por via da imposição da dita pena de substituição, condicionalmente suspensa. (…)».

J. O acórdão fundamento foi proferido no quadro de um recurso de revisão, mas a verdade é que a solução de direito preconizada abstrai-se dessa circunstância. Aquilo que o acórdão fundamento decide é que a decisão que revoga a suspensão da execução da pena, ou outra com efeito equiparável, tem de se considerar integrada na decisão final, dando efetividade à condenação cuja execução ficara suspensa, pelo que é recorrível (como o é uma decisão condenatória que, em recurso, revogue a decisão absolutória).

K. É também verdade que, no caso dos autos, o acórdão da Relação não revoga ainda a suspensão da execução da pena, mas tem um efeito prático equivalente, quando julga incumprida a condição que a 1.ª instância julgou cumprida, pelo que tal acórdão integra o acórdão condenatório, sendo recorrível nos mesmos termos.

L. Assim sendo, entendemos que o artigo 400.º, n.º 1, al. c) do CPP deve, quanto ao seu inciso final (relativo à exceção admitida), ser interpretado extensivamente, abrangendo o despacho que revoga a suspensão da execução da pena, bem como o despacho que, em recurso, considera incumprida a condição de suspensão da execução da pena, depois de decisão de 1.ª instância que a julga cumprida (mesmo que conferindo um prazo suplementar para o seu cumprimento).

M. É a leitura que se impõe em homenagem a um princípio de humanismo, observador das garantias de defesa e do direito ao recurso que deve iluminar o processo penal, uma vez que é inaceitável, à luz dos princípios que regem esta matéria, que não seja recorrível a decisão inovadora que pode ter por efeito a privação da liberdade do cidadão.

N. De qualquer forma, e por cautela, vem arguir-se a inconstitucionalidade do entendimento normativo dado ao artigo 400.º/n.º 1/al. c) do CPP [por referência à exceção nele prevista], devidamente conjugado com o artigo 432.º/n.º 1/al. b) do CPP, no sentido de que não é admissível recurso para a Supremo Tribunal de Justiça de acórdãos proferidos, em recurso, pelas Relações que julguem não cumprida a condição de que depende a suspensão de execução de pena de prisão, quando a 1.ª instância julgou cumprida tal condição, por violação das garantias de defesa e do direito ao recurso consagrados no artigo 32.º/n.º 1 da CRP.

O. Tal juízo decorre de substancialmente estar em causa situação equiparável à da condenação, uma vez que está em jogo a liberdade do Arguido. Seria desproporcional admitir recurso de uma decisão condenatória (mesmo em pena não privativa da liberdade), após decisão absolutória – como a lei expressamente consagra –, e não a admitir na situação sub judice.

P. Nenhuma dúvida se pode, pois, colocar quanto à circunstância de que o acórdão fundamento e a decisão singular apreciam a mesma questão de direito à luz de critérios diferentes, consagrando por isso soluções de direito opostas.

Q. Por último, é também manifesto que os acórdãos em oposição foram proferidos “no domínio da mesma legislação”, isto é, os artigos 400.º e 432.º do CPP.

R. A jurisprudência deve ser fixada no sentido de que o art. 400.º, n.º 1, al. c), do CPP, devidamente conjugado com o art. 432.º, n.º 1, al. b), do CPP, interpretado extensivamente, abrange o despacho que revoga a suspensão da execução da pena, bem como o despacho que, em recurso, considera incumprida a condição de suspensão da execução da pena, depois de decisão de 1.ª instância que a julga cumprida (mesmo que conferindo um prazo suplementar para o seu cumprimento).

Termos em que o recurso deve ser admitido, com as legais consequências, levando a que seja fixada a jurisprudência nos termos requeridos.”

3. O Ex.mo Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal emitiu douto parecer, defendendo a rejeição do recurso e alegando, em síntese: (transcrição)

Quanto à admissibilidade

“Ora, no respeito do seu modelo etiológico e processual-penal, o recurso de fixação de jurisprudência há-de assentar – contra o entendimento expresso do recorrente – numa discussão e análise critico-dialéctica de duas teses em confronto que sejam reveladas por acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça e/ou dos Tribunais da Relação (cfr, o art. 437º/1-4 do Código de Processo Penal).

Nesse pressuposto, a invocação de uma Decisão singular e de um Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça prejudica, irremediavelmente, o objectivo processual-material da pretendida fixação de jurisprudência:

Que não prescinde que que aquela discussão seja travada sobre duas teses-jurídicas em oposição que se tenham revelado no âmbito formação da concreta juridicidade em duas decisões colegiais de Tribunais Superiores.

Pois, por regra, o poder jurisdicional dos Tribunais da Relação e do Supremo Tribunal de Justiça é exercido através das respectivas secções, no regime funcional de colegialidade, em plenário ou por secções (cfr, os arts. 48º e 67º/2 da LOSJ e 11º/3-5, 12º/3 e 4, 419º/1, 429º/1 e 435º do Código de Processo Penal).

(…) A lei é, como vimos, clara no seu texto, referindo-se, sempre, a acórdãos, seja o Tribunal emitente o Supremo Tribunal de Justiça ou um dos Tribunais de Relação.”

Sobre a oposição de julgados

“Lavra, contudo, em lapso manifesto o recorrente, com todo o respeito, quando entende que aquelas decisões foram proferidas: Sob a vigência da mesma legislação; Apreciam uma mesma questão de direito à luz de critérios diferentes, consagrando por isso duas soluções de direito em oposição.

(…) Jurídico-processual-penalmente, não são conceitos normativa e instrumentalmente coincidentes:

Acórdão que não conheça, a final, do objecto do processo – decisão interlocutória, ou não interlocutória que não conheça do mérito ou fundo da causa; e

Despacho que tiver posto fim ao processo – decisão, que não é sentença, que extingue a relação jurídico-processual, por via substantiva (conhece do mérito ou fundo da causa), ou adjectiva, nomeadamente o despacho de não pronúncia.

17. E não o são porque cumprem desígnios processual-funcionalmente bem diversos:

O primeiro, está a (co)enformar o elenco formal-material dos acórdãos das Relações susceptíveis de recurso ordinário;

O segundo, está a (co)enformar o elenco formal-material das decisões suscetíveis de recurso de revisão.

(…) Aliás, a pressuposta “oposição de julgados” – pela via das questões-de-facto e/ou de direito presentes – há-de ser tal que não imponha ao julgador a necessidade de realização de uma ponderação abrangente, elaborada, sobre se duas questões juridicamente diversas se equivalem normativamente, pois que tal oposição há-de também manifestar-se de forma explícita e não apenas depois de formulado um juízo de implicitude.

26 Ou, dito de outro modo: A pressuposta identidade fático-normativa e jurídica há-de ter sido apreendida de forma analítica, e não apenas intuída.

27. Parece-nos, pois, claro, com todo o respeito – como acima já se aventou –, que constituindo o pôr fim ao processo e o conhecer, a final, do objecto do processo temas de discussão bem distintos, com efeitos também bem diversos ao nível das posições-jurídicas dos sujeitos-processuais, a sua ponderação há-de assentar ainda em argumentários que lhes serão inevitavelmente específicos:

E não é esta a sede (do Recurso de Fixação de Jurisprudência) para operar tal discussão e, muito menos, para aceitar qualquer posição implícita;

Nem para operar interpretação extensiva de uma qualquer norma, travestindo decisões singulares em acórdãos;

Nem para formular juízos de inconstitucionalidade sobre interpretações normativas que, na sua génese, têm interesses e bens-jurídico iminentemente moldados pela especificidade.

28. Do que se reafirma que não há oposição de julgados, como pressuposto essencial (material) da previsão do recurso de fixação de jurisprudência, o que implicará também a sua rejeição (cfr, os arts. 437º/1 e 441º do Código de Processo Penal).”

4. Em contraditório, o recorrente reafirmou os fundamentos da sua motivação.

Realizado o exame preliminar a que alude o art. 440.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, e colhidos os vistos, cumpre decidir em Conferência, nos termos do art.440.º, n.º 4 do Código de Processo Penal.

II - Fundamentação

1. O recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, previsto no art. 437.º e ss., do C.P.P., tem como finalidade específica assegurar um certo grau de certeza às orientações jurisprudenciais, evitando ou anulando decisões contraditórias, concretizando, reflexamente, os princípios da segurança, da previsibilidade das decisões judiciais e da igualdade dos cidadãos perante a lei.

O que está em causa não é, pois, a reapreciação da decisão de aplicação do direito ao caso no acórdão recorrido, transitado em julgado, mas verificar, partindo de uma factualidade equivalente, se a posição tomada no acórdão recorrido, quanto a certa questão de direito, seria a que o mesmo julgador tomaria, se tivesse de decidir no mesmo momento essa questão, no acórdão fundamento, e vice-versa.

O recurso fundado em oposição de acórdãos, tem vocação normativa, de fixação de uma quase-norma que exprime a posição do Supremo Tribunal de Justiça, através do pleno das respetivas secções.

Os pressupostos formais e materiais e o processamento do recurso têm previsão nos artigos 437.º e 438.º do Código de Processo Penal:

O art.437.º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe fundamentos do recurso, dispõe o seguinte:

1 - Quando, no domínio da mesma legislação, o Supremo Tribunal de Justiça proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, cabe recurso, para o pleno das secções criminais, do acórdão proferido em último lugar.

2 - É também admissível recurso, nos termos do número anterior, quando um tribunal de relação proferir acórdão que esteja em oposição com outro, da mesma ou de diferente relação, ou do Supremo Tribunal de Justiça, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça.

3 - Os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, direta ou indiretamente, na resolução da questão de direito controvertida.

4 - Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior transitado em julgado.

5 - O recurso previsto nos n.ºs 1 e 2 pode ser interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis e é obrigatório para o Ministério Público.

O art.438.º, do mesmo Código, estabelece:

1 - O recurso para a fixação de jurisprudência é interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar.

2 - No requerimento de interposição do recurso o recorrente identifica o acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição e, se este estiver publicado, o lugar da publicação e justifica a oposição que origina o conflito de jurisprudência.

A admissibilidade do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência implica, pois, a observância de determinados requisitos ou pressupostos, uns de ordem formal e outros de ordem substancial.

Dada a natureza “extraordinária” do recurso para fixação de jurisprudência, tais requisitos devem ser rigorosamente apreciados.

Como salienta o acórdão deste Tribunal, de 19.04.2017, “Do carácter excecional deste recurso extraordinário decorre necessariamente um grau de exigência na apreciação da respetiva admissibilidade, compatível com tal incomum forma de impugnação, em ordem a evitar a vulgarização, a banalização dos recursos extraordinários”, obstando a que possa transformar-se em mais um recurso ordinário, contra decisões transitadas em julgado.”.

Este tribunal tem vindo a organizar o quadro de requisitos formais de admissibilidade deste recurso extraordinário:1

a) a legitimidade e interesse em agir do recorrente;

b) a interposição do mesmo no prazo de 30 dias, a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar;

c) a invocação, no recurso, do acórdão fundamento, com junção de cópia deste ou do lugar da sua publicação;

d) o trânsito em julgado dos dois acórdãos; e

e) justificação da oposição que origina o conflito de jurisprudência.

Bem como dos requisitos substanciais de admissibilidade:

a) existência de julgamentos da mesma questão de direito entre dois acórdãos do STJ, dois acórdãos da Relação ou entre um acórdão do STJ e outro da Relação – o acórdão recorrido e o acórdão fundamento;

b) os acórdãos em causa assentem em soluções opostas, de forma expressa e a partir de situações de facto idênticas; e

c) serem ambos proferidos no domínio da mesma legislação, ou seja, quando durante o intervalo da sua prolação não tiver ocorrido alteração legislativa que interfira, direta ou indiretamente, na resolução da questão controvertida.

Note-se, por fim, que a expressão soluções opostas respeita às decisões e não aos fundamentos respetivos.

2. Da análise da certidão, com a informação complementar, entretanto, junta, resultam a tempestividade do recurso e a legitimidade do recorrente.

A Decisão Singular recorrida e o Acórdão fundamento transitaram em julgado em, respetivamente, 18.12.2023 e 07.04.2016.

3. As decisões em confronto (a recorrida e fundamento) têm, pois, natureza diversa: uma decisão singular e um acórdão.

A lei é, como vimos, clara no seu texto, referindo-se, sempre, a acórdãos, seja o Tribunal emitente o Supremo Tribunal de Justiça ou um dos Tribunais de Relação.

A excecionalidade do recurso justifica plenamente que apenas relevem decisões colegiais, suscetíveis de decidirem sobre o mérito, resultado de julgamento em conferência.

Por outro, as decisões singulares não conhecem, de modo aprofundado, de questões de direito e são suscetíveis de reclamação para a conferência.

Explicita Pereira Madeira, em anotação ao art. 437.º do CPP 2“São objeto do recurso extraordinário previsto neste artigo as decisões colegiais contraditórias – “acórdãos” - do Supremo Tribunal de justiça, assim como os da Relação entre si ou com outro ou outros do Supremo Tribunal de justiça. E tanto podem ser decisões de fundo, como meramente processuais, finais ou interlocutórias proferidas em qualquer tipo de recurso. O que há de tratar-se é de confronto entre decisões colegiais dos tribunais superiores referidos.”

No mesmo sentido, Acs. deste Tribunal de 21.02.2018, Proc. 114/14.0GCALQ.L1-A.S1 (3.ª Secção) e de 11.02.2021, no processo n.º 786/09.7TAPBL.C4-A.S1 (5.ª Secção).

Acompanhando o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal, conclui-se não se verificar, pois, um dos pressupostos materiais do recurso para fixação de jurisprudência – as decisões em oposição terem a natureza de acórdãos.

Esta interpretação, a consentida pelo texto legal, não viola o direito ao recurso, consagrado no n.º 1, do art. 32.º, da CRP. Como tem sido repetidamente afirmado pelo Tribunal Constitucional, 3 “O direito fundamental ao recurso não é um direito absoluto, não sendo, portanto, imune a restrições legais. Tal como acontece com os restantes direitos, liberdades e garantias inscritos na Constituição, às restrições a este direito aplica-se o regime decorrente do artigo 18.º da Constituição. Isto significa, nomeadamente, que a restrição é possível em caso de colisão com outros bens constitucionais, devendo, nesse caso, proceder-se a uma ponderação entre os sacrifícios impostos ao arguido e os ganhos de racionalidade, celeridade, eficácia e eficiência do sistema de administração da justiça, globalmente considerado.”

Ora, por um lado, o escopo, essencialmente normativo, do recurso para fixação de jurisprudência acentua a prevalência do interesse público da boa administração da Justiça sobre interesses particulares legítimos.

Sendo um recurso extraordinário com propósito específico, no sentido da uniformização do direito aplicado, a ponderação do seu âmbito teve em conta a natureza das decisões cujos julgados se mostram em oposição: acórdãos dos tribunais superiores.

Os interesses das partes, legítimos e impulsionadores da fixação quando a ela houver lugar, podendo, embora, ter vantagem na decisão, não se configuram, na matriz deste recurso extraordinário, como determinantes.

Os recorrentes puderam, já, beneficiar até ao trânsito em julgado da decisão recorrida, dos recursos ordinários e, mesmo depois do trânsito, verificados os respetivos pressupostos, de recurso extraordinário de revisão.

Em suma, nenhuma inconstitucionalidade se verifica na interpretação reiterada, de modo unânime, por este Tribunal.

Razão pela qual, por inadmissibilidade legal, o recurso terá de ser rejeitado.

4. Ainda que se não verificasse o exposto fundamento de rejeição, constatamos que se não verifica identidade das situações de facto nem oposição de julgados.

Com efeito,

- Na Decisão recorrida, apreciava-se a admissibilidade de recurso de acórdão da Relação que, em recurso, decidira revogar o despacho proferido em 1ª Instância que julgara cumprida condição imposta em decisão condenatória para a suspensão da execução da pena de prisão;

Foi entendido que o recurso para o Supremo era legalmente inadmissível, por não ter o despacho revogado pelo acórdão da Reação conhecido do objeto do processo ou julgado do mérito da causa (art. 400º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal);

- No Acórdão-Fundamento, estava em causa a admissibilidade de recurso extraordinário de revisão do despacho que revogara a suspensão da execução da pena;

Decidiu-se pela admissibilidade, por se entender que tal despacho se e integra na categoria dos despachos que tiverem posto fim ao processo, para efeitos do disposto no art. 449º, n.º2, do CPP. 4

Como é bom de ver, diversas são as situações de facto e diferentes os planos em que os julgados se situam.

Em suma, esgotada a via do recurso ordinário, o Recorrente ensaiou a utilização do presente recurso extraordinário, de modo infundado, recorrendo de decisão singular e apresentando situações de facto não idênticas e sem identidade da questão de direito.

Conclui-se, em conformidade com o exposto, que o recurso é de rejeitar nos termos dos artigos 414.º, n.º 2, aplicável ex vi do artigo 448.º, 437, n.º 1 e 441.º, n.º 1, todos do CPP.

III. DECISÃO:

O Supremo Tribunal de Justiça, 3.ª secção criminal, acorda em:

a) rejeitar, por inadmissibilidade legal, o presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, com fundamento no disposto nos artigos 414.º, n.º 2, aplicável ex vi do artigo 448.º, 437, n.º 1 e 441.º, n.º 1, todos do CPP.

b) condenar o recorrente a pagar 5 UCs, nos termos dos arts. 448º e 420º n.º 3 do CPP.

Lisboa, 21 de fevereiro de 2024

Teresa de Almeida (Relatora)

Pedro Manuel Branquinho Dias (1.º Adjunto)

Lopes da Mota (2.º Adjunto)

Nuno Gonçalves (Presidente da Secção)

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1. Sintetizando o sentido da jurisprudência deste Supremo Tribunal, ver, por todos, o acórdão de 29-10-2020, proferido no processo n.º 6755/17.6T9LSB.L1-A.S1.

2. In Código de Processo Penal comentado, António Henriques Gaspar et alii, Almedina, 4.ª edição revista, página 1400.

3. Entre outros, o citado n.º 523/2021, 2.ª Secção (Plenário), de 13.07.

4. Questão, aliás, já resolvida, em sentido oposto, pelo AFJ n.º 1/2024.