Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07A1642
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: URBANO DIAS
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
CERTIDÃO DE DÍVIDA
IFADAP
Nº do Documento: SJ20070605016421
Data do Acordão: 06/05/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário :
I – Constando da certidão que serve de título executivo a menção do facto omissivo (do devedor) que determinou a resolução do contrato (por parte do credor) não é defensável, à luz do disposto no art. 8º, nº 2 do D.-L. nº 31/94, de 5 de Fevereiro, a ideia de o mesmo ser inexequível por dele não constar a proveniência da dívida.
II – Se à data da comunicação da resolução do contrato, este já não se encontrava em vigor por, entretanto, ter decorrido o prazo da sua vigência, naturalmente, que o título dado à execução não corresponde às exigências do nº 2 do art. 8º do diploma legal supra referenciado, o mesmo é dizer que não tem a virtualidade de título executivo
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I
Relatório

AA deduziu oposição à execução que contra ele foi intentada pelo Instituto de Financiamento e Apoio ao Desenvolvimento da Agricultura e Pescas (IFADAP), alegando, por um lado, que nada deve já que o contrato que celebrou terminou a 31/12/99, e, por outro, que o título dado à execução é inexequível por não referir a origem da alegada dívida.

Contestou o exequente, contrariando a defesa do executado, defendendo a “legalidade” do título como a razão de ser do mesmo, ou seja, ter havido por parte do executado incumprimento do contrato firmado e, como natural consequência, a resolução do mesmo.

Houve lugar a audiência preliminar na qual foram seleccionados os factos provados e os controvertidos.

Após julgamento, foram os embargos julgados improcedentes.

Em balde apelou o executado-embargante para o Tribunal da Relação do Porto, já que a viu a decisão da 1ª instância ser confirmada.

Ainda irresignado, pede, ora, o executado-embargante revista, colocando à nossa consideração duas questões: a 1ª relativa ao facto de a certidão apresentada como título executivo não obedecer ao exigido pelo art. 8º, nº 2 do D.-L. nº 31/94, de 5 de Fevereiro; a 2ª tem a ver com a dívida que lhe é imputada, defendendo ele nada dever ao exequente nem isso lhe ser imputado por incumprimento anterior a 2000.

Contra-alegou o recorrente em defesa da manutenção do aresto impugnado.

II

As instâncias fixaram o seguinte quadro factual:

- No âmbito do Regulamento (CEE) nº 2078/92, o embargante candidatou-se a ajudas a medidas agro-ambientais.
- Designadamente à medida 9, para sistemas extensivos.
- Para o efeito subscreveu, em 4.11.94, um contrato a que foi atribuído o nº 940011009794, por via do qual passou a beneficiar da ajuda por um período de 5 anos.
- Recebeu por seis anos os respectivos subsídios ou ajudas.
- A totalidade da área tinha mato em 16 de Maio de 2000.

III

Quid iuris?

Como foi já referido, são duas as questões que temos de resolver.

Comecemos pela 1ª, a relativa à “legalidade” do título.
Este é uma certidão de dívida na qual consta, inter alia, a identificação do contrato e o incumprimento do mesmo por parte do executado.

Ao longo de todo o processo o ora recorrente tem vindo a defender a não exequibilidade do título pelo facto de no mesmo não constar a proveniência da dívida.
O Mº Juiz da 1ª instância deu resposta a esta questão, dizendo que “a origem da dívida radica, efectivamente, na atribuição de ajudas ao embargante, enquanto beneficiário, formalizado nos contratos a que se faz referência”.
Já a Relação de Lisboa, depois de analisar o art. 8º do D.-L. 31/94, de 5 de Fevereiro, acabou por salientar que no título “dado” à execução constam todos os elementos que são por aquele normativo exigidos, nomeadamente, a data da emissão, a identificação, o domicílio de devedor, a proveniência da dívida, a indicação por extenso do montante e a data a partir da qual são devidos juros e a importância sobre que incidem.
E, em reforço da sua posição, não deixou de sublinhar que do título em causa consta, ainda, que o “embargante beneficiou ao abrigo do regulamento (CEE) nº 2078/92 … – medidas agro-ambientais – 9 – sistemas forrageiros, das ajudas ao rendimento”.
E terminou a dizer que “pedir mais, …, era transformar um requerimento executivo numa petição inicial destinada a dar começo a uma acção declarativa”.

De que lado está a razão?
Vejamos.
O art. 8º do D.-L. nº 31/94, de 5 de Fevereiro proclamou no seu nº 1 que “constituem títulos executivos as certidões de dívida emitidas pelo IFADAP.
E o nº 2 do mesmo preceito pormenorizou:
“As certidões referidas no número anterior devem indicar a entidade que as tiver extraído, a data da emissão, a identificação e o domicílio do devedor, a proveniência da dívida, a indicação por extenso do montante e a data a partir da qual são devidos juros e a importância sobre que incidem”.
Decidiu-se no Ac. deste STJ, de 14 de Outubro de 2004 (em relação precisamente ao um caso de certidão de dívida emitida pelo IFADAP, embora passada ao abrigo do D.-L. nº 5/89, de 6 de Janeiro, mas, nem por isso, desajustado ao presente caso), que a concretização do requisito “proveniência da dívida” exige não só a indicação do contrato celebrado entre exequente e executado mas também a menção do facto omissivo do último e a declaração de resolução do primeiro (in processo nº 2862/04 – 7ª secção).
In casu, como já ficou sublinhado, está indicado o contrato e a declaração de incumprimento por parte do devedor-executado.
Não será isso suficiente?
Ou seja, através daqueles elementos não ficou o ora recorrente em condições de poder defender-se, dizendo que nada deve ao exequente?
Seguramente que sim.
Exigir mais seria, a nosso ver, ignorar a realidade e essa passava por consagrar uma atitude avessa à ideia de Direito.
Com efeito, com toda a gama de elementos feitos constar na certidão, em perfeito respeito pelo normativo supra indicado, nada mais seria necessário para o executado deduzir, como deduziu, oposição à pretensão do exequente.
Face à posição que o executado tomou ao longo da lide, em defesa da tese que nada deve ao exequente – este o ponto nobre da questão – quase nos atreveríamos a dizer que este tipo de defesa acaba por colidir com as regras de boa fé que, também aqui, devem estar sempre presentes e ser respeitadas.
Bom: decidido fica que ao recorrente não assiste a mínima razão neste ponto concreto.

Passemos ao 2º.

Está dado como provado que as partes se vincularam inicialmente por contrato com duração de cinco anos, prazo este que teve início em 1994 e que foi, posteriormente, prorrogado por mais um ano.
Está igualmente provado que o executado-embargante-recorrente recebeu por seis anos os respectivos subsídios.
E ainda ficou provado que a área de terreno que esteve na base do contrato de ajudas tinha mato em 16 de Maio de 2006.
Ora, foi precisamente este o motivo determinante para o Mº Juiz da 1ª instância julgar os embargos improcedentes – “tal conflitua com a exigência de limpeza pelo que a rescisão pode operar juridicamente”.
Esta argumentação não convenceu o ora recorrente que, no recurso de apelação, continuou a dizer nada dever.
Foi, então, altura de se dizer que o recorrente tinha razão num ponto, qual seja a de que o contrato só pode ser resolvido enquanto estiver em vigor (“…o contrato só pode ser resolvido/rescindido enquanto está em vigor - do DL 31/94 resulta que a devolução dos subsídios só é viável na sequência e em consequência da dita resolução, rescisão lhe chama o diploma”).
Mas esta argumentação não foi de per se suficiente para dar razão ao apelante e daí que a Relação tenha feito a seguinte construção:
“Está provado também que o executado/embargante subscreveu em 4.11.94 um contrato a que foi atribuído o nº 940109794 por via do qual passou a beneficiar da ajuda por um período de 5 anos.
Como ainda recebeu por seis anos os respectivos subsídios ou ajudas.
Quer dizer, não logrando o exequente provar que o contrato subscrito em 4.11.94 e com o termo 5 anos depois, em 4.1.99, foi alterado quanto à sua duração, demonstrou que o executado recebeu subsídios e ajudas a que tal contrato dizia respeito, não durante 5 anos, mas por seis.”
Este raciocínio foi o suficiente para que a Relação tirasse a presunção de o contrato ter durado mais um ano, que não terminou em 4.11.99, mas sim em 4.11.2000.
Com todo o devido respeito por tal opinião, entendemos que nada, mas nada, legitima tal conclusão.
O contrato acabou por ter, com a prorrogação, um prazo de vigência de seis anos: disso não há dúvidas – daí ter o executado-embargante-recorrente percebido ajudas durante seis anos.
Mas o contrato de ajuda foi firmado para vigorar precisamente nesse ano de 1994, ou seja, com o fito de o executado receber ajudas ainda relativamente ao esse ano de 1994, facto que nos permite concluir que o contrato teve o seu fim de vida em 1999. Haja em vista que antes do encontro de vontades, que caracteriza todo e qualquer contrato, houve, teve de haver (e isso até está documentado nos autos), uma proposta de candidatura por parte do executado que foi apresentada ao IFADAP muito antes de este ter dado o seu agrement, em 4.11.94. E tal proposta surgiu por via de processo de abertura de candidaturas por parte do IFADAP em tempo forçosamente anterior ao da apresentação da proposta.
Queremos com tudo isto dizer que este contrato não se nos afigura como um contrato firmado isoladamente e que podia ter lugar a todo o tempo. Ele surge num determinado contexto temporal e para ajudar (compensar) o agricultor nas despesas relativas ao ano agrícola que em que o mesmo é celebrado.
Só depois de apresentada a proposta, dentro do quadro sumariamente traçado, analisada a mesma, é que o IFADAP aceita a mesma e o contrato surge como natural encontro de vontades. Concretizado o contrato, a ajuda acaba por ser concedida, mas, como se compreende, em tempo muito posterior à campanha.
Mas, na nossa perspectiva, isso é totalmente irrelevante: só queremos dizer que o argumento está mal tirado, nada permitindo tirar a presunção que a Relação tirou.
Com efeito, do facto de o executado ter recebido ajudas durante seis anos só é legitimo concluir isso mesmo, já não o terminus do contrato.
Mas, voltemos a nossa atenção para o que interessa.
E o que interessa é dizer que, neste ponto concreto de responsabilidade do executado perante o IFADAP a razão está, sem dúvida alguma do lado daquele.
E por uma simples razão: o contrato quando foi rescindido já tinha deixado de existir…já não era contrato.
Por outras palavras: o IFADAP rescindiu o contrato através de carta que dirigiu ao ora recorrente datada de 29/05/2001 – é o que consta do art. 22º da contestação e ilustrado a fls. 7.
Nessa data, seguramente, nada vinculava já as partes aqui em causa.

A Relação reconheceu que o executado-embargante tinha razão quando este defendia que só se pode resolver um contrato em vigor.
Terá eventualmente o executado violado e não honrado o compromisso que firmou com o IFADAP.
Terá eventualmente este direito a algo por virtude de tal incumprimento.
Mas certamente não tem direito a ver restituídas as verbas que colocou à disposição do executado com o fundamento invocado no título, ou seja, na base de uma declaração de resolução do contrato.
É certo que este facto – data da resolução do contrato – não consta do elenco dos factos dados como provados. Isso, porém, não é obstáculo a que este STJ o acolha e o valore, precisamente porque o nº 3 do art. 659º do CPC, aplicável aqui ex vi arts. 713º, nº 2 e 726º, o permite.

Quando o IDAFAP notificou o executado para este repor o dinheiro que percebera, de acordo com o estatuído no art. 6º do D.-L. Nº 31/94 citado já era tarde: o contrato tinha finado!

Isto leva-nos, pois, a concluir que o título “dado” à execução não corresponde às exigências do nº 2 do art. 8º do diploma supra referenciado, facto que lhe retira a virtualidade de título executivo.

Ao cabo e ao resto, no que ao fundo da questão diz respeito – se deve ou não e pelos motivos indicados no título – o recorrente tem razão.
Daí que os embargos tenham, necessariamente, de proceder.

IV

Decisão

Concede-se a revista e, consequentemente, julgam-se os embargos procedentes.
Sem custas (a execução foi instaurada em 2002 e, então, o exequente beneficiava de isenção subjectiva por força do disposto na al. a) do nº 1, do art. 2º do CCJ, na redacção anterior à dada pelo D.-L. nº 324/2003, de 27 de Dezembro).


Lisboa, aos 05 de Junho de 2007
Urbano Dias (relator)
Paulo Sá
Faria Antunes