Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
99A417
Nº Convencional: JSTJ00038169
Relator: MACHADO SOARES
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
EMBARGO DE OBRA NOVA
RATIFICAÇÃO JUDICIAL
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
TRIBUNAL COMUM
Nº do Documento: SJ199910120004171
Data do Acordão: 10/12/1999
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: DIR PROC CIV. DIR ADM.
Legislação Nacional: LOTJ87 ARTIGO 18.
CPC95 ARTIGO 413 N1.
L 129/84 DE 1984/04/27 ARTIGO 3.
DRGU 2/88 DE 1988/01/20 ARTIGO 7 N4.
ETAF84 ARTIGO 51 N1 C.
Sumário : I- A competência dos tribunais, fixa-se no momento em que a acção se propõe sendo em princípio irrelevantes, as modificações de facto e de direito que surjam posteriormente, nos termos do artigo 18 da LOTJ.
II- Tal competência, pois, não depende da legitimidade das partes, nem da procedência da acção, sendo ponto a resolver de acordo com a identidade das partes, e com os termos da pretensão do Autor, compreendidos, aí, os respectivos fundamentos, e não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão.
III- A ratificação do embargo de obra nova, em contravenção do disposto no n. 1, alínea b), da resolução do Conselho de Ministros n. 25/97, de 27 de Fevereiro, com referência ao artigo 7, n. 4 do Decreto regulamentar 2/88, de 20 de Janeiro, tem a forma do meio processual, especial, do artigo 413, n. 1 do CPC, sendo competente, definitiva e materialmente, o Tribunal comum para decretar tal providência.
IV- Só serão julgadas pelos Tribunais Administrativos as questões do contencioso da Administração local que, por lei, não estejam sujeitas à jurisdição de outros Tribunais, no quadro do artigo 3 da Lei 129/84, de 27 de Abril.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

A Excelentíssima Magistrada do Ministério Público, junto do Tribunal Judicial da Comarca de Vieira do Minho, em representação da Direcção Regional do Ambiente do Norte, veio requerer a ratificação judicial do embargo de obra nova contra A e B, obra essa que estava a ser edificada em zona reservada da Albufeira da Caniçada em Ademeres, freguesia de Vilar da Veiga, concelho de Terras de Bouro, com vista à ampliação de uma residencial, em contravenção do disposto no artigo 7 n. 4 do Decreto Regulamentar n. 2/88 de 20 de Janeiro e da alínea b) do n. 1 da Resolução do Concelho de Ministros n. 26/97 de 22 de Fevereiro.
Na oposição que deduziram, os requeridos, além de excepcionarem a incompetência do Tribunal em razão da matéria, sustentaram que a obra destinada também à sua habitação, se encontrava devidamente licenciada e a requerente havia previamente emitido parecer favorável à edificação.
Após a produção das provas, foi o embargado notificado judicialmente, através do despacho de 29 de Junho de 1998, constante de folhas 16 e seguintes.
Esta decisão foi confirmada pelo Acórdão da Relação do Porto em 1 de Fevereiro de 1999, para onde agravaram os requeridos.
Ainda inconformados, os requeridos recorreram para o S.T.J., tendo concluído as suas alegações do seguinte modo:
1. Nos presentes autos não está em causa qualquer questão de direito privado.
2. A obra embargada encontra-se devidamente autorizada pelo alvará de licença n. 201/1997, concedida pela Câmara Municipal de Terras de Bouro, no processo n. 83/96, alvará esse emitido em 19 de Agosto de 1997 e válido até 24 de Julho de 2002 - ponto 5 da decisão agravada.
3. O alvará de licença é um acto administrativo constitutivo de direitos que goza da presunção da legalidade e da eficácia.
4. A presunção da legalidade do acto administrativo entende-se e abrange necessariamente a obra que aquele acto autoriza.
5. A apreciação da legalidade da obra nova em causa implica a apreciação do acto administrativo que a autorizou e licenciou, apreciação que terá de ser objecto de acção de que a presente providência é mera dependência.
6. Mas a discussão da legalidade de um acto administrativo constitutivo de direitos compete aos Tribunais Administrativos, como Tribunais que são de competência especializada, nos termos do artigo 51, n. 1, alínea c) do E.T.A.F..
7. Não é, pois, a providência cautelar que determina a competência do Tribunal em razão da matéria, mas sim a acção principal de que a providência cautelar é dependente.
8. Só depois de anulado, notificado ou eventualmente revogado aquele acto administrativo da autorização da construção (consubstanciado na licença n. 201/1997) se pode declarar como ilegal, logo embargável a construção efectuada ao abrigo daquela construção.
9. Não é, pois, o Tribunal Judicial de competência civil o Tribunal competente para apreciar da legalidade da obra nova em causa, porque isso implica apreciar, inevitavelmente, na acção principal, a legalidade do acto administrativo que autorizou aquela obra nova.
10. O Tribunal a quo é, pois, incompetente em razão da matéria para a presente providência, já que a acção principal de que aquela é dependência teria que ocorrer pelo Tribunal Administrativo do Círculo do Porto.
11. A agravada tinha ao seu dispor diversos procedimentos administrativos para atacar a eficácia do acto administrativo, v.g. requerimento da suspensão da sua eficácia, intimação administrativa para os embargos se absterem de prosseguir as obras - cfr. artigo 51, n. 1, alínea l) e o) da E.T.A.F. - e nada promoveu.
12. Ora o meio previsto no artigo 413 n. 1 do Código de Processo Civil só pode ser usado pelo Estado e demais pessoas colectivas públicas na falta de qualquer meio processual administrativo e quando em causa não estiver o acto administrativo, como sucede nos presentes autos.
13. Por outro lado, e sem prescindir da incompetência em razão da matéria invocada, da matéria de facto dada como provada não resulta sequer que a Resolução do Concelho de Ministros n. 26/97 de 22 de Fevereiro de 1997, tenha sido violada pois a obra em causa tem fins habitacionais, servindo de habitação permanente dos embargados - ponto 6 da matéria dada como provada.
14. A decisão recorrida violou, pois, o disposto nos artigos 413 n. 1, 668 n. 1 alíneas b) e c) do Código de Processo Civil, alínea b) do n. 1 da Resolução do Conselho de Ministros de 22 de Fevereiro de 1997, ainda, o disposto no artigo 51 n. 1 alíneas l) a o) do E.T.A.F..
15. Assim deve declarar-se o Tribunal recorrido incompetente em razão da matéria.
16. E se, assim não vier a ser entendido, deve declarar-se nula a decisão agravada, por inexistência de violação de qualquer comando legal.
17. Deve, pois, revogar-se o Acórdão e a decisão da 1. instância.

Na contra-alegação, a Excelentíssima Procuradora Geral Adjunta sustenta que deve ser negado provimento ao recurso.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:
Os factos considerados como provados nas instâncias são os seguintes:
a) Os requeridos são proprietários de uma obra sita em Ademeres, Vilar da Veiga, Terras de Bouro.
b) Tal obra consistente numa estrutura de betão com a área de 156 metros quadrados, encontrava-se, no dia 28 de Abril de 1998, já com cobertura e retocada, faltando pintar e colocar portas e janelas - auto de embargo de folha 5 e fotografias de folha 6.
c) A referida obra está a ser edificada na Zona Reservada da Albufeira da Caniçada, a cerca de 27 metros da linha de água (em pleno armazenamento), visando-se com a construção a ampliação de uma residencial.
d) No dia 28 de Abril de 1998 a requerente procedeu ao embargo da referida obra, na pessoa da B - auto de embargo de folha 5.
e) A obra referida está devidamente autorizada pelo alvará de licença n. 201/1997 concedido pela Câmara Municipal de Terras de Bouro, no processo 83/96, alvará esse emitido em 19 de Agosto de 1997 e válido até 24 de Dezembro de 2002 - doc. folha 7.
f) A residencial de que a obra é uma ampliação, serve também de habitação permanente aos requeridos.
g) A obra supra referida está neste momento concluída - teor da acta de inspecção ao local.
h) A requerente por ofício de 9 de Dezembro de 1994, declarou que sob o ponto de vista hidráulico nada tinha a opor relativamente à realização da dita obra, no âmbito do pedido de informação prévia solicitado pela Câmara Municipal de Terras de Bouro.
i) No âmbito do próprio processo de licenciamento camarário da referida obra, foi solicitado novo parecer à requerente que, dentro do prazo legal, nada disse.
Como se sabe, a competência fixa-se no momento em que a acção se propôs - sendo em princípio, irrelevante as modificações de facto e de direito que surjam posteriormente (artigo 18 da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais), - e determina-se pelo pedido do Autor ou seja pelo "quid disputatum".
Explicitando melhor esta ideia expende o Professor Manuel Andrade (Noções Elementares de Processo Civil, página 89).
A competência dos Tribunais não depende, pois, da legitimidade das partes, nem da procedência da acção. É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor (compreendidos aí os respectivos fundamentos) não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão".
No caso sub judice, o que se pretende é ratificar o embargo de obra que está a ser edificada em zona reservada da Albufeira da Caniçada, a menos de 50 metros desta, e, portanto, em contravenção ao disposto no n. 1 alínea b) da Resolução do Conselho de Ministros n. 25/97 de 22 de Fevereiro, com referência ao artigo 7 n. 4 do Decreto Regulamentar 2/88 de 20 de Janeiro.
Segundo estas determinações, não são permitidas, a menos de 50 metros da Albufeira, novas ocupações, salvo quando tenham fins habitacionais.
O embargo da obra nova que ora se pretende ratificar radica-se na violação de tais preceitos e apoia-se processualmente no disposto no artigo 413 do Código de Processo Civil.
Sustentou, porém, o recorrente que o Tribunal competente para tomar a providência solicitada é o Administrativo e não o tribunal comum que é, por isso mesmo, incompetente em razão da matéria.
Segundo eles, o meio processual previsto no artigo 413, n. 1 do Código de Processo Civil só pode ser usado pelo Estudo e demais pessoas públicas na falta de qualquer meio processual administrativo, o que não seria o caso, pois a agravada disporia de outros procedimentos para se opor à situação enfocada, como v.g. requerimento de suspensão da eficácia do acto, intimação administrativa para os embargados se absterem de prosseguir a obra (artigo 51, n. 1 alínea l) a o) do E.T.A.F.) e nada promoveu neste sentido.
Este raciocínio parte de um falso pressuposto: é o de que o Estado ou as demais pessoas colectivas públicas só poderão embargar, de harmonia com o artigo 413 do Código de Processo Civil se não puderem dispor de outro "modus" de reacção contra a ilegalidade da obra em causa, o que não é certo.
Segundo aquele normativo aquelas entidades poderão usar do embargo de obra nova, sempre que careçam de competência para decretar embargo administrativo, sem necessidade de outros pressupostos.
Como neste caso, a embargante não tem competência para decretar o embargo administrativo, logo a Lei possibilita-lhe o embargo previsto no citado artigo 413 para o qual é competente o Tribunal Comum.
Este preceito fixa, assim, em definitivo a competência do Tribunal comum para decretar a providência em causa.
E não se diga que a obra em referência se escapa à proibição da construção na área reservada da Albufeira da Caniçada, a menos de 50 metros desta, a pretexto de se tratar de obra destinada a fins habitacionais.
E que esta versão deturpa a realidade dos factos; a obra em apreço representa a ampliação de uma residencial e, portanto, de um estabelecimento hoteleiro, não perdendo este, tal qualidade pelo facto dos seus proprietários, os embargados, também residirem nessa unidade.
A fixação da competência material do Tribunal comum é, pois, incontestável, face ao disposto no artigo 413 n. 1 do Código de Processo Civil.
E o caminho apontado por este comando não colide com os mandamentos da Lei n. 129/84 de 27 de Abril (Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais - E.T.A.F.) que disciplinam a competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais, mormente os seus artigos 3 e 51 n. 1 alínea b). É que, como se observa no douto Acórdão recorrido, "não estando em causa o acto administrativo da concessão da licença, nem se baseando o procedimento cautelar em qualquer prejuízo decorrente de acto de gestão pública, nem tão pouco se tendo peticionado qualquer responsabilidade civil administrativa, é manifesta a competência do Tribunal Comum, em razão da matéria para conhecer do feito.
De resto, constituindo o artigo 413 n. 1 do Código de Processo Civil uma norma especial, sempre seria de se lhe dar prevalência se, porventura, se desenham a hipótese de conflito de soluções legais.
Acresce que a posição adoptada está em sintonia com ideia subjacente ao pensamento da nossa lei em matéria de contencioso administrativo e que tem profundas raízes históricas, de que, na prática, só serão julgadas pelos Tribunais Administrativos as questões contenciosas da administração local que por lei não estejam sujeitas à jurisdição de outros Tribunais.
Por outro lado, não perturbe a definição da competência aqui adoptada, o facto de os embargados poderem eventualmente lançar no âmbito da discussão de causa, através da contestação, a legalidade do acto administrativo que autorizara previamente a obra nova. É que, nessa altura, já está definitivamente fixada, a competência em razão da matéria, como atrás assinalamos, sendo, em princípio, irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente (artigo 18 da LOTJ), como sucederia, neste caso.
Nestes termos, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se o Acórdão recorrido.
Custas pelas recorrentes.

Lisboa, 12 de Outubro de 1999
Machado Soares
Fernandes Magalhães
Tomé de Carvalho

Tribunal Judicial da Comarca de Vieira do Minho - Processo n. 106-A/98.
Tribunal da Relação do Porto - Processo n. 1240/98 - 5. Secção.