Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
839/07.6TBPFR.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: LOPES DO REGO
Descritores: JURISPRUDÊNCIA UNIFORMIZADA PELO STJ
PRESSUPOSTOS DA REVISIBILIDADE
RESPONSABILIDADE CIVIL POR ACIDENTE DE VIAÇÃO
LIMITES MÁXIMOS DA INDEMNIZAÇÃO
SEGURO OBRIGATÓRIO
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
DANOS PATRIMONIAIS
DANOS FUTUROS
INCAPACIDADE LABORAL
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
EQUIDADE
PODERES COGNITIVOS DO STJ
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 10/07/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário : 1. Não sendo imutáveis as orientações jurisprudenciais definidas pelo pleno das secções cíveis do Supremo ao abrigo do julgamento ampliado da revista, nos termos do art.732º-A do CPC – ao contrário do que se verificava com os anteriores «assentos», dotados de força vinculativa geral – não pode pretender-se obter sistematicamente a livre revisibilidade da solução neles adoptada ( a realizar necessariamente pelo próprio plenário) sem que ocorram circunstâncias particulares justificativas, devidamente invocadas pela parte interessada - não relevando a simples adesão do recorrente a orientações doutrinárias ou jurisprudenciais, anteriores à prolação do dito acórdão uniformizador – e nele devidamente referenciadas e ponderadas.

2. Nada se aditando de inovatório relativamente aos fundamentos que ditaram a prolação do acórdão uniformizador nº 3/04 , em que se decidiu que:
O segmento do art. 508º, nº 1, do Código Civil, em que se fixam os limites máximos da indemnização a pagar aos lesados em acidentes de viação causados por veículos sujeitos ao regime do seguro obrigatório automóvel, nos casos em que não haja culpa do responsável, foi tacitamente revogado pelo art. 6º do Dec.lei nº 522/85, de 31 de Dezembro, na redacção dada pelo Dec.lei nº 3/96, de 25 de Janeiro,
mantém-se inteiramente este entendimento jurisprudencial, que não passa por atribuir a qualquer directiva comunitária um efeito directo horizontal, mas apenas por interpretar normas legais, pertencentes à ordem jurídica nacional, em conformidade com o direito comunitário, e dentro dos parâmetros consentidos pelas regras interpretativas internas , fixadas nas disposições gerais e introdutórias do CC.

3. Não envolve violação da norma contida no art . 506º do CC a decisão que – num caso em que nada se apurou quanto à concreta dinâmica do acidente - fixou em graus diferenciados a percentagem dos riscos de circulação próprios de veículos dotados de características estruturais diferentes ( veículo automóvel e velocípede com motor), dada a maior apetência do veículo de maiores dimensões para, em caso de colisão, provocar lesões graves nos demais utentes das vias públicas, que utilizem veículos de menor peso e dimensões.
4. A indemnização a arbitrar como compensação dos danos futuros previsíveis, decorrentes da IPP do lesado, deve corresponder ao capital produtor do rendimento de que a vítima ficou privada e que se extinga no termo do período provável da sua vida – quantificado, em primeira linha, através das tabelas financeiras a que a jurisprudência recorre, de modo a alcançar um «minus» indemnizatório, a corrigir e adequar às circunstâncias do caso através de juízos de equidade, que permitam a ponderação de variáveis não contidas nas referidas tabelas.

5. Tal juízo de equidade das instâncias, assente numa ponderação , prudencial e casuística das circunstâncias do caso – e não na aplicação de critérios normativos – deve ser mantido sempre que – situando-se o julgador dentro da margem de discricionariedade que lhe é consentida - se não revele colidente com os critérios jurisprudenciais que generalizadamente vêm sendo adoptados, em termos de poder pôr em causa a segurança na aplicação do direito e o princípio da igualdade.

6. Em aplicação de tais critérios, não há fundamento bastante para censurar o juízo, formulado pela Relação com apelo à equidade, que , - relativamente a lesado
com 28 anos à data do acidente, tendo, pois, uma esperança média de vida próxima dos 50 anos,
a quem foi atribuída uma IPG de 80%, ficando irremediavelmente impossibilitado de exercer, para o resto da vida, qualquer actividade profissional,
auferindo um rendimento mensal de €350 - calculou uma indemnização por danos futuros no montante de €120.000,00

7. Não é excessiva uma indemnização de €150.000,00, calculada como compensação dos danos não patrimoniais, decorrentes de lesões físicas gravosas e absolutamente incapacitantes ,envolvendo uma IPG de 80% e a incapacidade definitiva para qualquer trabalho, com absoluta dependência de terceiros para a realização das actividades diárias e necessidades de permanente assistência clínica, envolvendo degradação plena e irremediável do padrão de vida do lesado.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


1.AA intentou contra BB, S.A. acção de condenação, na forma ordinária, pretendendo obter o ressarcimento dos danos decorrentes de acidente de viação , deduzindo pedido no montante de €181.000,00, acrescido da quantia mensal correspondente ao salário mínimo nacional, a pagar vitaliciamente pela R. 14 vezes por ano, desde a data da propositura da acção, e ainda as despesas com o tratamento das lesões sofridas, com juros moratórios desde a citação. Tal pretensão foi ampliada ulteriormente, mediante articulado superveniente, no montante de €150.000,00.
A acção foi contestada, vindo a ser proferida, após audiência final, sentença que julgou a causa parcialmente procedente, arbitrando ao A. a quantia de €115.000,00 e respectivos juros e metade dos montantes peticionados a título de salários futuros perdidos e previsíveis despesas médicas e de tratamentos a realizar futuramente e a liquidar em execução de sentença, por - não se tendo apurado culpa de qualquer dos condutores na eclosão do acidente - ter atribuído ao lesado, a título de risco, a proporção de metade na contribuição do seu veículo para os danos.
Desta decisão apelaram a R. e – mediante recurso subordinado – o A., tendo a Relação, no acórdão recorrido, julgado parcialmente procedentes ambos os recursos, ditando a seguinte solução para o litígio:
A.1) – Declarar que o segmento do artº 508º nº 1 do Código Civil, em que se fixam os limites máximos da indemnização a pagar aos lesados em acidentes de viação causados por veículos sujeitos ao regime do seguro obrigatório automóvel, nos casos em que não haja culpa do responsável, na redacção anterior à introduzida pelo DL-59/2004 de 19 de Março, foi tacitamente revogado pelo artº 6º do Dec-Lei nº 522/85 de 31 de Dezembro, na redacção dada pelo Dec-Lei nº 3/96 de 25 de Janeiro, e assim, “in casu”, ser de aplicar o limite máximo indemnizatório de € 600.000,00 correspondente ao valor do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel previsto pelo artº 6º do DL-522/85 de 31.12 na redacção dada pelo DL-301/2001 de 23 de Novembro.

A.2) - Condenar a Ré, BB S.A. a pagar ao Autor - AA a quantia de € 98.250,00 (noventa e oito mil, duzentos e cinquenta euros), a título de indemnização por danos patrimoniais, correspondente a 75% do total de € 131.000,00 = (€ 1.000,00 + € 10.000,00 + € 120.000,00) acrescida de juros de mora vencidos e vincendos à taxa legal, contados desde a citação até integral pagamento.

A essa quantia de € 98.250,00 será descontada a quantia de € 2.802,83, a pagar pela Ré – Seguradora ao ISSS.

A.3) - Condenar a Ré, BB S.A. a pagar ao Autor - AA a quantia de € 112.500,00 (cento e doze mil e quinhentos euros), a título de indemnização por danos não patrimoniais, correspondente a 75% do total de € 150.000,00, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos à taxa legal, contados desde a citação até integral pagamento.

A.4) - Condenar a Ré, BB S.A. a pagar ao Autor - AA, mensalmente e catorze vezes em cada ano, a quantia correspondente a 75% do salário mínimo nacional em vigor em cada ano civil desde a data da propositura da acção e até ao final da vida do autor.

A.5) - Condenar a Ré, BB S.A. a pagar ao Autor - AA, a quantia que em liquidação de sentença se vier a apurar como correspondente a 75% das despesas resultantes de tratamentos médicos, incluindo as despesas necessárias e causais a tais tratamentos, como sejam as despesas de transporte, enfermagem e outras despesas com medicamentos ou outros produtos ou serviços medicamente prescritos que, posteriormente à data da citação da Ré na presente acção, o autor vier a despender como consequência do acidente dos autos.

A.6) - Condenar a Ré, BB S.A. a pagar ao Instituto de Solidariedade e Segurança Social a quantia de € 2.802,83 (dois mil, oitocentos e dois euros e oitenta e três cêntimos) acrescida de juros de mora vencidos e vincendos à taxa legal, contados desde a citação até integral pagamento.


§. - A soma dos montantes indemnizatórios já liquidados e a liquidar em execução de sentença a pagar pela Ré BB S.A. ao autor e ao interveniente I.S.S.S., terá, com exclusão dos montantes que sejam devidos a título de juros de mora, como limite máximo a quantia de 600.000 € correspondente ao valor do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel previsto pelo art. 6º do D.L. 522/85 de 31.12 na redacção dada pelo D.L. 301/2001 de 23.11.


2.Novamente inconformada, a R. seguradora interpôs a presente revista, que encerra com as seguintes conclusões que, como é sabido, lhe delimitam o objecto:

1.° - Com estes factos, não é de todo possível encontrar a medida da culpa de cada um dos intervenientes, somente a medida do risco, que caracteriza a responsabilidade em causa.
2° - Em nosso entender, tal aferição só será justa se feita à luz do disposto no artigo 506°, n.° 2 C.C..
3.º - Perante circunstâncias sinistrais desconhecidas, como é o caso em apreço, nada se provando quanto à dinâmica do sinistro em si mesmo, não parece justo, nem equilibrado, atribuir a um dos condutores uma maior responsabilidade, partindo do pressuposto de que em função das viaturas que conduzem, mais ou menos risco lhe assiste.
4.° - É de facto diferente conduzir um motociclo, de conduzir um veículo automóvel de quatro rodas. Mas tal diferença, não implica, a priori, maior risco de circulação.
5.º - O veículo automóvel é inerentemente mais estável e mais capacidade de travagem.
6.º - A comparação levada a cabo pelo ilustre tribunal "a quo", coloca a situação como se em causa estivessem dois poios - um é grande, potente e pesado, o outro é pequeno, pouco potente e leve, logo o primeiro acarreta mais risco que o segundo, o primeiro é mais responsável que o segundo.
7° - Não estamos, pois, de acordo.
8.º - Deste modo, comparar dois veículos com base nas suas características dimensionais, sem mais, para daí se retirar a medida do risco de cada um, parece-nos, salvo o muito e devido respeito, redutor e injusto.
9.° - O julgador parte de um pressuposto inerente a uma dimensão patológica da circulação estradai, que é a colisão entre veículos, onde "o maior" causa mais danos e por isso "é mais responsável".
10.º - No que se refere à capacidade de produção de danos de um veículo de quatro rodas e outro de duas rodas o primeiro pode, em teoria, causar mais danos por ser maior, no entanto, o segundo é menos estável e nessa medida mais susceptível de entrar em despiste embatendo noutro veículo, nomeadamente um automóvel, que dado o seu tamanho lha causará muitos mais danos que o contrário.
11.º - No entanto, ninguém poderá dizer que num caso destes, o risco de circulação do automóvel justificará o montante dos danos.
12.º - O que aqui somos a afirmar, é que a dimensão, por si só pouca luz poderá lançar, bem como os factos provados, sobre o qu de facto sucedeu.
13.º - Deste modo, tudo aquilo que se venha a adiantar no domínio da dinâmica sinistrai do caso concreto, é pura conjectura, estamos no domínio da dúvida.
14.º - Devendo considerar-se igual a medida da contribuição de cada um dos veículos intervenientes, tal como prevê o n.° 2 do artigo 506.° C.C..
15.º - A lei prevê situações com as características da que está em apreço e sobre elas estatui o que supra se referiu.
16.º - Por tudo quanto vai alegado e na medida do que decidiu a douta sentença quanto a este particular, julga a ora Ré ser de inteira justiça considerar a divisão do risco, no caso concreto em 50% para cada um dos intervenientes, devendo ser esta a medida percentual na condenação da Ré quanto aos montantes indemnizatórios seguintes, sem prejuízo do seu desacordo face aos montantes concretos.
17.º - Ao não o interpretar da forma acima assinalada, a decisão recorrida violou o disposto no artigo 506° do Código Civil.
18.º - O montante da condenação tem de ser reduzido de modo a que a condenação total da apelante não ultrapasse trinta mil euros. Na verdade, a ora Apelante foi condenado a título de risco, repartindo-se em igual proporção com o veículo do autor. Á data do sinistro, a responsabilidade pelo risco estava condicionada aos limites previstos no artigo 508, n.° 1 na redacção introduzida pelo Decreto-lei 190/85 de 24 de Junho, nos termos do qual a indemnização fundada em acidente de viação, quando não haja culpa do responsável, tem como limites máximos, no caso de morte ou lesão de uma pessoa o equivalente ao dobro da alçada da Relação.
19.º - Mas para o caso de se entender que o disposto no artigo 508.° do Código Civil não logra aplicação ao caso vertente em função do sentido normativo decorrente do direito comunitário derivado, bem como da sua alegada revogação tácita por força do disposto no artigo 6.° do DL n.° 522/85, de 31/12, vejamos que, também sobre este prisma, não assiste qualquer razão ao assim decidido.
20.º - A directiva, tratando-se de um acto que tem como destinatários os estados membros e que dirige imposições que estes devem satisfazer por via legislativa, regulamentar, administrativa ou outra, não é directamente aplicável na ordem jurídica interna, sendo necessária a actuação dos estados no sentido da sua transposição. Só após a mediação do estado, e por consequência e aplicação das suas regras próprias, se constituem direitos e obrigações para os particulares.
21.º - Ora, o efeito directo das directivas foi negado, atendendo justamente à teleologia da figura e à vontade dos outorgantes dos tratados constitutivos da comunidade, o que se compreende claramente atenta a nítida diferença de regime existente entre os regulamentos e as directivas.
22.º - Importa dizer que, ainda que se sufrague a interpretação da sentença recorrida, jamais o recorrente poderia ser condenado no presente processo nos termos pretendidos, uma vez que tal acarretaria a admissão do efeito directo horizontal das directivas.
23.º - Na verdade, o recorrente não é destinatário da directiva em causa nem tem a qualidade jurídica de estado membro da União Europeia.
24.º - Por outro lado, actuação do legislador interno é totalmente incompatível com a tese da revogação do artigo 508.° do Código Civil.
25.º - Tendo em conta a douta decisão quanto à apreciação do tipo de responsabilidade na eclosão do acidente, qual seja, a responsabilidade pelo risco, deve a indemnização fixada conter-se dentro do valor da alçada do tribunal da relação, ex vi o disposto no n.° 1, do artigo 508.° do Código Civil.
26.º - Assim sendo, a indemnização a pagar ao lesado, neste processo, deve situar-se dentro dos limites fixados no art.° 508.° - o dobro da alçada da Relação - € 30.000,00 -, e sempre de acordo com o supra alegado quanto à determinação da responsabilidade.
27.º - Ao não as interpretar e aplicar da forma acima assinalada o Tribunal a quo violou o artigo 1.° e 21.°.° do Decreto-lei n.° 522/85, de 31/12 e os artigos 249.° e 254.° n.° 1, do Tratado de Roma, o artigo 9.° e 508.° do Código Civil e o artigo 6° do Decreto - lei n. 522/85, de 31 de Dezembro.
Sem conceder,
28.º - Resulta dos factos provados que como consequência das lesões sofridas no acidente dos autos, o autor sofreu lesões que lhe determinaram uma incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual de marceneiro e para todo e qualquer trabalho e uma incapacidade permanente geral de 80%, algo que a ora Ré sempre reconheceu, ao contrário do que dá a entender supra o ilustre tribunal "a quo".
29.° - É igualmente indiscutível que resultou provado que o autor tinha, à data do acidente, 28 anos de idade trabalhando por conta de outrem, como polidor de móveis, auferindo o vencimento mensal de € 350,00 (trezentos e cinquenta euros) e que em consequência das lesões sofridas o autor, por não o poder fazer, jamais trabalhou.
30° - Consideraremos mais uma vez e em oposição ao que referiu o ilustre tribunal recorrido, que a esperança de vida activa do lesado é até aos 65 anos, não sendo inadmissível, por recurso a qualquer critério de equidade estender esse limite.
31.º - A equidade não é uma folha em branco na qual o julgador pode construir interpretações extensivas da lei.
32.º - No que respeita à reparação do dano corporal, a jurisprudência utiliza o critério de determinar um capital que produza rendimento de que o lesado foi privado e irá ser até final da sua vida, através do recurso a alguns métodos.
33.º - Na verdade, tais métodos não são absolutos, devendo ser aplicados como índices ou parâmetros temperados com a aplicação e um juízo de equidade.
34.º O Supremo tribunal de Justiça no Ac. STJ de 5/5/94, que, além de outros, divulgou a célebre forma matemática afirma desde logo "que o Tribunal não está confinado ao resultado de qualquer fórmula, nomeadamente daquelas em que se utilizam tabelas financeiras" - Revista "Sub Júdice", n°17, 2000, Janeiro/Março, pág.163.
35.º - O recurso a fórmulas é, pois, meramente indiciário, não podendo o julgador desvincular-se dos critérios constantes do art. 566° do Código Civil, mormente do referido no n°3, que impõe que se o tribunal não puder averiguar o montante exacto dos danos deve recorrer à equidade, nos termos do n°3 do art. 566° do Código Civil.
36.º - Deste modo, tendo em conta o critério da equidade reputa-se, a nosso ver e não obstante as considerações do aresto recorrido, adequada a indemnização de € 85.000,00 - a reduzir em 50% correspondente à sua contribuição para o sinistro.
37.° - Ao não os interpretar da forma acima assinalada, a decisão recorrida violou o disposto nos artigos 483°, 562° e 564°, n° 2, todos do Código Civil.
38.º - O que sai reforçado pela consideração de que no caso sub judice, não pode lograr aplicação face ao apelante a vertente sancionatória ou punitiva da indemnização. É que, a responsabilidade do apelante tem os traços de uma responsabilidade independente de culpa sua - cfr. o critério do art. 494° que ordena a valoração da culpa. E o valor atribuído na douta sentença recorrida deverá merecer aplicação justamente para os casos de especial gravidade e culpa e onde esta possa ser imputada.
39.° - Os danos de natureza não patrimonial sofridos pelo demandante como consequência do acidente são de muita gravidade e merecedores da tutela do Direito.
40.° - Quanto a este dano, entendemos ser o mesmo indemnizável autonomamente com a quantia de € 70.000,00 - a reduzir em 50% correspondentes à sua contribuição para o sinistro.
41.º - Ao não os interpretar da forma acima assinalada, a decisão recorrida violou o disposto nos artigos 483°, 562° e 564°, n° 2, todos do Código Civil.

O A. interpôs recurso subordinado, questionando os valores indemnizatórios que foram arbitrados a título de danos patrimoniais futuros e de danos não patrimoniais, contra-alegando ainda no recurso principal interposto pela seguradora, nos seguintes termos:

1ª- O douto recurso principal não deve merecer provimento e em consequência deve ser mantido o decidido no que tange à fixação do risco em 75%/ 25%; a não aplicação dos limites indemnizatórios do art. 508 C. Civil; a não redução da indemnização por se estar em presença de uma situação de risco, já que as alegações, em contrário, da recorrente principal, carecem de todo e qualquer fundamento.
2ª - O douto recurso subordinado deve merecer provimento e, em consequência fixar-se a indemnização pelo dano patrimonial futuro do recorrente subordinado em 220.000,00 Euros e o dano não patrimonial em 200.000,00 euros;
3ª -Quanto ao dano patrimonial futuro a decisão impugnada não teve em conta:
a) que o recorrente subordinado não ficou apenas com uma i.p.g. de 80% mas antes, impossibilitado de obter quaisquer rendimentos de trabalho, com carácter permanente e vitalício;
b) que a perda de ganhos futuros se irá prolongar previsivelmente por mais 47 anos, período durante o qual os seus rendimentos de trabalho à data do acidente iriam crescer substancialmente.
c) que o recorrente não só viu liquidado " tout court" os seus rendimento como viu acrescidas as suas despesas, v.g., com a contratação de uma terceira pessoa para dele cuidar.
d) Que o quantum indemnizatório foi encontrado, tendo em conta uma taxa nominal líquida de juro de 4%, sendo certo que essa taxa em 2009 foi de cerca de 1%, no corrente ano é de 0,5% e nos próximos anos não será muito diferente dos referidos números e que quanto menor for a taxa de juro, mais terá que ser o capital para produzir o mesmo rendimento, isso significa que o aqui recorrente subordinado no ano de 2009 necessitou de 4 vezes mais capital, no ano de 2010 de 98 vezes mais capital para gerar o mesmo rendimento e, que por isso, tem que viver à conta do capital até à taxa de juro atingir 4% ao ano.
4ª- Quanto ao dano não patrimonial a douta decisão recorrida não teve em conta os seguintes elementos relevantes:
a) que o recorrente subordinado ficou em vida vegetativa;
b) que vai suportar por cerca de 50 anos a sua impotência sexual;
c) que não vai poder reproduzir-se;
d) que não pode deixar de ter o sentimento de que, em consequência do acidente, tendo ficado vivo, acabou por morrer para a vida, por nada poder fazer e sem qualquer esperança.
3. As instâncias assentaram a solução jurídica do pleito na seguinte matéria de facto:

1. - Através de contrato de seguro, em vigor à data do acidente, titulado pela apólice n.° 000000000 a Ré assumiu a responsabilidade pelos danos provocados a terceiros pela circulação do veículo de matrícula 000000000.

2. - O Autor é beneficiário inscrito no Instituto de Solidariedade e Segurança Social com o número 000000000.

3. - O Instituto de Solidariedade e Segurança Social pagou ao Autor subsídio de doença, no período compreendido entre 14/02/2004 e 19/04/2005, no valor de € 3.542,62 (três mil quinhentos e quarenta e dois euros s sessenta e dois cêntimos).

4. - O Instituto de Solidariedade e Segurança Social pagou ao Autor prestação compensatória de subsídio de Natal do ano de 2004, no valor de € 194,48 (cento e noventa e quatro euros e quarenta e oito cêntimos).

5. - No dia 12 de Fevereiro de 2004, cerca das 13.10h., na Estrada Nacional - E.N. – nº 209, na denominada recta de Carvalhosa, da freguesia de Carvalhosa, ocorreu um embate entre o velocípede com motor, de matrícula “..........” conduzido pelo A. e o ligeiro de mercadorias, de matrícula “000000000”, conduzido por CC.

6. - A estrada Municipal denominada Rua da ...... entronca à esquerda na E.N. 209 atento o sentido Meixomil/Carvalhosa.

7. - Após o embate, o SJ ficou imobilizado na hemi-faixa direita atento o seu sentido de marcha no local indicado no croquis do auto de participação de acidente de viação junto aos autos a fls. 737 a 738.

8. - O 2PFR e o A. foram projectados para fora da EN 209 e ficaram caídos do lado direito dessa mesma estrada atento o sentido Meixomil/ Carvalhosa.

9. - No local a EN 209 tem 6,90m de largura, constitui uma recta e é pavimentada a betuminoso.

10. - O local do embate encontra-se entre placas indicativas de localidade e à sua margem existem dezenas de casas de habitação e comércio em comunicação directa com a EN 209.

11. - Em consequência do embate o A. sofreu: traumatismo crânio-encefálico com fractura temporo-parietal esquerda, deslocamento do pavilhão auricular direito, contusões temporoparietais, hematoma extra-dural temporal esquerdo, contusão frontal direita, hemorragia sub - aracnoideia, hematoma intra - canalar cervical de reduzidas dimensões (sem contusões medulares, hérnias traumáticas e sem desvio aparente da medula), fractura exposta do fémur direito, a qual foi reparada numa intervenção cirúrgica, com introdução de material de osteosintese e feridas incisas na mão direita e ferida aberta na região clavicular direita.

12. - Lesões que lhe determinaram, com carácter permanente e vitalício, hemiparésia direita e sindroma encefálico pós-traumático.

13. - Sequelas que lhe determinaram uma incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual de marceneiro e para todo e qualquer trabalho.

14. - E uma incapacidade permanente geral de 80%.

15. - O A. necessita da ajuda de uma terceira pessoa no seu dia a dia, pois é incapaz de cozinhar, lavar, limpar, lavar-se a si próprio, vestir-se, calçar-se, não se conseguindo manter de pé, sozinho.

16. - Trabalhava por conta de outrem, como polidor de móveis, auferindo o vencimento mensal de € 350,00 (trezentos e cinquenta euros).

17. - Em consequências das lesões sofridas o A., por não o poder fazer, jamais trabalhou.

18. - Em tratamentos médicos, medicamentos, meios complementares de diagnóstico e produtos descartáveis despendeu o A. uma importância de 10.000,00 € (dez mil euros).

19. - O A. no momento do acidente, e posteriormente, sofreu dores e esteve internado nos Serviços de Cuidados Intensivos do Hospital de S. João, durante uma semana, e num estado clínico entre a vida e a morte.

20. - Sofreu um “quantum doloris” de grau 6 (seis), bem como uma diminuição estética de grau 5 (cinco).

21. - Durante os seis meses subsequentes ao embate o A. não tinha conhecimento da sua própria identidade.

22. - O A. desde a data do acidente teve de ser acompanhado em tratamentos médicos, de recuperação e enfermagem, o que se prolongará por toda a sua vida.

23. - Por causa das sequelas sofridas o A. tem a sua vida confinada à casa em que habita, só saindo da mesma, acompanhado e auxiliado, para se deslocar aos tratamentos.

24. - O 2PFR ficou irreparável, sendo o seu valor à data do acidente o montante de €1.000,00 (mil euros).

25. - As lesões sofridas pelo Autor determinam-lhe, com carácter permanente, um prejuízo sexual fixável em grau 5/5.

26. - O A. nasceu no dia 31 de Março de 1975 – certidão de fls. 11.

4.A primeira questão suscitada pela entidade recorrente prende-se com a pretendida revisão da jurisprudência já uniformizada pelo STJ através do Ac. de 25/3/04, no sentido de que:

O segmento do art. 508º, nº 1, do Código Civil, em que se fixam os limites máximos da indemnização a pagar aos lesados em acidentes de viação causados por veículos sujeitos ao regime do seguro obrigatório automóvel, nos casos em que não haja culpa do responsável, foi tacitamente revogado pelo art. 6º do Dec.lei nº 522/85, de 31 de Dezembro, na redacção dada pelo Dec.lei nº 3/96, de 25 de Janeiro.

Tal orientação jurisprudencial foi justificadamente aplicada pelas instâncias à composição do presente litígio, não merecendo, como se irá referir, qualquer censura tal entendimento.
Não sendo, naturalmente, imutáveis as orientações jurisprudenciais definidas pelo pleno das secções cíveis do Supremo ao abrigo do julgamento ampliado da revista, nos termos do art.732º-A do CPC – ao contrário do que se verificava com os anteriores «assentos», dotados de força vinculativa geral – não pode seguramente pretender-se obter sistematicamente a livre revisibilidade da solução neles adoptada ( a realizar necessariamente pelo próprio plenário) sem que ocorram circunstâncias particulares justificativas, devidamente invocadas pela parte interessada.
Tal não acontece manifestamente no caso dos autos, já que a argumentação expendida pela seguradora recorrente nada adita de relevante e inovatório, relativamente à fundamentação constante daquele aresto.
Limita-se, na verdade, a recorrente a pretender que o dito acórdão teve «diversos votos de vencido», sendo convicção da recorrente que a solução acertada seria a sustentada em obra doutrinária que refere, da autoria de DD, bem como em diversos arestos, anteriores à referida uniformização de jurisprudência, sustentando ainda que a solução adoptada seria violadora os princípios de direito comunitário, por envolver aplicabilidade directa das directivas nos litígios entre particulares de um mesmo Estado, antes de as mesmas terem sido devidamente transpostas para a ordem jurídica interna.
Importa começar por salientar que as diversas declarações de voto apendiculadas ao dito acórdão uniformizador apenas sustentam a solução jurídica encontrada numa outra via argumentativa, que passa pela atribuição ao DL 59/2004, entretanto publicado, de «carácter interpretativo», aliás admitido pelo próprio acórdão, ao afirmar:

Na verdade, embora sem atribuir ao Dec.lei nº 59/2004 eficácia retroactiva, e não referindo expressamente se a nova redacção da norma do nº 1 do art. 508º do C.Civil tem natureza interpretativa (situação que, naturalmente, conduziria a que, em curto espaço de tempo, a jurisprudência e a doutrina se dividissem quanto ao carácter, interpretativo ou inovador, do preceito) afirma-se claramente no preâmbulo do diploma que "ainda que as directivas comunitárias sobre seguro automóvel não estabeleçam distinção entre responsabilidade com culpa e pelo risco, dizendo respeito ao seguro obrigatório e não à responsabilidade civil, tem-se entendido que os montantes mínimos do capital do seguro fixados pelo nº 2 do artigo 1º da Segunda Directiva têm de ser respeitados independentemente da espécie de responsabilidade civil em jogo".

Acrescentando-se que "procurando obviar-se a esta discrepância, fixou-se um novo critério de determinação dos limites máximos de indemnização, tendo nomeadamente em conta a evolução previsível ao nível comunitário dos montantes mínimos de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel e a criação de um mecanismo de actualizações periódicas e regulares daqueles montantes. Contudo, manteve-se o pensamento jurídico fundamental da existência de uma íntima relação entre os limites máximos de responsabilidade civil e o capital do seguro obrigatório. Segundo este princípio, a manutenção dos limites máximos de indemnização inferiores aos do capital do obrigatoriamente seguro constituiria um contra-senso do legislador, podendo prejudicar a garantia dos legítimos interesses dos lesados".

Cremos, também por isso, poder concluir que o próprio legislador reconhece e aceita (pelo menos não a desmente expressamente), por forma tácita, a interpretação que vem considerando que o segmento inicial do nº 1 do art. 508º do C.Civil foi tacitamente revogado pelo art. 6º do Dec.lei nº 522/85, na redacção que lhe foi dada pelo Dec.lei nº 3/96.

No mesmo sentido, veja-se ainda, por exemplo, o ac. de 14/4/2008, proferido no p. 08A479:

Entende-se, porém, que, embora o legislador não tenha atribuído eficácia retroactiva ao DL 59/2004 nem expressamente indique a natureza interpretativa da nova redacção que o mesmo diploma deu ao nº 1 do artigo 508º, se reconhece e aceita, face nomeadamente ao seu preambulo, que o legislador pretendeu, ainda que por forma tácita, atribuir-lhe essa natureza interpretativa no sentido precisamente definido no AUJ citado.
Perguntar-se-á, no entanto, qual a razão porque se entende que a revogação tácita do artigo 508º nº 1 (no seu segmento inicial) foi efectuada, apenas, pelo artigo 6º do DL 522/85, na redacção do DL 3/96.
A razão encontra-se exclusivamente na circunstância de, ainda que não expressamente, apenas com a publicação de tal diploma legal ter o Estado Português procedido à transposição da Directiva 84/5/CEE; não podemos esquecer que este instrumento legislativo comunitário finalisticamente destinado a uma aproximação de legislações relativas a valores do seguro mínimo obrigatório no espaço comum europeu fazia parte do acervo comunitário que Portugal se obrigou a transpor para a ordem jurídica nacional, tendo para tanto um prazo que terminava, após prorrogação, em 31 de Dezembro de 1995.
Embora, como se sublinha no Acórdão do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias de 14 de Setembro de 2002 (7) os limites máximos da indemnização fixados no nº 1 do artigo 508º do nosso Código Civil fossem incompatíveis com aquela Segunda Directiva, verdade é que, não tendo a mesma (e em geral nenhuma) efeito horizontal antes da transposição (não pode ser invocada contra um particular, pessoa singular ou colectiva) os seus efeitos ás relações situadas na esfera jurídico-privada só ocorrerão após a transposição.
Não efectuando o Estado a transposição de Directiva dentro do prazo que para tanto lhe foi concedido (no caso 31/12/1995) poderia, por força do seu efeito vertical se ele (Estado) demandado por particular lesado pela decorrente violação do direito comunitário (8).
Daí que para os tribunais nacionais, no quadro do exercício das suas competências jurisdicionais em situações de conflito jurídico-privado, a incompatibilidade a que alude o TJC (decorrente do principio geral de prevalência do direito comunitário sobre o direito nacional) só se manifeste de forma juridicamente relevante a partir da entrada em vigor do diploma (de direito interno) que proceda à transposição.
Ora, o próprio facto de o legislador atribuir ao DL nº 3/96 efeitos retroactivos a 1 de Janeiro de 1996, revela a preocupação no cumprimento do prazo de transposição da 2ª Directiva do Conselho de 39 de Dezembro de 1983 (84/5/CEE) – inicialmente a data de 31/12/1992, depois prorrogada para 31/12/1995 - no segmento que prevê que as leis dos Estados Membros não podem conter normas que limitem os montantes máximos de indemnização, em casos de responsabilidade civil pelo risco, a valores inferiores aos montantes mínimos de garantia fixados em tal Directiva, situação que afasta fundamento a qualquer entendimento no sentido de tal transposição ter sido operada por diploma anterior; como se refere no Acórdão deste Tribunal, de 9/11/2004 – proferido na revista nº 2874/04 – “ainda que se considere que a redacção dada ao artigo 508º nº 1 do Código Civil pelo artigo único do DL nº 59/2004, de 19/3, reveste natureza interpretativa, do preambulo daquele diploma bem como da jurisprudência fixada pelo AUJ nº 3/2004 resulta que a aplicabilidade do conteúdo daquele normativo se restringe às situações ocorridas após o inicio da vigência do DL nº 3/96, de 25/1, que teve lugar a 1 do mesmo mês – artigo 4º - a fim de poder, dessa forma, ser dado cumprimento pelo Estado Português ao prazo limite concedido para transposição da Directiva nº 84/5/CEE…”.


Não releva, por outro lado, a simples adesão da recorrente a orientações doutrinárias ou jurisprudenciais, anteriores à prolação do dito acórdão uniformizador – e , aliás, aí devidamente referenciadas e ponderadas (cfr. nota 6) : para alcançar a eventual revisão da jurisprudência uniformizada, seria necessário que o interessado invocasse factos, circunstâncias ou elementos inovatórios, não devidamente valorados no aresto proferido - e cuja relevância eventualmente pudesse impor a reapreciação das questões já decididas; é que, a não ser assim, permitindo-se a reabertura sistemática de certa controvérsia jurídica exclusivamente com base em argumentação já apreciada pelo plenário, seriam pouco menos que inúteis as figuras processuais que permitem ou impõem a uniformização da jurisprudência, fixando a solução que resolve determinado conflito jurisprudencial , precisamente para estabilizar o direito, pondo, em princípio , termo a uma situação de indesejável insegurança na aplicação da lei.

Note-se, finalmente, que é manifestamente improcedente o argumento esgrimido pela recorrente, no sentido de que a solução alcançada no referido acórdão uniformizador colide com princípios de direito comunitário, por envolver o reconhecimento do efeito directo de uma directiva no âmbito de um litígio entre particulares. Como se refere expressamente no acórdão uniformizador:

A directiva pode, portanto, ser invocada contra qualquer entidade pública, mas não pode, em princípio, ser invocada contra um particular, pessoa singular ou colectiva.
Será, assim, de recusar efeito directo horizontal à Directiva aludida, não transposta para a ordem jurídica portuguesa, e, por quanto vem de dizer-se, com eventual cabimento, apenas, numa acção contra o Estado.

A solução alcançada pelo plenário das secções cíveis não passou, deste modo, por atribuir a qualquer directiva comunitária um efeito directo horizontal, mas apenas por interpretar normas legais, pertencentes à ordem jurídica nacional, em conformidade com o direito comunitário, e dentro dos parâmetros consentidos pelas regras interpretativas internas , fixadas nas disposições gerais e introdutórias do CC.
Não se encontra, deste modo, qualquer fundamento para proceder à revisão e reponderação da orientação firmada pelo Supremo, cuja solução se mantém inteiramente.


5.A segunda questão suscitada pela entidade recorrente prende-se com a repartição do risco entre os veículos intervenientes na colisão que provocou os danos: Na verdade, enquanto na sentença proferida em 1ª instância – e perante a manifesta inviabilidade, perante a escassez da matéria de facto apurada quanto à dinâmica do acidente, de enquadrar o litígio em sede de responsabilidade subjectiva – se entendeu repartir em partes iguais os riscos causados pela circulação dos veículos em causa, no acórdão recorrido a Relação procedeu a uma repartição diversa dos riscos da circulação, atribuindo, respectivamente, as percentagens de 25% e 75% ao motociclo e ao veículo automóvel, com base na dimensão e características estruturais deste, que envolveriam um maior perigo para a circulação rodoviária e para as pessoas.
A seguradora recorrente insurge-se contra o decidido, por entender que – não se tendo apurado a dinâmica efectiva do acidente – o risco teria de ser necessariamente repartido em partes iguais entre os veículos intervenientes na colisão, sem que devesse representar um risco agravado as características dimensionais de um daqueles veículos relativamente ao outro.
Efectivamente, nos casos em que – como ocorre efectivamente na situação dos autos – as insuficiências no apuramento das circunstâncias fácticas do acidente inviabilizam de todo um juízo minimamente seguro e consistente sobre as causas do sinistro e as possíveis culpas dos respectivos intervenientes na sua eclosão, determina o art. 506º do CC, em sede de responsabilidade objectiva, que a responsabilidade é repartida na proporção em que o risco da circulação de cada um dos veículos houver contribuído para os danos, presumindo-se igual a medida dessa contribuição nos casos de dúvida, naturalmente fundada, sobre tal matéria.
Como é evidente, no apuramento dos concretos riscos de circulação pode e deve ter-se em conta tudo o que se tiver apurado sobre as concretas circunstâncias do acidente, mesmo que esses factos sejam insuficientes para fundar um juízo sobre a culpa dos respectivos condutores – mas podendo perfeitamente suceder que alguma ou alguma dessas circunstâncias concretas deva determinar um agravamento dos normais e típicos riscos de circulação de um dos veículos intervenientes.
Será, porém, lícito, nos casos em que a dinâmica do acidente permaneça indeterminada, inferir essa percentagem dos riscos típicos de circulação das características estruturais de cada um dos veículos intervenientes – e, desde logo, da sua dimensão relativa e peso? Considera-se que a resposta não poderá deixar de ser afirmativa, se se tiver em conta que a medida do risco causado com a circulação rodoviária de certa viatura se deve fixar em função da sua vocação ou apetência para, em caso de colisão, provocar danos acrescidos no outro ou outros intervenientes no sinistro: note-se que a maior fragilidade e menor grau de segurança de um dos veículos intervenientes numa colisão, enquanto determina efectivamente uma maior apetência para provocar danos relevantes ao seu próprio utilizador , implica uma típica redução do risco de lesão grave nos outros utilizadores da via pública que conduzam viaturas mais sólidas, pesadas ou estáveis. Ora, sendo este segundo o factor decisivo, é evidente que – como decidiu o acórdão recorrido e constitui, aliás, solução jurisprudencial corrente – é substancialmente maior a capacidade de um veículo automóvel infligir danos relevantes ao utilizador de um motociclo ou ciclomotor com o qual colida em circunstâncias indeterminadas do que a apetência para o segundo lesar gravemente o condutor do automóvel envolvido na colisão ( como é notório e resulta, de forma paradigmática, da gravidade extrema das lesões sofridas no acidente dos autos pelo condutor do velocípede com motor envolvido na colisão com a viatura segurada)…
Não merece, deste modo, qualquer censura a decisão recorrida, na parte em que – nada se mostrando apurado quanto à concreta dinâmica do acidente - fixou em graus diferenciados a percentagem dos riscos de circulação próprios de veículos dotados de características estruturais diferentes, dada a maior apetência do veículo de maiores dimensões para, em caso de colisão, provocar lesões graves nos demais utentes das vias públicas, que utilizem veículos de menor peso e dimensões.

Por outro lado – e ao contrário do sustentado pela recorrente - carece manifestamente de fundamento a pretensão de redução excepcional e equitativa do montante indemnizatório devido ao lesado, apurado através da aplicação a «teoria da diferença», numa situação com a configuração da dos presentes autos: é, por um lado, evidente que não há qualquer fundamento para aplicar a norma constante do art. 494º do CC a um caso de responsabilidade objectiva, cujo limite máximo está legalmente tabelado no art. 508º, em função de elementos totalmente estranhos ao grau de culpa de lesante e lesado e à comparação das situações económicas individuais de ambos; acresce que a aplicação de tal regime normativo carece de sentido num caso em que o valor indemnizatório devido vai ser necessariamente realizado, não pelo próprio lesante, mas pela sua seguradora, no âmbito do regime do seguro obrigatório da responsabilidade civil automóvel – instituído, como bem se sabe, para conferir tutela acrescida e efectiva aos lesados pela sinistralidade rodoviária.

6.A terceira questão suscitada pela seguradora – recorrente principal – e pelo A./lesado, como recorrente subordinado, prende-se com o valor atribuído à indemnização pelos danos patrimoniais futuros resultantes da total eliminação da capacidade aquisitiva do lesado, decorrente de uma IPG de 80% e de uma irremediável incapacidade permanente para todo e qualquer tipo de trabalho. Na verdade, tendo a Relação fixado o valor indemnizatório correspondente a tais danos em €120.000, ambas as partes questionam esse valor, pretendendo o lesado que a respectiva indemnização seja fixada em €220.000 e sustentando a seguradora que o valor indemnizatório alcançado pela 2ª instância se configura como excessivo, não devendo exceder o valor de €85.000,00.

Sendo inquestionável que o dever de indemnizar que recai sobre o lesante compreende os danos futuros, desde que previsíveis, quer se traduzam em danos emergentes ou em lucros cessantes, nos termos do art. 564º do CC, está fundamentalmente em causa o método de cálculo que deve ser adoptado para o cômputo da respectiva indemnização, cumprindo reconhecer que tal matéria suscita problemas particularmente delicados nos casos, como o dos autos, em que a taxa de incapacidade permanente é radicalmente elevada e o lesado se encontrava ainda numa fase próxima do início da sua carreira profissional, fortemente prejudicada pelas gravosas e irremediáveis sequelas das lesões físicas sofridas – envolvendo a necessidade de realizar previsões que abrangem muito longos períodos temporais.
Constitui entendimento jurisprudencial reiterado que a indemnização a arbitrar por tais danos futuros deve corresponder a um capital produtor do rendimento de que a vítima ficou privada e que se extinguirá no termo do período provável da sua vida, determinado com base na esperança média de vida (e não apenas em função da duração da vida profissional activa do lesado, até este atingir a idade normal da reforma): adere-se inteiramente a este entendimento, já que as necessidades básicas do lesado não cessam obviamente no dia em que deixa de trabalhar por virtude da reforma, sendo manifesto que será nesse período temporal da sua vida que as suas limitações e situações de dependência, ligadas às sequelas permanentes das lesões sofridas , com toda a probabilidade mais se acentuarão; além de que, como é evidente, as limitações substanciais às capacidades laborais do lesado não deixarão de ter fortes reflexos negativos na respectiva carreira contributiva para a segurança social, repercutindo-se no valor da pensão de reforma a que venha a ter direito.
Para evitar um total subjectivismo – que, em última análise, poderia afectar a segurança do direito e o princípio da igualdade – o montante indemnizatório deve começar por ser procurado com recurso a processos objectivos, através de fórmulas matemáticas, cálculos financeiros, aplicação de tabelas, com vista a calcular o referido capital produtor de um rendimento vitalício para o lesado, recebendo aplicação frequente a tabela descrita na Ac.de 4/12/07(p.07A3836), assente numa taxa de juro de 3%.
Porém, e como vem sendo uniformemente reconhecido, o valor estático alcançado através da automática aplicação de tal tabela «objectiva» - e que apenas permitirá alcançar um «minus» indemnizatório - terá de ser temperado através do recurso à equidade – que naturalmente desempenha um papel corrector e de adequação do montante indemnizatório às circunstâncias específicas do caso, permitindo ainda a ponderação de variantes dinâmicas que escapam, em absoluto, ao referido cálculo objectivo: evolução provável na situação profissional do lesado, aumento previsível da produtividade e do rendimento disponível e melhoria expectável das condições de vida, inflação provável ao longo do extensíssimo período temporal a que se reporta o cômputo da indemnização ( e que, ao menos em parte, poderão ser mitigadas ou compensadas pelo «benefício da antecipação», decorrente do imediato recebimento e disponibilidade de valores pecuniários que normalmente apenas seriam recebidos faseadamente ao longo de anos, com a consequente possibilidade de rentabilização em termos financeiros).
Finalmente – e no nosso entendimento – não poderá deixar de ter-se em consideração que tal «juízo de equidade» das instâncias, alicerçado, não na aplicação de um critério normativo, mas na ponderação das particularidades e especificidades do caso concreto, não integra, em bom rigor, a resolução de uma «questão de direito», pelo que tal juízo prudencial e casuístico das instâncias deverá , em princípio, ser mantido, salvo se o julgador se não tiver contido dentro da margem de discricionariedade consentida pela norma que legitima o recurso à equidade – muito em particular, se o critério adoptado se afastar, de modo substancial, dos critérios que generalizadamente vêm sendo adoptados, abalando, em consequência, a segurança na aplicação do direito, decorrente da adopção de critérios jurisprudenciais minimamente uniformizados, e , em última análise, o princípio da igualdade.

Aplicando estas considerações ao caso dos autos, verifica-se que:

-o lesado tinha 28 anos à data do acidente, tendo, pois, uma esperança média de vida próxima dos 50 anos;
- foi-lhe atribuída uma IPG de 80%, ficando irremediavelmente impossibilitado de exercer, para o resto da vida, qualquer actividade profissional;
-auferia um rendimento mensal de €350;
- são objecto de autónoma compensação – não impugnada no presente recurso – quer o dano associado à indispensabilidade de contratação vitalícia de terceira pessoa, que supra a total e irremediável falta de autonomia na sua vida pessoal, quer as despesas médicas e de tratamentos a realizar futuramente pelo lesado.

Tendo em conta tais circunstâncias fácticas e os critérios e valores jurisprudencialmente alcançados em situações análogas – salientando-se que, no caso dos autos, relevam decisivamente, e em sentidos opostos quanto ao cálculo da indemnização, quer o grau pleno de incapacidade, quer o montante reduzido dos rendimentos auferidos pelo lesado na ocasião do sinistro, (cfr. v. g. os Acs. de 25/6/09 (p.08B3234) , de 23/10/08(p.08B2318) e de 5/11/09 (p.381-2002.S1) - considera-se que não há fundamento para pôr em causa o valor fixado equitativamente para tal tipo de danos na 2ª instância.

Relativamente à argumentação desenvolvida no recurso interposto pelo seguradora, salienta-se que não se vê a menor razão para, face à extrema gravidade da incapacidade sofrida, proceder à pretendida redução do capital fixado pela Relação em consonância com a metodologia e os critérios jurisprudenciais presentemente seguidos pelos tribunais em situações de gravidade equiparável.

E não procede igualmente a argumentação desenvolvida pelo lesado no seu recurso subordinado, importando realçar, por um lado, que, no critério seguido pelas instâncias, já se não confinou a perda de rendimentos futuros ao estrito período de previsível vida profissional activa do A.: a circunstância de o valor pecuniário encontrado para o compensar da previsível perda de rendimentos futuros não ser mais elevado dependeu fundamentalmente do facto de o vencimento auferido à data do acidente ser muito baixo, não tendo ficado demonstrada a efectiva probabilidade de um eventual aumento dos valores de tal retribuição.

6. A última questão suscitada por ambos os recorrentes prende-se com o cômputo dos danos não patrimoniais, associados às sequelas das gravosas lesões físicas sofridas pelo sinistrado.
Considera-se que inexiste fundamento para pôr em crise o juízo equitativo formulado pela Relação para quantificar a indemnização compensatória de tal tipo de danos, já que o critério adoptado se conforma com os critérios que, numa jurisprudência actualista, vêm sendo seguidos em situações análogas ou equiparáveis – em que estamos confrontados com gravosas incapacidades que afectam, de forma profunda, radical e irremediável, a qualidade de vida dos lesados, ainda jovens no momento do acidente (veja-se, por exemplo, os Acs. proferidos por este Supremo em 28/2/08 e em 25/6/09, nos ps.08B388 e 08B3234). E adere-se, por outro lado, inteiramente ao entendimento subjacente, por exemplo, ao Ac. de 23/10/08, proferido no p:08B2318, segundo o qual, em situações limite de numerosas lesões físicas, de elevada gravidade e sofrimento para o lesado, acarretando profundíssimos sofrimentos e sequelas, o valor indemnizatório arbitrado como compensação dos danos não patrimoniais não tem como limite as quantias geralmente arbitradas a título de compensação da lesão do direito à vida (arbitrando-se à lesada, no verdadeiro caso limite aí debatido, indemnização no montante de €180.000).

7.Nestes termos e pelos fundamentos expostos, nega-se provimento , quer à revista principal da Ré seguradora, quer ao recurso subordinado do Autor. Custas pelos recorrentes, sem que esta condenação implique naturalmente qualquer preclusão do benefício de apoio judiciário outorgado ao lesado.


Lisboa, 07 de Outubro de 2010

Lopes do Rego (Relator)
Barreto Nunes
Orlando Afonso