Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07P4830
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: MAIA COSTA
Descritores: CRIME CONTINUADO
PRESSUPOSTOS
CULPA
CONCURSO DE INFRACÇÕES
ABUSO SEXUAL DE CRIANÇA AGRAVADO
CRIME DE TRATO SUCESSIVO
PREVENÇÃO ESPECIAL
PREVENÇÃO GERAL
MEDIDA CONCRETA DA PENA
Nº do Documento: SJ20080123048303
Data do Acordão: 01/23/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :

I - O fundamento da unificação criminosa consiste na diminuição da culpa do agente, resultante da “cedência” a uma solicitação exterior, e não na unidade de resolução criminosa ou na homogeneidade da actuação delitiva. Esta última, assim como a proximidade temporal das condutas, é um elemento meramente indiciário da continuação criminosa, que deverá ser confirmado pela verificação de uma solicitação exterior mitigadora da culpa. Por sua vez, a unidade de resolução criminosa nem sequer existe no crime continuado, pois o que caracteriza esta figura é precisamente a renovação de tal resolução perante as solicitações externas exercidas sobre o agente. Por isso, sempre que a repetição da conduta criminosa seja devida a uma tendência da personalidade do agente, a quaisquer razões de natureza endógena, que ocorra independentemente de qualquer solicitação externa, ou que decorra de oportunidade provocada ou procurada pelo próprio agente, haverá pluralidade de crimes e não crime continuado.
II - Estando em causa um crime de abuso sexual de crianças agravado, não pode aceitar-se que o «êxito» da primeira «operação» e das seguintes possa determinar a diminuição da culpa do arguido: este agiu determinado pela vontade de satisfazer os instintos libidinosos, como se diz no acórdão recorrido, e, para tanto, aproveitou as situações mais favoráveis para esse efeito, nomeadamente a ausência da sua mulher e mãe da ofendida. O aproveitamento calculado de situações em que a reiteração é mais propícia exclui, porque não diminui a culpa, o crime continuado. É, de resto, notório, que o arguido agiu determinado por uma única resolução, por ela levado a aproveitar todas as situações que facilitassem a prática dos actos ilícitos, e não formando sucessivamente novas resoluções perante circunstâncias favoráveis entretanto surgidas.
III - Da mesma forma, a não resistência da ofendida, embora certamente tenha facilitado a repetição do comportamento do arguido, também não pode atenuar a culpa, pois a atitude da ofendida terá normalmente resultado do ascendente que, como pai, o arguido tinha sobre ela, e não de um «acordo» entre ela e o arguido, que não se provou.
IV - Nem sequer se podem considerar homogéneas todas as condutas imputadas ao arguido, uma vez que uma delas, a descrita inicialmente na matéria de facto, assume claramente uma gravidade maior do que as restantes. Quando muito, poderia admitir-se a unificação num crime continuado das três condutas que consistiram em o arguido acariciar e chupar os seios da ofendida, condutas inteiramente homogéneas. Contudo, a homogeneidade não é condição suficiente da continuação criminosa, sendo essencial, como já se disse, que haja uma efectiva diminuição da culpa do agente, o que não sucede, pois que a repetição criminosa ficou a dever-se à persistente vontade do arguido em satisfazer os seus desejos, vontade essa que superou as normais inibições que estão ligadas às relações entre pais e filhos.
V - Em todo o caso, essas três condutas, se não podem ser unificadas em termos de continuação criminosa, podem sê-lo como crime de trato sucessivo, que se caracteriza pela repetição de condutas essencialmente homogéneas unificadas por uma mesma resolução criminosa, sendo que qualquer das condutas é suficiente para preencher o tipo legal de crime. Contrariamente ao que acontece no crime continuado, não há aqui qualquer diminuição de culpa, antes a reiteração criminosa, revelando uma persistência da resolução criminosa, encerra uma culpa agravada, que será medida de acordo com o número de condutas e respectiva ilicitude.
VI - Conclui-se, assim, que são imputáveis ao arguido dois crimes – um, constituído pelos factos descritos inicialmente na matéria de facto do acórdão recorrido, segundo os quais o arguido levou a ofendida para a sua cama e aí a acariciou e apalpou, ejaculando encostado à zona genital dela; o outro consistente nas diversas acções sucessivamente praticadas pelo arguido em dias diferentes e consistentes em acariciar e chupar os seios da ofendida – qualquer deles enquadrável no tipo legal dos arts. 172.º, n.º 1 (agora art. 171.º, n.º 1, após a publicação da Lei 59/2007), e 177.º, n.º 1, al. a), do CP, embora a ilicitude do primeiro seja sem dúvida mais acentuada.
VII - Tendo em conta que a moldura penal em causa é de 1 ano e 4 meses a 10 anos e 8 meses de prisão, considera-se adequado, face à ilicitude dos factos e às necessidades de prevenção geral, especialmente fortes neste domínio, mas também de prevenção especial, e atendendo ainda a que o arguido nem sequer confessou os factos, não beneficiando de qualquer atenuante que não seja a da ausência de antecedentes criminais, condenar o arguido pelos factos descritos inicialmente na acusação em 4 anos de prisão e pelos restantes em 2 anos e 6 meses de prisão, sendo a pena unitária fixada em 5 anos e 9 meses de prisão.

Decisão Texto Integral:


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I. RELATÓRIO

O Tribunal Colectivo do 2º Juízo Criminal de Évora condenou o arguido AA na pena de 5 anos e 6 meses de prisão, pela prática de um crime de abuso sexual de criança agravado, na forma continuada, p. e p. pelos arts. 172º, nº 1, 177º, nº 1, a) e 30º, todos do CP, o primeiro na versão anterior à Lei nº 59/2007, de 4-9.
Desta decisão recorreram o MP e o arguido.
O MP formulou as seguintes conclusões da sua motivação:

1ª – “Só há crime continuado quando se verifica uma diminuição considerável da culpa do agente que deriva de um condicionalismo exterior que propicia a repetição de várias acções criminosas, mediante um procedimento que se reveste de um certa uniformidade.”
2ª - “O fundamento da diminuição da culpa encontra-se assim no circunstancialismo exógeno que precipita e facilita as sucessivas condutas do agente, e o pressuposto da continuação criminosa deverá ser encontrado numa relação que, de modo considerável e de fora, facilitou aquela repetição”.
3ª – Os factos provados nestes autos devem ser qualificados não como um crime continuado de abuso sexual de criança agravado, mas antes como um concurso efectivo de dois crimes de abuso sexual de criança agravados.
4ª - Assim o impõe o art. 30.°, do Código Penal, no seu n° 2, nomeadamente porque nenhum facto se provou susceptível de enquadrar uma diminuição considerável da culpa do agente, que o douto acórdão recorrido violou ao não entender assim.
5ª- Trata-se de um concurso efectivo de dois crimes de abuso sexual de criança agravados.
6ª - Assim o impõe o art. 30.°, do Código Penal, no seu n.° l, quando dispõe: “O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente”, que o douto acórdão igualmente violou ao não aplicar desse modo aquele preceito legal.
7ª - Uma interpretação que torne automática a aplicação do último segmento do n° 3, do actual art. 30°, do Código Penal, seria violadora dos princípios constitucionais no que tange à dignidade da pessoa humana e ao direito à integridade física e moral das pessoas.
8ª – Em resultado da diferente qualificação jurídica, verificando-se uma situação de concurso de crimes de abuso sexual de crianças agravados, haverá que rectificar a pena aplicada, à luz do disposto nos arts. 71° e 77°, n°s l e 2, do Código Penal.

Por sua vez, o arguido concluiu assim a sua motivação:

1 – O arguido foi condenado na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão.
2 – Tem modesta condição sócio-económica.
3 – Sempre trabalhou, tendo a sua vida profissional organizada, e ajudando financeira e economicamente a sua família.
4 – Estava, antes de ser detido, socialmente integrado.
5 – Os factos reportam-se a um curto período temporal, verão de 2006, sendo certo que, nem antes nem depois, houve notícia de que o arguido tivesse praticado qualquer tipo de crime.
6 – Nada consta do seu C.R.C., sendo um arguido primário e trata-se da sua primeira condenação.
7 – A pena de prisão efectiva terá como finalidade satisfazer as necessidades de reprovação e prevenção, sendo certo que a suspensão da execução da pena deverá ter como base uma prognose social favorável ao arguido, a esperança de que o mesmo sentirá a sua condenação como uma advertência tão forte que não cometerá, no futuro, nenhum crime.
8 - Assim, o facto de o arguido se encontrar detido à ordem dos presentes autos, desde 20 de Novembro de 2006, e que a mesma (detenção em cerca de um ano), em conjugação com a ameaça da pena e com o período de inibição do exercício do poder paternal, já satisfaz de forma adequada as finalidades da punição geral e especial.
9 – Pelo que não deveria ter sido aplicada ao arguido a pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão efectiva, por se mostrar demasiado severa e gravosa.
10 – A pena deverá, então, assumir uma finalidade ressocializadora e só seria de optar por uma pena efectiva se houvesse uma exigência tão forte de prevenção geral que fosse comunitariamente insuportável que o arguido fosse restituído à liberdade, o que no caso concreto não se perfilha.
11 – Face às circunstâncias acima alegadas, deve a pena aplicada ao recorrente ser reduzida para 3 (três) anos, suspensos na sua execução por 5 (cinco), mantendo-se a sanção acessória de inibição do exercício do poder paternal pelo período de 6 (seis) anos e a obrigação de pagamento de uma prestação de alimentos a seus filhos.
12 – É verdade que o Tribunal recorrido citou os critérios constantes do artigo 71.° do Código Penal. Mas,
13 – O Tribunal “a quo” violou o preceituado no artigo 71° ao não ponderar todos os factores que devem ser ponderados na aplicação da medida concreta da pena, limitando-se a considerar todos os factos pela sua gravidade, ignorando e abstendo-se de conhecer factores que se consideram relevantes para a determinação da medida concreta da pena, como são: as condições pessoais do agente e a conduta anterior e posterior aos factos, tal como, o facto de esta condenação acarretar consequências familiares a nível económico.
14 – Bem como o preceituado no artigo 50.° do Código Penal, pois no presente caso o arguido é delinquente primário, nada constando do seu certificado de registo criminal, os factos ocorrem num determinado período, bem delimitado no tempo, o que nos permite concluir, como já foi dito, que o período de detenção de cerca de l (um) ano, a censura do facto, a ameaça da pena e a inibição do exercício do poder paternal, são suficientes para o afastar da reincidência, satisfazendo as necessidades de reprovação e prevenção do crime.
15 – Por estas razões devem as penas aplicadas ser reponderadas e atenuadas, sob pena da reintegração do recorrente se encontrar prejudicada, tal como a da vida familiar.

O MP teve vista dos autos.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO

É a seguinte a matéria de facto apurada:

O arguido é casado com S...., de quem tem dois filhos, um dos quais, T..., nascida a 23 de Maio de 1995.
O casal depois de ter imigrado para Portugal, vindos do Brasil, de onde é natural, e após permanecer um período em Lisboa, veio com os filhos, concretamente com a filha T..., residir na zona de Évora.
O arguido com S... e os filhos residiam no Monte .... d, Évora, onde o arguido e S.. trabalhavam.
S... ausentava-se, por vezes, por curtos períodos, para ir a Lisboa tratar de assuntos em virtude da casa que tinham nessa cidade, pelo facto de aí terem morado, o que fazia sozinha, tendo chegado em mais do que uma ocasião a pernoitar naquela cidade.
Numa dessas ocasiões, à noite, em período que coincide com o Verão de 2006, em data não concretamente apurada, quando S... tinha ido a Lisboa e aí ficado a pernoitar, ficando o arguido sozinho em Évora com os filhos, o arguido decidiu levar a menor T...a manter consigo práticas sexuais com vista à satisfação dos seus instintos libidinosos, bem sabendo qual era a idade daquela menor, sua filha.
Assim, o arguido levou a menor consigo para a cama do casal.
A menor estava apenas vestida com cuecas e soutien e o arguido tinha apenas uns calções ou peça de vestuário semelhante.
Deitado na cama com a menor, o arguido acariciou os seios e a zona genital dela, colocou a mão na zona vulvar e da vagina da menor onde mexeu com os dedos, e, tendo colocado o pénis erecto fora dos calções e afastado as cuecas da menor na zona genital, colocou o seu corpo sobre o corpo da menor e friccionou o pénis que tinha tirado para fora dos calções e a zona genital contra a zona genital dela também fora da roupa, em movimentos oscilatórios do corpo, aí ejaculando, sem penetração vaginal.
Em seguida, a menor levantou-se e foi à casa de banho, onde viu um líquido nas pernas, que desconhecia e que era o esperma do arguido.
Quis o arguido satisfazer os seus instintos libidinosos, o que conseguiu, sempre ciente de qual era a idade da criança.
Obedecendo sempre ao seu desejo de satisfazer aqueles instintos libidinosos, o arguido, que frequentemente tocava nos seios da menor por cima da roupa, pelo menos em três outras ocasiões, na ausência de S..., em datas não concretamente apuradas, no interior da residência, levantou a blusa da menor e chupou-lhe os seios.
Ao fazê-lo, chupando e acariciando os seios da menor, para satisfazer os seus instintos libidinosos, agia o arguido sempre do mesmo modo e com o propósito único de satisfazer tais instintos, usando, para esses fins, a menor T....
Quer quando deitou a menor na sua cama e a acariciou e lhe mexeu na zona vulvar e vaginal, aí friccionando o pénis e ejaculando, quer quando acariciava e chupava os seios da menor, sabia o arguido que molestava a menor T...nos seus sentimentos mais íntimos e que a impedia de dispor livremente do seu corpo e da sua sexualidade.
Sabia o arguido, ao agir da forma descrita, que os mencionados contactos físicos que estabeleceu com a menor T..., conforme se deixou descrito, eram dotados de elevada intensidade sexual e que eram idóneos a prejudicar o desenvolvimento harmónico daquela menor na sua esfera sexual, em função da sua pouca idade.
Sabia o arguido que punha também em causa a livre determinação sexual da menor e que a mesma não tinha idade para se determinar livremente para a prática de actos sexuais daquela natureza.
Teve o arguido sempre plena consciência de qual era a idade da menor T... e que mesma era sua filha.
Agiu o arguido sempre deliberada e conscientemente, bem sabendo que lhe eram proibidas tais condutas.
O arguido não confessou a prática dos factos, tão pouco demonstrando qualquer arrependimento.
É casado. Tem 42 anos. Antes de detido, vivia com a mulher (a testemunha S...), a filha de ambos (T...Azevedo) e um filho com 15 anos.
Tem o 12º ano. Trabalhava como treinador de cavalos, ganhando cerca de € 570,00 mensais.
A mulher é cozinheira em restaurantes.
Nada consta do respectivo CRC.
Encontra-se detido à ordem dos presentes autos desde 20-11-2006.

O MP coloca uma única questão: a da errada qualificação dos factos como um crime continuado abrangendo todas as condutas imputadas ao arguido, entendendo que o arguido cometeu dois crimes.
Este, por sua vez, apenas questiona a medida da pena, a qual pretende que seja reduzida a 3 anos e suspensa na sua execução.

Crime continuado
Nos termos do art. 30º, nº 2 do CP, constitui um único crime a prática repetida do mesmo tipo legal de crime, executada de forma essencialmente homogénea, e no quadro de uma solicitação exterior que diminua a culpa do agente.
Este último elemento constitui o fundamento da unificação criminosa: a diminuição da culpa do agente, resultante da “cedência” a uma solicitação exterior. Por isso, sempre que a repetição da conduta criminosa seja devida a uma tendência da personalidade do agente, a quaisquer razões de natureza endógena, ou sempre que ocorra independentemente de qualquer solicitação externa, ou que decorra de oportunidade provocada ou procurada pelo próprio agente, haverá pluralidade de crimes e não crime continuado.
O elemento unificador das condutas consiste na diminuição de culpa do agente, e não na unidade de resolução criminosa ou na homogeneidade da actuação delitiva. Esta última, assim como a proximidade temporal das condutas, é um elemento meramente indiciário da continuação criminosa, que deverá ser confirmado pela verificação de uma solicitação exterior mitigadora da culpa. Por sua vez, a unidade de resolução criminosa nem sequer existe no crime continuado, pois o que caracteriza esta figura é precisamente a renovação de tal resolução perante as solicitações externas exercidas sobre o agente.
Analisemos agora o caso dos autos. Note-se que na acusação eram imputados ao arguido dois crimes. Contudo, o tribunal considerou que os factos se deviam integrar num único crime continuado, “ante o modo homogéneo como as situações exteriores em causa nos surgem, num mesmo quadro de solicitação exterior, potenciada pelo êxito das sucessivas operações levadas a cabo, num período temporal limitado”.
Não se pode, no entanto, aceitar que o “êxito” da primeira “operação” e das seguintes possa determinar a diminuição da culpa do arguido. Este agiu determinado pela vontade de satisfazer os instintos libidinosos, como se diz no acórdão recorrido, e, para tanto, aproveitou as situações mais favoráveis para esse efeito, nomeadamente a ausência da sua mulher e mãe da ofendida. O aproveitamento calculado de situações em que a reiteração é mais propícia exclui, porque não diminui a culpa, o crime continuado.
Aliás, é notório que o arguido agiu determinado por uma única resolução, por ela levado a aproveitar todas as situações que facilitassem a prática dos actos ilícitos, e não formando sucessivamente novas resoluções perante circunstâncias favoráveis entretanto surgidas.
Da mesma forma, a não resistência da ofendida, embora certamente tenha facilitado a repetição do comportamento do arguido, também não pode atenuar a culpa, pois a atitude da ofendida terá normalmente resultado do ascendente que, como pai, o arguido tinha sobre ela, e não de um “acordo” entre ela e o arguido, que não se provou.
Acresce que nem sequer se podem considerar homogéneas todas as condutas imputadas ao arguido, uma vez que uma delas, a descrita inicialmente na matéria de facto, assume claramente uma gravidade maior do que as restantes.
Quando muito, poderia admitir-se a unificação num crime continuado das três condutas que consistiram em o arguido acariciar e chupar os seios da ofendida, condutas inteiramente homogéneas. Contudo, a homogeneidade não é condição suficiente da continuação criminosa, sendo essencial, como já se disse e repetiu, que haja uma efectiva diminuição da culpa do agente.
Mas tal não se provou, como já ficou referido. A repetição criminosa ficou a dever-se à persistente vontade do arguido em satisfazer os seus desejos, vontade essa que superou as normais inibições que estão ligadas às relações entre pais e filhos.
Em todo o caso, essas três condutas, se não podem ser unificadas em termos de continuação criminosa, poderão sê-lo como crime de trato sucessivo.
O crime de trato sucessivo caracteriza-se pela repetição de condutas essencialmente homogéneas unificadas por uma mesma resolução criminosa, sendo que qualquer das condutas é suficiente para preencher o tipo legal de crime. Contrariamente ao que acontece no crime continuado, não há aqui qualquer diminuição de culpa, antes a reiteração criminosa, revelando uma persistência da resolução criminosa, encerra uma culpa agravada, que será medida de acordo com o número de condutas e respectiva ilicitude.
É neste âmbito que se integram aqueles comportamentos do arguido acima referidos. Eles incluem-se numa série de actos homogéneos, obedecendo à mesma resolução criminosa, e praticados com frequência.
Não existe aqui uma culpa diminuída pela repetição criminosa. Pelo contrário, a repetição do crime revela uma resolução criminosa persistente, uma ilicitude e culpa acrescidas.
Conclui-se, assim, que são imputáveis ao arguido dois crimes: um constituído pelos factos descritos inicialmente na matéria de facto do acórdão recorrido, segundo os quais o arguido levou a ofendida para a sua cama e aí a acariciou e apalpou, ejaculando encostado à zona genital dela; o outro consistente nas diversas acções sucessivamente praticadas pelo arguido em dias diferentes e consistentes em acariciar e chupar os seios da ofendida.
Qualquer destes crimes se deve enquadrar no tipo legal dos arts. 172º, nº 1 (agora art. 171º, nº 1, após a publicação da Lei nº 59/2007) e 177º, nº 1, a) do CP, embora a ilicitude do primeiro seja sem dúvida mais acentuada.
Procedem, pois, os argumentos do MP.

Medida da pena
A integração dos factos em dois crimes, e não num único, conforme consta da decisão recorrida, obriga necessariamente à sua revisão também quanto à pena fixada.
Contudo, há que apreciar os argumentos do arguido relativos à medida da pena. Argumentos esses que são notoriamente insubsistentes.
Na verdade, é de todo insustentável a sua pretensão de redução da pena nos termos por ele enunciados, atendendo à ilicitude e à culpa, e daí a impossibilidade de atender à sua pretensão de ver suspensa a pena.
Pelo contrário, a reacção penal não poderá deixar de ser agravada, pela prática de dois crimes e não de um, conforme vinha condenado.
Tendo em conta que a moldura penal em causa é de 1 ano e 4 meses a 10 anos e 8 meses de prisão, considera-se adequado, face ainda à ilicitude dos factos e às necessidades de prevenção geral, especialmente fortes neste domínio, mas também de prevenção especial, e atendendo ainda a que o arguido nem sequer confessou os factos, não beneficiando de qualquer atenuante que não seja a da ausência de antecedentes criminais, considera-se adequado condenar o arguido pelos factos descritos inicialmente na acusação em 4 anos de prisão e pelos restantes em 2 anos e 6 meses de prisão, sendo a pena unitária fixada em 5 anos e 9 meses de prisão.


III. DECISÃO

Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso do arguido, mas julga-se procedente o recurso do MP, condenando-se o arguido, como autor de dois crimes de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelos arts. 172º, nº 1 (agora art. 171º, nº 1) e 177º, nº 1, a) do CP, nas penas parcelares de 4 (quatro) anos de prisão e 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, fixando-se a pena única em 5 (cinco) anos e 9 (nove) meses de prisão.
Vai o arguido condenado em 8 UC de taxa de justiça.


Lisboa, 23 de Janeiro de 2008


Maia Costa (relator)
Pires da Graça
Pereira Madeira