Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
15910/21.3T8PRT.P1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: NUNO ATAÍDE DAS NEVES
Descritores: DECISÃO SURPRESA
RECURSO DE REVISTA
INADMISSIBILIDADE
CONTRA-ALEGAÇÕES
NULIDADE DE ACÓRDÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
ARGUIÇÃO DE NULIDADES
REFORMA DE ACÓRDÃO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
PRINCÍPIO DA ECONOMIA E CELERIDADE PROCESSUAIS
Data do Acordão: 01/19/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: RECLAMAÇÃO INDEFERIDA
Sumário :
Não existe violação do princípio do contraditório, na vertente da proibição das decisões surpresa, quando, embora podendo as partes ser ouvidas nos termos do art. 655.º, n.º 1, do CPC, por se afigurar ao tribunal que não deverá tomar conhecimento do recurso, por inadmissibilidade legal, explicitando sumariamente por que ordem de motivos assim o entende, quando nas contra-alegações o recorrido se pronunciou em termos suficientemente claros e alargados no sentido da inadmissibilidade do recurso, porquanto em tais condições, ficou o recorrente suficientemente alertado para essa eventualidade decisória, ou seja, o teor das contra-alegações no sentido da inadmissibilidade legal do recurso.
Decisão Texto Integral:

Proferido o Acórdão de 29.11.2022, que rejeitou a revista, por inadmissível, nela foi aposta a declaração de voto da Ex.ma Senhora Juíza Adjunta Conselheira Fátima Gomes), que teve o seguinte teor:Voto a decisão no sentido da inadmissibilidade da revista por não se enquadrar no art.º 671.º do CPC, nos diversos números, mas considero que se deveria ter equacionado a audição dos recorrentes relativamente à mesma, decidindo-se por despacho individual a não admissão do recurso, sujeito a conferência, sendo caso disso”.

Inconformada com aquela decisão colectiva, veio a recorrente SANTA CLARA AÇORES FUTEBOL, S.A.D., “nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 615.º, n.º 1, alínea d), 666.º, n.º 1 e 685.º, todos do CPC, arguir a NULIDADE DO ACÓRDÃO, e subsidiariamente, caso assim não se entenda, requerer a REFORMA do mesmo, com fundamento no disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 616.º do CPC, aplicável ex vi dos citados artigos 666.º e 685.º do CPC.”

Concluiu as suas alegações nos termos seguintes:

A. É um facto que a admissão do recurso pelo tribunal recorrido não vincula o tribunal superior, mas a prolação de acórdão de não admissão do presente recurso de revista sem prévia notificação do Recorrente constitui, no nosso modesto entendimento violação do consignado no artigo 3.º, n.º 3, do CPC.

B. Com efeito, tal inciso normativo reproduz um estrutural e magno princípio de direito adjetivo, através do qual se postula e preconiza uma ativa (e não meramente simbólica ou secundária) participação e contributo das partes no desenvolvimento do processo, facultando-lhe a oportunidade de convencer o Tribunal da bondade dos seus argumentos, evitando-se decisões sem que estas tenham tido a plena capacidade de as influenciar (previamente à sua tomada).

C. Ora, foi exatamente esta a situação dos autos, com a rejeição do recurso de revista sem se ter consultado previamente a Recorrente de tal intenção ou pré-juízo formulado, para assim lhe permitir esse fundamental exercício do direito de «influência» sobre o processo, e sempre em momento antecedente da decisão jurisdicional, porque só assim granjeia utilidade o preceito e se possibilita o exercício efetivo do direito.

D. Conforme defendido pelo aresto do Supremo Tribunal de Justiça, 13.10.020, Processo n.º 392/14.4.T8CHV-A.G1.S1, também se conclui que: “A violação do princípio do contraditório do art. 3º, nº 3 do CPC dá origem não a uma nulidade processual nos termos do art. 195º do CPC, que origina a anulação do acórdão, mas a uma nulidade do próprio acórdão, por excesso de pronúncia, nos termos arts. 615º, nº 1, al. d), 666º, n.º 1, e 685º do mesmo diploma”, donde se requer a V. Exas. que reconheçam e declarem a referida nulidade do acórdão, ordenando a subsequente tramitação dos autos, com respeito pelo princípio processual agasalhado no n.º 3 do artigo 3.º do CPC.

E. À margem da nulidade do referido Acórdão, entende a Recorrente que a decisão jurisdicional ora sob apreciação, fez errada interpretação da lei, tendo ocorrido erro na determinação da norma diretamente aplicável à situação dos autos, o que a verificar-se teria conduzido à admissibilidade do recurso de revista.

F. Na verdade, a Recorrente escudou a sua pretensão recursória com base no disposto no artigo 673.º, alínea a) do CPC, norma que, tanto quanto se vislumbra do Acórdão aqui em apreço, não foi merecedora de qualquer cognição, análise ou ponderação, seja no sentido de excluir, fundamentadamente, a sua aplicação, seja no sentido de a contrario sensu, defender a sua impropriedade ao caso dos autos.

G. Ora, tendo presente o disposto no n.º 1 do artigo 629.º do CPC, a regra é a da recorribilidade das decisões judiciais (salvaguardados os seus pressupostos – valor da ação, sucumbência, tempestividade, legitimidade).

H. Ao ter rejeitado o presente recurso de revista interposto, o Acórdão de 29.11.2022 acabou por doutrinar a inadmissibilidade do recurso (ainda que versando questão processual), deixando a parte processual afetada por tal decisão impossibilitada de aceder a um segundo grau de jurisdição.

I. Nesta perspetiva, crê-se honestamente que o artigo 673.º do CPC, que a Recorrente expressamente alegou/convocou no seu requerimento de interposição do recurso, serve o propósito de franquear o acesso ao tribunal de cúpula (que numa situação prototípica estaria excluído), nos casos em que a Relação decide pela primeira vez sobre tal questão, funcionando o Supremo, não como terceiro grau de jurisdição, mas sim, e como verdadeiro tribunal de recurso (2.ª instância) dessa decisão interlocutória nova.

J. Na verdade, preconiza igualmente o legislador constitucional que “Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo” – vide n.º 4 do artigo 20.º da CRP, sendo que processo equitativo representa, nos presentes autos, a faculdade da parte recorrer (para o grau de jurisdição superior) de uma primeira decisão que lhe é favorável.

K. Entende a Recorrente que o disposto no artigo 673.º, alínea a) do CPC, por si convocado aquando da interposição do recurso, estende e amplia as possibilidades do recurso de revista, tal como configurado no artigo 671.º do CPC, constituindo deste modo um fundamento autónomo e adicional do recurso de revista.

L. Partindo da análise e raciocínio expendidos no aresto deste Supremo Tribunal de Justiça, 28.10.2021, Processo n.º 598/18.7T8LSB.L1.S1, é possível concluir que o artigo 673.º do CPC consagra a possibilidade de revista autónoma porque separada/distinta quanto aos pressupostos de recorribilidade plasmados no artigo 671.º do CPC:

M. Volvendo ao caso dos autos é manifesto que estamos perante acórdão proferido na pendência do processo na Relação, sendo que a eventual impugnação com o recurso de revista (final) seria absolutamente inútil, porque nenhum efeito poderia produzir – assim se encaixando a situação sub iudicio na alínea a) do artigo 673.º do CPC (invocado em sede do requerimento de interposição do recurso).

N. O acórdão recorrido é daqueles que taxativamente cabe no âmbito de aplicação própria do artigo 673.º do CPC, pelo que sempre se imporia a sua admissibilidade por força do estatuído em tal norma:

“Os acórdãos do Tribunal da Relação referidos no artigo 673.º do Código de Processo Civil são proferidos sobre questões suscitadas na pendência do processo no Tribunal da Relação e não têm por objeto decisões da 1.ª instância”

(…) O artigo 673.º daquele código refere-se assim a decisões proferidas em 1.ª instância no Tribunal da Relação na pendência do processo naquele Tribunal.

Trata-se de uma norma que dá continuidade ao regime que resultava do n.º 2 do artigo 721.º do anterior Código de Processo Civil e que era do seguinte teor: «2. Os acórdãos proferidos na pendência do processo na Relação apenas podem ser impugnados no recurso de revista que venha a ser interposto nos termos do número anterior, com exceção: a) dos acórdãos proferidos sobre incompetência relativa da Relação; b) dos acórdãos cuja impugnação com o recurso de revista seria absolutamente inútil; c) nos demais casos expressamente previstos na lei», na linha da solução do artigo 754.º, n.º 2 do mesmo código, na versão em vigor da reforma do regime dos recursos resultante do Decreto Lei n.º 303/2007, de 24 de agosto.

Comentando aquele dispositivo do anterior Código de Processo Civil, referem Lebre de Freitas e Ribeiro Mendes in Código de Processo Civil Anotado, Volume 3.º, Coimbra Editora, 2008, pp. 143 e ss. que «Além destes casos, pode haver revistas novas, isto é, revistas interpostas de decisões que apreciaram questões, as mais das vezes de natureza processual, decididas pela primeira vez pela Relação. É o que acontece em três situações tipificadas nas alíneas do n.º 2: acórdãos proferidos sobre incompetência relativa da relação; acórdãos cuja impugnação com o recurso de revista seria absolutamente inútil, (…), outros acórdãos em casos expressamente previstos na lei». – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 25.11.2020, Processo n.º 1109/11.0TTPRT-D.P1.S1.

O. Por se tratar de revista autónoma ou revista nova incidente sobre questão interlocutória nova, é que é de aplicar o disposto na alínea a) do artigo 673.º do CPC, sendo absolutamente inútil a apreciação de tal questão se apenas vier a ser conhecida do recurso de revista interposto a final. P. Termos em que, com base nos fundamentos apresentados, respeitosamente se crê que houve erro na determinação da norma aplicável, impondo-se a reforma do Acórdão, sendo de aplicar nos presentes autos, não o consignado no artigo 671.º do CPC, mas antes o disposto no artigo 673.º, alínea a), do CPC, tal como peticionado,

Q. Dado tratar-se inequivocamente de revista autónoma ou revista nova incidente sobre questão interlocutória nova, e cujo recurso de revista a final seria absolutamente inútil, atenta a consumação de todos os efeitos que o recurso (se procedente) visa impedir, com a consequente pronúncia de admissibilidade do recurso de revista interposto.

Nestes termos e nos melhores de Direito aplicáveis, sempre com o mui douto amparo e sapiência de V. Exas., tendo presentes os fundamentos retro apresentados, requer-se o reconhecimento e declaração de nulidade do Acórdão aqui em apreço, ou caso assim não se entenda, subsidiariamente, seja o mesmo reformado, com a consequente pronúncia favorável à sua admissibilidade ex vi alínea a) do artigo 673.º do CPC, com todas as legais consequências, assim se fazendo a devida e costumeira Justiça.”

Veio a recorrida DNN, L.da responder, pugnando pela inadmissibilidade da revista e no sentido da manutenção da decisão ora impugnada.

APRECIANDO:


Considerando a recorrente que este Supremo Tribunal, ao decidir no sentido da rejeição da revista, por inadmissibilidade legal, sem previamente a ter ouvido, nos termos do art. 655º nº 1 do CPC, cometeu nulidade por omissão de pronúncia, por não ter cumprido o princípio do contraditório ínsito no art. 3º do CPC.

Vejamos:

As nulidades de sentença (e bem assim dos Acórdãos ex vi do art. 666º nº 1 do CPC) são vícios intrínsecos da formação desta peça processual, referentes à estrutura, aos limites e à inteligibilidade da mesma, são vícios formais, taxativamente consagrados no referido nº 1 do art. 615º do CPC, que tipifica vícios do silogismo judiciário, inerentes à sua formação e à harmonia formal entre premissas e conclusão, não podendo ser confundidas com hipotéticos, erros de julgamento (error in judicando) de facto ou de direito. Trata-se, pois, de um error in procedendo, nada tendo a ver com os erros de julgamento - error in iudicando - seja em matéria de facto seja em matéria de direito.

A nulidade processual é distinta da nulidade da sentença, uma vez que a nulidade por excesso de pronúncia, a que alude o art. 615º/1 d) CPC, segundo o qual “a sentença é nula, quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.

Tal regra está diretamente relacionada com o comando “ordem do julgamento” ínsito no art. 608º nº 2 do CPC, reportando-se ao não conhecimento das questões (que não meros argumentos ou razões) relativas à consubstanciação da causa de pedir e do pedido.

Com efeito, resulta do regime previsto neste preceito, que o juiz na sentença: “deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. Não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”.

No caso que nos ocupa, a recorrente vem sustentar que o tribunal recorrido não cumpriu, como entende que devia ter cumprido, o dever de sua audição, afigurando-se, como se lhe afigurou que não deveria conhecer do objecto do recurso, no caso vertente julgando inadmissível o recurso de revista, sem a ter ouvido previamente, pelo que, diz, foi proferida decisão surpresa.

Começando pelo alegado princípio do contraditório, o artigo 3º nº 3 do CPC dispõe que o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.

E igualmente se prescreve no Preâmbulo do DL 329-A/95 de 12.12, como dimensão do princípio do contraditório, que ele envolve a proibição da prolação de decisões surpresa, não sendo lícito aos tribunais decidir questões de facto ou de direito, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que previamente haja sido facultada às partes a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.

E na decorrência desse princípio, surge o art. 4º do CPC a determinar que “O tribunal deve assegurar, ao longo de todo o processo, um estatuto de igualdade substancial das partes, designadamente no exercício de faculdades, no uso de meios de defesa e na aplicação de cominações ou de sanções processuais.”

Corolário do princípio do contraditório, princípio basilar do nosso ordenamento jurídico-civil, dotado de assento constitucional (vide art. 20º da Constituição da República Portuguesa).

Cabe ao juiz respeitar e fazer observar o princípio do contraditório ao longo de todo o processo, não lhe sendo lícito conhecer de questões sem dar a oportunidade às partes de, previamente, sobre elas se pronunciarem, sendo proibidas decisões-surpresa.

Como salienta ABRANTES GERALDES[5] Temas da Reforma do Processo Civil, I, 2ª ed., pág. 79., a alteração do artigo 3.º e, principalmente, o aditamento do nº. 3 teve em vista permitir que a contraditoriedade não seja uma mera referência programática e constitua, efectivamente, uma via tendente a melhor satisfazer os interesses que gravitam na órbita dos tribunais: a boa administração da justiça, a justa composição dos litígios, a eficácia do sistema, a satisfação dos interesses dos cidadãos.

Entende-se que o efeito surpresa não pode ser admitido, porque a parte não se encontra prevenida para a decisão, contrariando o dever de lealdade que deve presidir à actividade judiciária.

Decisão surpresa é, pois, a solução dada a uma questão que, embora previsível, não tenha sido configurada pela parte, sem que a mesma tivesse obrigação de a prever.

Como observa LEBRE DE FREITAS [Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 3.ª ed., 2014, págs. 18/19.] a consagração do princípio da proibição das decisões surpresa, resulta de uma conceção moderna e mais ampla do princípio do contraditório,“[…] com origem na garantia constitucional do Rechtiches Gehör germânico, entendido com uma garantia de participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão”.


Porém, a decisão surpresa não se confunde com a suposição que as partes possam ter feito ou com a expectativa que possam ter criado quanto à decisão, quer de facto, quer de direito, do Tribunal, a quem tais julgamentos continuam a pertencer em exclusividade. Não se podendo falar de surpresa quando os mesmos devam ser conhecidos como viáveis, como possíveis, neste sentido se tendo pronunciado o já vetusto mas ilustrativo Ac. do STJ de 29.09.98, BMJ-479-412.

O que se pretende com a proibição da decisão-surpresa é que o juiz não enverede por uma solução que os sujeitos processuais não abordaram e não quiseram submeter a juízo, surgindo a decisão de forma absolutamente inopinada e distanciada do condicionalismo factual e jurídico vertido na acção pelas partes, neste sentido se pronunciando o Ac. do STJ de 04.06.09 e de 27.09.11. (Ac. STJ 19 de maio de 2016, Proc. 6473/03.2TVPRT.P1.S1,www.dgsi.pt).

Na interpretação do conceito de “decisão-surpresa” o Supremo Tribunal de Justiça tem defendido que “o princípio do contraditório, na vertente proibitiva da decisão surpresa, não determina ao tribunal de recurso que, antes de decidir a questão proposta pelo recorrente e/ou recorrido, o alerte para a eventualidade de o fazer com base num quadro normativo distinto do por si invocado, desde que as normas concretamente aplicadas não exorbitem da esfera da alegação jurídica efetuada (Ac. STJ 11 de fevereiro de 2015, Proc. 877/12.7TVLSB.L1-A.S1).

Por outro lado, considera-se que o cumprimento do contraditório não significa “que o tribunal “discuta com as partes o que quer que seja” e que alivie as mesmas “de usarem a diligência devida para preverem as questões que vêm a ser, ou podem vir a ser, importantes para a decisão” (Ac. STJ 09 novembro de 2017, Proc. 26399/09.5T2SNT.L1.S1, Ac STJ 17 de junho de 2014, Proc. 233/2000.C2.S1).

São também paradigmáticas as palavras do Acórdão do STJ, de 27/09/2011 (Proc. n.º 2005/03.0TVLSB.L1.S1” quando afirma que  “O juiz tem o dever de participar na decisão do litígio, participando na indagação do direito – iura novit curia –, sem que esteja peado ou confinado à alegação de direito feita pelas partes. Porém, a indagação do direito sofre constrangimentos endoprocessuais que atinam com a configuração factológica que as partes pretendam conferir ao processo. Há decisão surpresa se o juiz de forma absolutamente inopinada e apartado de qualquer aportamento factual ou jurídico envereda por uma solução que os sujeitos processuais não quiseram submeter ao seu juízo, ainda que possa ser a solução que mais se adeque a uma correcta e atinada decisão do litígio”.

Esta orientação, de resto, tem sido assumida pelo STJ, podendo afirmar-se que o princípio do contraditório, na vertente proibitiva da decisão surpresa, não determina ao tribunal de recurso que, antes de decidir a questão proposta pelo recorrente ou pelo recorrido, tenha de o alertar para a eventualidade de o fazer com base num quadro normativo distinto do por si invocado, desde que as normas concretamente aplicadas não exorbitem da esfera da alegação jurídica efectuada.

LOPES DO REGO defende que “[…]na audição excecional e complementar das partes, fora dos momentos processuais normalmente idóneos para produzir alegações de direito, só deverá ter lugar quando se trate de apreciar questões jurídicas suscetíveis de se repercutirem, de forma relevante e inovatória, no conteúdo da decisão e quando não for exigível que a parte interessada a houvesse perspetivado durante o processo, tomando oportunamente posição sobre ela”.

O exercício do contraditório dependerá sempre da verificação de uma nova abordagem jurídica da questão, que não fosse perspetivada pelas partes, mesmo usando da diligência devida. (…)

À face do ordenamento jurídico português, a doutrina aceita o princípio da proibição das decisões surpresa, enquanto interdição de decisão baseada em fundamento que não tenha sido previamente considerado pelas partes, entendendo que esta vertente do direito ao contraditório tem fundamentalmente aplicação às questões de conhecimento oficioso que as partes não tenham suscitado[Cf. Lebre de Freitas, op. cit., pág. 9.].

No caso que nos ocupa, tratando-se a questão da admissibilidade de recurso de questão obviamente oficiosa, tendo a recorrente interposto recurso de revista na convicção da sua admissibilidade legal, o certo é que a recorrida se pronunciou em termos amplos no sentido da sua inadmissibilidade, utilizando alguns argumentos que acabaram por ser também integrados na fundamentação jurídica do Acórdão, que culminou decisoriamente nesse sentido da inadmissibilidade da revista.

Perante tal circunstancialismo processual, não se pode considerar que a recorrente não pudesse ignorar que a questão podia ser conhecida nos termos postulados pela recorrente nas suas contra-alegações, não surgindo a decisão ora reclamada com uma surpresa, como algo que não resultou de um posicionamento assumido nos autos, embora apenas pela recorrida, como é natural.

Somos pois levados a considerar que a recorrente deveria ter como expectável a decisão de inadmissibilidade da revista que veio a ser assumida por este Tribunal, nunca podendo considerar-se esta como uma decisão que apanhou aquela desprevenida, já que disso ficou “avisada” pela recorrida.

Daí que se nos tenha revelado desnecessário e mesmo inútil (sendo certo que a lei proíbe a prática de actos inúteis, nos termos do art. 130º do CPC) ouvir a recorrente sobre a questão, na certeza de que dessa audição nada resultaria de útil no tocante à ponderação da admissibilidade da revista, como de resto não resulta agora da presente arguição de nulidade, isto com todo e o devido respeito pelo entendimento da recorrente, acrescendo que tal procedimento sempre contrariaria o princípio da economia e até da mais desejável celeridade processual.

Foi este o entendimento também sufragado no Acórdão deste Supremo Tribunal de 4 de Novembro de 2021, no processo 3066/18.3T8LRA.C1.S1 (em que foi relatora a Ex.ma Juíza Conselheira Fátima gomes, que exarou a declaração de voto no Acórdão ora reclamado), no qual foi entendido, na peugada do acórdão do STJ de 16/05/2000 (processo n.º 1311/99), em relação à questão do abuso de direito, que, “tendo sido inserida nas contra-alegações do recorrido, em diversas passagens da alegação, peça que foi notificada ao recorrente, não foi este surpreendido com qualquer alteração decisória com a qual não podia contar, não havendo decisão-surpresa.”


É claramente uma situação idêntica à que se passa no nosso caso, a recorrente não pode dizer que não podia contar com a decisão de inadmissibilidade da revista proferida no Acórdão sob reclamação, pois que dessa possibilidade fora largamente alertada pela recorrente nas suas contra-alegações.

Parece-nos ser este o entendimento de Lopes do Rego quando faz a coligação do dever de diligência das partes com a adequada perspetivação pelas mesmas da decisão, arredando o factor surpresa quando esta não surge de forma inovatória, porquanto devidamente assinalada no processo pela outra parte.

Diga-se, para que fique claro, que o entendimento vertido pela Senhora Conselheira Fátima Gomes na sua declaração de voto em nada contraria o entendimento vertido no dito Acórdão de 4/11/2021, cujo entendimento aqui sufragamos, pois uma coisa é proceder à audição da recorrente, outra é entender, como não se entende, que da não audição daquela surgiu para a mesma decisão surpresa, o que, pela ordem de razões exposta, não se aceita.

Termos em que se nos impõe concluir como não verificada a invocada nulidade do Acórdão proferido, por violação do princípio do contraditório, na vertente proibitiva da decisão surpresa.


Numa segunda fase da sua reclamação, sustenta a recorrente que o Acórdão deveria ter admitido a revista, porquanto entende que a decisão recorrida tem acolhimento recursivo no art. 673º do CPC, apontando a este Tribunal a falta de análise ou ponderação da admissibilidade da revista nessa veste normativa, ficando, dessa forma cerceada a possibilidade de revista autónoma por essa via, requerendo, assim a reforma do Acórdão sob reclamação.


Antes o disposto nos artigos 616º nº 2 al. a) e b), ex vi dos 666º e 685º, todos do Código de Processo Civil, não havendo recurso da decisão, é lícito que as partes requeiram a reforma da mesma, quando ocorra lapso manifesto na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos, ou constem do processo documentos ou quaisquer elementos que por si só impliquem necessariamente decisão diversa da proferida.

Como resulta do Acórdão recorrido, a decisão proferida, de forma consciente e discutida, encontra-se plenamente explicitada, não padecendo de erro manifesto na aplicação da norma aplicável, in casu a inaplicabilidade dos art. 671º nº 1 e 2 do CPC.

Diga-se que, assim se tendo pronunciado o colectivo de juízes, entendeu desnecessário submeter a questão à leitura do art. 673º do CPC, como entende a recorrente que seria adequado (sendo que apenas o fez nas alegações e não, como devia também nas conclusões das mesmas), sendo certo que o tribunal não tem qualquer obrigação de rebater os argumentos jurídicos da apelante, mas sim aplicar aos factos, no caso à circunstância processual verificada, as normas de direito que reputa adequadas.

Sempre diremos, não concedendo concebendo, abrindo um parêntesis na nossa tarefa,  mesmo que fosse entendido que o Acórdão recorrido merece enquadramento, em termos de recorribilidade, no disposto no art. 673º do CPC, não seria o mesmo recorrível neste momento processual, porquanto, tendo sido proferido na pendência do processo na Relação,  não se reveste de autonomia bastante em sede de recorribilidade, sendo necessário que seja proferida decisão recorrível nos termos do art. 671º nº 1, para que, então sim, também a revista a possa abranger, caso dela venha a ser interposto recurso de revista, claro está.

Ou seja, só quando (e se) vier a ser interposto recurso de revista de Acórdão da Relação que decida do mérito da causa ou ponha termo ao processo, nos termos do art. 671º nº 1 do CPC, poderá o recorrente vir a interpor recurso do Acórdão intercalar em causa, que (no caso) determinou a anulação da sentença e determinou a baixa do processo à 1ª instância para cumprimento do princípio do contraditório.

Como refere ABRANTES GERALDES (in Recursos em Processo Civil, 6ª edição, pag. 450), “ao preceito subjaz a ideia de limitar a possibilidade de interposição de recursos de revista intercalares, consagrando-se, como regra geral, o diferimento da impugnação dos acórdãos interlocutórios para o recurso do acórdão final ou para o recurso autónomo a interpôs depois do trânsito em julgado deste. Assim, a regra aplicável aos acórdãos proferidos na pendência do recurso da Relação é a da sua irrecorribilidade autónoma (sendo que, relativamente aos acórdãos cujo objecto sejam decisões interlocutórias da 1ª instância, a regra, constante do nº 2 do art. 671º é a da irrecorribilidade)”.

Nem se diga que se torna inútil o recurso de revista com essa veste diferida, mais serôdia, porquanto, pese embora dele possa vir a resultar a anulação de todo o processado posterior à audição “das partes para se pronunciarem sobre o propósito do tribunal de conhecer antecipadamente do mérito da causa, sobre o próprio mérito e a significativa inovação da qualificação do contrato como doação de bens futuros e seus efeitos, após o que se proferirá nova sentença” (como se determinou no Acórdão recorrido), o certo é que, malgrado tal deseconomia processual, tal recurso de revista acaba por lograr a sua eficácia, não se configurando “absolutamente inútil”, como é referido na al. a) do art. 673º.

Trata-se esta al. a) de preceito paralelo ao da al. h) do nº 2 do art. 644º do CPC.

Como refere Abrantes Geraldes (ob. cit. Pag. 251, em anotação ao art. 644º), “não basta que a transferência da impugnação para um momento posterior comporte um risco de inutilização de uma parte do processado, ainda que nesta se inclua a sentença final. Mais do que isso, é necessário que imediatamente se possa antecipar que o eventual provimento do recurso da decisão interlocutória não passará de uma “vitória de Pirro”, sem qualquer reflexo no resultado da ação ou na esfera jurídica do interessado”.

Acrescendo que nenhuma disposição legal prevê que o recurso de revista da decisão recorrida possa ser interposto em modelo distinto do previsto no corpo deste normativo, ou possa ser admitido por outra via, maxime quando seja invocada alguma das situações acauteladas pelo art. 629º nº 2 (neste sentido Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, Código de processo Civil Anotado, Almedina, Vol. I, 1ª ed., pag. 814), que de resto a Ré recorrente não invocou, pelo que também a excepção da al. b) do art. 673º do CPC se não vislumbra no caso vertente.


Em conclusão, encerrando este parêntesis, deve a pretensão da recorrente, reformatória do Acórdão, improceder.


DECISÃO

Por todo o exposto, Acordam os Juízes que integram esta 7ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça em julgar improcedente a arguição de nulidade do Acórdão deduzida pela recorrente, assim como a requerida não verificada a nulidade invocada pela recorrente, assim como improcedente a pretensão reformatória do Acórdão também deduzida pela recorrente.

Custas do incidente pela recorrente.

Notifique.


Relator: Nuno Ataíde das Neves

1ª Juíza Adjunta: Senhora Conselheira Maria dos Prazeres Beleza

2ª Juíza Adjunta: Senhora Conselheira Fátima Gomes