Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
688/24.7T8VIS.C1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: CRISTINA COELHO
Descritores: SEGURO OBRIGATÓRIO
RESPONSABILIDADE CIVIL
CIRCULAÇÃO AUTOMÓVEL
SEGURADORA
SINISTRO
SANÇÃO PECUNIÁRIA COMPULSÓRIA
DEVER DE DILIGÊNCIA
DEVER DE INFORMAÇÃO
VIOLAÇÃO
PRAZO DE PRESCRIÇÃO
OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAR
PRIVAÇÃO DO USO
PAGAMENTO
ABUSO DE DIREITO
LESADO
Data do Acordão: 11/25/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REVISTA PROCEDENTE
Legislação Estrangeira:
Sumário :
I. O DL nº 291/2007, de 21.08, que regula o sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis, estabelece no capítulo III as normas relativas à regularização dos sinistros, nomeadamente fixando prazos para o efeito, impondo uma tramitação célere e rapidamente conclusiva, cujo ónus incide sobre as empresas seguradoras.

II. A sanção pecuniária prevista no nº 2 do art. 40º do DL nº 291/2007, de 21.08, visa pressionar as empresas seguradoras a terem uma conduta diligente e rápida na regularização do sinistro, procedendo às diligências necessárias, e tomando posição sobre a responsabilidade do seu segurado pelo ressarcimento dos danos, fazendo, na afirmativa, uma proposta indemnizatória razoável, ou, na negativa, explicando as razões da sua recusa.

III. A aplicação da sanção referida, ou a fixação do seu montante, não depende da existência de danos que o atraso no cumprimento dos deveres impostos possa causar ao tomador do seguro, ao segurado ou ao terceiro lesado no sinistro rodoviário, nem do valor indemnizatório que vier a ser fixado, ou das circunstâncias relativas aos danos indemnizáveis.

IV. O art. 40º, nº 2, não prevê qualquer limite ao montante da sanção, sendo o seu valor fixado na proporção inversa à diligência da empresa seguradora, única que pode assegurar que o mesmo não seja elevado.

V. O lesado beneficia de um prazo de 3 anos para exercer o seu direito, findo o qual prescreve (art. 498º, nº 1, do CC), pelo que pode intentar a ação contra a empresa seguradora até ao limite do prazo que a lei lhe concede, não se podendo entender que tal atuação, só por si e desacompanhada de qualquer outro elemento, constitui um uso abusivo do seu direito.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 6ª secção do Supremo Tribunal de Justiça

RELATÓRIO

Em 8.02.2024, AA intentou presente ação declarativa de condenação com processo comum contra COMPANHIA DE SEGUROS AGEAS, pedindo a condenação da R. a pagar-lhe a quantia de €53.498,00, sendo €10.678,00, pelos danos materiais sofridos (perda de veículo), €720,00, pelo dano de privação de uso, e €42.100,00, nos termos do art. 40º, nº 2, do DL. nº 291/2007, de 21.08.

Citada, a R. contestou, por impugnação, e terminou pugnando pelo julgamento da ação em conformidade com a prova que viesse a ser produzida.

Em 4.03.2025, foi proferida sentença, que julgou a ação procedente, e, em consequência, condenou a R. a pagar ao A. a quantia de €53.498,00 (cinquenta e três mil, quatrocentos e noventa e oito euros) acrescida de juros à taxa legal de 4%, desde a citação até integral pagamento.

Inconformada com a decisão, a R. apelou, tendo o Tribunal da Relação de Coimbra proferido acórdão, em 8.07.2025, que julgou a apelação parcialmente procedente e, em consequência, condenou a R. a pagar ao A. a quantia de €18.898,00 1, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4%, desde a citação e até integral pagamento.

Inconformado com a decisão, o A. interpôs recurso de revista, formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem:

1 – O acórdão de que se recorre fundamentou a sua decisão com os argumentos de que o autor deveria ter proposto a ação mais precocemente, que o montante da sanção (de 42.100€) é desproporcionado quando o veículo acidentado valia apenas cerca de dez mil e quando o autor apenas ficou privado do seu uso por um período total de 72 dias, tendo comprado outro carro e tendo ficado privado do uso por um período de 21 dias após a não assunção de responsabilidade pela ré, e que tais circunstâncias consubstanciariam uma situação de abuso de direito na modalidade do desequilíbrio das prestações, entendendo como razoável um período de noventa dias a que corresponde a sanção de 9.000€.

2 - A sanção prevista no n.º 2 do art.º 40.º em análise foi instituída para compelir as seguradoras a uma resolução célere dos acidentes de viação, em benefício dos lesados, pois é à seguradora que incumbe a gestão e controlo do processo de regularização dos sinistros automóveis de forma pronta e diligente, nos termos do disposto no art.º 31º do DL 291/2007.

3 - É a seguradora, e não o lesado, que dispõe de um período de tempo que está na sua esfera aumentar ou reduzir, sendo que a aplicação daquela sanção cível é automática e exercida como penalização imposta às Seguradoras que não cumpram os deveres de zelo, diligência e celeridade que lhe são impostos pelo art.º 36º daquele mesmo diploma legal.

4 – Tal aplicação não pode ser coartada pela aplicação da figura do abuso de direito, já que não é o lesado que tem na sua disponibilidade o valor da penalização, mas a Seguradora que, cumprindo os deveres impostos pelo DL 291/2007, se “livra” da mesma.

5 - O art.º 498º do CPC estabelece o prazo de três anos para o lesado obter judicialmente o reconhecimento do seu direito; dentro desse prazo de três anos não é legítimo que o lesado passe a dispor de um menor prazo de prescrição apenas porque a penalização da Seguradora aumenta a cada dia que passa.

6 - A fundamentação do acórdão de que se recorre, além de desvirtuar todo o sentido da aplicação à seguradora da sanção prevista no preceito legal que ora se discute, já que sugere, claramente, que a sanção pela não assunção da responsabilidade depende do valor do veículo sinistrado e do poder económico do seu proprietário para comprar, de imediato, outro, e não da inação da seguradora, questiona, ainda, outros preceitos legais, cuja interpretação e aplicação sempre foram pacíficas – é o caso do disposto no art.º 498º do CPC, que estabelece o prazo de três anos para o lesado obter judicialmente o reconhecimento do seu direito, sendo que, dentro daqueles três anos, o direito não diminuiu pelo decurso do tempo!

7 - Aliás, 421 dias correspondem a um ano e menos de dois meses; para o comum das pessoas, não acostumadas a lides judiciais e que, por isso, esperam o máximo possível para a resolução dos seus problemas sem recurso aos Tribunais, um ano e dois meses é pouco tempo, sendo certo que a Lei lhe confere o prazo de três anos!

8 - No sentido de aplicação da sanção pecuniária prevista no nº 2 do art.º 40º do DL 291/2007, além da Revista de 30/11/2022, Procº 576/20.6T8EVR de que se transcreveu uma parte, acórdão da RG de 30/01/2025, processo 1006/21.1T8FAF, acórdão do STJ de 04/02/2021, processo 11280/17.2T8LRA, todos em www.dgsi.pt.

Termina pedindo a revogação do acórdão recorrido, repristinando-se o decidido em 1ª instância.

A R. contra-alegou, formulando a final, as seguintes conclusões, que se reproduzem:

1ª/ Existe abuso de direito por parte do autor ao pretender beneficiar de um crédito calculado sobre um período de tempo que estava na sua esfera de disponibilidade aumentar ou diminuir.

2ª/ Não é pois razoável e justo que se beneficie a inação do autor no sentido de que quanto mais tarde ele instaurar a ação mais proveitos colheria ao abrigo de tal norma, se irrestritamente interpretada.

3ª/ Na verdade, interpretar e aplicar o preceito em causa (art. 40º, nº 2 do D.L. nº 291/2007, de 21 de Agosto) irrestritamente nas presentes circunstâncias factuais consubstanciaria efetivamente uma situação de abuso de direito na modalidade do desequilíbrio das prestações.

4ª/ É que a este titulo era-lhe atribuído um montante de € 42 100,00, quando o veículo acidentado valia só cerca de dez mil euros, quando o autor ficou privado do seu uso por 72 dias pelo qual lhe foi atribuída uma indemnização de € 720,00, quando comprou outro carro e apenas ficou privado do uso por um período de 21 dias após a não assunção da responsabilidade pela ré.

5ª/ Assim, deve o recurso de revista ser julgado totalmente improcedente.

QUESTÕES A DECIDIR

Sendo o objeto do recurso balizado pelas conclusões do recorrente (arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), a única questão a decidir é se, na aplicação do disposto no art. 40º, nº 2, do DL nº 291/2007, de 21.08, pode/deve equacionar-se eventual atuação do lesado em abuso do direito.

Cumpre decidir, corridos que se mostram os vistos.

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Vêm dados como provados os seguintes factos 2:

A. No dia 22.10.2022, pelas 13H35, no IP5, km 71,800, Queirã, Vouzela, Viseu, ocorreu um acidente de viação (1º PI).

B. Nele foram intervenientes o veículo ligeiro de passageiros de matrícula V1, propriedade e conduzido pelo Autor (2.º PI).

C. E o ligeiro de passageiros de matrícula V2, conduzido e propriedade de BB (3.º PI)

D. Que havia transferido a responsabilidade civil emergente de acidentes de viação para a Ré através da Apólice 0045.12.272720 (3.º PI)

E. O local do acidente configura uma curva aberta (4.º PI).

F. A via é constituída por duas faixas de rodagem, uma em cada sentido, delimitadas por linha dupla contínua, em piso betuminoso e em bom estado de conservação (5.º PI)

G. A velocidade permitida no local é de 90km/hora (6.º PI).

H. Estava a chover e o piso estava molhado (7.º PI)

I. Não existia acumulação de água no piso, nevoeiro, ou qualquer obstáculo na via (8.º PI)

J. A faixa de rodagem tem uma largura de 7,45 m (9.º PI)

K. E possui uma inclinação ascendente, no sentido Viseu/Aveiro, de cerca de 0,7% (10.º PI)

L. Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em A., o GD circulava no sentido Viseu/Aveiro, a velocidade não apurada (11.º PI).

M. Ao km 71,800, ao descrever a curva, que naquele sentido é para a esquerda, o condutor do GD perdeu o controlo da viatura e entrou em despiste, tendo a viatura rodado sobre si mesma no sentido anti-horário, invadindo a faixa de rodagem de sentido oposto e até à berma (12.º PI).

N. No sentido Aveiro/Viseu circulava o LX, tendo sido embatido na frente pela lateral direita da traseira do GD (13.º PI)

O. O condutor do LX, que antes do embate ainda travou e desviou-se para a sua direita, foi projetado para além da berma do seu lado direito (14.º PI)

P. Como consequência do acidente, o LX sofreu danos que determinaram a perda total (17.º PI).

Q. O veículo do Autor era de marca Ford, modelo Focus, de 08.07.2011 (18.º PI)

R. Em 08.07.2022 foi à inspeção, possuindo 155.342 km (19.º PI).

S. Estava em excelente estado de conservação e funcionamento, satisfazendo as necessidades de transporte do agregado familiar (20.º PI).

T. A Ré atribuiu ao veículo o valor de 8.840,00€, sendo os salvados no montante de 1.122,00€ (21.º PI).

U. À data do acidente o valor comercial do LX era de 10.300,00€ (23.º PI).

V. O Autor vendeu os salvados por 1.122,00€ (24.º PI).

W. O LX era usado diariamente pela esposa do Autor nas suas deslocações para e do local de trabalho, que dista da sua residência cerca de 10 km (26.º PI).

X. Era usado, também, para levar o filho mais novo do casal, atualmente com 10 anos de idade, 2/3 vezes por semana, aos treinos de futebol em Aveiro, no Sporting Club de Portugal, que dista da residência 176 km (27.º PI).

Y. Além disso, era utilizado para todas as restantes deslocações do agregado familiar, incluindo em lazer (28.º PI).

Z. O Autor adquiriu um outro veículo apenas em 02.01.2023 (29.º PI)

AA. E teve de socorrer-se de veículos emprestados por familiares durante esses 72 dias (30.º PI).

BB. A comunicação da ocorrência do acidente à Ré foi efetuada no dia 24.10.2022 (33.º e 42.º PI).

CC. Encontra-se pendente o processo crime nº 112/22.0GTVIS, no Tribunal Judicial de S. Pedro do Sul onde se aprecia a responsabilidade penal do condutor do GD (3.º Cont e certidão judicial a fls. 46 dos autos.)

DD. Em 9/11/2022 a Ré remeteu uma carta ao Autor a dar-lhe conhecimento que os serviços técnicos da empresa de avaliação e peritagem Dualperi Gabinete Técnico de Peritagem, Lda. tinha avaliado os danos em € 20 654,00 e que o sinistro devia ser regularizado como Perda Total do veículo, tendo atribuído ao mesmo o valor de €8840,00 imediatamente antes do acidente e ao salvado o valor de €1.122,00, sendo o valor a considerar de €7.718,00, salientando que o processo se encontrava em fase de instrução pelo que, nesse momento, não se poderia pronunciar quanto à atribuição de responsabilidade (5.º a 7.º Cont. e documento 2 da PI).

EE. Em 14/12/2022, a Ré remeteu ao Autor uma outra carta a informá-lo, para os efeitos previstos "na alínea b) do nº 1 do art. 40º do Decreto lei 291/2007, que ainda não lhe era possível pronunciar-se quanto à responsabilidade na produção do sinistro e que o processo se encontrava em fase de instrução a fim de obter os elementos necessários à conclusão do mesmo, nomeadamente conclusão do processo crime, pelo que oportunamente voltariam ao contacto do Autor (4.º Cont. e documento 1 junto com a contestação.).

FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

A única questão que se coloca no presente recurso, prende-se com o pedido formulado pelo A. ao abrigo do disposto no nº 2 do art. 40º do DL nº 291/2007, de 21.08.

Ambas as instâncias concluíram que se verificavam os pressupostos de aplicação do mencionado preceito, embora com fundamentação distinta.

A 1ª instância entendeu que, do teor da carta a que alude a al. EE) da fundamentação de facto, resulta que a R. “nunca formalizou/assumiu qualquer posição fundamentada quanto à responsabilidade pelo sinistro, como lhe impõe o artigo 36.º, n.º 1, alínea e) do Decreto Lei 291/2007 de 21.07, e essa resposta deveria ter surgido até ao dia 12 de Dezembro de 2022”, não podendo aquele “ser interpretado no sentido duma comunicação de não assunção de responsabilidade”, acrescentando que “nem em sede judicial, na respetiva contestação, a Ré tomou uma posição quanto à responsabilidade do condutor seu segurado, violando, a nosso ver, de modo incompreensível, perante a clareza dos factos, o dever previsto no mencionado normativo legal, constituindo-se, desse modo, na obrigação de pagar ao lesado e ao Instituto de Seguros de Portugal, em partes iguais, a quantia de duzentos euros por cada dia de atraso.”.

E, nesta conformidade, julgou procedente o pedido do A. nesta matéria, concluindo ser devida, a título de sanção, a quantia peticionada de €42.100,00 (421x100€).

O tribunal da Relação, não sufragando o entendimento da 1ª instância, entendeu que a carta a que alude a al. EE) da fundamentação de facto, “consubstancia, a rejeição, ou, no mínimo, a não assunção, naquela data, da responsabilidade do seu segurado”, concluindo, contudo, que a fundamentação nela apresentada era insuficiente, por demasiado vaga e genérica, e não se revelava idónea para o efeito pretendido, pelo que a R. violou os arts. 36º, nº 1, al. e) e 40º, nº 1, do mencionado diploma, e incorre na sanção prevista no nº 2 do art. 40º.

No que as instâncias não coincidiram, e contra o que se insurge o Recorrente, é que, não obstante ter concluído pela aplicação do disposto no nº 2 do art. 40º do DL. nº 291/2007, de 21.08, o tribunal recorrido ponderou, ainda, a aplicação do instituto do abuso do direito, na modalidade do desequilíbrio no exercício de posições jurídicas, concluiu que o A. atuava em abuso do direito, na modalidade referida, e, em conformidade, decidiu que a sanção do referido art. 40º, nº 2, se devia reportar, apenas, ao período de 90 dias, fixando-a em €9.000,00.

Fundamentou tal decisão nos seguintes termos: “… Como se diz na sentença, aliás alicerçada em aresto desta Relação em que o presente também foi Relator: - Ac. TRC de 04.02.2020, p. 558/18.8T8FIG.C1 - «A norma do artigo 40.º, n.º 2 do citado diploma legal consiste numa sanção destinada a compelir a seguradora a pronunciar-se sobre a responsabilidade do sinistro, devendo aplicar-se quando a seguradora se atrasa na emissão de pronúncia quanto ao acidente e, quando o faz, descarta a sua responsabilidade.» Porém, não é apenas sobre a seguradora que recai a obrigação de contribuir para uma tramitação célere e escorreita do processo com vista à atribuição da indemnização devida e à justa composição do litígio no mais breve lapso temporal. Também sobre o segurado tal dever impende. Assim o impõe o artº 34º, a saber: 1 - Em caso de sinistro, o tomador do seguro ou o segurado, sob pena de responder por perdas e danos, obriga-se a: b) Tomar as medidas ao seu alcance no sentido de evitar ou limitar as consequências do sinistro. Por outro lado: «…a norma do cit. art. 40.º, n.º 2 assume natureza sancionatória para a seguradora incumpridora do dever de diligência no respeitante à celeridade na resolução que lhe cabe do conflito…. …importará atender…ao conceito de “lesado” para efeitos de aplicação do normativo em questão. Assim, “lesado”, para o efeito, não poderá considerar-se uma pessoa simplesmente prejudicada pela ocorrência de um sinistro automóvel, ou mesmo uma pessoa que tenha reclamado perante uma seguradora a reparação de prejuízos decorrentes de um acidente de viação, exigindo-se antes que se trate de uma pessoa que, para além de reunir aqueles pressupostos, seja titular de um direito de indemnização ante a seguradora... Apenas tal conceito de “lesado” se mostra, a nosso ver, compatível com a unidade do regime de seguro obrigatório em causa, e mesmo com a unidade do nosso sistema de responsabilidade civil no seu todo, assente na ocorrência de um prejuízo efetivo resultante de um ato ilícito e culposo.» - Ac. TRP de 05.12.2023, p. 1641/22.0T8MAI.P1. (sublinhado nosso) Assim sendo verifica-se que o dano substantivo e real e mais efetivo que o autor sofreu foi ter ficado sem o veículo, bem como ter sofrido a privação do seu uso, porque completa e irremediavelmente destruído. A perda e o não uso do veículo, para além do seu valor intrínseco, implicava, porque necessário na sua vida quotidiana, prejuízos e afetações negativas. Tendo-se provado que: «Z. O Autor adquiriu um outro veículo apenas em 02.01.2023», temos que a partir desta data o dano da privação do uso tais afetações cessaram. E tem de entender-se que a quantia sancionatória compulsória de 200 euros diários prevista no artº 40º nº 2 destinava-se, ao menos na sua essencialidade mais relevante, a impelir a seguradora a atribuir ao autor uma verba cujo destino e aplicação seria supostamente para a aquisição de um novo veículo. Porém, e ainda bem, o autor conseguiu comprar um novo carro sem necessidade de esperar pela indemnização da ré. A assim ser, o fito precípuo de tal artigo para a cominação com o pagamento dos 200 euros diários foi consecutido, ainda que a expensas do autor. Certo é que o autor continuou a ter em relação à ré o direito a uma indemnização pelo valor do carro e pela privação do uso no período respetivo. Mas, com a aquisição de novo veículo, a urgência na atribuição desta indemnização deixou de ser tão urgente e impressiva, pois que o statuo quo ante sinistro relativamente à realidade material essencial tinha sido já reposto pelo autor. Pelo que, desde logo por este motivo, a continuação da responsabilidade da ré a este título, também para todo o período em que o autor já tinha adquirido um novo veículo e decorrido até à instauração da ação, deixa, numa sensata, razoável e equitativa exegese de tal preceito atenta a sua finalidade precípua supra referida, de ter sustentabilidade. Acresce que, como se viu, tanto o segurado, como o lesado de um sinistro tem o dever de colaboração com a seguradora no sentido de se minimizarem os prejuízos recíprocos e a situação fique regularizada o mais brevemente possível. Na verdade: «O lesado que num acidente de viação se recusa a cooperar com a Seguradora na peritagem do seu veículo sinistrado, sendo esta diligência indispensável para a Seguradora emitir a sua proposta no prazo legalmente fixado, não tem o direito de exigir os juros em dobro, previstos no art. 38 nº2 do DL nº 291/2007 de 21/7 e a sanção cominada no art.40 nº2 do mesmo diploma, porque a falta de colaboração essencial no cumprimento, sem justificação, constitui o credor em mora accipiendi.» - Ac. do STJ de 23.04.2024, p. 7772/20.4T8LSB.L1.S1. No caso vertente, e mutatis mutandis, assim é. O autor, ademais ciente de que o direito lhe assistia, deveria, perante a posição se não assunção de responsabilidade por banda da ré e a sua posterior inação, de ser mais lesto na defesa dos seus direitos e interesses. Para o que deveria ter proposto a ação mais precocemente. Não sendo pois razoável e justo que se beneficie a inação do autor no sentido de que quanto mais tarde ele instaurasse a ação mais proveitos colheria ao abrigo de tal norma, se irrestritamente interpretada. Efetivamente, interpretar e aplicar tal preceito irrestritamente nas presentes circunstâncias factuais - ou seja, durante um dilatado período de tempo de 421 dias, apenas ou essencialmente oriundo da inação do credor; quando o principal resultado que com ele se pretende alcançar já foi alcançado; com a consequência de a este título ser-lhe atribuído um valor indemnizatório de mais de 42 mil euros, quando o veículo acidentado valia apenas cerca de dez mil; quando o autor apenas ficou privado do seu uso por um período total de 72 dias pelo qual foi atribuída uma indemnização de 720,00 euros; quando comprou ouro carro e apenas foi privado do uso por um período de 21 dias após a não assunção de responsabilidade pela ré -, consubstanciaria efetivamente uma situação de abuso de direito na modalidade do desequilíbrio das prestações. Tudo visto e, cremos, sensata e sagazmente ponderado, entendemos como razoável o período de noventa dias durante o qual o autor poderia, com melhor indagação do caso e pedidos de informação junto da ré, ter instaurado a ação.”.

Salvo o devido respeito por opinião contrária, não sufragamos tal entendimento, assistindo razão ao Recorrente.

O DL nº 291/2007, de 21.08, que regula o sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis, estabelece no capítulo III as normas relativas à regularização dos sinistros, nomeadamente fixando prazos para o efeito, impondo uma tramitação célere e rapidamente conclusiva.

Conforme dispõe o art. 31º 3, “O presente capítulo fixa as regras e os procedimentos a observar pelas empresas de seguros com vista a garantir, de forma pronta e diligente, a assunção da sua responsabilidade e o pagamento das indemnizações devidas em caso de sinistro no âmbito do seguro de responsabilidade civil automóvel.”.

Assim, dispõe o nº 1 do art. 36º do referido diploma legal, que “Sempre que lhe seja comunicada pelo tomador do seguro, pelo segurado ou pelo terceiro lesado a ocorrência de um sinistro automóvel coberto por um contrato de seguro, a empresa de seguros deve: a) Proceder ao primeiro contacto com o tomador do seguro, com o segurado ou com o terceiro lesado no prazo de dois dias úteis, marcando as peritagens que devam ter lugar; b) Concluir as peritagens no prazo dos oito dias úteis seguintes ao fim do prazo mencionado na alínea anterior; c) Em caso de necessidade de desmontagem, o tomador do seguro e o segurado ou o terceiro lesado devem ser notificados da data da conclusão das peritagens, as quais devem ser concluídas no prazo máximo dos 12 dias úteis seguintes ao fim do prazo mencionado na alínea a); d) Disponibilizar os relatórios das peritagens no prazo dos quatro dias úteis após a conclusão destas, bem como dos relatórios de averiguação indispensáveis à sua compreensão; e) Comunicar a assunção, ou a não assunção, da responsabilidade no prazo de 30 dias úteis, a contar do termo do prazo fixado na alínea a), informando desse facto o tomador do seguro ou o segurado e o terceiro lesado, por escrito ou por documento eletrónico; f) Na comunicação referida na alínea anterior, a empresa de seguros deve mencionar, ainda, que o proprietário do veículo tem a possibilidade de dar ordem de reparação, caso esta deva ter lugar, assumindo este o custo da reparação até ao apuramento das responsabilidades pela empresa de seguros e na medida desse apuramento” (sublinhado nosso).

Nos termos do nº 1 do art. 38º, a posição prevista na alínea e) do nº 1 do artigo 36º consubstancia-se numa proposta razoável de indemnização, no caso de a responsabilidade não ser contestada e de o dano sofrido ser quantificável, no todo ou em parte.

E, nos termos do nº 1 do art. 40º do mesmo diploma legal, a comunicação da não assunção da responsabilidade, “consubstancia-se numa resposta fundamentada em todos os pontos invocados no pedido nos seguintes casos: a) A responsabilidade tenha sido rejeitada; b) A responsabilidade não tenha sido claramente determinada; c) Os danos sofridos não sejam totalmente quantificáveis”.

Estatui, ainda, o nº 2 do art. 40º, que “Em caso de atraso no cumprimento dos deveres fixados nas disposições identificadas nos nºs 1 dos artigos 38.º e 39.º, quando revistam a forma constante do número anterior, para além dos juros devidos a partir do 1.º dia de atraso sobre o montante previsto no n.º 2 do artigo anterior, esta constitui-se devedora para com o lesado e para com a ASF, em partes iguais, de uma quantia de €200 por cada dia de atraso.”.

Como resulta, indubitavelmente, do regime explanado, é sobre as empresas seguradoras que recai o ónus de diligenciar sobre o pronto andamento do procedimento com vista à regularização do sinistro, visando a lei pôr termo a uma situação que se vinha verificando, de grande morosidade e causadora de litigiosidade.

Como escreve Daniel Bessa de Melo, em Regularização de Sinistro Automóvel: Apontamentos Gerais, na Revista Julgar online, Ano 2024, Tomo 2, pág. 20, “O legislador não ignorou como o processo de regularização de sinistros conduzido pela Seguradora pode ser moroso, opaco e gerador de uma litigiosidade passível de entorpecer a atividade jurisdicional. Querendo libertar os Tribunais desta sobretensão e coadjuvar os lesados na satisfação das suas pretensões, o legislador promoveu os mecanismos para uma resolução célere e eficaz dos conflitos sinistrais numa fase extrajudicial. No atual quadro legislativo, tal desiderato materializa-se no Capítulo III do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto [4], que estabelece uma série de regras e procedimentos a adotar pelas Seguradoras (art.º 31.º) [5]”.

Visando reforçar esse ónus de diligência, a lei impõe sanções de montante diário elevado para o incumprimento do dever de pronúncia sobre a responsabilidade no sinistro, no que ora importa, não estando a aplicação da sanção pecuniária prevista no nº 2 do art. 40º, ou a fixação do seu montante, depende da existência de danos que o atraso no cumprimento dos deveres impostos possa causar ao tomador do seguro, ao segurado ou ao terceiro lesado no sinistro rodoviário.

Tal como não está dependente do valor indemnizatório que vier a ser fixado, ou das circunstâncias relativas aos danos indemnizáveis, carecendo de fundamento a ponderação, feita pelo tribunal recorrido, do valor do veículo acidentado e correspondente valor indemnizatório, do tempo de privação do uso do veículo, da aquisição de outro veículo pelo lesado, ou, acrescentamos, da situação económica do lesado, ou de outros fatores.

Os fatores referidos devem ser ponderados nos montantes indemnizatórios fixados, tal como foram.

Ao contrario do sufragado pelo tribunal recorrido, não se nos afigura que “a quantia sancionatória compulsória de 200 euros diários prevista no artº 40º nº 2 destinava-se, ao menos na sua essencialidade mais relevante, a impelir a seguradora a atribuir ao autor uma verba cujo destino e aplicação seria supostamente para a aquisição de um novo veículo”, mas antes a pressionar as empresas seguradoras a terem uma conduta diligente e rápida na regularização do sinistro, procedendo às diligências necessárias, e tomando posição sobre a responsabilidade do seu segurado pelo ressarcimento dos danos, fazendo, na afirmativa, uma proposta indemnizatória razoável, ou, na negativa, explicando as razões da sua recusa.

A sanção prevista no nº 2 do art. 40º tem subjacente a verificação de um comportamento de incumprimento da entidade seguradora dos deveres impostos nos arts. 36º, 38º, nº 1, e 40º, nº 1, e visa pressioná-la à célere e pronta regularização do sinistro, não se confundindo com o ressarcimento dos danos deste resultantes, não obstante o legislador tenha optado (em coerência) por eleger o lesado como um dos beneficiários da referida sanção.

Não se quer com isto significar que o comportamento do lesado seja, de todo, indiferente à aplicação da referida sanção, tendo razão o tribunal recorrido quando escreve que sobre o mesmo “recai a obrigação de contribuir para uma tramitação célere e escorreita do processo com vista à atribuição da indemnização devida e à justa composição do litígio no mais breve lapso temporal”, resultando tal obrigação do dever (geral) de proceder de boa fé no desenrolar do processo 4.

Assim, ao lesado incumbe comunicar à empresa seguradora a ocorrência do sinistro, facultar-lhe os elementos necessários ao apuramento dos danos cujo ressarcimento peticiona, disponibilizar-lhe o acesso ao veículo sinistrado para efetuar as peritagens necessárias 5, ou quaisquer elementos por esta solicitados, numa atuação conforme à boa fé.

Da fundamentação de facto não resulta qualquer factualidade que permita concluir que o incumprimento dos deveres impostos à R. tenha resultado, também, de um comportamento negligente, dilatório, do A./lesado.

O facto de terem decorrido 421 dias desde a data em que a R. se deveria ter pronunciado quanto à responsabilidade pelo sinistro até o A. ter proposto a ação, não pode ser considerado como um comportamento “abusivo” deste, quer porque o A. ficou a aguardar novo contacto da R., tendo em conta a carta remetida em 14.12.2022, na qual a R. o informou “que ainda não lhe era possível pronunciar-se quanto à responsabilidade na produção do sinistro e que o processo se encontrava em fase de instrução a fim de obter os elementos necessários à conclusão do mesmo, nomeadamente conclusão do processo crime, pelo que oportunamente voltariam ao contacto do Autor” (al. EE) da fundamentação de facto, com sublinhado nosso), estando o ónus de atuação e informação do lado da R., mas, principalmente, porque o lesado beneficia de um prazo de 3 anos para exercer o seu direito, findo o qual prescreve (art. 498º, nº 1, do CC), inexistindo fundamento legal para que tal prazo seja encurtado, para que o valor da sanção em causa não aumente.

O art. 40º, nº 2, não prevê qualquer limite ao montante da sanção, sendo o seu valor fixado na proporção inversa à diligência da empresa seguradora, única que pode assegurar que o mesmo não seja elevado.

Como se escreveu no Ac. do STJ de 30.11.2022, P. 576/20.6T8EVR.E1.S1 (Ana Paula Lobo), não publicado, em termos que totalmente se subscrevem, “A norma do art.º 40.º em análise foi instituída em benefício dos lesados, por isso, uma simples análise lógica permite concluir que seria um absurdo que, por causa dela, os lesados passassem a ter de instaurar as ações relativas a acidentes de viação em um mês, ou dois, para que a penalização da seguradora fosse menor. … . …, nada na lei permite obrigá-lo a propor a ação de indemnização num prazo curto. O lesado pode até ao final do prazo de prescrição ter a expectativa de que a empresa seguradora possa vir a acordar na solução extrajudicial do litígio, pode não ter condições financeiras, ou psicológicas para avançar com uma contenda judicial, em momento anterior, mas, sobretudo a lei confere-lhe o direito de escolher, posto que dentro do prazo de prescrição, se e quando irá instaurar essa ação de indemnização. O lesado tem até ao último dia do prazo de prescrição para demandar a seguradora, fazendo-o até lá, validamente e sem que essa escolha do momento em que decide propor a ação judicial, desacompanhada de qualquer outro elemento, possa constituir um uso abusivo do seu direito. Usar um direito até ao limite do prazo que é concedido por lei para que seja usado, só por si, não é abusar dele. O art.º 40 é uma punição da seguradora por agir de forma negligente, não pronta e atempada, com manifesto prejuízo do lesado. O lesado que já é lesado com o sinistro, não pode ser duplamente “lesado” afinal por este benefício que a lei lhe concede e que as instâncias parecem reprová-lo por ele o peticionar. … Não consta da lei qualquer possibilidade de redução da referida penalização pelo julgador assente em critérios de equidade, relação com o valor dos danos, ou outro, como não se conhece qualquer critério legal que permita definir se um mês ou dois meses, são bastantes para o lesado propor a ação, muito menos se era seu dever legal fazê-lo, como se o prazo de prescrição fosse encurtando há medida que se adicionam os dias de penalização da empresa seguradora. O abuso de direito é uma figura residual, que só em situações muito pontuais pode ser declarado porque exige mais que ganhar muito dinheiro, ou obter uma grande indemnização, exige um comportamento abusivo em desfavor da parte contrária, que neste caso se não verifica. O lesado, aqui autora, não estabeleceu com a empresa seguradora qualquer negócio que possa suportar a verificação de uma ofensa clamorosa da boa-fé negocial. A empresa seguradora celebrou um negócio com o proprietário do veículo que causou o acidente garantindo que, por força do contrato indemnizaria os terceiros lesados – aqui foi a autora – pelos danos que aquele veículo causasse.”.

Em conclusão do que se deixa escrito, não podia o tribunal recorrido diminuir o valor da sanção aplicável ao abrigo do disposto no nº 2 do art. 40º do DL nº 291/2007, de 21.08, por apelo ao instituto do abuso do direito, como fez, devendo repristinar-se, nesta parte, a decisão da 1ª instância, merecendo provimento a revista.

As custas, na modalidade de custas de parte, são a cargo da Recorrida, por ter ficado vencida - art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC.

DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes da 6ª secção do Supremo Tribunal de Justiça em conceder revista, alterando o acórdão recorrido quanto à penalização pela falta de resposta atempada da R./empresa seguradora, nos termos do nº 2 do art. 40º do DL 291/2007, de 21.08, repristinando o valor fixado, nesta parte, na decisão da 1ª instância.

Custas nos termos referidos.

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Lisboa, 2025.11.25


Cristina Coelho (Relatora)

Rosário Gonçalves

Luís Espírito Santo

SUMÁRIO (da responsabilidade da relatora):

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1. Correspondente a €9.178,00, pela diferença entre o valor venal do veículo e o valor do salvado, €720,00, pela privação do uso, e €9.000,00, ao abrigo do art. 40º, nº2, do DL. nº 291/2007, de 21.08).↩︎

2. Estando a negrito as alterações introduzidas pelo Tribunal de Relação de Coimbra.↩︎

3. Serão do DL nº 291/2007, de 21.08, todos os normativos referidos sem menção expressa a outro diploma legal.↩︎

4. O art. 34º estabelece as “Obrigações do tomador do seguro e do segurado em caso de sinistro”, o que não é o caso do A., lesado.↩︎

5. É, precisamente, neste âmbito que se insere o Ac. do STJ de 23.04.2024, P. 7772/20.4T8LSB.L1.S1 (Jorge Arcanjo), referido pelo tribunal recorrido, que nada tem de semelhante com a situação em apreço.↩︎