Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03A202
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: MOREIRA ALVES
Descritores: CONDUÇÃO SOB O EFEITO DE ÁLCOOL
RESPONSABILIDADE EXTRA CONTRATUAL
PRESUNÇÕES
NEXO DE CAUSALIDADE
Nº do Documento: SJ200304080002021
Data do Acordão: 04/08/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 12304/01
Data: 07/02/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário : I - Se na generalidade das situações a seguradora responde pelos danos provocados culposamente pelo seu segurado, sem que lhe assista qualquer direito de regresso, para que este direito lhe seja reconhecido tem de existir algo mais do que a culpa na produção do acidente.
II - Esse algo que acresce à culpa é exactamente o nexo de adequação entre a condução sob a influência do álcool e a produção do acidente.
III - O ónus da prova do referido nexo causal pertence à seguradora titular do direito de regresso, não existindo nenhuma presunção do mencionado nexo casual.
IV - As presunções legais são sempre estabelecidas por lei, não podendo o interprete, com base na maior ou menor dificuldade da prova, alterar as regras normais do ónus da prova.
V - Tal nexo de causalidade não é facto notório, pelo que não dispensa a sua alegação e prova.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

No Tribunal Cível de Lisboa
"A - Companhia de Seguros, S.A."
intentou a presente acção declarativa de condenação, contra
B
pedindo a condenação do R a pagar-lhe a importância global de 19.229.453$00.
Alega em fundamento que, por contrato de seguro do ramo automóvel, titulado pela apólice nº. 90/0161, assumiu a responsabilidade civil por danos causados a terceiros com a circulação do veículo ligeiro de mercadorias, de matrícula VB.
Ora, em 25/4/93, pelas 2,10h, na Rua da Cintura do Porto de Lisboa, ocorreu um acidente de viação tendo como único interveniente o referido veículo seguro na A., que, na altura era conduzido pelo Réu.
Tendo corrido processo crime relativamente a esse acidente e aí formulado pedido cível, acabou a A. por ser condenada a indemnizar civilmente os lesados no montante global de 16.664.991$00, quantia que lhes pagou, sendo certo que pagou ainda a outras entidades diversas verbas, por causa do acidente, o que tudo somado atinge o valor do pedido formulado. A culpa do acidente pertenceu exclusivamente ao R., que circulava pela fila da esquerda com uma taxa de alcoolemia de 1,10g/l.
Conduzindo o R. sob a influência do álcool, tem a A. direito de regresso contra ele nos termos da alínea c) do artº. 19º do D.L. 522/85 de 31/12.
Contestou o R, alegando no essencial que, apesar de acusar uma taxa de alcoolemia superior à legal, a seguradora, para exercer contra ele o direito de regresso teria de alegar e provar a existência de nexo de causalidade entre a condução sob a influência do álcool e os danos decorrentes do acidente.
Não o tendo feito, deve a acção improceder logo no saneador.
Invocou ainda a excepção de prescrição de algumas das verbas peticionadas.

Houve resposta.
O Senhor Juiz convidou a A. a aperfeiçoar a petição inicial, alegando o referido nexo causal, o que esta veio a fazer.
Entretanto o R. agravou do despacho que convidou a A. ao aperfeiçoamento do articulado inicial, agravo que veio a ficar deserto por falta de alegação.
Foi proferido despacho saneador, que apreciando a excepção de prescrição arguida pelo R. a veio a julgar procedente, absolvendo-o, por conseguinte, em relação às verbas consideradas prescritas.
Desta parte do despacho saneador, apelou a A., apelação essa que subiu diferidamente e veio a ser julgada procedente, mas não tem aqui interesse considerar tal recurso.
Foram fixados os factos assentes e organizada a base instrutória, comportando esta um único quesito, indagando do nexo causal entre a taxa de álcool no sangue detectada no R. e a produção do acidente.
Realizado o julgamento, foi lida a decisão sobre a matéria de facto, que respondeu negativamente ao único quesito formulado.

Proferida sentença, foi a acção julgada improcedente por se ter entendido que o direito de regresso da seguradora só existe se esta provar o já mencionado nexo causal.
Inconformada apelou a A. para o Tribunal da Relação de Lisboa, o qual, apreciando o recurso (único que aqui interessa considerar) julgou improcedente a apelação visto não se ter provado o único quesito formulado.
É desta decisão que, novamente inconformada recorre a A., agora de revista, que foi admitida.

Conclusões:
Apresentadas tempestivas obrigações, formulou a recorrente as seguintes conclusões:
1- Resulta da matéria fáctica apurada nos autos que o embate ocorrido com o veículo VB, seguro na A., resultou directa e necessariamente da conduta do R., por ter perdido o controlo da referida viatura após ter-se cruzado com um outro veículo que circulava na hemi-faixa contrária e guinado para a direita, se haver despistado, saído da faixa de rodagem e embatido no reboque de matrícula L, estacionado junto à berma, violando assim o disposto no artº. 5º, nº. 3, do C. de Estrada de 1954, à data em vigor.
2- A TAS detectada no R. no momento do acidente mostra-se concretamente idónea a provocar naquele um estado de incapacidade sensitiva e neuro-motora tais que o levaram a uma diminuição da normal eficácia de percepção e reacção, de modo a considerar-se estes a mesma taxa na origem do facto de não ter respeitado as normas de condução estradal e ter perdido o controlo do veículo, que se despistou, saindo da via e indo embater num reboque que se encontrava estacionado junto à berma, provocando assim o embate;
3- Se algumas dúvidas poderão subsistir quanto a essa circunstância numa taxa próxima dos 0,5g/l de álcool no sangue - sendo certo que a tendência legal é claramente para baixar tal taxa para 0,3, o,2 ou 0,0 - nenhumas existirão quando a taxa apurada é de 1,1g/l, pois a mesma é sob o ponto de vista científico idónea a causar relevante diminuição das capacidades físicas-psicológicas do condutor, afectando o seu comportamento, a sua destreza e atenção necessárias, à segurança na circulação rodoviária;
4- Tendo em conta a concreta conduta do R e a elevadíssima TAS presente no seu organismo no momento do sinistro - mais do dobro do máximo legalmente permitido - forçoso é concluir que o facto de conduzir sob o efeito do álcool foi determinante da produção do acidente;
5- O que constitui "facto notório" que a lei, atento o disposto no artº. 514º do C.P.C., isenta de alegação e prova.
6- Pelo que assiste à A. o direito de regresso contra o R. nos termos previstos na alínea c) do artº. 19º do DL 522/85 de 31/12;
7- Devendo, assim, revogar-se a sentença recorrida, decidindo-se pela total procedência da acção e, consequentemente, pela condenação do R. no pagamento à A. das quantias satisfeitas por esta a título de indemnização decorrente do sinistro;
8- Caso contrário, violar-se-à frontalmente o disposto nos artºs. 483º do C.C., 514º do C.P.C. e 19º c) do D.L. 522/85 de 31/12.
Nas contra-alegações defende o R. a improcedência total do presente recurso de revista.

Os Factos:
Porque não foram impugnados na apelação, nem ocorreu qualquer alteração, remete-se para a decisão de 1ª. instância que decidir de facto (artº. 713º, nº. 6, e 726º do C.P.C.).

Fundamentação:
Como se vê das conclusões, a questão essencial colocada tem a ver com a prova do nexo causal entre a TAS detectada no R. no momento do acidente (1,1g/l) e a produção deste.
Segundo o recorrente esse nexo causal, é, no caso concreto, um facto notório que não necessita de ser alegado e provado. Vamos analisar a questão alargando-lhe no entanto o âmbito.
Assim, a 1ª. questão a colocar é a de saber se o direito de regresso que a A. pretende aqui exercer defende ou não da alegação e prova de causalidade entre a situação de alcoolemia em que se encontrava o R. e o acidente.

Dispõe o artº. 19º do D.L. 522/85 de 31/12 que, satisfeita a indemnização, a seguradora apenas tem direito de regresso ... contra o condutor ... se este "tiver agido sob a influência do álcool..." não será muito feliz a redacção da lei, daí as dúvidas que se têm levantado, mas, em todo o caso, a expressão "tiver agido" inculca desde logo a ideia de uma determinada actuação ilícita provocada pelo álcool ingerido pelo agente o que significa que o estado de alcoolemia do condutor terá de ser a causa adequada do acidente, para que surja o direito de regresso concedido excepcionalmente à seguradora.
Não basta, por isso, que se tenha agido com culpa na produção do acidente, ainda que culpa exclusiva, para fazer nascer o referido direito, o que, aliás, é compreensível.
De facto, na generalidade das situações, a seguradora responde pelos danos provocados culposamente pelo seu segurado, sem que lhe assista qualquer direito de regresso, daí que, para que este direito lhe seja reconhecido tem necessariamente de existir algo mais do que a culpa na produção do acidente.
Esse algo que acresce é exactamente o nexo de adequação entre a condução sob a influência do álcool e a produção do acidente.
Só assim se compreende o direito de regresso consagrado na lei, em flagrante desvio aos efeitos normais do contrato de seguro, já que a sua razão de ser é ressarcir a seguradora pelos riscos que em condições normais não assumiria, mas que, por força da lei, tem de assumir nas relações com os terceiros lesados.
Ora, se é essa a razão de ser do instituído direito de regresso é necessário demonstrar o referido nexo causal para que nasça o direito.
É que, são perfeitamente configuráveis inúmeras situações em que um condutor interveniente num acidente de viação, apesar de ser portador de uma taxa de alcoolemia superior à legal não tenha qualquer culpa na produção do sinistro, como pode acontecer que, tendo culpa, ele ficou a dever-se a uma conduta contraordenacional ou negligente completamente alheia do estado de alcoolemia. E, nestas hipóteses, não existindo o aludido nexo causal, nenhuma razão se encontra para o regresso da seguradora, já que tudo se passa dentro dos limites normais do contrato do seguro.
A companhia de seguros paga, então aquilo a que estava obrigada pelo contrato (haja risco ou culpa), sendo irrelevante o valor da TAS do condutor, visto que essa situação não contribuiu nem foi a causa do acidente.
Não havendo acréscimo de risco para a seguradora (risco que ela normalmente não assumiria) não se justifica o direito de regresso.
A segunda questão a equacionar é a de saber a quem incumbe o ónus de provar o referido nexo causal, pressupondo, claro está, a necessidade da sua existência.
Defende alguma jurisprudência que esse nexo causal se presume, onerando quem conduz sob o efeito do álcool, que assim teria de elidir tal presunção, provando que o seu estado de alcoolemia não teve qualquer influência no acto violador das leis estradais ou na conduta negligente que causou o acidente.
Tal presunção resultaria das leis estradais que proibiu a condução com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior à fixada na lei.
É certo que desde a Lei 3/82 de 29 de Março se proíbe a condução de veículos sob o efeito do álcool, proibição essa que passou para o C. da Estrada.
Só que, não é pelo facto de o legislador ter estabelecido tal proibição que pode ter-se como certo existir, no domínio da responsabilidade civil extracontratual a referida presunção legal.
Presunção legal, diz-nos o artº. 349º do C.C., são as ilações que a lei tira de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido.
Fundamentam-se, nos ensinamentos da experiência comum e por vezes noutras razões, designadamente na consideração da grande dificuldade que teria a parte normalmente onerada com o ónus da prova, em fazer a demonstração do facto presumido, mas são sempre estabelecidas pelo legislador, não podendo o intérprete, com base na maior ou menos dificuldade da prova ou em qualquer outra razão relevante, alterar as regras normais do ónus da prova.
Ora, o D.L. 522/85 de 31/12, em parte alguma estabelece uma tal presunção.
A regra, em matéria de responsabilidade civil extracontratual é a de que não há responsabilidade sem culpa, excepto nos casos especificados na lei - artº. 483º do C.C. - e que a culpa não se presume, incumbindo ao lesado provar a culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal da culpa - artº. 487º, nº. 1 do C.C. -.
No caso do direito de regresso decorrente da condução sob a influência do álcool não basta provar a culpa do acidente, é ainda necessário demonstrar que a situação de alcoolemia foi a causa do acidente.
É que, sendo o fundamento do direito de regresso concedido à seguradora a condução sob o efeito do álcool, é esta que terá de fazer a prova dos fundamentos do seu direito (artº. 342º do C.C.) e nesses fundamentos cabem a existência da alcoolemia e o nexo de causalidade entre essa situação e o acidente.
É esta a doutrina dominante e foi a adoptada no recente douto acórdão uniformizador da jurisprudência publicado no Diário da República nº. 164 de 18/7/2002, segundo o qual "A alínea c) do artº. 10º do D.L. nº. 522/85 de 31/12, exige para a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob influência do álcool o ónus da prova pela seguradora do nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente".
Mas, como se disse, alegou a recorrente que esse nexo é um facto notório, dispensando, pois, a alegação e prova.

Pelo que acima ficou dito é claro que não é assim. Aliás, a intensa discussão que sobre o assunto tem surgido revela à evidência que estamos longe da ideia de facto notório.
Segundo o artº. 514º do C.P.C. consideram-se factos notórios os factos que são do conhecimento geral, ou, como ensinava Manuel de Andrade (Teoria Geral), é notório "tanto aquilo que é geralmente sólido, como aquilo que é de per si evidente".
Ora, no caso da alcoolemia, embora se possa ter por adquirido que a ingestão de álcool para além de certos limites (que são ainda discutidos) afecta a capacidade de reacção e concentração, diminuindo os reflexos, é também do conhecimento geral que tais efeitos variam de indivíduo para indivíduo, de tal modo que determinada taxa de alcoolemia pode ser indiferente para uma pessoa e deixar outra em estado de notória perturbação.
Por isso, não é possível, apenas perante a prova de determinada taxa de álcool no sangue (a menos que seja tão elevada que não ofereça dúvidas sobre os necessários efeitos, e não será o caso de uma taxa de 1,1, como no caso concreto) concluir-se desde logo pela necessária influência no comportamento ou forma de agir do respectivo portador, em termos de poder ter-se como certo (como facto notório, se quisermos) que o acidente em que teve intervenção, resultou do seu estado de alcoolemia.
Porque é este o ensinamento da experiência, só casuisticamente se poderá retirar a referida conclusão, utilizando, se for caso disso, presunções judiciais, sem esquecer que tais presunções podem ser afastadas por meio de simples contraprova.
No caso concreto foi formulado um quesito destinado a indagar sobre a existência do aludido nexo de causalidade. Produziu-se prova sobre esse ponto de facto o qual viria a merecer resposta negativa (NÃO PROVADA).
É, pois evidente que a acção tinha de improceder como se decidiu em 1ª. instância e foi confirmado pelo acórdão recorrido, que, por isso, não merece qualquer censura.

Nega-se revista.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 8 de Abril de 2003
Moreira Alves,
Lopes Pinto,
Alves Velho.