Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1079/20.4PASNT.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: SÉNIO ALVES
Descritores: RECURSO PER SALTUM
ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
NULIDADE DE ACÓRDÃO
CRIME DE TRATO SUCESSIVO
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
CONCURSO DE INFRAÇÕES
CONCURSO APARENTE
Data do Acordão: 01/12/2022
Nº Único do Processo:
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - A aplicabilidade da figura do “trato sucessivo” aos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual foi defendida, nos nossos tribunais superiores, em situações em que está presente uma actividade repetida, prolongada no tempo.

II - Mais recentemente, este STJ tem vindo a decidir, de forma uniforme, pela inaplicabilidade de tal figura a este tipo de crimes.

III - E isto porque – e entre o mais – “na perspectiva da vítima, que deve ter-se por decisiva, cada agressão sexual, independentemente de o agente ser o mesmo ou diverso, está dotada de um sentido negativo de valor jurídico-penal”.

IV - Ainda que se entenda que um beijo na boca, procurado por um homem com 40 anos de idade, sobre uma criança com 9 anos de idade, não constitui um acto sexual de relevo, o mesmo não pode deixar de ser considerado como um “contacto de natureza sexual”, que não pode ser desvalorizado nem neutralizado por uma suposta relação de proximidade existente entre o arguido e os menores.

V - Integra a prática de um crime de abuso sexual de crianças, p.e p. pelo art. 171.º, n.º 1 do CP, a conduta do arguido que, colocando as mãos por dentro das calças e das cuecas que o menor trazia vestidas, com elas lhe acariciou o pénis.

Decisão Texto Integral:

            Acordam, na 3ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:





  I. 1. AA, com os demais sinais dos autos, foi submetido a julgamento no Juízo Central Criminal ..., acusado da prática dos seguintes crimes (por referência a várias vítimas):


Ofendido BB:


• 14 crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 1, e 177.º, n.º 7, do Código Penal;


• 4 crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 3, al. a), e 177.º, n.º 7, por referência ao art. 170.º, todos do Código Penal.


Ofendido CC:


• 11 crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 1, e 177.º, n.º 7, do Código Penal;


• 1 crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 3, al. a), e 177.º, n.º 7, por referência ao art. 170.º, todos do Código Penal.


Ofendido DD:


• 2 crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 1, e 177.º, n.º 7, do Código Penal;


• 1 crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 3, al. a), e 177.º, n.º 7, por referência ao art. 170.º, todos do Código Penal.


            Por acórdão proferido em 24/09/2021, o tribunal deliberou:


«A) (…) julgar a acusação pública parcialmente procedente e, consequentemente:


1) Condena o arguido AA, pela prática de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão (ofendido BB);


2) Condena o referido arguido, pela prática de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 3, al. a), e 170.º, do Código Penal, na pena de 8 (oito) meses de prisão (ofendido BB);


3) Condena o referido arguido, pela prática de um crime de abuso sexual de crianças tentado, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 3, al. a), 170.º, 22.º, 23.º e 73.º, do Código Penal, na pena de 3 (três) meses de prisão (ofendido BB);


4) Condena o referido arguido, pela prática de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão (ofendido CC);


5) Condena o referido arguido, pela prática de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão (ofendido CC);


6) Condena o referido arguido, pela prática de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos de prisão (ofendido DD);


7) Condena o referido arguido, pela prática de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 3, al. a), e 170.º, do Código Penal, na pena de 6 (seis) meses de prisão (ofendido DD);


8) Procede ao cúmulo jurídico das penas ora aplicadas ao referido arguido e condena-o na pena única de 7 (sete) anos de prisão;


9) Absolve o referido arguido da prática do demais imputado na acusação pública;


10) Condena o referido arguido na pena acessória de proibição de exercício de profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pelo período de 6 (seis) anos (art. 69.º-B, n.º 2, do Código Penal);


11) Condena o referido arguido na pena acessória de proibição de assunção da confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, pelo período de 6 (seis) anos (art. 69.º-C, n.ºs 2 e 4, do Código Penal).


(…)


B) E mais delibera:


a. Arbitrar a quantia indemnizatória de € 5 000,00 (cinco mil euros) a suportar pelo arguido a título de reparação dos prejuízos não patrimoniais sofridos pela vítima BB acrescida de juros de mora vincendos desde o trânsito em julgado desta decisão até integral pagamento;


b. Arbitrar a quantia indemnizatória de € 3 000,00 (três mil euros) a suportar pelo arguido a título de reparação dos prejuízos não patrimoniais sofridos pela vítima CC, acrescida de juros de mora vincendos desde o trânsito em julgado desta decisão até integral pagamento;


c. Arbitrar a quantia indemnizatória de € 7 500,00 (sete mil e quinhentos euros) a suportar pelo arguido a título de reparação dos prejuízos não patrimoniais sofridos pela vítima DD, acrescida de juros de mora vincendos desde o trânsito em julgado desta decisão até integral pagamento».





   2. Inconformado, recorreu o arguido, directamente para este Supremo Tribunal de Justiça, pugnando pela parcial anulação da decisão recorrida, “por falta ou insuficiência de fundamentação, e corrigido o excesso na pena aplicada, reduzindo-a para pena inferior aos cinco anos, suspensa na sua aplicação”, extraindo da sua motivação as seguintes conclusões (transcritas):


«I – Vem o presente recurso interposto do Douto Acórdão do Juízo Central Criminal ... – Juiz ..., de … .09.2021 que condenou o Recorrente AA na pena de 7 anos de prisão, em cúmulo jurídico, pela prática de 7 crimes de abuso sexual de menores.


II – Porém, e salvo melhor opinião, o Douto Acórdão recorrido julgou erradamente, quanto:


A) À qualificação jurídica dos actos praticados pelo Arguido;


B) Ao número de crimes que lhe foram imputados;


C) À escolha da medida da pena, por ser excessiva e efectiva na sua aplicação.





A) DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA DOS ACTOS PRATICADOS PELO ARGUIDO


III – Analisando os FACTOS PROVADOS (doravante designados abreviadamente por “F.P.”), verificamos que, em síntese, foram imputados ao Recorrente os seguintes actos:


a) Em relação ao menor BB:


- agarrou-lhe a face e beijou-o no rosto, tentando beijá-lo no rosto (F.P. nº 9);


- noutra ocasião colocou-lhe as mãos por baixo da roupa e tocou-lhe nos mamilos (F.P. nº 10);


- na mesma ocasião deu-lhe palmadas nas nádegas e colocou as mãos dentro das calças e cuecas do menor, acariciando-lhe o pénis (F.P. nº 11);


- acto contínuo virou-o de costas e, estando ambos vestidos, colocou o seu corpo sobre o dele, encostando a parte do seu corpo correspondente ao pénis no rabo do menor, no qual se esfregou (F.P. nº 12);


- num dia diferente dos outros, abeirou-se do ofendido BB e exibiu-lhe o pénis, enquanto o acariciava e friccionava (F.P. 13).


b) Em relação ao menor CC, em “pelo menos dois dias diferentes” o Arguido abeirou-se dele, e por cima da roupa desferiu-lhe palmadas nas nádegas (F.P.16);


- de seguida, por cima da roupa, tocou-lhe no pénis (F.P.17);


c) Em relação ao menor DD:


- “entre os meses de Julho e Agosto”, puxou-lhe as calças e cuecas para baixo e apertou-lhe o pénis (F.P. 21);


- de seguida, abaixou as próprias calças e cuecas e pôs a mão do menor no seu próprio pénis (F.P.22);


- depois, virou o menor de costas para si e encostou-lhe a ponta do pénis no ânus (F.P.23);


- num outro dia, o Arguido retirou do seu corpo uma toalha e ficou desnudado diante do ofendido (F.P.25);


- acto contínuo, exibiu-lhe o seu pénis, erecto (F.P. 26);


IV – Ao enquadrar juridicamente as condutas do Arguido, o Douto Tribunal recorrido começa por recordar que o MP tinha imputado  ao Arguido no que respeita ao BB 14 crimes de abuso sexual de crianças (artºs 171º nº 1, 177º nº 7 CP) e ainda 4 crimes de abuso sexual de crianças (Artºs 171º nº 1, 177º nº 7 CP; no que respeita ao Ofendido CC, 11 crimes de abuso sexual de crianças (Artºs 171º nº 1 e 177º nº 7 CP) e 1 crime de abuso sexual de crianças (Artºs 171º nº 3 alª a) e 177º nº 7 CP); finalmente, no que respeita ao Ofendido DD, 2 crimes de abuso sexual de crianças (Artºs 171º nº 1 e 177º nº 7 CP) e 1 crime de abuso sexual de crianças (Artºs 171º nº 3 alª a) e 177º nº 7 CP).


V – Ou seja, no curto espaço de 2 meses, entre as 22h e 2h, numa casa habitada por outras pessoas, com alguns apalpões e palmadas no rabo, beijos e actos exibicionistas, o Arguido teria cometido 33 CRIMES DE ABUSO SEXUAL DE CRIANÇA, que pela mesma lógica mereceriam talvez a pena de 25 anos de prisão que se aplica aos “serial killers”, e seguramente muito mais do que se aplica aos violadores, que quase sempre se safam com 4 ou 5 anos de prisão, às vezes suspensa na sua execução desde que mostrem “arrependimento”.


VI – A Douta Decisão recorrida reduziu drasticamente o número de crimes (para 7) mas em nosso modesto entender continuou a qualificá-los e a quantificá-los erradamente.


VII – Recorde-se que comete o crime de abuso sexual de crianças, previsto no Artº 171º nº 1 do Código Penal (versão da lei nº 59/2007 de 4/9) quem praticar acto sexual de relevo com menor de 14 anos, ou levar a praticá-lo consigo ou com outra pessoa.


VIII – Como refere PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, em “Comentário do Código Penal”, Ed. UCE, p. 641, “… após a revisão de 2007, a lei penal distingue atos sexuais de especial relevo ou, na designação de Figueiredo Dias, “especiais atos sexuais de relevo” (cópula, coito anal e oral e penetração vaginal e anal com objetos ou partes do corpo) atos sexuais de relevo (atos sexuais com gravidade objetiva), atos de contacto sexual (atos sexuais sem gravidade objectiva) e atos de exibicionismo…”.


IX – Como a própria decisão recorrida reconhece, “É reconhecidamente difícil aferir o que seja um acto sexual de relevo, mas tais dificuldades devem ser superadas segundo as circunstâncias do caso concreto” (Fls. 20 Acórdão). Não deixa, porém, de citar a jurisprudência alemã, segundo a qual “… um simples beijo com toque de lábios, ou um simples toque nas pernas, seios ou nádegas de outrem, ou mesmo no sexo não integrarão em princípio o conceito típico de acto sexual de relevo, diferentemente do que sucederá com o “beijo lingual”, a “carícia insistente” e o “apalpão” (Fls. 19 – Acórdão).


X – O Prof. JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, na anotação ao Artº 163º do CP no “Comentário Conimbricense”, Ed.1999, p. 449 – Tomo I, entende que “… ficam excluídos do tipo actos que, embora “pesados” ou em si “significantes” por impróprios, desonestos, de mau gosto ou despudorados, todavia, pela sua pequena quantidade, ocasionalidade ou instantaneidade, não entravem a livre determinação sexual da vítima”.


XI – Ora, entre o Arguido e os menores havia alguma familiaridade, desde logo porque era tio-avô de DD, como resulta dos Factos Provados nºs 4 e 49; aliás, é identificado, no início do Acórdão, como “EE”, “FF” e “GG”, nomes pelos quais era tratado pelos menores, como resulta das declarações deles;


XII – Por outro lado, tendo convivido com eles pelo menos dois meses (JULHO/AGOSTO de 2020 – Facto Provado nº 5), só uma incorrecta análise crítica da prova pode levar a classificar beijos, ou palmadas no rabo, como “actos sexuais de relevo”, pois a verdade é que nunca foram seguidos de actos sexuais de relevo propriamente ditos (cópula, coito anal e oral, penetração anal, etc).


XIII – Embora constituindo manifestações de afecto excessivas, de mau gosto ou “despudoradas” (utilizando as expressões de Figueiredo Dias na obra citada) em nada afectaram a determinação sexual das crianças, nem sequer resulta dos factos provados (até porque o MP não solicitou a realização de quaisquer perícias psiquiátricas ou psicológicas às crianças) que estas tenham ficado particularmente afectadas pelos actos do arguido. Quando muito sentiram-se “importunadas” pelo mesmo, por sentirem que eram excessivos ou inconvenientes os seus actos (nas suas declarações, BB afirma mesmo que não gostava que lhe dessem palmadas no rabo porque “não era gay”, dando a entender que o Arguido o seria).


XIV – Reconhecemos porém, que já terão algum “relevo sexual”, por envolver contacto directo com o corpo das vítimas, quanto ao menor BB, o ter-lhe acariciado o pénis (F.P.11), constituindo o resto meros actos de exibicionismo ou importunação sexual sem relevância penal; quanto ao CC, ter-lhe tocado no pénis (F.P.17) embora por cima da roupa; quanto ao DD, ter-lhe apertado o pénis (F.P. nº 21) e ter posto a mão do menor no seu próprio pénis (F.P.23). Ou seja, no total uns 4 crimes de abuso sexual de crianças, e não os que o Acórdão recorrido quantifica (3 para o BB, 2 para o CC, e 2 para o DD)


B) DA QUANTIFICAÇÃO DOS CRIMES PRATICADOS PELO ARGUIDO


XV – Refere o Douto Acórdão recorrido que “Tendo sido possível aferir o número exacto de vezes que os menores foram abusados sexualmente ao longo do período de tempo dado como provado, impõe-se considerar que há um crime por cada ocasião em que ocorreram contactos sexuais (artº 30º nº 1, do Código Penal) – Fls. 22 Acórdão.


XVI – Ora do constante recurso a expressões indeterminadas como “pelo menos um dia diferente dos anteriores”, do facto de residirem na mesma casa outras pessoas, o que tornaria impossível, pela experiência comum, a ocorrência de tantos abusos, resulta claro que nunca o Tribunal poderia determinar o “número exacto” de abusos. Por algum motivo eram antes 33 e agora só seriam 7… Isto já para não falar de uma acusação onde eram inicialmente 5 as vítimas, e depois houve dois arquivamentos, ficando só 3…


XVII - Repare-se também que do elevado número de FACTOS NÃO PROVADOS (Fls. 8 e seguintes do Acórdão), constam factos como:


- ter o Arguido tirado a roupa e pedido aos menores para se deitarem consigo no colchão (Facto Não Provado nº 1);


- ter pedido ao BB que o beijasse na boca (F.N.P nº 3);


- ter apertado os mamilos ao BB (F.N.P. nº 4);


- ter agarrado na mão do BB e esfregado nos seus próprios mamilos (F.N.P. nº 5);


- ter friccionado as nádegas do BB /F.N.P. nº 6);


- “com frequência não concretamente apurada” ter friccionado e manipulado as nádegas do mesmo menor (F.N.P. nº 7);


- em “pelos menos” três dias diferentes ter colocado as mãos por dentro das calças e cuecas do mesmo menor e manipulado o pénis (F.N.P. nº 8);


- em “pelo menos” dois dias diferentes ter-se abeirado do mesmo BB, ter agarrado uma das suas mãos, e acariciado o seu próprio pénis (F.N.P. nº 9);


- ter-se masturbado e ejaculado à frente do mesmo menor (F.N.P. nº 10);


- ter-se abeirado do BB, puxado as suas próprias calças e cuecas e as do menor, e ter encostado a ponta do seu pénis ao ânus do menor (F.N.P.s nºs 11, 12 e 13);”


- em “pelo menos onze dias diferentes”, diante do ofendido BB, ter-se abeirado do ofendido CC e por cima da roupa ter-lhe friccionado e manipulado as nádegas (F.N.P. nº 14);


- ter baixado as calças do mesmo CC e ter agarrado e manipulado o seu pénis (F.N.P. nº 15);


- ter-se masturbado e ejaculado à frente do mesmo menor (F.N.P. nº 16).


XVIII – Como se pode verificar a fls. 13 do Acórdão recorrido, “Relativamente aos factos típicos dados como provados, a convicção do tribunal assentou, desde logo, nas declarações prestadas para memória futura pelos ofendidos menores BB, CC e DD”. Reconhecendo mais adiante “Tais factos não foram presenciados por mais ninguém…”.


XIX – Não explica o Douto Acórdão recorrido como é que destrinçou, entre as declarações dos menores (única prova relevante colhida neste processo), o que era verdade e o que era mentira, para poder “aferir o número exacto de vezes que os menores foram abusados sexualmente”.


XX – Como também não procurou entender e explicar racionalmente como é que alguém podia abusar tantas vezes dos menores (33 segundo o MP) no curto espaço de dois meses, numa casa onde, ao mesmo tempo, estava a dona da casa (Fls. 14, segundo parágrafo, do Acórdão), HH, que de nada se apercebeu “por estar grávida” e muito cansada!


XXI – Também não fez confusão ao Douto Tribunal recorrido que na mesma casa, à data dos factos, estivesse outra menor, II, sobrinha de HH (cujas declarações foram lidas em Tribunal a pedido da Defesa) a qual nada sofreu nem presenciou qualquer comportamento inadequado por parte do Arguido (como se refere a fls. 15, 2º parágrafo, do Acórdão recorrido).


XXII – É que, repare-se, os supostos abusos não foram praticados num quarto do Arguido (que aliás não o tinha, dormindo num colchão da sala) mas na sala comum do apartamento, onde havia uma televisão (F.P .nº 7) e onde por isso era suposto que, à noite a família se reunisse a ver televisão (segundo o Acórdão recorrido, os abusos teriam ocorrido entre as 22 e as 2h -F.P. nº 5); como explicar então que durante DOIS MESES (F.P.nº 5) nem a menor ali residente, nem a adulta que deveria estar a cuidar das crianças, tenha ido à sala ver se os menores se estavam a comportar devidamente (como qualquer adulto normal, que tivesse crianças a seu cuidado faria)?


XXIII – Ao estabelecer o número “exato” de vezes que o Arguido terá abusado dos menores, sem explicar racionalmente como chegou a esse número em vez dos 33 do MP, e partindo da mesma base de conhecimento (o depoimento dos menores), o Douto Acórdão recorrido não procedeu à análise crítica da prova, incorrendo assim na nulidade prevista no Artº 379º nº 1 alª a) do CPP, por não ter todas as menções exigidas no nº 2 do Artº 374º do mesmo diploma.


XXIV – Como se explica no Douto Acórdão do Tribunal da Relação de lisboa de 7.06.2016, proferido no Proc. nº 26/14.7GCMFR.L1-5 (Relator: ARTUR VARGUES), disponível em www.dgsi.pt, “O exame crítico das provas consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pela ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção”.


XXV – O mesmo refere o Douto Acórdão da mesma Relação de 10.07.2018, proferido no proc. nº 106/15.1PFLRS.L1-5 (Relator: JORGE GONÇALVES), disponível na mesma plataforma, segundo o qual “O exame crítico das provas exige a indicação dos meios de prova utilizados, mas não se basta com estes, tornando-se necessário explicitar o processo de formação da convicção do tribunal, a partir desses meios de prova, com apelo às regras de experiência e aos critérios lógicos e racionais que conduziram a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido. Só assim será possível comprovar se foi seguido um processo lógico e racional na apreciação da prova ou se esta se fundou num subjectivismo incomunicável que abre as portas ao arbítrio”. Entendemos, pois que nesta parte (quantificação dos crimes) o Douto Acórdão recorrido é NULO por falta de fundamentação (Artºs 374º nº 2 e 379º nº 1 alª a) do CPP).


XXVI – Tal nulidade, em nosso modesto entender, não leva necessariamente ao reenvio do processo, mas sim à constatação, óbvia, que não foi possível apurar com precisão o número de crimes praticados pelo Arguido (caso contrário, não se passaria de 33 para 7, partindo dos mesmos meios de prova). Assim, e perante essa impossibilidade, parece-nos mais sensata e acertada a Douta Jurisprudência deste venerando Supremo Tribunal de Justiça, que no Processo nº 110/14.7JASTB.E1.S1 decidiu em 4.5.2017 o seguinte:


“- Há uma pluralidade de resoluções criminosas, mas apenas punição por um crime de abuso sexual de criança quando não é possível proceder à quantificação do número de vezes que ocorreram os actos de abuso;


- De acordo com o Artº 30º nº 3 CP, tratando-se de crimes contra bens eminentemente pessoais (como é o da auto determinação sexual da criança) o caso não é subsumível à figura do crime continuado: há portanto uma pluralidade sucessiva de crimes;


-Porém tem o STJ entendido que, havendo uma sucessão de crimes idênticos contra a mesma vítima e num certo e determinado período temporal, estamos perante um crime de trato sucessivo, e daí que o agente deva ser condenado por um único crime”.


XXVII – Sobre a questão dos crimes de trato sucessivo, ou “habitual” chama-se ainda a atenção, porque extremamente elucidativo e bem elaborado, para o Acórdão STJ de 6.04.2016 (Relator: Cons. SANTOS CABRAL) proferido no Proc. 19/15.7JADLS.S1 que segue a mesma linha do acima citado.


C) DE DETERMINAÇÃO DA MEDIDA DA PENA


XXVIII – Como é sabido, a determinação da medida das penas deve seguir os princípios do artº 18º nº 2 da CRP (princípios da necessidade e proporcionalidade, ou da proibição do excesso), e seguir os critérios do Artº 40º nº 1 (finalidade das penas) e 71º nºs 1 e 2 do CP, ou seja, o de que a pena não deve exceder o limite da culpa, devendo atender aos antecedentes e às condições pessoais do agente.


XIX – Para evitar o excesso na pena a aplicar, e seguindo-se a citada orientação do STJ, deveria considerar-se ter o arguido praticado três crimes de abuso sexual de menores (um por cada menor), e tendo em conta que esses crimes não assumiram a forma mais grave (os “atos sexuais de especial relevo, como refere Paulo Pinto de Albuquerque), mas consistindo em poucos atos de contacto sexual (sem gravidade objectiva) e atos de exibicionismo, a pena aplicada a cada um não deveria exceder os 18 meses de prisão.


XX – E dado a pena cumulada juridicamente não exceder os 5 anos de prisão, deveria o Tribunal, atendendo a que o Arguido não tem antecedentes criminais, tem hábitos de trabalho (F.P.nº50), apesar de ter 8 filhos não se ter conhecimento de comportamentos idênticos, pelo que não existem especiais necessidades de prevenção especial (tendo o Arguido planos de vida razoáveis e credíveis – F.P.nº 61), se necessário impondo ao Arguido um tratamento psicológico ou a frequência de um curso para abusadores sexuais de crianças, lançar mão da faculdade prevista no Artº 50º nº 1 do CP, suspendendo a aplicação da pena a aplicar.


XXI – E não parece obstáculo a essa suspensão a alegada “falta de arrependimento” do arguido, pois é legítimo, face á disparidade de critérios de MP e do Tribunal recorrido, questionar de quantos crimes se deveria ter arrependido o arguido: de 33, de 7, dos 3 que defendemos? Por outro lado, quando se classifica como “crimes” actos como palmadas no rabo ou beijos na face, terá de se ter em conta uma compreensível falta de consciência de ilicitude por parte do arguido, o qual, recorde-se, vem de uma cultura ... algo “liberal” onde se pode manter 5 mulheres simultaneamente (F.P. nº 33). Diferente seria se o mesmo tivesse roubado ou morto alguém, porque aí a consciência da ilicitude é, sem dúvida alguma, mais exigível, e a ausência de arrependimento mais reprovável.


XXII – Uma referência final em relação às indemnizações arbitradas pelo Tribunal, a nosso ver sem a devida fundamentação, face ao que dispõe o Artº 483º nº 1 do CC. Que danos foram em concreto (e não partindo de “ideias gerais”) causados aos menores, e como apurados se o MP não ordenou qualquer perícia psicológica ou psiquiátrica às crianças? E essas indemnizações compensariam esses danos e chegariam de facto às crianças ou seriam para premiar o desleixo dos pais, que pelos vistos não cuidaram adequadamente dos seus filhos, deixando-os nas mãos de terceiros?».





      3. Respondeu a Exmª Procuradora da República junto do tribunal a quo, pugnando pelo não provimento do recurso e extraindo da sua resposta as seguintes conclusões (igualmente transcritas):


«1 O arguido AA veio recorrer do douto acórdão proferido no âmbito dos presentes autos, pelo qual foi condenado, pela prática, de três crimes de abuso sexual de crianças, previstos e puníveis pelos artigos 171.º, n.º 3, alínea a), e 170.º, do Código Penal, um crime de abuso sexual de crianças, previsto e punível pelos artigos 171.º, n.º 3, alínea a), e 170.º, na forma tentada e por três crimes de abuso sexual de crianças, previstos e puníveis pelo artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal, na pena única de sete anos de prisão.


2 No caso concreto, o recurso interposto pelo arguido visa o reexame de matéria de direito, nos termos do artigo 432.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, relativamente à qualificação jurídica dos factos, à determinação da medida da pena e aplicação de pena de substituição e ao arbitramento oficioso de indemnização civil, tendo sido arguida também a nulidade por falta de exame crítico da prova.


3 De acordo com o recorrente, o acórdão não esclareceu como foi efetuado o cálculo do número exato de vezes em que o arguido abusou dos ofendidos e não esclareceu como é que a testemunha HH, residente com o arguido, não se apercebeu dos abusos sexuais, nem como a menor II não foi vítima de abusos, uma vez que os mesmos tiveram lugar na sala da residência onde moravam, não tendo assim, procedido ao exame crítico da prova, o que, na perspetiva do recorrente, consubstancia uma nulidade por falta de fundamentação, nos termos do artigo 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código de Processo Penal.


4 No entanto, o Tribunal na verdade fundamentou e esclareceu as dúvidas ora manifestadas pelo recorrente e esclareceu também como apurou o número de crimes em que o recorrente incorreu, bastando atentar nos factos provados e na motivação da matéria de facto, no âmbito da qual o Tribunal esclareceu em que meios de prova fundou a sua convicção para a decisão sobre a matéria factual, sendo que de seguida, em sede de enquadramento jurídico-penal dos factos, o Tribunal aponta de forma explícita como chegou ao apuramento do número de crimes.


5 Por outro lado, ficou também esclarecido como é que a testemunha HH, residente com o arguido, não se apercebeu dos abusos sexuais. Tal decorre da circunstância de os factos terem todos ocorrido numa sala, onde o arguido dormia e ficava com os menores, como decorre dos factos provados n.º s 5, 6, 7 e 8, e ficou também é explicado no âmbito da motivação da matéria de facto, quando é analisado o depoimento da testemunha HH, sendo que, quanto à circunstância de a menor II não ter sido vítima de abusos, não cabia, nem era necessário provar, como é que a mesma não foi abusada, para melhor justificar os abusos sofridos pelos outros menores, uma vez que a inexistência de abusos quanto a esta menor não prova que os abusos aos ofendidos não ocorreram.


6 Segundo o recorrente, o douto acórdão condenatório qualificou erradamente os atos considerados provados, considerando que, dado o convívio e familiaridade entre o arguido e os menores ofendidos, os beijos e palmadas no rabo que lhes deu não configuram a prática de atos sexuais de relevo e que embora constituam atos excessivos, não afetam a determinação sexual das crianças e que a seu ver, o arguido cometeu apenas quatro factos que constituem atos sexuais de relevo, pelo que segundo o arguido, só estarão em causa a prática de quatro crimes de abuso sexual de crianças e não sete, conforme consta do acórdão.


7 Sucede que o recorrente apenas refere alguns dos factos provados, mas não foram só esses os atos de relevo sexual que foram considerados provados. Nesse sentido, atente-se, pela especial relevância, quanto ao ofendido BB, aos factos provados n.ºs 12 e 13, que são claramente atos sexuais de relevo e não meros atos exibicionistas, quanto ao ofendido CC, as palmadas desferidas e incluídas no facto provado n.º 16, que antecederam os acontecimentos incluídos no facto provado n.º 17, que correspondem a atos sexuais de relevo, inscrevendo-se nesse contexto e relativamente ao ofendido DD, também os facto provado n.º 22, correspondente a ato sexual de relevo e que não constituem de modo algum meros atos de exibicionismo, como pretende crer o recorrente, para além dos factos provados n.º s 24, 25 e 26.


8 Considera o recorrente que a pena a aplicar deveria ser a correspondente à prática de três crimes de abuso sexual de crianças, ou seja, um crime por cada um dos ofendidos, porquanto defende que deveria ser aplicada a tese do crime de trato sucessivo, segundo a qual, havendo sucessão de crimes idênticos com a mesma vítima e num determinado período temporal, há crime de trato sucessivo, devendo o agente ser punido por um único crime.


9 Porém, a tese que defende o crime do trato sucessivo, que aliás, não tem correspondência na lei, corresponde a uma vertente minoritária no seio da jurisprudência. Assim, ao integrar os vários atos sexuais de relevo no âmbito do concurso efetivo de crimes, o Tribunal seguiu aquele que é o pensamento maioritário da jurisprudência e que é aquele que se encontra mais de acordo com o espírito da lei, pois estando literalmente vedada a possibilidade de integração deste tipo de factos à luz do crime continuado, não faria sentido qualquer sentido que fosse possível ao intérprete a aplicação de uma outra tese que tivesse o mesmo efeito de fazer integrar os factos ilícitos numa única unidade criminosa.


10 Considera o recorrente igualmente que a condenação por cada um dos crimes não deveria ultrapassar os 18 meses de prisão, por não estarem em causa factos graves, porque o arguido não tem antecedentes criminais, está inserido socialmente e porque os factos ocorreram num período temporal circunscrito, considerando ainda o recorrente que a pena única a aplicar não deveria ser superior a cinco anos de prisão.


11 Verifica-se porém que no caso concreto, as necessidades de prevenção geral são neste caso muito relevantes e atento o grau de culpa e ilicitude muito elevada facilmente se conclui pela elevada premência das necessidades preventivas especiais deste arguido, pelo que, sopesadas todas as circunstâncias e tendo presente o teor do artigo 27.º do Código Penal e a medida abstrata da pena aplicável ao arguido, entende-se que a aplicação ao recorrente da pena de sete anos de prisão é adequada, suficiente e proporcional às necessidades de prevenção supra referidas, não sendo superior à sua culpa, uma vez que os factos provados denotam, como já foi mencionado, uma premência das necessidades de prevenção geral e especial que já não se podem considerar situadas ao nível mínimo, merecendo censura superior, correspondente à punição aplicada, que ainda assim resulta da aplicação de penas parcelares situadas num patamar próximo do mínimo ou situado a nível mediano da pena aplicável em abstrato.


12 O recorrente também não se conformou com o decidido pelo Tribunal a quo quando o mesmo se decidiu pela não suspensão da pena de prisão em que foi condenado, tendo em consideração a sua ausência de antecedentes criminais, a circunstância de o arguido trabalhar e de ser previsível a facilidade da sua reinserção social.


13 No caso concreto, logo à partida, não se mostram preenchidos os pressupostos materiais da pena de substituição, por se estar perante uma pena superior a 5 anos de prisão. Contudo, ainda que assim não fosse, também não se mostrariam preenchidos os pressupostos respeitantes ao prognóstico favorável relativo à futura conduta do arguido, pois, verifica-se que, embora o arguido não tenha antecedentes criminais, incorreu na prática do crime com dolo direto e intenso e nunca demonstrou arrependimento pelos factos. Assim sendo, não se encontram reunidos nenhuns dos pressupostos necessários, nem se afigura adequada, nem suficiente, às finalidades da pena e à salvaguarda das necessidades preventivas, a suspensão da execução da pena de prisão em que o arguido foi condenado, razão pela qual o douto acórdão recorrido afastou desde logo tal possibilidade.


14 Contesta o recorrente também o arbitramento oficioso de indemnização civil, porquanto, a seu ver, não ficou esclarecido o dano que tal indemnização visa ressarcir, nem o lesado que visa ressarcir, nem o fundamento para o apuramento do montante arbitrado, fundando-se a decisão, segundo a sua ótica, em meras conjeturas e sem respeito pelos pressupostos do artigo 483.º, nº 1, do Código Civil.


15 Contudo e quanto aos danos e aos lesados a compensar pelos mesmos, ao contrário do alegado pelo recorrente, os mesmos foram bem assinalados no âmbito do acórdão proferido, estando evidentemente em causa uma compensação às vítimas dos factos ilícitos pelos danos sofridos em consequência da conduta do arguido, estando, pois, em causa a tutela do bem jurídico protegido com a incriminação, que é o livre desenvolvimento da personalidade das crianças na esfera sexual.


16 Quanto ao montante arbitrado e tendo em conta os critérios de equidade aplicáveis, não se podem considerar excessivos os montantes arbitrados, atentas as possibilidades económicas do arguido e o número de vítimas e de crimes, tendo sido fixado um montante de forma equilibrada, que corresponde a pouco mais de 2.000 Euros por cada crime, valor esse que não sendo diminuto, porque nunca o poderia ser, caso contrário não corresponderia a uma verdadeira compensação pecuniária às vítimas, também não constitui um encargo que seja financeiramente insuportável para o arguido.


17 Assim, à luz do que se acaba de expor, somos de parecer que o douto acórdão recorrido não enferma de nenhum vício de nulidade, nem merece qualquer reparo, devendo manter-se nos seus precisos termos, negando-se total provimento ao recurso interposto pelo arguido».





   II. Neste Supremo Tribunal de Justiça, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, no sentido do não provimento do recurso:


«(…)


5 - Acompanhamos o entendimento constante da resposta ao recurso apresentada pela Magistrada do Mº Pº no Tribunal recorrido, afigurando-se-nos, também, que a decisão recorrida não merece qualquer censura.


Desde logo no que respeita à subsunção jurídica dos factos provados. A decisão recorrida é clara e esclarecedora e ao contrário do que refere o recorrente o Tribunal apurou o número de vezes e os actos praticados pelo arguido.


Por outro lado, não tem qualquer sustentação a pretensão do recorrente no sentido de aqueles actos se reconduzirem a um crime de trato sucessivo e à condenação por um único crime, como bem demonstra a Magistrada do MºPº no Tribunal recorrido, cujas considerações subscrevemos.


 6- Mas também não assiste qualquer razão ao recorrente no que respeita à sua pretensão de ver reduzidas as penas parcelares e única em que foi condenado.


 Com efeito, o Tribunal recorrido, na decisão de escolha e determinação da medida das penas, fez uma análise e valoração criteriosas das circunstâncias que rodearam a prática dos factos, do grau de culpa manifestado, da ilicitude e das exigências de prevenção especial e geral e teve em consideração todas as circunstâncias anteriores e posteriores aos crimes que depõem a favor do arguido, mas também as que lhe são desfavoráveis, como impõe o art. 71, nº 2, do Código Penal.


 Em conformidade, o Tribunal recorrido, na fundamentação da decisão relativa à determinação da medida concreta das penas, consignou o seguinte:


 “No que respeita à execução dos factos, dir-se-á que os abusos sexuais de crianças dos autos revelam uma elevada ilicitude em virtude de se ter provado que, durante o período de cerca de dois meses, os três menores foram abusados sexualmente no interior da sua própria habitação ou da habitação onde ficavam ao cuidado de uma amiga das respectivas mães, sendo que as vítimas tinham entre 7 a 10 anos de idade.


Tais abusos ocorriam durante a noite enquanto a sobrinha do arguido dormia no seu quarto e o arguido ficava na companhia dos menores na sala, sendo que um deles era sobrinho-neto do arguido.


O desvalor de acção é globalmente muito elevado, havendo um crescendo óbvio de ilicitude nos actos sexuais de relevo infligidos aos menores abusados, o qual começa na tentativa de beijos na boca e nas masturbações exibicionistas, ascende para as palmadas nas nádegas, os toques nos mamilos e nas carícias e apertões nos pénis, por cima e por baixo da roupa, passando também pela simulação de coito anal com o menor BB e culminando no toque peniano directo no ânus do menor DD.


Alguns dos referidos actos infligidos aos menores assumem uma grande intensidade emocional e têm um potencial traumático muito elevado nas vítimas, mesmo que estas não se considerem imediatamente como tal, pois tais memórias traumáticas, como é sabido, podem ser reactivadas em qualquer fase posterior das suas vidas.


O dolo do agente foi directo, prolongado e intenso, como sucede naturalmente neste tipo de criminalidade.


No que respeita à personalidade e condições de vida do agente, o arguido, actualmente com 41 anos de idade, não apresenta qualquer condenação averbada no respetivo certificado de registo criminal.


Considerou também que:


“O arguido não beneficia de um suporte familiar, de modo a proporcionar-lhe uma maior estabilidade emocional, para que consiga concretizar o investimento na atividade profissional e pessoal.


As necessidades de prevenção geral são elevadíssimas relativamente ao crime de abuso sexual de criança, sobretudo quando cometido no seio da família, pois o crime em questão, não obstante apenas ser conhecida a ponta do icebergue, provoca invariavelmente forte alarme social, reclama uma forte resposta de reposição da eficácia da norma e bens jurídicos afectados, devido às lesões irreparáveis produzidas no desenvolvimento da personalidade e da sexualidade das crianças abusadas, tendo assumido uma preocupante frequência quantitativa na área da comarca ... e nas demais comarcas do país.


Não obstante o arguido não ter antecedentes criminais de qualquer espécie e contar actualmente 41 anos de idade, as necessidades de prevenção especial são elevadas no que respeita à natureza dos crimes sob julgamento, pois o arguido evidenciou uma preocupante, intensa e galopante actuação criminosa durante o curto período de cerca de dois meses e manifestou também falta de atitude crítica para assumir o mal praticado, com isso denotando uma desvalorização da condição das vítimas.


O arguido não reconhece o mal praticado apenas para tentar escapar à sua responsabilidade num contexto probatório em que pensa – erradamente – que tem apenas contra si a palavra das vítimas, havendo, assim, uma forte probabilidade do arguido vir a reincidir em comportamentos semelhantes ou até mais disfuncionais, o que tem de ser prevenido necessariamente com a privação temporária da liberdade acompanhada de intervenção médica especializada.


A culpa do arguido é muito elevada relativamente aos abusos sexuais dos autos, desde logo, pela relação familiar existente com uma das vítimas e pela traição verificada na relação de confiança mantida com a sobrinha do arguido que o albergou na sua casa e que dormia no quarto enquanto o arguido abusava da inexperiência e da ingenuidade dos menores deixados ao seu cuidado na sala ao lado.


Por outro lado, este juízo de censura não pode deixar também de refletir a reiteração descontrolada da actuação criminosa durante um curto período de tempo”.


7- No que respeita à pena do concurso, o Tribunal considerou adequada a pena única de 7 anos de prisão.


E, consignou o seguinte:


“Não tendo o legislador optado pelo sistema de acumulação material no apuramento da pena no concurso de crimes, é forçoso concluir que com a fixação da pena conjunta se pretende sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respectivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente.


No caso concreto, a moldura abstracta do cúmulo varia entre o mínimo de 4 anos de prisão e o máximo de 13 anos e 5 meses de prisão (art. 77.º, n.º 2).


Reproduzindo aqui tudo o que se deixou escrito a respeito das penas parcelares, e sem perder de vista a pluralidade de vítimas, a impressiva reiteração da atuação criminosa durante um curto período de tempo, a culpa elevada, a falta de assunção do mal praticado e a ausência de antecedentes criminais, afigura-se adequada a aplicação da pena única de 7 anos de prisão.


8 - Afigura-se-nos que o Tribunal recorrido observou os critérios estabelecidos na lei – arts 40º, 71º e 77º, do Código Penal – na fixação quer das penas parcelares quer da pena única.  


A medida da pena do concurso de crimes, tal como vem sendo unanimemente afirmado pela jurisprudência e doutrina, é determinada, tal como nas penas parcelares, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, a que acresce, como decorre do nº 1, do art. 77º, do Código Penal, um critério específico – “a consideração em conjunto dos factos e da personalidade do agente”. 


Como se sumariou no acórdão deste Supremo Tribunal, de 21/11/2012, “III. …, com a fixação da pena conjunta (se) pretende(-se) sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respectivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, visto que a lei manda se considere e pondere, em conjunto, (e não unitariamente), os factos e a personalidade do agente.” 


No mesmo sentido o acórdão, também deste Supremo Tribunal, de 16/06/2016, em que se sumariou: “V – A pena única visa corresponder ao sancionamento de um determinado trecho de vida do arguido condenado por pluralidade de infracções. Há que valorar o ilícito global perpetrado, ponderando em conjunto a gravidade dos factos e a sua relacionação com a personalidade dos ora recorrentes, em todas as suas facetas. Ponderando o modo de execução, a intensidade do dolo, directo, as necessidades de prevenção geral e especial, (…), o passado criminal do arguido, bem como o tempo decorrido desde o último facto ocorrido.”


9 - O recorrente pretende a redução das penas parcelares e da pena única, esta para medida não superior a 5 anos de prisão e a suspensão da respectiva execução.


No entanto, nada resulta dos autos que permita concluir estar arguido arrependido, ou sequer que interiorizou o desvalor das suas condutas e as consequências nefastas que delas resultaram para as vítimas.  


O Tribunal recorrido fez, a nosso ver, uma análise e ponderação correcta e objectiva do conjunto dos factos e da sua gravidade, mas também das condições pessoais do recorrente e da personalidade evidenciada. E, tendo em conta a moldura penal do concurso, consideramos que a pena única fixada pelo Tribunal é adequada e proporcional, obedece aos critérios decorrentes do disposto nos arts 40º, 71º e 77º do Código Penal e dá resposta às exigências de prevenção, não havendo, por isso, qualquer fundamento para a sua redução.


10 - Igualmente não merece qualquer censura, a nosso ver, a decisão recorrida no que concerne à atribuição de indemnização às vítimas.


O Tribunal recorrido fez constar da decisão as razões subjacentes quer à verificação dos pressupostos quer ao quantitativo fixado, não tendo qualquer fundamento as críticas que lhe são dirigidas pelo recorrente


Em conformidade com o exposto, emite-se parecer no sentido da improcedência do recurso interposto pelo arguido».





Cumprido o disposto no artº 417º, nº 2 do CPP, o recorrente respondeu, reafirmando o alegado em sede de motivação de recurso.





     III. Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.





   1. São as conclusões extraídas pelo recorrente da sua motivação que delimitam o âmbito do recurso - artº 412º, nº 1 do CPP.


    E em causa neste recurso estão as seguintes questões:


    A) Nulidade do acórdão recorrido por alegada falta de exame crítico da prova;


     B) A (errada) qualificação jurídica dos factos apurados;


  C) A pretensa excessividade das penas (parcelares e única) aplicadas e a necessidade de aplicação de uma pena única de prisão, suspensa na sua execução;


  D) O arbitramento oficioso de indemnização aos ofendidos e respectivo quantum.





     2. No tribunal a quo foram fixados os seguintes factos:


1. O arguido AA, também conhecido por “EE”, “FF” e “GG”, nasceu no dia .../.../1979.


2. BB nasceu no dia .../.../2009 e é filho de JJ e de KK.


3. CC nasceu no dia .../.../2013 e é filho de LL e de MM.


4. DD nasceu no dia .../.../2013 e é filho de NN e de HH.


5. No período compreendido entre os meses de Julho e Agosto de 2020, entre 20.00 horas e as 02.00 horas, BB e CC ficaram aos cuidados de HH, na residência sita na Praceta ..., em ... – ....


6. Residência essa na qual residia, temporariamente, o arguido AA, enquanto estava impedido de regressar à ..., por força da restrição dos voos causada pela Pandemia SARSCOV2 – COVID19.


7. Naquele período de tempo, no interior da sala da dita habitação, com o pretexto de ver televisão, o arguido AA permanecia no sofá junto de BB e CC.


8. O arguido AA também dormia, num colchão, colocado no chão da referida sala.


9. Nas circunstâncias de espaço, modo, tempo e lugar acima descritas, em pelo menos uma ocasião, o arguido AA agarrou a face do ofendido BB e beijou-o no rosto e tentou beijá-lo na boca.


10. Nas circunstâncias de espaço, modo, tempo e lugar acima descritas, em pelo menos uma ocasião diversa da anterior, o arguido AA aproximou-se de ofendido BB, colocou-lhe as mãos por baixo da roupa, após o que lhe tocou nos mamilos.


11. Após o que, por cima da roupa que este vestia, desferiu-lhe palmadas nas nádegas e colocou-lhe as mãos por dentro das calças e das cuecas que este trazia vestidas, após o com elas lhe acariciou o pénis.


12. Acto contínuo, o arguido AA virou o ofendido BB de costas para si, colocou o seu corpo sobre o corpo deste e, de seguida, estando ambos vestidos, encostou-lhe a parte do seu corpo correspondente ao pénis, então erecto, ao rabo deste último, no qual se esfregou.


13. Nas circunstâncias de espaço, modo, tempo e lugar acima descritas, em pelo menos 1 (um) dia diferente dos anteriores, o arguido AA abeirou-se do ofendido BB e, de frente para este, retirou o seu pénis para fora das calças e das cuecas que vestia, mostrou-lho, ao mesmo tempo que o acariciou e friccionou, para a frente e para trás, até ficar erecto.


14. Ao ter atuado conforme acima descrito, o arguido AA quis satisfazer os seus instintos sexuais e a sua lascívia à custa do ofendido BB, o que conseguiu, bem sabendo que, com os seus comportamentos, perturbava e estava a prejudicar, de forma séria, o desenvolvimento da sua personalidade, designadamente, na esfera sexual, que punha em causa o normal e são desenvolvimento psicológico, afectivo e da consciência sexual do mesmo, que atingia os sentimentos de pudor moral, de vergonha e sexuais daquele, com apenas dez anos de idade, circunstância essa que bem conhecia e que, por causa dessa idade, aquele não tinha capacidade para querer e entender o significado social dos actos por si e nele praticados.


15. AA agiu livre, voluntária e deliberadamente, bem sabendo que as suas descritas condutas eram censuradas, proibidas e punidas por lei penal.


16. Nas circunstâncias de espaço, modo, tempo e lugar acima descritas, em pelo menos dois dias diferentes, o arguido AA abeirou-se do ofendido CC, após o que, por cima da roupa que este vestia, desferiu-lhe palmadas nas nádegas.


17. De seguida, igualmente por cima das calças, o arguido tocou com a sua mão, no pénis deste último e, acto contínuo, acariciou-o.


18. Ao ter atuado conforme acima descrito, o arguido AA quis satisfazer os seus instintos sexuais e a sua lascívia à custa do ofendido CC, o que conseguiu, bem sabendo que, com os seus comportamentos, perturbava e estava a prejudicar, de forma séria, o desenvolvimento da sua personalidade, designadamente, na esfera sexual, que punha em causa o normal e são desenvolvimento psicológico, afectivo e da consciência sexual do mesmo, que atingia os sentimentos de pudor moral, de vergonha e sexuais daquele, com apenas sete anos de idade, circunstância essa que bem conhecia e que, por causa dessa idade, aquele não tinha capacidade para querer e entender o significado social dos actos por si e nele praticados.


19. AA agiu livre, voluntária e deliberadamente, bem sabendo que as suas descritas condutas eram censuradas, proibidas e punidas por lei penal.


20. Num dia não concretamente apurado do período compreendido entre os meses de Julho e Agosto de 2020, na residência sita na Praceta ..., em ... - ..., o arguido AA abeirou-se do ofendido DD quando este se encontrava na sala daquela residência.


21. De seguida, o arguido AA puxou as calças e as cuecas do ofendido DD para baixo, após o que lhe agarrou o pénis e apertou-lho com a mão.


22. De seguida, o arguido AA puxou as suas próprias calças e cuecas para baixo e agarrou uma das mãos do ofendido DD após o que a levou e a colocou à volta do seu (do arguido) pénis, erecto.


23. Após alguns instantes, o arguido AA virou o ofendido DD de costas para si e encostou-lhe a ponta do seu pénis, erecto, ao ânus deste último.


24. Num outro dia não concretamente apurado do período compreendido entre os meses de Julho e Agosto de 2020, na residência na sita na Praceta ..., em ... - ..., o arguido AA abeirou-se do ofendido DD quando este se encontrava na sala daquela residência.


25. Acto contínuo, o arguido AA retirou do seu corpo uma toalha de banho o cobria, tendo ficado integralmente desnudado.


26. Acto contínuo, arguido AA virou-se para o ofendido DD, após o que lhe exibiu e mostrou o seu pénis, erecto.


27. Ao ter atuado conforme acima descrito, o arguido AA quis satisfazer os seus instintos sexuais e a sua lascívia à custa do ofendido DD, o que conseguiu, bem sabendo que, com os seus comportamentos, perturbava e estava a prejudicar, de forma séria, o desenvolvimento da sua personalidade, designadamente, na esfera sexual, que punha em causa o normal e são desenvolvimento psicológico, afectivo e da consciência sexual do mesmo, que atingia os sentimentos de pudor moral, de vergonha e sexuais daquele, com apenas sete anos de idade, circunstância essa que bem conhecia e que, por causa dessa idade, aquele não tinha capacidade para querer e entender o significado social dos actos por si e nele praticados.


28. AA agiu livre, voluntária e deliberadamente, bem sabendo que as suas descritas condutas eram censuradas, proibidas e punidas por lei penal.


Mais se provou:


29. Tendo prestado declarações durante a audiência de julgamento, o arguido negou totalmente a prática dos factos dados como provados.


30. O arguido não apresenta qualquer condenação averbada no respectivo certificado de registo criminal.


Mais se provou (relatório social):


31. O arguido nasceu em .../.../1979.


32. AA é natural de ..., país onde se processou o seu desenvolvimento até 1994, ano em que veio para Portugal, na companhia do pai, entretanto falecido em 2018.


33. O arguido é fruto de uma das várias ligações afetivas do pai, o qual mantinha cinco esposas, como é usual na cultura ....


34. O arguido tem 21 irmãos que se encontram na sua maioria na ..., mas também noutros países, como nos ... e em ....


35. Em Portugal, o arguido conseguiu legalizar a sua permanência e adquiriu a nacionalidade portuguesa.


36. AA foi criado pela mãe, falecida em 2014, e especialmente por uma das madrastas, OO que considera como mãe e que permanece na ..., sendo a única esposa do pai que ainda é viva.


37. O arguido sempre beneficiou de apoio familiar, descrevendo um ambiente relacional positivo e estruturado, num contexto de comunidade em que as companheiras do progenitor residiam junto das respetivas famílias de origem.


38. O arguido desenvolveu a frequência escolar no país de origem, onde concluiu o equivalente ao 9.º ano de escolaridade; no entanto, refere ter concluído já em Portugal, vários cursos de formação profissional, nomeadamente um curso técnico de ..., um curso de ... e um curso ..., entre outros.


39. Em termos laborais, o arguido efetuou um estágio no ... e no ..., onde desempenhou função na ... e ....


40. Desempenhou ainda, outras atividades diversificadas, tendo iniciado atividade na área da ..., junto do pai na ... e chegado a Portugal, desenvolveu atividades como ..., na ... e ....


43. Referencia, ao nível da saúde, alguns sintomas recentes ao nível dos membros inferiores e superiores, com dificuldade de movimentos, arrastando um pé e sentindo formigueiro nos dedos das mãos, e ainda diz sofrer de hepatite B e problemas de audição no ouvido esquerdo, devido a agressão.


44. A nível afetivo, AA estabeleceu três relacionamentos de intimidade, na ... e dos quais tem 8 filhos com idades compreendidas entre os 7 e os 14 anos, os quais se encontram ao cuidado das respetivas progenitoras, mas também da sua madrasta que ajuda nos cuidados educativos.


45. O arguido tem estabelecido contacto com os irmãos, que se encontram emigrados, numa tentativa destes o ajudarem a poder permanecer em Portugal, de modo que possa criar condições para que os filhos se lhe possam juntar.


46. Em 2018, através de redes sociais, AA refere ter realizado matrimónio com uma cidadã ..., PP, a qual pretende vir para Portugal na companhia de uma filha de menor de idade, fruto de uma anterior ligação afetiva, a fim de poder prosseguir os estudos superiores em ..., tendo a sua vinda, vindo a ser adiada por motivos que se prendem com a pandemia.


47. Em Portugal viveu sempre com o pai e após o falecimento deste passou a residir em casa de familiares e amigos.


48. Neste momento o arguido tenta manter o apoio dos irmãos e madrasta com quem contacta telefonicamente, e que se encontram fora de Portugal.


49. À data dos factos sob julgamento, o arguido residia na ..., em casa de uma sobrinha, destacando-se a sua mobilidade residencial justificada por motivos laborais.


50. O arguido apresenta hábitos de trabalho, alterando a atividade laboral em busca de melhores condições económicas, fator que se revela facilitador da sua reorganização pessoal.


51. O seu projecto de vida passa por conseguir que a esposa que vive no ... se venha juntar a ele e juntos consigam reorganizar uma vida em conjunto, apesar de esta ser uma relação que tem vindo a manter à distância sem nunca ter privado com ela.


52. AA encontra-se no Estabelecimento Prisional da ..., onde tem mantido uma conduta isenta de reparos, encontrando-se integrado laboralmente como ....





    3. E o tribunal a quo considerou não provados os seguintes factos:


1. Aproveitando-se da circunstância de se encontrar sozinho com os ofendidos BB e CC e da confiança que os mesmos tinham para consigo, o arguido AA convenceu-os a deitarem-se no dito colchão, após que, de seguida, também ele nele se deitou no espaço existente entre ambos.


2. Depois de, previamente para o efeito, o arguido AA ter retirado e despido a roupa que trazia e, de seguida, ter pedido aos ofendidos BB e CC que o abraçassem, com o pretexto de ter frio.


3. Em pelo menos uma ocasião, diante do ofendido CC, arguido AA pediu a BB que lhe desse beijos na boca, pedidos estes a que o mesmo não acedeu.


4. Em pelo menos quatro dias diferentes, diante do ofendido CC, o arguido AA massajou, friccionou e apertou os mamilos de BB.


5. Em pelo menos 2 (dois) dias diferentes, diante do ofendido CC, o arguido AA agarrou a mão do ofendido BB, após o que a levou e a colocou nos seus mamilos (do arguido), aí a tendo mantido agarrada contra aqueles, ao mesmo tempo que neles a esfregou e com ela os acariciou.


6. Com frequência não concretamente apurada, diante do ofendido CC, o arguido AA abeirou-se do ofendido BB, colocou-lhe as mãos por dentro das calças e das cuecas que este trazia vestidas, após o que com elas lhe friccionou e manipulou as nádegas.


7. Com frequência não concretamente apurada, o arguido AA abeirou-se do ofendido BB, após o que lhe friccionou e lhe manipulou as nádegas, por cima da roupa que este vestia.


8. Em pelo menos 3 (três) dias diferentes, diante do ofendido CC, o arguido AA abeirou-se do ofendido BB, colocou-lhe as mãos por dentro das calças e das cuecas que este trazia vestidas, e friccionou-lhe e manipulou-lhe o pénis.


9. Em pelo menos 2 (dois) dias diferentes, diante do ofendido CC, o arguido AA abeirou-se do ofendido BB, agarrou-lhe uma das suas mãos, após o que a levou e a colocou à volta do seu (do arguido) pénis, erecto, nele a manteve e com ela o acariciou e friccionou, para a frente e para trás.


10. O arguido ejaculou quando se masturbou à frente de BB.


11. Em pelo menos 1 (um) dia diferente, o arguido AA abeirou-se do ofendido BB quando este se encontrava deitado no colchão da sala.


12. De seguida, o arguido AA puxou as suas próprias calças e cuecas para baixo e, acto contínuo, puxou as calças e as cuecas do ofendido BB para baixo.


13. Acto contínuo, o arguido AA encostou-lhe a ponta do seu pénis, erecto, ao ânus deste último, no qual a esfregou.


14. Em pelo menos onze dias diferentes, diante do ofendido BB, o arguido AA abeirou-se do ofendido CC, após o que, por cima da roupa que este vestia, friccionou-lhe e manipulou-lhe as nádegas.


15. De seguida, o arguido AA baixou as calças e as cuecas que o ofendido CC trazia vestidas, após o que com a sua mão, agarrou o pénis deste último e, acto contínuo, manipulou-o.


16. Em pelo menos 1 (um) dia diferente, o arguido AA abeirou-se do ofendido CC e, de frente para este, retirou o seu pénis para fora das calcas e das cuecas que vestia, mostrou-lhe, ao mesmo tempo que o acariciou e friccionou, para a frente e para trás, até ficar erecto, após o que ejaculou.


17. O arguido praticou os factos dados como provados sob os números 20) a 23) em ocasiões diferentes.





  4. Desta forma fundamentou o tribunal a sua convicção:


«1. O juízo probatório positivo e negativo alcançado pelo Tribunal fundou-se na análise global e sistemática das declarações do arguido, dos depoimentos dos ofendidos e das restantes testemunhas ouvidas em sede de audiência de julgamento e da prova documental constante dos autos, tudo à luz da regra da livre apreciação e das restrições legais de valoração existentes, com a concorrência de critérios objectivos que permitam estabelecer um substrato racional de fundamentação e de convicção.


Importa ainda ter presente que o presente julgamento respeita à prática de crime de abuso sexual de crianças com idades compreendidas entre os sete e os dez anos de idade, cuja prova é reconhecidamente difícil “em virtude das ameaças que os autores fazem aos menores para não denunciarem, o próprio medo das vítimas de que os pais saibam ou a compreensão de que aquilo não era coisa normal”, sendo que “a maior ocorrência desses abusos é no próprio lar da criança” (Vide VELOSO DE FRANÇA, Fundamentos de Medicina Legal, Koogan, 2005, p. 133).


Numa perspectiva médica, dir-se-á ainda que o abuso sexual infantil “manifesta-se de muitas formas, como: carícias nos genitais das crianças, solicitação para que elas as façam nos adultos, contacto bucogenital do autor com a vítima ou vice-versa, coitos incompletos anovaginais, ou mesmo a exibição dos genitais dos adultos, masturbação na presença das crianças ou exibição de material pornográfico a elas” (Idem).


Na verdade, do ponto de vista médico-legal, como facilmente se compreende, muitas acções susceptíveis de ser consideradas como abuso sexual são insusceptíveis de demonstração de modo objectivo, nomeadamente os toques realizados com o dedo, pénis ou objectos, excepto se os mesmos forem acompanhados de traumatismo ou de contaminação venérea (Vide GISBERT CALABUIG, Medicina Legal e Toxicología, 6.ª Edición, Elsevier Masson, 2004, pp. 587-588).


Aliás, em estudos realizados na população espanhola, a agressão sexual infantil mais frequente é o mero toque, desacompanhado de qualquer ameaça e sem deixar qualquer vestígio (Vide SUÁREZ SOLÁ y GONZÁLEZ DELGADO, Importancia de la exploración médico forense en las agresiones sexuales a menores, in Cuadernos de Medicina Forense, n.º 31, Enero 2003, pp. 40-43).


Ainda no exame clínico, não podem ser ignoradas determinadas manifestações da criança vítima de abuso sexual, que funcionam como relevantes indicadores a valorar globalmente, nomeadamente: a revelação do abuso sexual pela própria criança, a descrição do abuso com vocabulário próprio da idade, o estado de tristeza, a presença de sentimentos de culpa e de vergonha, a resistência ao exame e investigação, a revelação de conhecimentos sexuais inapropriados para a idade da vítima, a conduta precocemente sexualizada, alterações de comportamento, mudança de rendimento escolar e a enurese. Por outro lado, não se pode exigir que as crianças vítimas de abusos sexuais adoptem padrões comportamentais dos adultos, isto é, que verbalizem o abuso e que o mantenham sempre da mesma forma perante os juízes, médicos e psicólogos, não obstante a demora do processo e a falta de métodos adequados (Vide GIL ARRONES, OSTOS SERNA, LARGO BLANCO, ACOSTA GORDILLO y CABALLERO TRIGO, Valoración médica de la sospecha de abuso sexual em personas menores de edad. A propósito del estúdio de tres casos, in Cuadernos de Medicina Forense, n.º 43-44, Enero-Abril 2006, pp. 60-62 e 71; Vide PEREDA y ARCH, Abuso sexual infantil y síndrome de alienación parental: criterios diferenciales, in Cuadernos de Medicina Forense, n.º 58, Octubre 2009, pp. 283-284).


A denúncia do abuso sexual pela criança constitui um facto muito pouco frequente e quase excepcional nos casos de abuso perpetrados no seio familiar que quando acompanhado de relatório psicológico de veracidade é tão fiável como o sinal físico da ruptura do hímen (Vide RODRÍGUES-ALMADA, Evaluación médico-legal del abuso sexual infantil, in Cuadernos de Medicina Forense, n.º 16, I-II, 2010, pp. 104-105).


Finalmente, no que respeita ao abusador, importa ter presente que uma vez efectuada a denúncia, o abusador pode adoptar uma atitude de aparente indiferença face à mesma e negar os factos. Com frequência, estes sujeitos carecem de sentimentos de culpa mercê de um mecanismo de distorção cognitiva que neutraliza quaisquer juízos de autoinculpação (v.g., “até gostou”, “não lhe fiz mal”, “foi um jogo”, “a culpa é dele”), evitando assim qualquer mal-estar que poderia desencadear neles a consciência de esses actos, por que não há que esperar reacções de autoinculpação nos agressores sexuais de crianças (Vide JIMÉNEZ CORTÉS y MARTÍN ALONSO, Valoración del testimonio en abuso sexual infantil – A.S.I., in Cuadernos de Medicina Forense, n.º 43-44, Enero-Abril 2006, p. 85).


2. Vejamos, em primeiro lugar, o contributo probatório do arguido, o qual, como é sabido, não está sequer obrigado a prestar declarações, nem está juridicamente obrigado a falar com verdade, podendo declarar o que bem entender e formular a estratégia de defesa que melhor lhe aproveitar.


Durante o julgamento, o arguido optou por prestar declarações e repudiou a prática de todos os factos típicos alegados na acusação, avançando também que as denúncias apresentadas nestes autos se fundam exclusivamente numa vingança levada a cabo pelas mães dos menores BB e DD, relacionada com sua recusa em participar num esquema de lavagem de dinheiro levado a cabo por aquelas e ainda com uma dívida de cerca de € 1000,00 não saldada pela mãe do menor BB.


Sem prejuízo da negação dos factos, a justificação avançada pelo arguido para a existência do processo não faz o mínimo sentido, pois sempre ficaria por explicar a intervenção acrescida do menor CC – pois este não é irmão dos menores BB e DD – e seria igualmente inverosímil que três mães sujeitassem os seus filhos a um processo de escrutínio da sua intimidade para obrigar o arguido a sujeitar-se à vontade daquelas através da sua expectável prisão, como se isso fosse minimamente adequado a coagir o arguido!


3. Relativamente aos factos típicos dados como provados, a convicção do tribunal assentou, desde logo, nas declarações prestadas para memória futura pelos ofendidos menores BB, CC e DD.


Todos estes menores confirmaram então a prática dos factos dados como provados nas partes que lhes respeitam e fizeram-no mediante um discurso não ensaiado, com respostas dentro dos limites da inquirição, verosímil e crível, fazendo uso de uma linguagem compatível com a respectiva faixa etária.


A gravação vídeo relativa a estes depoimentos revela igualmente, de forma esclarecedora, alguns dos movimentos corporais levados a cabo pelo arguido contra alguns destes menores.


Estas declarações surgem durante a investigação na sequência da revelação originária e espontânea pelo menor BB de comportamentos estranhos e de carácter sexual protagonizados pelo arguido, mais concretamente, toques nos mamilos, toques no pénis e toques no rabo do menor em apreço quando o mesmo ficava em casa da sobrinha do arguido durante a noite (vide depoimento da testemunha QQ, mãe do menor BB).


Tais factos não foram presenciados por mais ninguém, mas a mãe do menor BB não deixou de dizer que não gostou de observar o arguido surgir à porta “sem camisa” numa das noites em que foi buscar o seu filho a casa da sobrinha do arguido, e mais estranhou que o arguido tivesse ido propositadamente ao seu restaurante pedir-lhe para continuar a levar os seus filhos para casa da sobrinha do arguido quando estes deixaram de frequentar esta residência.


Por seu turno, HH, sobrinha do arguido e mãe do menor DD, esclareceu no julgamento que não se apercebeu de nada e que estava grávida no período temporal sob julgamento, recolhendo, por isso, mais cedo ao seu quarto para dormir em virtude do maior cansaço de que então sofria e deixando os menores BB e CC na sala a ver televisão na companhia do arguido.


No entanto, esta testemunha também não deixou de dizer que o arguido insistia em que as crianças permanecessem na sala quando a mesma manifestava a vontade de ir dormir.


Importa notar que o juízo probatório positivo foi necessariamente parcial, pois os depoimentos dos menores não confirmaram todas as demais ocasiões narradas na acusação, ficando estas logicamente por provar por ausência de qualquer actividade probatória.


4. No que respeita à prática dos factos típicos, o arguido arrolou três testemunhas que vieram a ser ouvidas no julgamento e cujos depoimentos são irrelevantes ou mesmo contraditórios com a versão do arguido.


RR, prima do arguido, ignorava que o arguido estivesse preso e, pasme-se, que o mesmo fosse sequer pai!


SS, mãe do menor TT, veio dar conta de que o seu filho frequentava a casa da HH e nunca se queixou do arguido, mas também não deixaria de afirmar que o mesmo nunca ficara a sós com o arguido.


Por seu turno, UU, mãe do menor VV, veio dar conta de que o seu filho lhe relatara que o arguido lhe tinha pedido apenas para “mostrar a pila”, sendo que o arguido negou sequer tal pedido, nem sequer na lógica da prática religiosa ... do “fanado” conforme foi sugerido em sede de interrogatório.


Foi igualmente reproduzido, a pedido do arguido, o depoimento prestado no inquérito pela menor II - sobrinha de HH e residente na casa desta -, a qual não sofreu, nem presenciou qualquer comportamento inadequado por parte do arguido, mas a mesma também não deixou de afirmar que este lhe disse que “o BB e o CC iam dormir com ele”.


5. As idades dos três menores rapazes dos autos encontram-se comprovadas pelos assentos de nascimento juntos aos autos.


6. À face da prova produzida, o Tribunal considera que a verdade se encontra do lado das menores.


Em primeiro lugar, importa assinalar a circunstância nada despicienda de que são três menores pertencentes a diferentes agregados familiares que relataram os actos cometidos pelo arguido e que estes relatos são completamente compatíveis entre si.


Não obstante a recusa de assunção de responsabilidade pelo arguido, o presente caso revela à saciedade a existência de manifestações dos menores que funcionam como manifestos indicadores dos abusos sexuais que lhe foram infligidos pelo arguido, a saber:


i) a revelação dos abusos sexuais pelos próprios menores;


ii) a descrição do abuso sexual com vocabulário próprio da idade dos menores;


iii) a revelação de conhecimentos sexuais inapropriados para crianças de 7 a 10 anos de idade.


A recusa de assunção integral de responsabilidade pelo arguido não deve espantar, pois a insinceridade neste tipo de crimes é a regra em virtude da forte reprovação social associada.


Aliás, a consciência da ilicitude relativamente aos factos dados como provados resulta precisamente da mera valoração negativa feita pelo próprio arguido sobre os factos narrados na acusação.


Nesta parte, importa ainda acrescentar, porque foi aventado em sede de alegações finais, que a circunstância de o arguido ser pai registado de várias crianças não o torna num indivíduo heterossexual absoluto e, acima de tudo – porque a orientação sexual não determina qualquer propensão para as agressões sexuais dirigidas a crianças – , tal circunstância não invalida que o mesmo possa abusar sexualmente de outras crianças, sendo que as relações de filiação em apreço até podem prescindir de qualquer vínculo biológico.


7. Relativamente ao juízo probatório negativo dos factos típicos, importa ainda referir que todos os factos relativos às práticas sexuais propriamente ditas foram analisados à luz das declarações para memória futura prestadas pelas menores, sendo insusceptíveis de valoração, sem o pertinente consenso processual, os depoimentos anteriormente prestados pelas mesmas perante as autoridades policiais durante a fase de inquérito sem sujeição ao pertinente contraditório.


8. Para o apuramento da factualidade respeitante às condições sociais e familiares do arguido relevou o relatório social oportunamente elaborado pela DGRS e a documentação junta pelo arguido relativa aos seus filhos.


9. Finalmente, a inexistência de anteriores condenações criminais foi alcançada a partir do respectivo certificado de registo criminal junto aos autos».





     IV. Decidindo:


1. Nulidade do acórdão recorrido por alegada falta de exame crítico da prova:


  Entende o recorrente que o tribunal a quo não procedeu, no acórdão recorrido, a um exame crítico das provas, tal como exigido no artº 374º, nº 2 do CPP, o que determina a sua nulidade, por força do estatuído no artº 379º, nº 1, al. a) do mesmo diploma.


  Nos termos do disposto no artº 374º, nº 2 do CPP, a sentença deve conter a “indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.


      Na expressão de Marques Ferreira[1], não basta a enunciação dos meios de prova, antes se exige “a exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentam a decisão”, isto é, “os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substracto racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência”. E acrescenta: “A fundamentação ou motivação deve ser tal que, intraprocessualmente, permita aos sujeitos processuais e ao tribunal superior o exame do processo lógico ou racional que lhe subjaz, pela via de recurso, conforme impõe inequivocamente o artº 410º, nº 2 (…). E extraprocessualmente, a fundamentação deve assegurar pelo conteúdo, um respeito efectivo pelo princípio da legalidade na sentença e a própria independência e imparcialidade dos juízes, uma vez que os destinatários da decisão não são apenas os sujeitos processuais mas a própria sociedade”.


     Ou, como refere Oliveira Mendes[2], a lei impõe “que o tribunal não só dê a conhecer os factos provados e os não provados (…) mas também que explicite expressamente o porquê da opção (decisão) tomada, o que se alcança através da indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a sua convicção, isto é, dando a conhecer as razões pelas quais valorou ou não valorou as provas e a forma como as interpretou (…)”.


E o Tribunal Constitucional já declarou, mesmo, a inconstitucionalidade da norma contida no nº 2 do artº 374º do CPP “na interpretação segundo a qual a fundamentação das decisões em matéria de facto se basta com a simples enumeração dos meios de prova utilizados em 1ª instância, não exigindo a explicitação do processo de formação da convicção do tribunal, por violação do dever de fundamentação das decisões dos tribunais previsto no nº 1 do artigo 205º da CRP, bem como quando conjugada com a norma das alíneas b) e c) do nº 2 do artigo 410º do mesmo Código, por violação do direito ao recurso consagrado no nº 1 do artigo 32º, também da CRP”[3].


    Ora, salvo o devido respeito por melhor opinião, o acórdão recorrido fundamentou, de forma particularmente clara, o processo de formação da sua convicção, em ordem a permitir o seu perfeito acompanhamento por terceiros e, particularmente, por este tribunal de recurso.


   Como supra se transcreveu, o tribunal a quo consignou, a este propósito e entre o mais, o seguinte:


“Relativamente aos factos típicos dados como provados, a convicção do tribunal assentou, desde logo, nas declarações prestadas para memória futura pelos ofendidos menores BB, CC e DD.


Todos estes menores confirmaram então a prática dos factos dados como provados nas partes que lhes respeitam e fizeram-no mediante um discurso não ensaiado, com respostas dentro dos limites da inquirição, verosímil e crível, fazendo uso de uma linguagem compatível com a respectiva faixa etária.


A gravação vídeo relativa a estes depoimentos revela igualmente, de forma esclarecedora, alguns dos movimentos corporais levados a cabo pelo arguido contra alguns destes menores.


Estas declarações surgem durante a investigação na sequência da revelação originária e espontânea pelo menor BB de comportamentos estranhos e de carácter sexual protagonizados pelo arguido, mais concretamente, toques nos mamilos, toques no pénis e toques no rabo do menor em apreço quando o mesmo ficava em casa da sobrinha do arguido durante a noite (vide depoimento da testemunha QQ, mãe do menor BB).


Tais factos não foram presenciados por mais ninguém, mas a mãe do menor BB não deixou de dizer que não gostou de observar o arguido surgir à porta “sem camisa” numa das noites em que foi buscar o seu filho a casa da sobrinha do arguido, e mais estranhou que o arguido tivesse ido propositadamente ao seu restaurante pedir-lhe para continuar a levar os seus filhos para casa da sobrinha do arguido quando estes deixaram de frequentar esta residência.


Por seu turno, HH, sobrinha do arguido e mãe do menor DD, esclareceu no julgamento que não se apercebeu de nada e que estava grávida no período temporal sob julgamento, recolhendo, por isso, mais cedo ao seu quarto para dormir em virtude do maior cansaço de que então sofria e deixando os menores BB e CC na sala a ver televisão na companhia do arguido.


No entanto, esta testemunha também não deixou de dizer que o arguido insistia em que as crianças permanecessem na sala quando a mesma manifestava a vontade de ir dormir.


Importa notar que o juízo probatório positivo foi necessariamente parcial, pois os depoimentos dos menores não confirmaram todas as demais ocasiões narradas na acusação, ficando estas logicamente por provar por ausência de qualquer actividade probatória.


(….)


À face da prova produzida, o Tribunal considera que a verdade se encontra do lado das menores.


Em primeiro lugar, importa assinalar a circunstância nada despicienda de que são três menores pertencentes a diferentes agregados familiares que relataram os actos cometidos pelo arguido e que estes relatos são completamente compatíveis entre si.


Não obstante a recusa de assunção de responsabilidade pelo arguido, o presente caso revela à saciedade a existência de manifestações dos menores que funcionam como manifestos indicadores dos abusos sexuais que lhe foram infligidos pelo arguido, a saber:


i) a revelação dos abusos sexuais pelos próprios menores;


ii) a descrição do abuso sexual com vocabulário próprio da idade dos menores;


iii) a revelação de conhecimentos sexuais inapropriados para crianças de 7 a 10 anos de idade.


A recusa de assunção integral de responsabilidade pelo arguido não deve espantar, pois a insinceridade neste tipo de crimes é a regra em virtude da forte reprovação social associada.


Aliás, a consciência da ilicitude relativamente aos factos dados como provados resulta precisamente da mera valoração negativa feita pelo próprio arguido sobre os factos narrados na acusação”.


     E perante o que exposto fica, manifesto se torna que o tribunal a quo procedeu, de facto, a um verdadeiro exame crítico da prova, valorando uns depoimentos (os prestados pelos menores), em detrimento de outros (particularmente o do arguido), evidenciando o cuidado de explicar a razão de tal procedimento. Fê-lo de forma que não deixa grande margem para dúvidas, razão pela qual, podendo o recorrente discordar dos resultados a que tal exame crítico conduziu, não pode razoavelmente afirmar que o mesmo não foi feito.


    Improcede, pois e sem necessidade de mais considerações, a arguida nulidade do acórdão.





      2. A (errada) qualificação jurídica dos factos apurados:


       A este propósito, entende o recorrente que deve ser condenado por um único crime, de trato sucessivo, relativamente a cada um dos menores envolvidos e, consequentemente, punido pela prática de 3 (e não 7) crimes de abuso sexual de crianças; de outro lado, considera que alguns dos factos apurados se mostram insuficientes em ordem a imputar-lhe, como é feito no acórdão recorrido, a prática de um crime de abuso sexual.


        Começando pela primeira sub-questão elencada:


   Como se afirma no Ac. STJ de 12/5/2021, Proc. 427/18.1JACBR.C1.S1, com os mesmos relator e adjunta[4]:


«A aplicabilidade da figura do “trato sucessivo” aos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual foi defendida, nos nossos tribunais superiores, em situações em que está presente uma actividade repetida, prolongada no tempo. Exemplo claro do afirmado encontra-se no Ac. STJ de 29/11/2012 (…), como, também, no Ac. RE (…) proferido em 25/3/2014 e relatado pelo aqui também relator.


Certo é que, nos anos mais recentes, este Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a decidir, de forma uniforme, pela inaplicabilidade de tal figura a este tipo de crimes.


Como se afirma no Ac. STJ de 27/11/2019, Proc. 1257/18.6SFLSB.L1.S1, desta 3ª secção, «a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem vindo a recusar uniformemente a aplicação, aos crimes contra a autodeterminação sexual, da categoria do “crime de trato sucessivo”. Nos crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual não têm cabimento categorias doutrinárias como o denominado crime prolongado, crime exaurido ou crime de trato sucessivo, figuras nas quais se convenciona (ficciona) que há só um crime – apesar de se desdobrar em várias condutas que, cada uma, em si mesma, isoladamente preenche todos os elementos constitutivos da infração». E isto porque:


«O tratamento penal dos crimes sexuais registou assinalável evolução sociológica e politico-criminal de modo que hodiernamente se enquadram dogmática e sistematicamente no âmbito dos crimes contra a pessoa individual, concretamente contra a sua liberdade e autodeterminação sexual. Consequentemente, a vítima e a sua perspetiva, quando não validamente expressa, assume relevância decisiva. Pode que esta evolução ainda não estivesse perfeitamente traduzida na tutela jurídico-penal. E, por isso, talvez, uma reiteração sucessiva de agressões sexuais não tivesse obtido o mesmo tratamento doutrinário e jurisprudencial que é dispensado à conduta que atenta contra a vida da mesma pessoa (duas ou três tentativas de homicídio não são tratadas como um crime prolongado ou reiterado) ou que ofende a integridade física do mesmo ser humano (bater meia dúzia de vezes na mesma pessoa em datas diferentes não constitui um só crime de trato sucessivo) ou ainda que atenta contra a liberdade pessoal (privar da liberdade todos sábados durante meio ano a mesma pessoa também não constitui um crime continuado nem um crime prolongado ou protraído). Nenhum fundamento jurídico razoável se deteta, no tipo objetivo nem no tipo subjetivo, para que deva dispensar-se tratamento diverso a agressões à liberdade e autodeterminação sexual. À insistência ou persistência da resolução criminosa do agente contrapõe-se e sobrepõe-se a necessidade de, perante cada atentado ao bem jurídico pessoal tutelado, reafirmar a sua validade e importância para garantir o exercício livre e autêntico da identidade e da expressão sexual da vítima. Cada vez que o agente força ou implica uma pessoa sem o consentimento desta ou com o consentimento viciado ou legalmente inadmissível, a ter de suportar atos lascivos, agride o direito pessoal à liberdade e autenticidade da sua expressão sexual. Na perspetiva da vítima, que deve ter-se por decisiva, cada agressão sexual, independentemente de o agente ser o mesmo ou diverso, está dotada de um sentido negativo de valor jurídico-penal. A reiteração sucessiva e mais ou menos prolongada no tempo de agressões sexuais não é nem se pode transformar, para a vítima, num empreendimento ou numa atividade do agressor que tenha de suportar. Identicamente ao que sucede nos demais crimes contra as pessoas e, designadamente nos crimes contra a liberdade, não há nem se pode ficcionar a existência de quaisquer circunstâncias que propiciem a reiteração de agressões sexuais. Na prática sexual forçada ou não livremente consentida com outra pessoa dotada de maioridade sexual, cada vez implica uma abordagem destinada a obter a sua anuência ou a adesão ao ato sexual, na certeza de que o agente não pode estar seguro de qual seja a sua reação da pessoa visada e, consequentemente se consente ou adere. Muito diversamente das coisas móveis ou imóveis em que a situação criada com o primeiro atentado pode permanecer imutável ou mais favorável à repetição, aquele que pretende praticar noutra pessoa atos sexuais de relevo não saberá qual vai ser de cada vez a aceitação, ou não, da outra pessoa. Como identicamente não saberá como vai reagir se quiser voltar a agredi-la, sequestrá-la ou ameaçá-la. Por isso sempre que queira voltar a ofendê-la tem de renovar, adaptar e atualizar a estratégia. Consequentemente, cada agressão singular, repetida sucessivamente, indiferentemente do tempo que entre elas medeia, preenchendo todos os elementos do mesmo tipo (objetivo e subjetivo), constitui um crime autónomo, estabelecendo entre si uma relação de concurso real ou efetivo crimes e como tal deve ser punida».


Neste sentido, que ora se acolhe e perfilha, vai – como se disse – a generalidade da jurisprudência deste Supremo Tribunal (assim e v.g., cfr. Acs. STJ de 23/5/2019, Proc. 134/17.2JAAVR.S1, de 27/11/2019, Proc. 784/18.0JAPRT.G1.S1, de 17/6/2020, Proc. 91/18.8JALRA.E1.S1 e de 25/6/2020, Proc. 227/16.3T9VFR.P1.S1, todos acessíveis in www.dgsi.pt)».


    Reafirmando tal entendimento, resta-nos acrescentar que a pretensão do recorrente (de ver “unificadas” as suas condutas, relativamente a cada um dos menores, e assim tratadas como um crime – de trato sucessivo – de abuso sexual de crianças) não pode merecer, pois, qualquer acolhimento por este tribunal.





   No que diz respeito à qualificação jurídica de alguns dos factos apurados:


     Vejamos, em primeiro lugar, o que, a este propósito, se decidiu no tribunal recorrido, em ordem a perceber que factos foram, pelo mesmo, considerados como integrando a prática de crime de abuso sexual de crianças:


«Crimes de abuso sexual de crianças


1. Comete o crime de abuso sexual de crianças – nos termos do art. 171.º, n.º 1, do Código Penal, na redacção dada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro – quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou levar a praticá-lo consigo ou com outra pessoa.


(…)


Com relevância para o caso concreto, importa ter presente que, desde 2007, a lei penal distingue três categorias de actos sexuais com relevância penal: 1) a cópula, o coito anal, o coito oral e a introdução anal e vaginal de partes de corpo ou objectos; 2) os demais actos sexuais de relevo; 3) os meros contactos de natureza sexual.


A cópula e o coito oral/anal com relevância penal típica agravante consistem, respectivamente, na penetração da vagina e da boca/ânus pelo pénis.


Porém, estes últimos actos sexuais são legalmente equiparados à introdução vaginal ou anal de partes do corpo, nomeadamente à introdução da língua, nariz, mão e dedo da mão na vagina da criança abusada.


Importa convocar a distinção entre os demais actos sexuais de relevo e os meros contactos de natureza sexual.


É reconhecidamente difícil aferir o que seja um acto sexual de relevo, mas tais dificuldades devem ser superadas segundo as circunstâncias do caso concreto.


Acto sexual será todo aquele comportamento que, de um ponto de vista predominantemente objectivo e segundo uma compreensão natural, assume uma natureza, um conteúdo ou um significado directamente relacionados com a esfera da sexualidade de quem o sofre ou o pratica (Ob. cit., pp. 718-719).


Para concluir que o acto sexual é de relevo dever-se-á atender ao grau de perigosidade da acção para o bem jurídico em função da sua espécie, intensidade ou duração, ficando assim excluídos do tipo incriminador actos que, embora “pesados”, todavia, pela sua pequena quantidade, ocasionalidade ou instantaneidade, não entravem de forma significativa a livre determinação sexual da vítima. Seguindo esta linha dogmática, a jurisprudência penal alemã, por exemplo, um simples beijo com toque de lábios, ou um simples toque nas pernas, seios ou nádegas de outrem, ou mesmo no sexo não integrarão em princípio o conceito típico de acto sexual de relevo, diferentemente do que sucederá com o “beijo lingual”, a “carícia insistente” e o “apalpão” (Ob. cit., pp. 720).


Com relevância para o caso concreto, importa ter presente que o acto sexual de relevo é todo o comportamento que, de um ponto de vista predominantemente objectivo, assume uma natureza, um conteúdo ou um significado directamente relacionados com a esfera da sexualidade (Ob. cit., p. 447).


Estão aqui em causa a cópula vulvar e o toque, com objectos e partes do corpo, nos órgãos genitais, seios, nádegas, coxas e boca das crianças abusadas.


2. Também comete o referido crime de abuso sexual de crianças, desta feita de forma privilegiada, quem importunar menor de 14 anos, praticando perante o mesmo actos de carácter exibicionista, formulando propostas de teor sexual ou constrangendo-o a contacto de natureza sexual (artigos 171.º, n.º 3, al. a), e 170.º, do Código Penal).


O bem jurídico protegido com a importunação sexual é a liberdade e a autodeterminação sexual das pessoas, expressão que tem por conteúdo a faculdade de escolher praticar ou não praticar, de forma livre, determinado acto sexual e de escolher o parceiro para tal fim, bem como, de forma mais geral, o direito de ordenar com autonomia e sem ilegítima intervenção de terceiros a própria vida sexual. Esta segunda dimensão é importante porque algumas modalidades da importunação sexual, diferentemente de outros crimes sexuais, não exigem o envolvimento da vítima na execução corporal de um acto sexual, bastando-se com a recepção, por parte dela, de actos comunicativos de teor sexual, sejam eles gestuais (actos exibicionistas) ou verbais (formulação de propostas de teor sexual).


A importunação sexual é um crime material ou de resultado, pois a lei penal exige que a conduta do arguido importune a vítima, cause uma perturbação do estado psíquico da vítima por ela sentida com negativa e indesejada. Isto significa que a importunação é um verdadeiro resultado típico, mesmo por referência a menores de 14 anos (art. 171.º, n.º 3, al. a).


(…)


3. No caso concreto, os factos provados acima descritos relativos aos menores BB, CC e DD integram os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal base do crime de abuso sexual de criança acabado de enunciar.


Na verdade, não restam quaisquer dúvidas de que o arguido praticou dolosamente vários actos sexuais de relevo ali previstos contra os referidos menores, nomeadamente toques com as mãos nos mamilos, toques e carícias no pénis, apertões no pénis, palmadas e apertões nas nádegas, assim como sujeitou um dos menores ao acto sexual de relevo mais grave de toque no ânus com o pénis erecto.


Porém, ficaram por provar não só muitas das ocasiões inflacionadamente alegadas na acusação por referência a todos os menores, como algumas actuações tipicamente relevantes do arguido – nomeadamente que o menor BB tivesse masturbado o arguido ou que este tivesse encostado directamente o seu pénis ereto descoberto ao ânus igualmente descoberto daquele menor –, devendo o arguido ser absolvido nesta parte.


Acresce que inexistem quaisquer causas de exclusão da ilicitude ou da culpa.


4. No caso concreto, os factos provados também integram os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal base do crime de abuso sexual de criança privilegiado acabado de enunciar.


Na verdade, não restam quaisquer dúvidas de que o arguido praticou dolosamente vários actos exibicionistas e tentou infligir contacto de natureza sexual contra os referidos menores, nomeadamente a tentativa de beijos na boca do menor BB, a prática da masturbação em frente ao menor BB e a mera exibição do pénis ereto junto do menor DD.


Porém, mais uma vez, ficaram por provar algumas das ocasiões e que o arguido tivesse ejaculado enquanto se masturbava à frente do menor BB, devendo o arguido ser absolvido nesta parte.


Acresce que inexistem quaisquer causas de exclusão da ilicitude ou da culpa.


5. Tendo sido possível aferir o número exacto de vezes que os menores foram abusados sexualmente ao longo do período de tempo dado como provado, impõe-se considerar há um crime por cada ocasião em que ocorreram contactos sexuais (art. 30.º, n.º 1, do Código Penal).


Todavia, existindo uma relação de concurso aparente de normas entre as infracções previstas no n.º 1 e no n.º 3 do art. 171.º do Código Penal, o agente é punido pela conduta mais grave do n.º 1, pois a norma que concede protecção mais acentuada a determinada situação consome a protecção menos intensa conferida por outra norma (consumpção pura).


6. Assim sendo, resultou provado que o arguido cometeu, em autoria material e em concurso efectivo, as seguintes infrações por referência às vítimas dos autos:


Ofendido BB:


• Um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 1, do Código Penal;


• Um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 3, al. a), por referência ao art. 170.º, do Código Penal.


• Um crime de abuso sexual de crianças tentado, p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 3, al. a), 170.º, e 22.º, 23.º e 73.º, todos do Código Penal.


Ofendido CC:


• Dois crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 1, do Código Penal.


Ofendido DD:


• Um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 1, do Código Penal;


• Um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 3, al. a), por referência ao art. 170.º, do Código Penal».





     Ora,


- Relativamente ao menor BB, o arguido foi condenado pela prática de um crime de abuso sexual de crianças, p.p. pelo artº 171º, nº 1 do Cod. Penal e 2 crimes de abuso sexual de crianças, p.p. pelo artº 171º, nº 3, al. a), por referência ao artº 170º do mesmo diploma legal, um deles na forma tentada.


    Convém deixar desde logo claro que a tentativa de beijo na boca não é considerada pelo tribunal a quo, como parece ter entendido o recorrente, como um acto sexual de relevo e, por isso, como integrando a prática de um crime p.p. pelo artº 171º, nº 1 do Cod. Penal.


       Como nos parece claro, o tribunal a quo considerou que a conduta do recorrente, enunciada no ponto 9 da matéria de facto[5], integra a prática, por ele, de um crime de abuso sexual de crianças p.p. pelo nº 3, al. a) do artº 171º do Cod. Penal, por referência ao artº 170º do mesmo diploma.


   Dispõe-se no artº 171º, nº 3, do Cod. Penal:


«Quem


a) Importunar menor de 14 anos, praticar ato previsto no artigo 170º (…) é punido com pena de prisão até três anos».


O nº 5 do mesmo dispositivo determina que “a tentativa é punível”.


            E no artº 170º do mesmo diploma assim se dispõe:


«Quem importunar outra pessoa, praticando perante ela atos de caráter exibicionista, formulando propostas de teor sexual ou constrangendo-a a contacto de natureza sexual, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal» (subl. nosso).


   É, naturalmente, discutível determinar se um beijo na boca é, ou não, um acto sexual de relevo (em rigor, a dificuldade reside, desde logo, na definição de acto sexual de relevo).


   Alguma jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça vinha entendendo, como é sabido, que “«os "beijinhos na boca" dados pelo arguido a menor, que para o efeito levou para um sótão de um edifício com o fim de aí satisfazer a sua lascividade sexual ou instinto libidinoso, atendendo às idades da ofendida e do arguido, respectivamente 8 e 46 anos, integram o conceito de atentado ao pudor do artº 205, do CP de 1982, tal como preenchem o conceito de "acto sexual de relevo" previsto no artº 172, nº 1, do CP de 1995» - Ac. do STJ de 20.2.97, proc. n.º 693/96 , posição reiterada no Ac. STJ de 12/7/2005, Proc. 05P2442, rel. Cons. Simas Santos[6] e no Ac. STJ de 5/7/2007, Proc. 07P1766, também relatado pelo Cons. Simas Santos, onde se pode ler: “Embora de menor relevo, deve-se considerar que a conduta do arguido quando a 17 Setembro de 2003, regressou à sua antiga casa de residência, em S. João da Talha, na companhia da mulher e das filhas com a intenção de daí retirar e levar alguns pertences e as quatro menores estavam a ver televisão se aproximou da DD, puxou na sua direcção o sofá onde ela estava sentada e beijou-a na boca (facto n.º 13), constitui um acto sexual de relevo, dado o seu forte conteúdo e significado, bem como o grau de violação que traduz da autodeterminação sexual da ofendida sua sobrinha”.


       Mas ainda que se entenda que um beijo na boca, procurado por um homem com 40 anos de idade, sobre uma criança com 9 anos de idade, não constitui um acto sexual de relevo, o mesmo não pode deixar de ser considerado como um “contacto de natureza sexual”, que não pode ser desvalorizado nem neutralizado por uma suposta relação de proximidade existente entre o arguido e os menores (entre os quais o BB). De um lado, porque nada tem de natural, de banal ou corriqueiro, um beijo na boca de uma criança de 9 anos a quem o arguido não estava ligado por qualquer laço familiar e afectivo; de outro, porque resulta do factualismo apurado que tal beijo, procurado, nada tinha de inocente, porquanto o arguido tentou e conseguiu, noutras duas ocasiões, acariciar o pénis do menor e masturbar-se na sua frente.


    Por outras palavras: naquelas concretas circunstâncias, o beijo na boca procurado pelo recorrente era, indiscutivelmente, um contacto de natureza sexual, que o arguido pretendeu constranger o menor BB a suportar, sem sucesso.


         Posto que, malgrado a moldura penal do crime p.p. pelo nº 3, al. a) do artº 171º do Cod. Penal e o estatuído no artº 23º, nº 1 do mesmo diploma, a tentativa é punível, por força do estatuído no nº 5 do mencionado artº 171º, resta dizer que, nesta parte, não existe qualquer erro na qualificação jurídica a apontar ao acórdão recorrido.


       No demais, não se entende onde possa residir o mencionado erro:


    O arguido foi condenado, ainda, pela prática de outro crime de abuso sexual de criança, p.p pelo artº 171º, nº 3, al. a), por referência ao artº 170º, ambos do Cod. Penal, pelos factos descritos no ponto 13 da matéria de facto: “Nas circunstâncias de espaço, modo, tempo e lugar acima descritas, em pelo menos 1 (um) dia diferente dos anteriores, o arguido AA abeirou-se do ofendido BB e, de frente para este, retirou o seu pénis para fora das calças e das cuecas que vestia, mostrou-lho, ao mesmo tempo que o acariciou e friccionou, para a frente e para trás, até ficar erecto”. Que tal acto tem natureza exibicionista, nos termos e para os fins previstos no artº 170º do Cod. Penal, é algo que nos parece indiscutível. E porque assim é, correcta se mostra a qualificação jurídica a que procedeu o tribunal recorrido.


     Por fim, o arguido foi condenado pela prática de um crime de abuso sexual de crianças, p.p. pelo artº 171º, nº 1 do Cod. Penal, em função dos factos que descritos vêm nos pontos 10 a 12 da matéria de facto apurada:


«10. Nas circunstâncias de espaço, modo, tempo e lugar acima descritas, em pelo menos uma ocasião diversa da anterior, o arguido AA aproximou-se de ofendido BB, colocou-lhe as mãos por baixo da roupa, após o que lhe tocou nos mamilos.


11. Após o que, por cima da roupa que este vestia, desferiu-lhe palmadas nas nádegas e colocou-lhe as mãos por dentro das calças e das cuecas que este trazia vestidas, após o (que) com elas lhe acariciou o pénis.


12. Acto contínuo, o arguido AA virou o ofendido BB de costas para si, colocou o seu corpo sobre o corpo deste e, de seguida, estando ambos vestidos, encostou-lhe a parte do seu corpo correspondente ao pénis, então erecto, ao rabo deste último, no qual se esfregou».


     Não se trata, pois, de actos isolados, distantes entre si e sem conexão uns com os outros, como parece pensar o recorrente ao aludir a “alguns apalpões e palmadas no rabo”. São, outrossim, factos praticados numa mesma ocasião, uns em seguida aos outros, todos aptos à satisfação dos intuitos libidinosos do recorrente, terminando no acariciar do pénis do menor e no esfregar do seu próprio pénis no rabo do menor. Que estamos, aqui, perante um acto sexual de relevo é algo que o próprio recorrente parece aceitar na sua motivação de recurso[7]. E daí que, mais uma vez, se não vislumbre qualquer erro na qualificação jurídica dos factos apurados, a que procedeu o tribunal a quo.


   - Relativamente ao menor CC, o recorrente foi condenado pela prática de dois crimes de abuso sexual de crianças, p.p. pelo artº 171º, nº 1 do Cod. Penal, tendo em vista os factos constantes nos pontos 16 e 17 da matéria de facto apurada:


«16. Nas circunstâncias de espaço, modo, tempo e lugar acima descritas, em pelo menos dois dias diferentes, o arguido AA abeirou-se do ofendido CC, após o que, por cima da roupa que este vestia, desferiu-lhe palmadas nas nádegas.


17. De seguida, igualmente por cima das calças, o arguido tocou com a sua mão, no pénis deste último e, acto contínuo, acariciou-o».


     Mais uma vez: estamos perante um acto (o acariciar do pénis do menor) que o próprio arguido/recorrente aceita como acto sexual de relevo (que o é [8]), praticado em duas ocasiões distintas. E daí que se não entenda onde possa residir o erro na qualificação jurídica dos factos apurados, no que à conduta do recorrente que teve como vítima CC diz respeito.


       Na realidade:


     Na ausência de uma definição legal, o acto sexual de relevo vem sendo entendido, de forma uniforme, pela doutrina e jurisprudência, como aquele que assume um significado directamente relacionado com a sexualidade e que, em função do bem jurídico protegido – liberdade e autodeterminação sexual – assume um certo relevo[9].


     Nesta perspectiva, o acariciar do pénis de uma criança de 7 anos, conduta antecedida de algumas palmadas nas nádegas, há-de ser considerado como acto sexual de relevo.


  - Relativamente ao menor DD, o recorrente foi condenado como autor de um crime de abuso sexual de crianças, p,.p. pelo artº 171º, nº 1 do Cod. Penal e de um outro, p.p. pelo artº 171º, nº 3, al. a), por referência ao artº 170º, ambos do Cod. Penal, tendo em vista os factos descritos nos pontos 20 a 26 da matéria de factol apurada:


«20. Num dia não concretamente apurado do período compreendido entre os meses de Julho e Agosto de 2020, na residência sita na Praceta ..., em ... - ..., o arguido AA abeirou-se do ofendido DD quando este se encontrava na sala daquela residência.


21. De seguida, o arguido AA puxou as calças e as cuecas do ofendido DD para baixo, após o que lhe agarrou o pénis e apertou-lho com a mão.


22. De seguida, o arguido AA puxou as suas próprias calças e cuecas para baixo e agarrou uma das mãos do ofendido DD após o que a levou e a colocou à volta do seu (do arguido) pénis, erecto.


23. Após alguns instantes, o arguido AA virou o ofendido DD de costas para si e encostou-lhe a ponta do seu pénis, erecto, ao ânus deste último.


24. Num outro dia não concretamente apurado do período compreendido entre os meses de Julho e Agosto de 2020, na residência na sita na Praceta ..., em ... - ..., o arguido AA abeirou-se do ofendido DD quando este se encontrava na sala daquela residência.


25. Acto contínuo, o arguido AA retirou do seu corpo uma toalha de banho o cobria, tendo ficado integralmente desnudado.


26. Acto contínuo, arguido AA virou-se para o ofendido DD, após o que lhe exibiu e mostrou o seu pénis, erecto».


- Que os factos descritos nos pontos 20 a 23 (agarrar o pénis do menor, apertando-o, colocar uma das mãos do menor no seu - dele, arguido - pénis, encostar-lhe a ponta do seu pénis, erecto, no ânus do menor) constituem acto sexual de relevo é algo que o próprio recorrente não discute;


- Que os actos descritos nos pontos 24 a 26 (desnudar-se perante o menor, exibindo-lhe e mostrando-lhe o seu pénis, erecto) constituem acto exibicionista é algo que, de igual modo, não sofre contestação; naturalmente, praticado perante menor de 14 anos, como era o caso, preenchida se mostra a previsão legal do artº 171º, nº 3, al. a) do Cod. Penal.


        Mais uma vez, acertada se mostra a qualificação jurídica dos factos provados.


     Improcede, portanto, esta pretensão do recorrente.





   3. A pretensa excessividade das penas (parcelares e única) aplicadas e a necessidade de aplicação de uma pena única de prisão, suspensa na sua execução:


        Entende o recorrente que as penas parcelares aplicadas por cada um dos crimes de abuso sexual de crianças, p.p. pelo artº 171º, nº 1 do Cod. Penal (que, na sua óptica, são os únicos que se verificam) não devem ser sancionados com pena superior a 18 meses de prisão cada e que a pena única resultante do respectivo cúmulo jurídico nunca deveria ultrapassar os 5 anos de prisão, suspensa na sua execução.


      Assente que se mostra correcta a qualificação jurídica dos factos apurados, por banda do tribunal a quo, vejamos o que a este propósito se fez consignar no acórdão recorrido:


«i) O crime de abuso sexual de crianças previsto no art. 171.º, n.º 1, do Código Penal, é punido com pena de 1 ano a 8 anos de prisão.


ii) O crime de abuso sexual de crianças privilegiado previsto nos arts. 171.º, n.º 3, do Código Penal, é punido com pena de prisão até 3 anos.


iii) O crime de abuso sexual de crianças privilegiado tentado previsto nos artigos 171.º, n.º 3, e 22.º, 23.º e 73.º do Código Penal, é punido com pena de prisão até 2 anos.


Medida concreta da pena


Cumpre agora decidir da medida concreta das penas, com obediência aos critérios plasmados nos artigos 40.º e 71.º do Código Penal, nomeadamente as necessidades de prevenção geral e especial que nos autos se imponham, bem como as exigências de reprovação do crime, não esquecendo que a pena deve ser proporcional à culpa concreta do agente em sentido pedagógico e ressocializador.


Primordialmente, a finalidade visada pela pena há-de ser a tutela necessária dos bens jurídico-penais no caso concreto, com um significado prospectivo, traduzido pela necessidade de tutela da confiança e das expectativas de comunidade na manutenção da vigência da norma violada (prevenção geral positiva ou de integração) – Vide FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal – Parte Geral, Tomo I, 2.ª Edição, Coimbra Editora, pp. 78-85


Existe uma medida óptima de tutela de bens jurídicos e das expectativas comunitárias que a pena se deve propor alcançar; medida esta que não pode ser excedida (princípio da necessidade) por considerações de qualquer tipo, nomeadamente por exigências (acrescidas) de prevenção geral, derivadas de uma particular perigosidade do delinquente. Abaixo do ponto óptimo ideal outros existirão em que aquela tutela é ainda efectiva e consistente até se alcançar um limiar mínimo – chamado de defesa do ordenamento jurídico -, abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem se pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar de bens jurídicos.


Dentro da moldura da prevenção geral positiva ou de integração devem actuar pontos de vista de prevenção especial: seja a função positiva de socialização, seja qualquer uma das funções negativas subordinadas de advertência individual ou de segurança ou de inocuização. A medida da necessidade de socialização do agente é, em princípio, o critério decisivo das exigências de prevenção especial. Ele só entra em jogo se o agente se revelar carente de socialização. Se uma tal carência não se verificar tudo se resumirá, em termos de prevenção especial, em conferir à pena uma função de suficiente advertência; o que permitirá que a medida da pena desça até perto do limite mínimo da moldura de prevenção geral ou mesmo que com ele coincida.


Por seu turno, a culpa constitui pressuposto necessário da culpa e o seu limite inultrapassável – “não há pena sem culpa e a medida da pena não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa”.


A função culpa é a de estabelecer o máximo da pena ainda compatível com as exigências de preservação da dignidade da pessoa humana e de garantia do livre desenvolvimento da sua personalidade nos quadros próprios de um Estado de Direito Democrático.


No que respeita à execução dos factos, dir-se-á que os abusos sexuais de crianças dos autos revelam uma elevada ilicitude em virtude de se ter provado que, durante o período de cerca de dois meses, os três menores foram abusados sexualmente no interior da sua própria habitação ou da habitação onde ficavam ao cuidado de uma amiga das respectivas mães, sendo que as vítimas tinham entre 7 a 10 anos de idade.


Tais abusos ocorriam durante a noite enquanto a sobrinha do arguido dormia no seu quarto e o arguido ficava na companhia dos menores na sala, sendo que um deles era sobrinho-neto do arguido.


O desvalor de acção é globalmente muito elevado, havendo um crescendo óbvio de ilicitude nos actos sexuais de relevo infligidos aos menores abusados, o qual começa na tentativa de beijos na boca e nas masturbações exibicionistas, ascende para as palmadas nas nádegas, os toques nos mamilos e nas carícias e apertões nos pénis, por cima e por baixo da roupa, passando também pela simulação de coito anal com o menor BB e culminando no toque peniano directo no ânus do menor DD.


Alguns dos referidos actos infligidos aos menores assumem uma grande intensidade emocional e têm um potencial traumático muito elevado nas vítimas, mesmo que estas não se considerem imediatamente como tal, pois tais memórias traumáticas, como é sabido, podem ser reactivadas em qualquer fase posterior das suas vidas.


O dolo do agente foi directo, prolongado e intenso, como sucede naturalmente neste tipo de criminalidade.


No que respeita à personalidade e condições de vida do agente, o arguido, actualmente com 41 anos de idade, não apresenta qualquer condenação averbada no respetivo certificado de registo criminal.


O processo de desenvolvimento e socialização de AA decorreu num contexto familiar característico e tradicional da cultura ..., em comunidade e num contexto de poligamia, junto da família de origem alargada, com quem estabeleceu um bom relacionamento.


AA estabeleceu três ligações afetivas das quais tem oito filhos, os quais se encontram entregues aos cuidados educativos das respetivas progenitoras, sendo sua pretensão que os mesmos se venham juntar a ele em Portugal, quando conseguir que a esposa com quem refere ter realizado matrimónio através das redes sociais venha igualmente para junto dele.


O arguido não beneficia de um suporte familiar, de modo a proporcionar-lhe uma maior estabilidade emocional, para que consiga concretizar o investimento na atividade profissional e pessoal.


As necessidades de prevenção geral são elevadíssimas relativamente ao crime de abuso sexual de criança, sobretudo quando cometido no seio da família, pois o crime em questão, não obstante apenas ser conhecida a ponta do icebergue, provoca invariavelmente forte alarme social, reclama uma forte resposta de reposição da eficácia da norma e bens jurídicos afectados, devido às lesões irreparáveis produzidas no desenvolvimento da personalidade e da sexualidade das crianças abusadas, tendo assumido uma preocupante frequência quantitativa na área da comarca ... e nas demais comarcas do país.


Não obstante o arguido não ter antecedentes criminais de qualquer espécie e contar actualmente 41 anos de idade, as necessidades de prevenção especial são elevadas no que respeita à natureza dos crimes sob julgamento, pois o arguido evidenciou uma preocupante, intensa e galopante actuação criminosa durante o curto período de cerca de dois meses e manifestou também falta de atitude crítica para assumir o mal praticado, com isso denotando uma desvalorização da condição das vítimas.


O arguido não reconhece o mal praticado apenas para tentar escapar à sua responsabilidade num contexto probatório em que pensa – erradamente – que tem apenas contra si a palavra das vítimas, havendo, assim, uma forte probabilidade do arguido vir a reincidir em comportamentos semelhantes ou até mais disfuncionais, o que tem de ser prevenido necessariamente com a privação temporária da liberdade acompanhada de intervenção médica especializada.


A culpa do arguido é muito elevada relativamente aos abusos sexuais dos autos, desde logo, pela relação familiar existente com uma das vítimas e pela traição verificada na relação de confiança mantida com a sobrinha do arguido que o albergou na sua casa e que dormia no quarto enquanto o arguido abusava da inexperiência e da ingenuidade dos menores deixados ao seu cuidado na sala ao lado.


Por outro lado, este juízo de censura não pode deixar também de refletir a reiteração descontrolada da actuação criminosa durante um curto período de tempo.


Tudo ponderado, entende-se como necessária, adequada e proporcional a aplicação das seguintes penas parcelares ao arguido:


- A pena de 3 meses de prisão pelo crime de abuso sexual de crianças cometido contra o ofendido BB (tentativa de beijo na boca);


- A pena de 3 anos e 6 meses de prisão pelo crime de abuso sexual de crianças cometido contra o ofendido BB (toques nos mamilos, toques no pénis, palmadas nas nádegas e simulação de coito anal com contacto físico e com roupa);


- A pena de 8 meses de prisão pelo crime de abuso sexual de crianças cometido contra o ofendido BB (masturbação exibicionista).


- A pena de 2 anos e 3 meses de prisão pelo crime de abuso sexual de crianças cometido contra o ofendido CC (carícias no pénis e palmadas nas nádegas);


- A pena de 2 anos e 3 meses de prisão pelo crime de abuso sexual de crianças cometido contra o ofendido CC (carícias no pénis e palmadas nas nádegas).


- A pena de 4 anos de prisão pelo crime de abuso sexual de crianças cometido contra o ofendido DD (apertões no pénis e contacto do pénis com o ânus);


- A pena de 6 meses de prisão pelo crime de abuso sexual de crianças cometido contra o ofendido DD (erecção exibicionista).


Cúmulo jurídico


Importa agora proceder ao cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas ao arguido.


Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente (art. 77.º, n.º 1, in fine).


Não tendo o legislador optado pelo sistema de acumulação material no apuramento da pena no concurso de crimes, é forçoso concluir que com a fixação da pena conjunta se pretende sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respectivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente.


No caso concreto, a moldura abstracta do cúmulo varia entre o mínimo de 4 anos de prisão e o máximo de 13 anos e 5 meses de prisão (art. 77.º, n.º 2).


Reproduzindo aqui tudo o que se deixou escrito a respeito das penas parcelares, e sem perder de vista a pluralidade de vítimas, a impressiva reiteração da atuação criminosa durante um curto período de tempo, a culpa elevada, a falta de assunção do mal praticado e a ausência de antecedentes criminais, afigura-se adequada a aplicação da pena única de 7 anos de prisão.


Penas de substituição – Suspensão da execução da pena


À face da pena única de prisão aplicada ao arguido – superior a 5 anos de prisão – não é sequer equacionável a aplicação do instituto da suspensão da execução da pena nos termos prescritos no art. 50.º do Código Penal.


No entanto, mesmo no meio prisional, o processo de reinserção social do arguido deverá passar, conforme sugerido pela DGRSP, pela sua sujeição a um acompanhamento psicoterapêutico adequado e intensivo ao nível da sexologia, bem como a programas ocupacionais que propiciem a aquisição de novas competências sociais e profissionais, os quais se reputam primordiais para a condução de um estilo de vida futuro conforme ao Direito».





          Posto isto:


  A aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, sendo que, em caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa – artº 40º, nºs 1 e 2 do Cod. Penal.


   No que concerne à determinação da medida da pena, estatui-se no artº 71º do Cod. Penal que a mesma é feita “em função da culpa do agente e das exigências de prevenção” (nº 1), devendo o tribunal atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, nomeadamente (nº 2) o grau de ilicitude do facto, o modo de execução e a gravidade das suas consequências (al. a)), a intensidade do dolo ou da negligência (al. b)), os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram (al. c)), as condições pessoais do arguido (al. d)), a sua conduta anterior e posterior ao facto (al. e)) e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, quando a mesma deva ser censurada através da aplicação da pena (al. f)).


     Como refere Germano Marques da Silva, “Direito Penal Português”, III, 130, “a determinação definitiva e concreta da pena é a resultante de um sistema pluridimensional de factores necessários à sua individualização. Um desses factores, fundamento, aliás, do próprio direito penal e consequentemente da pena, é a culpabilidade, que irá não só fundamentar como limitar a pena. (…) Mas para além da função repressiva, medida pela culpabilidade, a pena deverá também cumprir finalidades preventivas – de protecção de bens jurídicos – e de reintegração do agente na sociedade”.


     Presentes os critérios de determinação da medida concreta da pena enunciados no artº 71º do Cod. Penal, haveremos de concordar com o Tribunal a quo quando afirma que o modo de execução dos factos revela um elevado grau de ilicitude dos mesmos, sendo certo que o arguido agiu com dolo directo, daí que intenso.


   Os crimes contra a liberdade e autodeterminação social constituem objecto de manifesta reprovação social, sendo certo que a frequência com que vêm ocorrendo elevam as necessidades de prevenção geral.


     Na verdade, do relatório anual de segurança relativo ao ano de 2019 e divulgado no final do 1º semestre de 2020, retira-se um aumento dos crimes participados desta natureza relativamente ao ano anterior, sendo certo que a larga maioria dos inquéritos iniciados e dos arguidos detidos, no que concerne aos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, respeitam, precisamente, ao crime de abuso sexual de criança.


     Simas Santos e Leal-Henriques, “Noções Elementares de Direito Penal”, 2ª ed., 169, escrevem:


“(…) a prevenção geral assume o primeiro lugar como finalidade da pena, não como prevenção negativa, de intimidação, mas como prevenção positiva, de integração e de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma, enquanto estabilização das expectativas comunitárias na validade e na vigência da regra infringida”.


       Ou, na lição de Anabela Miranda Rodrigues, “A determinação da medida da pena privativa de liberdade”, Coimbra Editora, 571, «É, pois, o próprio conceito de prevenção geral de que se parte que justifica que se fale aqui de uma “moldura” de pena. Esta terá certamente um limite definido pela medida de pena que a comunidade entende necessária à tutela das suas expectativas na validade das normas jurídicas: o limite máximo da pena. Que constituirá, do mesmo passo, o ponto óptimo de realização das necessidades preventivas da comunidade. Mas, abaixo desta medida da pena, outras haverá que a comunidade entende que são ainda suficientes para proteger as suas expectativas na validade das normas – até ao que considere que é o limite do necessário para assegurar a protecção dessas expectativas. Aqui residirá o limite mínimo da pena que visa assegurar a finalidade de prevenção geral; definido, pois, em concreto pelo absolutamente imprescindível para se realizar essa finalidade de prevenção geral e que pode entender-se sob a forma de defesa da ordem jurídica».


     São de igual modo elevadas as necessidades de prevenção especial. Sendo embora certo que o arguido é primário, não deixa de ser preocupante, como se afirma no acórdão recorrido, a “falta de atitude crítica para assumir o mal praticado, com isso denotando uma desvalorização da condição das vítimas”.


     São necessariamente graves as consequências das suas condutas, em tudo o que se traduz numa perturbação no desenvolvimento da personalidade dos menores, no seu crescimento sexual normal. As crianças – todas as crianças – têm o direito a crescer como tal, na inocência que lhes é própria, imunes a perturbações introduzidas por quem, motivado apenas pela satisfação da sua lascívia, se mostrou indiferente a tal direito, violando-o de forma ostensiva.


       E porque assim é, resta concluir que as penas parcelares aplicadas no acórdão recorrido se mostram, todas elas, justas e equilibradas, adequadas à realização das finalidades da punição, não constituindo, por outro lado, obstáculo à ressocialização do arguido.


     Quanto à pena única:


  “Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente” – artº 77º, nº 1 do Cod. Penal – sendo certo que a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas parcelares e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas.


       No caso, portanto, a moldura penal aplicável parte de um mínimo de 4 anos de prisão e tem, como limite máximo, 13 anos e 5 meses de prisão.


  Como se refere no Ac. STJ de de 08-07-2020, Proc. n.º 1667/19.1T8VRL.S1 - 3.ª Secção, “I - A medida da pena conjunta deve definir-se entre um mínimo imprescindível à estabilização das expetativas comunitárias e um máximo consentido pela culpa do agente. II - Em sede de cúmulo jurídico a medida concreta da pena única do concurso de crimes dentro da moldura abstrata aplicável, constrói-se a partir das penas aplicadas aos diversos crimes e é determinada, tal como na concretização da medida das penas singulares, em função da culpa e da prevenção, mas agora levando em conta um critério específico: a consideração em conjunto dos factos e da personalidade do agente. III - À visão atomística inerente à determinação da medida das penas singulares, sucede uma visão de conjunto em que se consideram os factos na sua totalidade, como se de um facto global se tratasse, de modo a detetar a gravidade desse ilícito global, enquanto referida à personalidade unitária do agente. IV - De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente- exigências de prevenção especial de socialização”.


       De outro lado, “a proporcionalidade e a proibição do excesso, que deve presidir à fixação da pena conjunta, deverá obter-se através da ponderação entre a gravidade do facto global (do concurso de crimes enquanto unidade de sentido jurídico), as caraterísticas da personalidade do agente nele revelado (no conjunto dos factos ou na atividade delituosa) e a intensidade ou gravidade da medida da pena conjunta no âmbito do ordenamento punitivo” – Ac. STJ de 08-07-2020, Proc. n.º 74/14.7JAPTM.E1.S1 - 3.ª Secção.


  Ora, efectuada uma avaliação global dos factos, ponderadas as exigências de prevenção especial e geral e a situação pessoal do arguido, aceitando que estamos perante uma pluriocasionalidade, é nosso entendimento que a pena única de 7 anos de prisão encontrada na 1ª instância, situada no primeiro terço da pena abstractamente aplicável, se mostra justa e adequada, não merecendo qualquer censura.


     E como é evidente e dispensa considerações adicionais, posto que superior a 5 anos de prisão, tal pena é insusceptível de ser suspensa na sua execução, nos termos do estatuído no artº 50º, nº 1 do Cod. Penal.





   4. O arbitramento oficioso de indemnização aos ofendidos e respectivo quantum.


       Entende o recorrente que “deve ser recusado o arbitramento das referidas indemnizações, por não respeitarem os pressupostos do Artº 483º nº 1 do CC. Pelas mesmas razões, o montante das mesmas parece absolutamente aleatório e baseado não em factos objectivos, mas na subjectividade do Tribunal”.


      Vejamos o que, a este propósito, se escreveu no acórdão recorrido:


«Os ofendidos BB, CC e DD sofreram a prática de crimes de abuso sexual cometidos pelo arguido em autoria material e não deduziram pedido de indemnização civil contra este pelos prejuízos sofridos com a prática dos referidos crimes.


Porém, enquanto vítimas especialmente vulneráveis dos referidos crimes, os ofendidos dos presentes autos têm direito ao arbitramento oficioso de uma indemnização a título de reparação pelos prejuízos sofridos (art. 16.º, n.º 2, do Estatuto da Vítima, e artigos 82.º-A, n.º 1, 67.º-A, n.º 1, al. b), e n.º 3, 1.º, al. j), do CPP.


Nos termos do art. 129.º do Código Penal, a indemnização, por perdas e danos emergentes de um crime, ou seja, a responsabilidade civil extracontratual fundada na prática de um crime, é regulada pela lei civil.


Assim sendo, nos termos do n.º 1 do art. 483.º do Código Civil, para que surja na esfera do demandado (arguido) a obrigação de indemnizar a demandante (ofendida) é necessário que os danos efectivamente verificados na esfera desta possam ser imputados à prática de um facto ilícito culposo por aquele.


Quais os danos cujo ressarcimento ou compensação são visados neste plano indemnizatório?


Atenta a natureza dos crimes em presença e os factos dados como provados, não foram apurados quaisquer danos patrimoniais sofridos pelos ofendidos que importe ressarcir.


Todavia, os ofendidos sofreram danos não patrimoniais bem relevantes com a prática dos crimes de abuso sexual de crianças que importa acautelar.


Relativamente a estes danos não patrimoniais, apuraram-se, concretamente, a execução de actos sexuais de relevo a que as vítimas foram sujeitas pelo arguido em várias ocasiões durante cerca de dois meses e que determinaram que menores com 7 a 10 anos de idade tivessem iniciado precoce e indevidamente a sua vida sexual com um homem com 41 anos de idade.


Tais factos foram lesivos da autodeterminação sexual dos aludidos menores.


Na verdade, por referência a menores de idade que já possuem discernimento e compreensão suficientes sobre o carácter anómalo de determinadas condutas sexuais, as regras da experiência e os dados fornecidos pela Psicologia revelam que as vítimas de abusos sexuais ficam fortemente traumatizadas em virtude dos actos praticados e apresentam alterações na sua personalidade que as irão condicionar com maior ou menor intensidade nas suas vidas futuras.


Os referidos danos não patrimoniais, só serão indemnizáveis, nos termos do n.º 1 do art. 496.º do Código Civil, se pela sua gravidade merecerem a tutela do direito.


Ora, o merecimento de tutela jurídica é manifesto se atendermos que tiveram directamente na sua génese os factos ilícitos e culposos de natureza criminal pelos quais o arguido vai ser condenado, e que constituem, inequivocamente, num juízo de prognose póstuma, causa adequada à produção dos referidos danos não patrimoniais.


Verificada a existência de danos não patrimoniais e a obrigação legal da sua indemnização por parte do demandado, apenas resta determinar o “quantum indemnizatur”.


Relativamente aos danos não patrimoniais, a indemnização nunca pode pretender ter uma função ressarcitória, mas apenas compensatória de acordo com a equidade, conforme o disposto no art. 566.º do Código Civil.


Assim sendo, atendendo à globalidade das ofensas criminais e incómodos sofridos por cada um dos referidos ofendidos, julga-se totalmente adequado arbitrar:


- A indemnização global de € 5000,00 a favor do ofendido BB; - A indemnização global de € 3000,00 a favor do ofendido CC; - A indemnização global de € 7500,00 a favor do ofendido DD.


A estas quantias acrescem juros de mora legais vincendos desde o trânsito em julgado desta decisão até integral pagamento nos termos do art. 805.º/3 do Código Civil».





     Dispõe-se no artº 82º-A, nº 1, do CPP que “não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72º e 77º, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de proteção da vítima o imponham”.


    Por força do disposto no artº 16º, nº 2 do Estatuto da Vítima, aprovado pela Lei 130/2015, de 4/9, “há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal em relação a vítimas especialmente vulneráveis, exceto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser”.


   Ora, a noção de “vítima especialmente vulnerável” consta do artº 67º-A, nº 1, al. b) do CPP, sendo certo que, nos termos do nº 3 do mesmo dispositivo, “as vítimas de criminalidade violenta e de criminalidade especialmente violenta são sempre consideradas vítimas especialmente vulneráveis para efeitos do disposto na alínea b) do nº 1”.


        Por fim, a noção de “criminalidade violenta” é-nos dada no artº 1º, al. j) do CPP, nela se incluindo as condutas que dolosamente se dirigirem contra a liberdade e autodeterminação sexual, posto que puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 5 anos.


    Assente, então, a legalidade do arbitramento oficioso das reparações, vejamos se as mesmas foram devidamente fixadas.


     Como se refere no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 9/9/2021, Proc. 77/19.5T9PRG.S1[10], “na fixação da indemnização por danos não patrimoniais terão de se ter em atenção os artigos 483.°, 496.°, n.ºs 1, 2 e 4, 562.° e 566.°, n.ºs 1 e 2, do CC: quem viola ilicitamente os direitos de outrem fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes dessa violação; na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito; a indemnização pelos danos não patrimoniais deve ser fixada equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso; quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação; a indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a reparação natural não seja possível, e tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos. Como tem vindo a ser afirmado pela doutrina e pela jurisprudência, a indemnização prevista no artigo 496.º, n.º 1, do CC, é mais propriamente uma verdadeira compensação. A finalidade que lhe preside é a de atenuar, minorar e de algum modo compensar os desgostos e sofrimentos já suportados e a suportar pelo lesado, através de uma quantia em dinheiro que, permitindo o acesso a bens, vantagens e utilidades, seja capaz de permitir ao lesado a satisfação das mais variadas necessidades e de, assim, lhe proporcionar um acréscimo de bem-estar que contrabalance os males sofridos, as dores e angústias suportadas e a suportar. São indemnizáveis, com base na equidade, os danos não patrimoniais que “pela sua gravidade mereçam a tutela do direito” – nºs 1 e 3 do artigo 496º do CC. Neste sentido, refere-se no Ac. do STJ, n.º 467/16. 5PALSB.L1- S1, de 23.03.2018, 5.ª secção; “(...) No caso dos danos não patrimoniais, a indemnização reveste uma natureza acentuadamente mista, pois “visa reparar, de algum modo, mais que indemnizar os danos sofridos pela pessoa lesada”, não lhe sendo, porém, estranha a “ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente”. No caso em apreço, os factos respeitantes aos danos que as menores sofreram em consequência das descritas condutas do arguido suportam-se nas regras da normalidade, por ser pacífico que os contactos sexuais com crianças da idade das menores em regra causam traumas, medos, inseguranças e perda de confiança no relacionamento com os outros. (subl. nossos).


   Na verdade, a reparação da vítima a que alude o artº 82º-A do CPP, possuindo a natureza de uma compensação pecuniária, deve ser entendida, também, como uma sanção autónoma, consequência do crime praticado e, “como tal, ainda adequada a garantir a ressocialização do agente que, por via dela, poderá apreender de jeito porventura mais conseguido a repercussão que o facto ilícito da sua responsabilidade teve na vítima e bem assim interiorizar mais claramente o valor da norma penal infringida e a necessidade de restabelecer a ordem jurídica violada (…)” – Ac. STJ de 23/5/2019, Proc. 134/17.2JAAVR.S1[11], em cujo sumário se pode ler: “III - O arbitramento de uma certa quantia a favor da vítima do crime, nos termos do art. 82.º-A, do CPP, correspondendo a uma pretensão do legislador orientada no sentido de acudir e obviar a uma situação de urgência determinada pela desprotecção da vítima, não tem de equivaler ao montante indemnizatório que, caso tivesse sido deduzido pedido de indemnização civil, seria fixado em conformidade com os critérios decorrentes dos arts. 483.º e segs. e 562.º do CC e 129.º, do CP. IV - Quantitativo “reparatório” que, na falta de previsão, na norma do art. 82.º-A, do CPP, de critérios legais, deverá ser fixado atendendo aos conceitos da lei civil, maxime à luz da equidade e ponderando o grau de desprotecção da vítima do crime e da culpabilidade do agente, as suas condições pessoais, a sua situação económica e também da vítima, e demais circunstancialismo com relevância para o efeito, em conformidade com o previsto nas normas dos arts. 494.º e 496.º, n.º 3, do CC”.


   O dano não patrimonial consiste num prejuízo que atinge bens imateriais (essencialmente bens da personalidade) e que, por conseguinte, é insusceptível de avaliação pecuniária. Representa, em regra, a dor corporal sofrida e o prejuízo de equilíbrio anímico ou espiritual.


  Sendo insusceptível de avaliação pecuniária é, naturalmente, irreparável, não indemnizável - nada paga a dor pela morte de um filho, nada paga o complexo derivado de um defeito físico pronunciado, nada apaga as marcas de um abuso sexual sofrido na infância. É, contudo, susceptível de ser compensado, neutralizado - ou, pelo menos, a lei assim o ficciona. É essa, aliás, a razão de ser do artº 496º do Cod. Civil.


    A natureza específica dos bens atingidos quando o dano produzido é de natureza não patrimonial, provoca dificuldades acrescidas na determinação do quantum compensatório.


    E é assim que neste campo, mais do que em qualquer outro, a determinação de tal montante se faz por critérios pouco rígidos, delegando o legislador essa determinação no prudente arbítrio do julgador.


      Com efeito, manda o artº 496º, nº 4 do Cod. Civil que o montante da indemnização seja fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção “em qualquer caso” as circunstâncias referidas no artº 494º do mesmo diploma legal: o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso. Aqui, o recurso à equidade não é restrito à hipótese de a responsabilidade se fundar em mera culpa - abrange, também, os casos em que tal responsabilidade se funda em dolo (ao contrário do que se passa no domínio dos danos patrimoniais onde, em caso de dolo, o montante indemnizatório corresponde tendencialmente ao valor dos danos verificados, a não ser nos casos previstos no artº 566º, nº 3 do Cod. Civil).


    É por esse motivo que a jurisprudência se tem debatido com a dificuldade de encontrar um critério seguro para a determinação da indemnização no caso dos danos não patrimoniais.


    Assente que a indemnização se destina, nestes casos, a compensar - mais do que a reconstituir - tem-se entendido que “o critério determinante de medida indemnizatória, é o quantum necessário ao alcance de um prazer capaz de neutralizar a dor sofrida” - Ac. RC de 5/6/79, CJ 1979, t. 3º, 892; ou, como se acentua no Ac. STJ de 16/12/93, CJ (ASTJ), ano I, t. 3º, 181, “a compensação por danos não patrimoniais deve tender, efectivamente, a viabilizar um lenitivo ao lesado, já que tirar-lhe o mal que lhe foi causado, isso, neste âmbito, já ninguém e nada consegue!”.


      Ora, em face dos critérios acima enunciados, justos e equitativos se mostram os quantitativos reparatórios encontrados pelo tribunal a quo, o qual sopesou não só as condições pessoais de arguido e vítimas como, também, as concretas circunstâncias de cada caso e as consequências, necessariamente diversas para cada um dos menores, das condutas do arguido, posto que traduzidas em actos também diversos. E daí, portanto, que os montantes encontrados encontrem o seu valor mais elevado (7.500 euros) na compensação atribuída ao menor DD (relativamente ao qual, aliás, foi fixada a pena parcelar mais elevada – 4 anos de prisão), o qual sofreu o acto sexual de maior relevo praticado pelo arguido.


   Tal montante, como, aliás, os encontrados para reparar os prejuízos sofridos pelos menores BB (5.000 euros) e CC (3.000 euros), afiguram-se-nos perfeitamente adequados e equitativos sendo, por isso, de manter, razão pela qual improcederá, também aqui e finalmente, a pretensão do recorrente.





    V. São termos em que, sem necessidade de mais considerações, acordam os juízes deste Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, confirmando inteiramente o douto acórdão recorrido.


       Pagará o recorrente as custas do processo, fixando-se em 6 UC´s a taxa de justiça – artº 513º, nº 1 do CPP e tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais.





Lisboa, 12 de Janeiro de 2022 (processado e revisto pelo relator





Sénio Alves (Juiz Conselheiro relator)


Ana Brito (Juíza Conselheira adjunta)


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[1] “Meios de Prova”, in “Jornadas de Direito Processual Penal/ O Novo Código de Processo Penal”, 228 e segs.
[2] “Código de Processo Penal comentado”, 3ª ed. revista, de Henriques Gaspar, Santos Cabral, Maia Costa, Oliveira Mendes, Pereira Madeira e Pires da Graça, 1144.
[3] Ac. TC nº 680/99, publicado no DR II série, de 5/3/1999.
[4] Acessível em www.dgsi.pt.
[5] “(…) o arguido AA agarrou a face do ofendido BB e beijou-o no rosto e tentou beijá-lo na boca” (subl. nosso).
[6] Disponível em www.dgsi.pt.
[7] Conclusão XIV da sua motivação de recurso: “Reconhecemos porém, que já terão algum “relevo sexual”, por envolver contacto directo com o corpo das vítimas, quanto ao menor BB, o ter-lhe acariciado o pénis (…)”.
[8] Como refere Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código Penal”, 3ª ed. revista, 646, “o ato sexual de relevo inclui (…) o toque com (…) partes do corpo, nos órgãos genitais, seios, nádegas, coxas e boca (…)”.
[9] Neste sentido cfr., v.g., Ac. STJ de 9/9/2015, Proc. 11/14.9GCRMZ.E, rel. Cons. Armindo Monteiro, acessível em www.dgsi.pt.
[10] Acessível em www.dgsi.pt.
[11] Acessível em www.dgsi.pt.