Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3/11.0TBOHP.C1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: JÚLIO GOMES
Descritores: SEPARAÇÃO DE BENS
REGIME IMPERATIVO DE BENS
BENS COMUNS DO CASAL
ABUSO DO DIREITO
COMPROPRIEDADE
Data do Acordão: 04/14/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DA FAMÍLIA / CASAMENTO / EFEITOS DO CASAMENTO QUANTO AOS BENS DOS CONJUGES - DIREITOS REAIS / DIREITO DE PROPRIEDADE / COMPROPRIEDADE.
Doutrina:
- MARIA RITA ARANHA DA GAMA LOBO XAVIER, Limites à Autonomia Privada na Disciplina das Relações Patrimoniais entre os Cônjuges, Almedina, Coimbra, 2000, pp. 453, 466 e ss..
- CHRISTIAN ROTHEMUND, cit apud MARIA RITA ARANHA DA GAMA LOBO XAVIER, ob. cit., p.457, n.49.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 1316.º E SS., 1403.º E SS.º, 1717.º E SS.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 14/11/2006 E DE 10/4/2008.
Sumário :
I - No regime de separação de bens, inexistem bens comuns dos cônjuges mas, apenas, bens em compropriedade, sendo configurável a existência de um mandato tácito para enquadrar as hipóteses em que um dos cônjuges adquire bens em nome próprio mas com dinheiro que é também do outro, atento o facto de a comunhão de vida implicar realizações económicas conjuntas.

II - Resultando da factualidade provada que os cônjuges ignoravam que o seu casamento estava imperativamente sujeito ao regime da separação de bens e que acreditavam que vigorava entre eles um regime de comunhão (o que explicaria a desnecessidade de rodear a utilização do dinheiro de ambos de quaisquer cautelas ou de fazer intervir a autora como compradora para que os bens fossem comuns) e tendo decorrido 40 anos de vida comum, constitui abuso do direito a invocação, pelo réu, daqueloutro regime para se arrogar a propriedade exclusiva de bens que foram adquiridos com dinheiro da sua cônjuge, havendo, pois, que considerar que tais bens pertencem a ambos, em regime de compropriedade
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

AA, instaurou acção ordinária contra BB, pedindo a condenação do Réu a:

         a) Reconhecer que os bens identificados na petição, bem como os veículos, máquinas industriais e administrativas afectas à empresa que o Réu constituiu e os saldos bancários das contas em nome do casal, ou em nome só dele, são propriedade de ambos, A. e R., em partes iguais;

         b) E reconhecido esse direito em compropriedade, que se proceda à divisão dos mesmos entre Autora e Réu.

         Alegou para tanto e em síntese, ter estado casada com o Réu entre 24.11.1968 e 06.04.2010 e, embora o ignorasse, no regime imperativo de separação de bens em virtude do casamento ter sido celebrado com autorização do Sr. Bispo …, por ser menor. Na pendência do casamento, o casal adquiriu bens móveis e imóveis com o produto do trabalho de ambos, que sempre considerou como comuns, e que após o divórcio o Réu se recusa a fazer a partilha, por os bens se encontrarem em seu nome, negando à Autora qualquer direito aos mesmos.

                            

         O Réu contestou impugnando a factualidade alegada pela A., dizendo que o casal sempre fez vida profissional separada e que os bens que se encontram em seu nome foram adquiridos com dinheiro próprio, não tendo a A. qualquer direito aos mesmos. Ademais, o pedido formulado em b) é processualmente inadmissível, por lhe caber o processo especial de divisão de coisa comum.

          Na réplica, a Autora reafirmou o alegado na petição inicial.

**

          No saneador afirmou-se a validade da instância e seleccionou-se a matéria de facto, com organização da base instrutória.

          Foi fixada à acção o valor de €54.611,64.

         Realizado o julgamento, foi proferida sentença que na parcial procedência da acção, condenou o Réu a “reconhecer que os bens identificados nas quinze verbas de 3.1.2., bem como o material descrito em j) 35, a fls. 156 dos autos, e os saldos das contas bancárias existentes em nome do casal ou só em nome do Réu, são propriedade da Autora e do Réu.”

          Inconformado, apelou o Réu concluindo no essencial:

         1ª. Impugna as respostas aos artigos 1º, 13º e 15º da base instrutória, os quais deveriam ter sido julgados não provados.

         2ª. Consequentemente, a acção deveria ter sido julgada apenas em parte procedente, reconhecendo-se que Autora e Réu são comproprietários, na proporção de metade para cada um, da casa de habitação sita na freguesia de …, concelho de …, inscrita na respectiva matriz sob o art. …º, e dos bens móveis que constituem o recheio da mesma – verbas 1 a 8, identificadas no ponto 3.1.2 da sentença.

         3ª. A Autora veio peticionar que o R. fosse condenado a reconhecer que os bens, o equipamento da empresa que constituiu, e os saldos bancários das contas existentes em nome do casal, ou só do Réu, são propriedade de ambos, em partes iguais.

          4ª. No entanto, não alegou quais as quantias em dinheiro por si auferidas que entregou ao Réu ou aos vendedores para aquisição dos bens em questão, nem qualquer acto de posse que tenha exercido sobre os mesmos.

         5ª. Foi o Réu quem interveio nas escrituras de aquisição dos imóveis, os quais estão registados em seu nome na competente Conservatória, sendo que Autora e Réu foram casados no regime de separação de bens.

         6ª. Só se a Autora tivesse intervindo como compradora nas escrituras de compra e venda – o que não sucedeu – é que se poderia afirmar ter esta adquirido em comum e partes iguais (como comproprietária) os bens objecto das escrituras.

         7ª. Não é de aceitar, pois, o entendimento de que a mera declaração do Réu, nas escrituras de que estava casado com a A. no regime de comunhão de adquiridos ou geral, seria bastante para tornar a A. comproprietária dos bens, nem mesmo para tornar estes bens comuns, quando o regime de bens é o da separação.

         8ª. Se a A. contribuiu com dinheiro para a aquisição dos bens imóveis, apenas poderia requerer a restituição desse dinheiro, não a compropriedade dos mesmos.

          9ª. Contudo, a A. não alegou com objectividade de onde provêm os seus rendimentos para pagamento de metade do preço dos bens cuja propriedade reclama.

         10ª. Em face da não alegação dos pertinentes factos, a acção deveria ter sido logo julgada no saneador, reconhecendo-se que A. e R. são proprietários dos bens identificados nas verbas 1 a 8 do ponto 3.1.2 da sentença, declarando-se que o Réu é proprietário exclusivo dos restantes.

          11ª. Quanto aos imóveis, e com excepção da ex-casa de morada de família, face aos factos alegados e prova produzida e atendendo a que A. e o R. foram casados no regime de separação de bens e ao facto de o R. figurar em todas as escrituras como comprador, a propriedade dos mesmos pertence-lhe em exclusivo.

         12ª. Acresce, estarem registados em seu nome, pelo que Réu goza da presunção derivada do registo (art. 7º do CRP).

          13ª. Quanto aos automóveis, eles foram também adquiridos pelo Recorrente com dinheiro próprio, estão registados em seu nome, pelo que também neste caso o R. goza da presunção derivada do registo.

         14ª. Os móveis não sujeitos a registo, com excepção dos que compõem o recheio da casa que foi de morada de família, estão afectos à actividade profissional do R., facto este que afasta qualquer dúvidas sobre a propriedade dos mesmos, não havendo, assim, lugar à aplicação do art. 1736º/2 do Cód. Civil.

          15ª. Quanto às contas bancárias, a A. nada alegou que permita concluir que alguma vez depositou qualquer quantia nas mesmas.

          16ª. Sem prescindir, caso alguma dúvida persista relativamente às contas bancárias abertas em nome da A. e do R., tendo em conta a sua co-titularidade e o disposto no art. 516º do CC, ainda se concede que a sentença tivesse julgado que o dinheiro existente nas mesmas fosse reconhecido como sendo propriedade da Autora e do Réu.

         17ª. A sentença violou o disposto nos artigos 1714º, 1720º, 1735º, 1736º do C.Civil, e ainda o art. 1316º do mesmo diploma, conjugado com o art. 7º do CRP, art. 29º do DL nº 54/75 de 12.02, art. 344º/1 do CC, pelo que deve ser parcialmente revogada, e substituída por decisão que reconheça que a Autora e o Réu apenas são comproprietários dos bens identificados nas verbas nºs 1 a 8 do ponto 3.1.2 e do dinheiro existente nas contas bancárias tituladas por ambos, absolvendo-se o R. dos restantes pedidos.

          Em contra alegações a Recorrida pugnou pela improcedência do recurso e a confirmação da sentença.

          O Tribunal da Relação julgou a apelação parcialmente procedente e, em consequência, alterou a sentença, condenando o Réu a reconhecer que os bens móveis identificados sob as verbas 1 a 7, o imóvel identificado como verba nº 8, constante do nº2 da matéria de facto, bem como o material descrito em j) 35, a fls. 156 (computador, compressor, martelos eléctricos e stock de material) e os saldos das contas bancárias referidas no nº14, pertencem à Autora e ao Réu em compropriedade, e absolvendo o Réu da parte restante do pedido.

         Fundamentando esta sua decisão, mormente, com a asserção de que “direito de propriedade adquire-se por um dos modos previstos no art. 1316º do Cód. Civil, e a Autora não invocou nem provou nenhum deles” e “o facto de ter sido também com dinheiro da Autora que o Réu adquiriu os referidos imóveis, não a torna, ipso facto, comproprietária dos mesmos, por aquele facto não ser idóneo à aquisição do direito de propriedade”. O Tribunal da Relação destacou, ainda, que a Autora poderia ter uma pretensão de restituição do dinheiro entregue com base no regime do enriquecimento sem causa, definido nos artigos 473º e segs. do Cód. Civil, mas tal pretensão não poderia ser apreciada neste processo por não ter sido formulado o necessário pedido.

Inconformada recorreu a Autora pedindo a revogação do Acórdão recorrido na parte que lhe era desfavorável e o reconhecimento de que também os bens imóveis das verbas números 9 a 15 pertencem à Autora e ao Réu em compropriedade.

O Réu apresentou Contra-alegações em que pedia a manutenção na íntegra do Acórdão recorrido.

          Fundamentos.

          Foram dados como provados os seguintes factos:

          1. Autora e réu contraíram casamento católico um com o outro no dia 24 de Novembro de 1968, na Igreja Paroquial …, segundo o regime imperativo de separação de bens, em virtude de o matrimónio ter sido realizado com autorização do Senhor Bispo …, por a autora ser menor de idade (artigo 190º do Código do Registo Civil vigente à data) e divorciaram-se, por conversão do divórcio litigioso em mútuo consentimento, a 6 de abril de 2010 (no âmbito do processo nº 148/10.3TBOHP) [alíneas A), B)].

         2. De entre os necessários acordos para que ocorresse a conversão do divórcio em mútuo consentimento, por homologação judicial, as partes declararam existir os seguintes bens comuns do casal:

Verba 1

Conjunto de bens móveis que compõem o recheio da casa de morada de família identificada na Verba nº 8, composto por mobiliário, eletrodomésticos, louças, roupas, etc., com o valor atribuído de € 1 500,00 (mil e quinhentos euros).

Verba 2

Um trator agrícola com a matrícula …-VN, com o valor atribuído de € 500,00 (quinhentos euros).

Verba 3

Um veículo de passageiros marca …, com a matrícula …-UN, com o valor atribuído de € 1 500,00 (mil e quinhentos euros).

Verba 4

Um veículo de mercadorias (comercial), de marca …, com a matrícula …-GG, com valor atribuído de € 500,00 (quinhentos euros).

Verba 5

Um veículo comercial (passageiros e carga), de marca …, modelo …, com a matrícula …LJ, com o valor atribuído de € 500,00 (quinhentos euros).

Verba 6

Um veículo misto de passageiros e carga, de marca …., modelo …, com a matrícula …-SQ, com o valor atribuído de € 700,00 (setecentos euros).

Verba 7

Uma pá carregadora com retroescavadora, tipo …, marca …, com o valor atribuído de € 1 000,00 (mil euros).

BENS IMÓVEIS

Verba 8

Casa destinada a habitação, sita na Avenida …, nº …, freguesia de …., concelho de …, inscrita na respetiva matriz sob o artigo …º, com o valor patrimonial de € 38 685,02 (trinta e oito mil, seiscentos e oitenta e cinco euros e dois cêntimos).

Verba 9

Casa destinada a habitação, sita na Rua …, freguesia de …, concelho de …, inscrita na respetiva matriz sob o artigo …º, com o valor patrimonial de € 359,21 (trezentos e cinquenta e nove euros e vinte e um cêntimos).

Verba 10

Fracção autónoma designada pela letra “…” destinada a garagem, sita na Rua …, Edifício .., …, nº …, freguesia e concelho de …, inscrita na respectiva matriz sob o artigo …º “…”, com o valor patrimonial de € 9 325,86 (nove mil, trezentos e vinte e cinco euros e oitenta e seis cêntimos).

Verba 11

Prédio rústico composto por terra de pastagem com 30 oliveiras, sita ao …, freguesia ..., concelho …, inscrito na respetiva matriz sob o artigo …º, com o valor patrimonial de € 5,32 (cinco euros e trinta e dois cêntimos).

Verba 12

⅓ indiviso do prédio rústico que se compõe de terra de cultura com 8 oliveiras, sita ao …, freguesia ..., concelho de …, inscrito na respetiva matriz sob o artigo …º, com o valor patrimonial correspondente à fração de € 1,38 (um euro e trinta e oito cêntimos).

Verba 13

⅙ indiviso do prédio rústico composto por pinhal, sito à ..., freguesia ..., concelho de …., inscrito na respetiva matriz sob o artigo …º, com o valor patrimonial correspondente à fração de € 2,49 (dois euros e quarenta e nove cêntimos).

Verba 14

Prédio rústico composto por pinhal, sito à ..., freguesia ..., concelho de ..., inscrito na respetiva matriz sob o artigo …º, com o valor patrimonial de € 25,42 (vinte e cinco euros e quarenta e dois cêntimos

Verba 15

Prédio rústico composto por pinhal, sito ao ..., freguesia de …, concelho …, inscrito na respetiva matriz sob o artigo …º, com o valor patrimonial de € 6,94 (seis euros e noventa e quatro cêntimos)” [alínea C)].

3. Os bens móveis referidos nas verbas nos 2 a 6 de 3.1.2 mostram-se descritos na Conservatória do Registo Automóvel em nome do réu [alínea D)].

4. Por escritura pública outorgada no Cartório Notarial de …, no dia 6 de Março de 1996, perante a Licenciada CC, na qualidade de Notária, DD, na qualidade de primeiro outorgante, declarou vender e BB, ora réu, segundo outorgante, comprar:

Pelo preço de PTE 15 000$00, um prédio rústico composto por pinhal sito ao ..., freguesia de ..., concelho de Seia, inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo …º, com o valor patrimonial de € 6,94, descrito na Conservatória do Registo Predial de … pela ficha nº …, em nome do vendedor pela inscrição G-1 (verba nº 15 de 3.1.2);

Pelo preço de PTE 20 000$00, um prédio rústico composto por terra de  pastagem com 30 oliveiras, sita ao …, freguesia ..., concelho de …, inscrito na respetiva matriz sob o artigo …, com o valor patrimonial de € 5,32, descrito na Conservatória do Registo Predial de … pela ficha nº …, em nome do vendedor pela inscrição … (verba nº 11 de 3.1.2);

Pelo preço de PTE 20 000$00, ⅓ indiviso do prédio rústico que se compõe de terra de cultura com 8 oliveiras, sita ao ..., freguesia ..., concelho de …, inscrito na respetiva matriz sob o artigo …º, com área de 290 m2 e o valor patrimonial correspondente à fração de € 1,38, e descrito na Conservatória do Registo Predial de … pela ficha nº …, em nome do vendedor pela inscrição …;

Pelo preço de PTE 20 000$00, ⅙ indiviso do prédio rústico composto por pinhal sito à ..., freguesia ..., concelho de ..., inscrito na respetiva matriz sob o artigo …º, com 3 200 m2 de área e o valor patrimonial de € 2,49, descrito na Conservatória do Registo Predial de … pela ficha nº …, em nome do vendedor pela inscrição …;

Pelo preço de PTE 50 000$00, um prédio rústico composto por pinhal sito à ..., freguesia ..., concelho de ..., inscrito na respetiva matriz sob o artigo ….º, com 3 250 m2 de área e valor patrimonial de € 25,42, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... pela ficha nº …, em nome do vendedor pela inscrição … [alíneas E), F)].

5. Por escritura pública outorgada no Cartório Notarial de ..., no dia 20 de Novembro de 1996, perante a Licenciada CC, na qualidade de Notária, EE e FF, na qualidade de primeiro outorgante, declararam vender, e BB, ora réu, na qualidade de segundo outorgante, comprar, pelo preço de PTE 180 000$00, uma casa de habitação com superfície coberta de 32 m2 e arrecadação em anexo com a área de 4 m2, sita à …, na Freguesia ..., inscrita na matriz urbana nº …º, descrita na Conservatória do Registo Predial de ... pela ficha nº …, em nome dos vendedores pela inscrição … [alínea G)].

6. Por escritura pública outorgada no Cartório Notarial de ..., no dia 3 de novembro de 2000, perante a Licenciada CC, como Notária, GG, na qualidade de primeiro outorgante e legal representante da sociedade “HH, S.A.”, declarou vender e BB, ora réu, na qualidade de segundo outorgante, comprar, pelo preço de PTE 1 750 000$00, uma fracção autónoma designada pela letra “…”, destinada a garagem, sita na Rua …, Edifício .…, …, nº. …, freguesia e concelho de ..., inscrita na respetiva matriz sob o artigo …, com o valor patrimonial de € 9 325,86, e descrita na Conservatória do Registo Predial de ... pela ficha nº …, em nome da vendedora pela inscrição G-1 [alínea H)].
7. Os prédios supra referidos foram descritos na Conservatória do Registo Predial a favor do réu, respectivamente, pelas apresentações que fez, com a indicação que o mesmo se mostrava casado no regime de comunhão de bens com a autora [alínea I)].

8. O réu requereu a rectificação dos averbamentos aludidos em 3.1.8, a 21 de março de 2011, no sentido de passar a constar do registo predial que o réu se encontrava, à data da inscrição da propriedade, casado com a autora no regime imperativo de separação de bens [alínea J)].

9. Após o casamento, a autora trabalhou na área da costura, confecção de malhas, bordados e actividades afins, e o réu dedicou-se à actividade de picheleiro, como electricista e canalizador [alínea L)].

10. Com os proventos das respectivas actividades faziam face aos encargos familiares diários [alínea M)].

11. Autora e réu partilharam os custos decorrentes da educação dos filhos e o custo de aquisição do mobiliário e os electrodomésticos existentes na casa de morada de família [alíneas N), O)].

12. Autora e réu são comproprietários, em partes iguais, dos bens móveis que compunham o recheio da casa de morada de família, composto por mobiliário, eletrodomésticos, louças, roupas, e casa (de morada de família) destinada a habitação e sita na Avenida …, nº …, freguesia ..., concelho de ..., inscrita na respetiva matriz sob o artigo …º e não descrita na Conservatória do Registo Predial de ... [alínea P)].

13. Durante a separação do casal que antecedeu o decretamento do seu divórcio, o réu vendeu um veículo pesado de marca e modelo …, do ano de 1987, e um todo o terreno de marca e modelo …, do ano de 1995, sem o conhecimento da autora [alínea Q)].

14. Autora e réu abriram contas de depósito (contituladas) na “Caixa …” de ..., com o NIB … (em 1998), e no “Banco …”, com o NIB … (em 1981) [alínea R)].

15. A Autora AA nasceu na freguesia de …, concelho de ..., no dia 22 de janeiro de 1948 [alínea S)].

Da base instrutória:

16. Não obstante a circunstância referida em 3.1.1, autora e réu estavam convictos que o seu regime de bens era o da comunhão de adquiridos [art. 1º].

17. A celebração do casamento naquelas circunstâncias visou apenas obstar a que o réu fosse, naquele ano de 1968, recrutado e prestasse serviço militar [art. 2º].

18. Antes de casar, a autora era empregada doméstica, sendo remunerada pelo seu trabalho, e após como costureira, por conta de uma mulher vinda de Espanha, sendo igualmente remunerada [artigos 4º e 5º].

19. Estabeleceu-se então por conta própria, na confecção de malhas, comprando uma máquina de tricotar (malha) [art. 6º].

20. A autora trabalhou ainda na fábrica de “II”, em …, e numa outra fábrica de confecções de malhas, pertencente a II [arts. 9º e 10º].

21. Em 2000 desempenhou funções de formadora, auferindo o rendimento bruto de € 4 455,26 [art. 11º].

22. Pelo menos, desde 1996, a autora trabalha numa empresa de decoração de interiores [art.12º).

23. Foi também com recurso ao dinheiro auferido pela autora que o réu adquiriu os bens móveis e imóveis referidos em 3.1.2 e que o casal pagava a luz, água, electricidade, alimentação e vestuário [artigos 13º e 14º].

24. Os bens referidos em 3.1.2 foram sempre cuidados e usados por um ou por ambos os membros do casal, como pertencentes ao casal, nessa convicção e sem que alguma vez isso fosse questionado [ponto 15º].

b) De direito

Na presente situação discute-se, sobretudo, o estatuto dos bens imóveis adquiridos pelo cônjuge marido na pendência do casamento. O Acórdão recorrido foi no sentido de que, tendo o cônjuge marido aparecido nas escrituras de aquisição como único comprador e estando o casamento sujeito ao regime imperativo de separação de bens, tais imóveis seriam propriedade apenas do marido, muito embora tivessem sido adquiridos, como foi provado, com dinheiro dos dois cônjuges, restando apenas ao outro cônjuge (ou, melhor, ex-cônjuge) o remédio fundado no enriquecimento sem causa (o qual, contudo, não constou do pedido).

Como bem se diz no Acórdão recorrido não há propriamente bens comuns no regime de separação de bens, muito embora possa existir outra coisa, a saber, bens em compropriedade. Poder-se-á inclusive questionar se, mesmo no regime de separação de bens, o cônjuge que, na ausência de um contrato de mútuo, por exemplo, adquire, ainda que em nome próprio, imóveis, com dinheiro que é também do outro, não o fará antes na execução de um mandato tácito[1] e se não corresponderá à vontade das partes que a utilização de dinheiro dos dois cônjuges corresponda a uma aquisição para os dois. Na verdade, perguntámo-nos se não assistirá razão a MARIA RITA ARANHA DA GAMA LOBO XAVIER quando afirma que “[mesmo nos regimes de separação de bens] na maior parte dos casos, a comunhão de vida acaba por provocar uma interpenetração de facto dos bens”[2] ou, como afirma um Autor alemão citado por aquela Autora, a obrigação de comunhão de vida implica que os cônjuges levem a cabo “realizações económicas conjuntas”[3]. Recorde-se, de resto, que a separação de bens nem sequer é obstáculo a que um dos cônjuges possa contrair dívidas que responsabilizam o outro por serem em proveito comum do casal[4].
Mas o certo é que o caso em análise apresenta especificidades atendendo aos factos dados como provados. Foi dado como provado, designadamente, que os cônjuges ignoravam que o seu casamento estava sujeito ao regime imperativo de separação de bens, acreditando estarem casados em um regime de comunhão. Aliás, o cônjuge marido fez referência ao casamento em (suposto) regime de comunhão quando procedeu ao registo das aquisições.
Nessas condições – isto é, se vigorasse efectivamente entre os cônjuges, como estes acreditavam, um regime de comunhão de bens – das próprias regras da comunhão resultaria o carácter comum dos prédios adquiridos a título oneroso, sem que fosse necessário que, por exemplo, a Autora figurasse como compradora na escritura. Em suma, a convicção partilhada pelos dois de que estavam casados em regime de comunhão explicaria a desnecessidade de rodear a utilização do dinheiro dos dois para aquisição de imóveis de quaisquer especiais cautelas: não era necessário celebrar qualquer mandato, mesmo que tácito, ou de figurar a Autora também como compradora, para que os bens fossem comuns.
Ora constitui abuso de direito – o qual é do conhecimento oficioso do Tribunal – a pretensão do cônjuge marido de, após quase quatro décadas de vida em comum e de economia comum como se estivessem casados em regime de comunhão, pretender agora invocar o regime da separação para ser o único proprietário formal de imóveis que foram adquiridos com dinheiro dos dois[5]. E não havendo bens comuns nos regimes de separação, deverá considerar-se que tais bens foram adquiridos em compropriedade pelos dois cônjuges, hoje Autora e Réu na presente acção.

Decisão: Revoga-se o Acórdão recorrido e confirma-se a sentença de 1.ª Instância

Custas por conta do Réu

Lisboa, 14 de Abril de 2015

Júlio Gomes (Relator)

Nuno Cameira

Salreta Pereira

_________________________
[1] Sobre a utilização neste contexto, pelas jurisprudências alemã e francesa de contratos tácitos (mandato tácito e sociedade tácita) cfr., por todos, MARIA RITA ARANHA DA GAMA LOBO XAVIER, Limites à Autonomia Privada na Disciplina das Relações Patrimoniais entre os Cônjuges, Almedina, Coimbra, 2000, pp. 466 e ss., que refere, aliás, a proposta de uma parte da doutrina germânica de reconhecer aqui um contrato sui generis de cooperação.
[2] MARIA RITA ARANHA DA GAMA LOBO XAVIER, ob. cit,, p.453.
[3] CHRISTIAN ROTHEMUND, cit apud MARIA RITA ARANHA DA GAMA LOBO XAVIER, ob. cit., p.457, n.49.
[4] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/4/2008 (PEREIRA DA SILVA): “O proveito comum do casal inerente às dívidas a que se reporta a alínea c) do n.º1 do art. 1691.º do Código Civil pode verificar-se mesmo no regime de separação de bens”.
[5] No mesmo sentido cfr. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/11/2006 (SILVA SALAZAR): “A reconhecer-se que o Réu tinha direito de propriedade exclusiva (e não apenas de compropriedade na proporção de metade) sobre o imóvel em causa, sempre haveria abuso de direito da sua parte, excedendo a sua actuação os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim económico do direito em causa, por pretender locupletar-se sozinho com o produto da contribuição da Autora”. Tratou-se da construção com dinheiro dos dois, na pendência de um casamente em regime imperativo de separação de bens, de uma vivenda em terreno que ambos tinham comprado, tendo o Réu formalizado a compra do terreno em escritura pública de compra e venda apenas em seu nome e registado o terreno apenas em seu nome.