Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06P3059
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: OLIVEIRA MENDES
Descritores: ESCUTAS TELEFÓNICAS
NULIDADE SANÁVEL
PROIBIÇÃO DE PROVA
ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
TRAFICANTE-CONSUMIDOR
TRÁFICO DE MENOR GRAVIDADE
ILICITUDE
IMAGEM GLOBAL DO FACTO
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
MEDIDA CONCRETA DA PENA
Nº do Documento: SJ200612200030593
Data do Acordão: 12/20/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário :
I - Tendo em consideração que:
- a questão da eventual nulidade das intercepções telefónicas, que foi colocada ao Tribunal da Relação, obteve desta instância uma resposta fundamentada, tendo-se ali decidido que as escutas e gravações realizadas no âmbito da investigação levada a cabo no decurso do inquérito, não só foram acompanhadas e avaliadas pelo juiz de instrução criminal, como lhe foram apresentadas em devido tempo;
- a lei apenas estabelece uma limitação absoluta às provas obtidas mediante tortura, coacção, ou, em geral, ofensa à integridade física ou moral das pessoas - arts. 32.º, n.º 8, da CRP e 126.º, n.º 1, do CPP - sendo que, relativamente às provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações, maxime às obtidas através de intercepção e gravação de conversações ou comunicações telefónicas, não recai tal limitação, podendo e devendo ser efectuadas quando ordenadas ou autorizadas por despacho do juiz, suposto o preenchimento dos pressupostos legais, o que se verificou nos autos - arts. 126.º, n.º 3, e 187.º, n.º 1, ambos do CPP;
- os procedimentos para realização das intercepções e gravações telefónicas estabelecidos no art. 188.º, após ordem ou autorização judicial para o efeito, constituem formalidades processuais cuja não observância não contende com a validade e a fidedignidade daquele meio de prova, razão pela qual, como este Supremo vem entendendo, à violação dos procedimentos previstos naquele normativo é aplicável o regime das nulidades sanáveis previsto no art. 120.º do CPP; improcede o recurso dos arguidos na parte em que alegam que as intercepções telefónicas efectuadas no âmbito da investigação levada a cabo na fase de inquérito enfermam de nulidade insanável, quer por não haverem sido controladas pelo juiz de instrução criminal, quer por não haverem sido levadas ao conhecimento daquele em devido tempo, quer ainda por terem sido obtidas sem o consentimento dos escutados.
II - Constitui jurisprudência corrente deste STJ a orientação interpretativa dos arts. 1.º, al. f), e 358.º, n.º 1, ambos do CPP, segundo a qual inexiste alteração substancial dos factos da acusação ou da pronúncia quando na sentença melhor se concretizam os factos ali descritos, ou seja, quando os factos aditados se traduzem em meros factos concretizantes da actividade imputada sem repercussões agravativas ou diminuição das garantias de defesa do arguido.
III - Assim, numa situação em que:
- na audiência, a juiz presidente comunicou aos arguidos que para além dos factos descritos na acusação, tendo por referência o período temporal na mesma considerado, ir-se-iam considerar outros que, todavia, constituem a mera concretização da actividade delituosa imputada na acusação, procedendo-se à identificação das pessoas que adquiriram os estupefacientes e à indicação das quantidades fornecidas/vendidas/adquiridas/cedidas;
- mais foi comunicado que a alteração daí decorrente, embora representasse uma modificação dos factos, não tinha por efeito a imputação de crimes diversos, nem a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, pelo que não configurava uma alteração substancial, apenas uma alteração não substancial;
- na sequência desta comunicação, foi concedido aos arguidos prazo para defesa ao abrigo do disposto no art. 358.º, n.º 1, do CPP;
- a alteração efectivamente operada no acórdão recorrido relativamente aos factos descritos na acusação pública deduzida se circunscreveu à concretização de algumas das operações de tráfico imputadas aos arguidos, com indicação das respectivas datas, quantidades e preços; não ocorreu a nulidade prevista na al. c) do n.º 1 do art. 379.º do CPP.
IV - Da hermenêutica do art. 26.º, n.º 1, do DL 15/93, de 22-01, resulta ser elemento ou requisito essencial do crime de traficante-consumidor que o agente, ao praticar qualquer dos factos referidos no art. 21.º, tenha por finalidade exclusiva conseguir plantas, substâncias ou preparações para uso pessoal.
V - Por sua vez, o crime de tráfico de menor gravidade, previsto no art. 25.º do mesmo diploma, caracteriza-se por constituir um minus relativamente ao crime matricial, ou seja, ao crime do art. 21.º do DL 15/93, de 22-01.
VI - Trata-se de um facto típico cujo elemento distintivo do crime-tipo reside, apenas, na diminuição da ilicitude, redução que o legislador impõe seja considerável, indicando como factores aferidores de menorização da ilicitude, a título meramente exemplificativo, os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção e a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações.
VII - A aferição de qualquer situação de tráfico no sentido de saber se se deve ou não qualificar como de menor gravidade não pode prescindir de uma análise de todas as circunstâncias objectivas que em concreto se revelem e sejam susceptíveis de aumentar ou diminuir a quantidade do ilícito.
VIII - Assim, e para além das circunstâncias atinentes aos factores de aferição da ilicitude indicados no texto do art. 25.º do DL 15/93, já atrás citados, há que ter em conta todas as demais susceptíveis de interferir na graduação da gravidade do facto, designadamente as que traduzam uma menor perigosidade da acção e/ou desvalor do resultado, em que a ofensa ou o perigo de ofensa aos bens jurídicos protegidos se mostre significativamente atenuado, sendo certo que para a subsunção de um comportamento delituoso (tráfico) àquele tipo privilegiado, como vem defendendo este Supremo Tribunal, torna-se necessária a valorização global do facto, tendo presente que o legislador quis aqui incluir os casos de menor gravidade, ou seja, aqueles casos que ficam aquém da gravidade do ilícito justificativa do crime-tipo, o que tanto pode decorrer da verificação de circunstâncias que, global e conjugadamente sopesadas, se tenham por consideravelmente diminuidoras da ilicitude do facto, como da não ocorrência (ausência) daquelas circunstâncias que o legislador pressupôs se verificarem habitualmente nos comportamentos e actividades contemplados no crime-tipo, isto é, que aumentam a quantidade do ilícito colocando-o ao nível ou grau exigível para integração da norma que prevê e pune o crime-tipo.
IX - Resultando da factualidade provada que o arguido N vendeu, pelo menos, desde Junho de 2002 até finais de Maio de 2003, cocaína e haxixe, numa primeira fase por conta própria, a partir de 14 de Março de 2003 por conta da co-arguida H, para o que telefonava e ia a casa desta, por vezes durante a madrugada, para levantar estupefacientes (como consta detalhadamente da decisão proferida sobre a matéria de facto), e tendo em conta que o tráfico-consumo previsto no art. 26.º do DL 15/93 só se poderia ter por preenchido caso viesse provado que o arguido N ao vender a cocaína e o haxixe visava exclusivamente a compra de substâncias estupefacientes para seu próprio consumo, o que não se verifica, é de afastar a subsunção da sua conduta à referida norma.
X - Também não é possível subsumir os factos provados à norma do art. 25.º do mesmo diploma, pois que a qualidade e quantidade das substâncias vendidas pelo arguido N, bem como o período de tempo durante o qual se dedicou ao tráfico, qual seja o de 11 meses, precludem tal possibilidade.
XI - Dentro da moldura penal abstracta correspondente ao crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art. 21.º, n.º 1, do DL 15/93, de 22-01, ou seja, a de 4 a 12 anos de prisão, e ponderando que:
- o arguido JP tem 46 anos de idade e é solteiro; possui como habilitações literárias o 2.º ano do ciclo preparatório e um curso de gestão agrícola; tem um filho com 16 anos de idade, para cujo sustento contribui com uma pensão de € 150; à data dos factos encontravase desempregado; é consumidor de haxixe desde 1974 e consome esporadicamente cocaína; tem mantido bom comportamento em clausura; encontra-se desde Agosto de 2004 em regime de RAVI na Quinta da Várzea; recebe apoio da irmã e do filho; foi condenado por decisões proferidas em Outubro de 1994, Outubro de 2005 e Julho de 2000, pela prática de crimes de tráfico de estupefacientes, nas penas de 4 anos e 6 meses, 5 anos e 3 anos de prisão;
- o arguido JS tem 39 anos de idade; vivia com uma companheira, em casa arrendada, da qual tem um filho com 9 anos de idade; não sabe ler nem escrever; à data dos factos encontrava-se desempregado, fazendo ocasionalmente trabalhos de pedreiro; não é consumidor de estupefacientes; foi condenado em 2001 pela prática de crime de condução sem habilitação legal;
- o arguido NS tem 31 anos de idade e é solteiro; vive com os pais, um irmão e um filho de 6 anos de idade; possui o 6.º ano de escolaridade; exerce a profissão de pedreiro e ladrilhador, auferindo a remuneração diária de € 40; à data dos factos encontrava-se desempregado; foi consumidor de heroína dos 17 aos 21 anos de idade, tendo passado depois a consumir cocaína, sendo que há cerca de 2 anos consome haxixe e ecstasy; não tem antecedentes criminais;
- as necessidades de prevenção geral são elevadas, visto que a situação que se vive em Portugal em termos de tráfico e de toxicodependência é grave, traduzida num aumento significativo da criminalidade e na degradação social de parte importante do sector mais jovem da comunidade, conduzindo a que parte significativa da população prisional cumpra pena, directa ou indirectamente, relacionada com o tráfico e o consumo de estupefacientes;
nada há a censurar às penas cominadas aos arguidos JP e NS (respectivamente de 9 anos e 6 meses e de 4 anos e 6 meses de prisão), reduzindo-se para 6 anos de prisão a (de 7 anos) aplicada ao arguido JS.
Decisão Texto Integral: