Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
16804/19.8T8LSB-A.L1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: FERREIRA LOPES
Descritores: EXECUÇÃO PARA PAGAMENTO DE QUANTIA CERTA
CITAÇÃO
INTERPELAÇÃO
EXIGIBILIDADE DA OBRIGAÇÃO
TÍTULO EXECUTIVO
PROCESSO ORDINÁRIO
CONTRATO DE MÚTUO
EMBARGOS DE EXECUTADO
PAGAMENTO
ÓNUS DA PROVA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
DECISÃO INTERLOCUTÓRIA
DECISÃO QUE NÃO PÕE TERMO AO PROCESSO
OPOSIÇÃO DE ACÓRDÃOS
Data do Acordão: 02/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I - A citação na execução para pagamento de quantia certa, sob a forma de processo ordinário, vale como interpelação judicial dos executados, nos termos e para os efeitos do art. 805º, nº1 do CCivil, conferindo à obrigação exequenda o atributo de exigibilidade, sem o qual não há título executivo válido;

II - A oposição do executado com fundamento em não dever a quantia exequenda por a mesma ter sido liquidada em parte, não contende com a exequibilidade do título, constituindo o fundamento de embargos do art. 729º, alínea g) do CPC;

III – Sendo exequível o título dado à execução, mas controvertido o valor em dívida, o processo deve seguir para julgamento, competindo aos executados a prova dos factos modificativos ou extintivos da obrigação exequenda, conforme a regra do art. 342º do CCivil.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


Por apenso à execução instaurada por Parvalorem, S.A. contra AA e BB, a executada deduziu oposição por embargos, pedindo:

a) Seja declarada extinta a execução, por inexistência de título executivo;

b) Caso assim não se entenda, ser declarada a prescrição dos juros de mora vencidos até 31 de Outubro de 2014;

c) Ser declarado o não vencimento de juros de mora até à citação da presente acção;

d) Ser declarada a impossibilidade de reclamação dos juros compensatórios após a declaração de resolução do contrato;

e) Ser declarada a impossibilidade de capitalização dos juros de mora vencidos após a declaração de resolução do contrato;

f) Ser reduzida a quantia exequenda para o capital efectivamente em dívida, descontado que seja o capital pago até à presente data, e os juros de mora reclamados em excesso e referidos em c) a f) supra.

Como fundamento, alegou, com utilidade:

É verdade que entre o BPN e a ora embargante foi celebrado o contrato junto com o Requerimento Executivo, intitulado “Contrato de Mútuo”, pelo valor de 302.255,15€;

Porém, o referido contrato, por si só, não é suficiente como título executivo. Com efeito, da exposição dos factos e da liquidação da obrigação resulta que, apesar de o capital mutuado ter sido no valor de 302.255,15€, é indicado como estando em dívida, a título de capital, o montante de 309.409,47€;

Ou seja, o valor de capital alegadamente em dívida é superior ao valor mutuado, ficando por explicar a razão de tal uma vez que a Parvalorem não apresenta qualquer justificação para o efeito, nem alega qualquer facto a este respeito;

A exequente diz que o referido contrato, celebrado em 12.08.2005, foi incumprido em 13.08.2020, o que significa que confessa que as prestações mensais devidas ao abrigo do mesmo foram pagas entre 12.08.2005 e 13.08.2010, ou seja, durante 5 anos;

Mais confessa que já foi recebida a quantia de €214.000 em virtude da execução da hipoteca;

Assim, a par do capital alegadamente em dívida ser superior ao capital mutuado, fica ainda por explicar o que aconteceu às 60 prestações pagas durante o referido período de 5 anos e aos cerca de 214.000€ também pagos, entretanto (em 2011).

A exequente também não faz qualquer prova da disponibilização da quantia mutuada aos mutuários, nem a data em que tal ocorreu, pelo que o contrato de mútuo, por esse motivo, não nem tem força executiva.

Invocou ainda a prescrição de parte dos juros reclamados, bem como o não vencimento de juros posteriores a 31.10.2014, e ainda o não vencimento de juros compensatórios.

A embargada apresentou contestação, pugnando pela improcedência dos embargos.


*


Foi proferida sentença que julgou os embargos procedentes e declarou extinta a execução quanto à embargante BB.

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A exequente interpôs recurso da sentença.

A Relação de Lisboa, por acórdão de 27.04.2023, julgou a apelação procedente, revogou a sentença e determinou o prosseguimento dos embargos.


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É a vez da Embargante BB interpor recurso de revista, ao abrigo do disposto no art. 629º, nº2, al. d) do CPCivil, rematando a sua alegação com as seguintes conclusões:

A) O presente recurso é admissível nos termos da alínea d), do n.º 2 do artigo 629.º do CPC por o acórdão ora em crise estar em contradição com o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 27 de Abril de 2023, no âmbito do processo n.º 16804/19.8T8LSB-B.L1, cuja cópia simples se junta, o qual foi proferido no mesmo dia 27 de Abril de 2023, sobre o mesmo contrato de mútuo mas no recurso relativo aos embargos de executado do outro executado e sobre a mesma questão de direito – (in)existência de título executivo por ausência de notificação de vencimento antecipado do mútuo nos termos do disposto no artigo 781.º do CC.

B) A quaestio decidendi é, pois, saber se, um contrato de mútuo desacompanhado da interpelação dos executados devedores para pagamento prevista no artigo 781.º do CC, é suficiente para constituir título executivo, quando, no decorrer do incumprimento a exequente recebeu um valor da venda de bem dado em garantia que alega ter imputado nas prestações vencidas e respectivos juros.

C) Não consta do processo qualquer declaração / interpelação de vencimento antecipado, nos termos previstos no artigo 781.º do CC, está, aliás, assente que não existiu tal interpelação.

D). Com relevância para a análise da questão, são de referir os seguintes factos:

9. Sucede que as prestações acordadas deixaram de ser pagas em 13.08.2010 (cf. documento de fls 25v dos autos de execução);

11. Foi instaurado o processo de execução fiscal nº ..............05 – Serviço de Finanças de ...;

12. Em sede de tal processo fiscal, a Parvalorem, na qualidade de credora com garantia real, porque citada para o efeito, reclamou os seus créditos;

13. No âmbito de tal processo, a Parvalorem recebeu o montante de €214.000,00 (duzentos e catorze mil euros).

E). O tribunal a quo não tomou em consideração que a exequente, entretanto, entre a data do início do incumprimento (13/08/2010) e a data da instauração da acção executiva, recebeu valores para pagamento da quantia em dívida e não esclarece devidamente como procedeu a tal imputação, o que prejudica a existência do título executivo.

F). O contrato de mútuo junto como Doc. 02 do RE por si só, não é suficiente como título executivo pois o mesmo, por si só, não é título bastante para sustentar e justificar a quantia exequenda, como decorre desde logo da leitura dos factos 5. a 9. do RE e do capítulo destinado à liquidação da obrigação de onde resulta que, apesar de o capital mutuado ter sido no valor de €302.255,15, a Exequente indica como estando em dívida a título de capital o montante de €309.409,47, ou seja, o valor de capital alegadamente em dívida é superior ao valor mutuado.

G). A própria Parvalorem confessa que o referido contrato, celebrado em 12/08/2005, foi incumprido em 13/08/2010 -vd. ponto 8. do RE, o que significa que confessa que as prestações mensais devidas ao abrigo do mesmo foram pagas entre em 12/08/2005 e 13/08/2010, i.e., durante 5 anos – confissão que se aceita para não mais ser retirada, nos termos do artigo 465.º, n.º 2,do CPC –e confessaainda que já foi recebida aquantia de €214.000 – vd. ponto 9. do RE e ponto 13. dos factos provados.

H) Assim, a par do capital alegadamente em dívida ser superior ao capital mutuado, fica ainda por explicar o que aconteceu às 60 (sessenta) prestações pagas durante o referido período de 5 anos e aos cerca de €214.000 também pagos entretanto.

I) Do acima exposto resulta, de forma manifesta, que o título executivo usado pela Exequente não satisfaz os requisitos da exequibilidade e suficiência legalmente exigidos, pois não é suficiente para sustentar a quantia exequenda que é peticionada.

J) Com efeito, não se pode aceitar que um documento de onde se retira um empréstimo no valor de €302.255,15, depois de terem sido pagas as prestações acordadas durante 5 anos e executada uma hipoteca que determinou o pagamento de €214.000, constitua título executivo bastante para sustentar um pedido de pagamento de €309.409,47 que alegadamente, correspondem a capital.

K) É pacífico que o título executivo é requisito essencial da acção executiva e tem de constituir instrumento probatório suficiente da obrigação exequenda, o que manifestamente não ocorre com o presente título executivo!

L) É, pois, de sufragar na íntegra o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 27 de Abril de 2023, no âmbito do processo n.º 16804/19.8T8LSB-B.L1, que fundamenta o presente recurso e cuja cópia simples se junta, ao referir o seguinte:

“Tal título executivo, conjugado com o requerimento inicial, pode ainda servir de base a uma execução para o pagamento de quantia certa em que é exigido o cumprimento de obrigações contratuais. Porém, para se poder concluir pela definição do valor da obrigação, sempre seria essencial a prova da data do incumprimento dos executados, dado que o art. 805º, nº2, alínea a) do CCivil preceitua que os devedores se constituem em mora, independentemente de interpelação, logo que vencida e não paga a prestação a prazo certo convencionada.

Mantemos tal posição, porém no caso dos autos a exequente não se limitou a juntar o contrato de mútuo o qual consubstancia manifestamente um título de dívida das prestações vencidas, dada a prova do incumprimento do pagamento das prestações pelos executados a partir de determinada data, o que ocorre nos autos é que na sequência de tal incumprimento a exequente já havia reclamado o seu crédito (desconhecemos em que termos) no âmbito da execução fiscal, identificado pelo n.º ..............05 – Serviço de Finanças de .... Ora, no âmbito dessa mesma execução a Embargada recebeu, em consequência da venda judicial do imóvel que garantia hipotecariamente o crédito em causa, a quantia de €214.179,97 a 08/07/2013, quantia essa que a exequente nesta execução alega que foi imputada ao valor global em divida nos termos do documento junto ao requerimento executivo como doc. 3, do qual consta que foi amortizado no capital o valor de 107.532,85€ e nos juros de mora o valor de 106.647,12€, contando como data de “resolução” e de contagem de juros 13/08/2010, e ainda que à data de 01.08.2019 mantinha-se em dívida o montante de €309.409,47 de capital e juros desde 13/08/2013 no valor de 142.441,57€.

É manifesto que do título junto não resulta a liquidez e exigibilidade do valor indicado como exequendo pela embargada, nem a citação do executado é de molde a determinar cumpridos tais requisitos.

O contrato junto desacompanhado de interpelação dos executados nos termos sobreditos – previsto quer no art. 781º do CC quer contratualmente – poderia ser suficiente para o efeito da exigibilidade do pagamento das prestações e respectivos juros à data da propositura da execução.

Porém, neste caso haverá que considerar que no decorrer deste incumprimento a exequente recebeu o valor a venda do bem dado em garantia, pelo que tal valor ou era imputado nas prestações vencidas e respectivos juros (iniciando-se por estes, cf. art. 785º do CC), ou teria a exequente de fazer prova da interpelação dos executados do vencimento antecipado (e não ao embargante, como parece resultar das conclusões de recurso, dado ser um facto constitutivo do direito da exequente), sendo devidos juros moratórios a partir dessa data e sobre o valor total em causa, pois pretender que se considere a citação sempre os juros só deveriam devidos desde a realização desta, o que afasta desde logo a liquidez e exigibilidade exigidas em sede de execução e ainda a desconformidade da imputação do valor recebido.

M) O que se tem vindo a transcrever aplica-se, na íntegra, aos presentes embargos pois estes referem-se exactamente aos mesmos factos: ao mesmo contrato de mútuo, à mesma de interpelação, à mesma imputação (desconhecida!) de valores entretanto recebidos, à mesma falta de liquidez e exigibilidade do valor indicado pela Exequente como valor em dívida/valor exequendo, não tendo a citação para a presente acção alterado tal situação pois esta, tal como refere o acórdão supra transcrito, não permite determinar os referidos requisitos de liquidez e exigibilidade.

N) Ao decidir como decidiu, o acórdão ora em crise viola o disposto no artigos 781.º e 805.º, n.º 1 e 3 do CC e os artigos 10.º, n.º 5, e 713.º do CPC, na medida em que a quantia exequenda não é líquida nem exigível.

O) Impõe-se, por isso, a revogação do acórdão ora em crise e absolvição da Recorrente da instância, por ausência de título executivo, só assim se respeitando os citados preceitos legais.

Não foram apresentadas contra alegações.


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Fundamentação.

Vêm provados os seguintes factos:

1. O BPN – Banco Português de Negócios, S.A. era uma instituição que se dedicava ao comércio bancário.

2. Por escritura de cessão de créditos, celebrada em 30.12.2010, o BPN cedeu à ora exequente – PARVALOREM, S.A. – um conjunto de créditos, incluindo as respetivas garantias e acessórios, sem quaisquer reservas ou exceções (cfr. documento de fls. 4 e seguintes dos autos de execução, cujo teor se dá por reproduzido).

3. Entre os créditos cedidos, consta o crédito que agora se executa.

4. No exercício da sua actividade e a pedido dos executados AA e BB, no dia 12.08.2005, o BPN celebrou com eles um contrato de mútuo (cfr. documento de fls. 21v e seguintes dos autos de execução).

5. Através de tal contrato de mútuo, o BPN emprestou aos mutuários a quantia de € 302.255,15.

6. O empréstimo em causa destinou-se à regularização de responsabilidades em dívida junto da entidade bancária BES – Banco Espírito Santo, S.A., conforme cláusula segunda do contrato de mútuo.

7. Na data da celebração do contrato, foi constituída hipoteca voluntária a favor da mutuante, sobre uma fração autónoma, destinada a assegurar o bom pagamento e liquidação de todas e quaisquer obrigações e/ou responsabilidades assumidas e/ou a assumir pelos devedores, até ao limite de € 362.706,18, conforme cláusula décima segunda do contrato.

8. De acordo com o contrato celebrado foram convencionadas, além do mais, as cláusulas acerca: a) Do número de prestações mensais, através das quais o capital mutuado, bem como os respetivos juros, haveriam de ser pagos; b) Das datas da 1.ª e das restantes prestações; c) Dos juros moratórios em caso de incumprimento ou atraso no pagamento, calculados de acordo com a respetiva cláusula do contrato.

9. As prestações acordadas deixaram de ser pagas, em 13.08.2010 (cfr. documento de fls. 25v dos autos de execução, cujo teor se dá por reproduzido).

10. (eliminado pela Relação).

11. Foi instaurado processo de execução fiscal, identificado pelo n.º ..............05 – Serviço de Finanças de ....

12. Em sede de tais autos fiscais, a Parvalorem, na qualidade de credora com garantia real, porque citada para o efeito, reclamou os seus créditos.

13. No âmbito de tal processo, a Parvalorem, recebeu o montante de 214.000,00€ (duzentos e catorze mil euros).

14. Correu termos junto do Juiz ... do Juízo de Execução de ... a acção executiva n.º 9488/11.3... em que era exequente a ora exequente e executados os ora executados, sendo reclamado o pagamento do contrato de mútuo ora dado à execução.

15. Por decisão transitada em julgado em 26 de Abril de 2019 foi tal execução declarada extinta por ter considerado a quantia exequenda uma quantia ilíquida e inexigível.”

Factos aditados pela Relação:

I) A ação executiva foi instaurada em 15/08/2019, sendo o requerimento executivo do seguinte teor:

“Factos: 1. (…)o BPN - Banco Português de Negócios, S.A. era uma instituição que se dedicava ao comércio bancário.

2. - E, também, como é do conhecimento da generalidade das pessoas medianamente informadas, por escritura de cessão de créditos, celebrada em 30.12.2010, o BPN cedeu à ora exequente - a PARVALOREM, S.A. - inúmeros créditos (entre os quais o que vai referir-se adiante) incluindo as respetivas garantias e acessórios, sem quaisquer reservas ou exceções (cfr. doc. 1 que se junta e se por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, bem como os demais que irão ser juntos).

3. - Nesse decurso, a exequente PARVALOREM, S.A. é o sujeito ativo do crédito que agora se executa

4. - É que, no exercício da sua actividade e a pedido dos mutuários AA e BB, no dia 12.08.2005, o BPN celebrou com eles um CONTRATO DE MÚTUO - cfr. doc. 2 que se junta.

5. - Através de tal contrato de mútuo, o BPN emprestou aos mutuários a quantia de €302.255,15 (cfr. art. 1.° do contrato).

6. - Tais mutuários utilizaram a quantia mutuada para a finalidade prevista no art. 2.° do contrato.

7. - De acordo com o contrato celebrado e nos termos do art. 724° n.° 1, alínea e) do C.P.C., foram convencionadas, além do mais, as cláusulas (que aqui se dão como reproduzidas) acerca: a) Do número de prestações mensais, através das quais o capital mutuado, bem como os respetivos juros, haveriam de ser pagos; b) Das datas da 1.a e das restantes prestações; c) Dos juros moratórios em caso de incumprimento ou atraso no pagamento, calculados de acordo com a respetiva cláusula do contrato;

8. -Sucede que as prestações acordadas deixaram de ser pagas, em 13.08.2010 (cfr. doc. 3), tendo ficado em dívida, de capital, a quantia de 416.942,32, sobre a qual incidem os juros remuneratórios e moratórios, constantes do item "Liquidação da Obrigação".

9. - No entanto, o BPN recebeu um pagamento no montante de 214.000,00, o qual foi imputado ao montante em dívida atrás referido (vide amortizações de capital e juros constantes do doc. 3, por efeito da venda do imóvel que garantia o contrato), pelo que à data de 01.08.2019 mantinha-se em dívida o montante de 309.409,47, de capital (cfr. novamente o doc. 3).

Para além do capital em dívida de 309.409,47, são devidos os juros calculados desde 13.08.2010 a 01.08.2019, à taxa convencionada de 8,687%, no valor de 146.846,65.

Ao capital em dívida haverá, ainda, que acrescentar os juros vincendos calculados à taxa supra referida, até ao efectivo e integral pagamento, conta a elaborar, a final, pelo Agente de Execução, nos termos do artigo 716.°, n.° 2 do C.P.C..”

II) Com o requerimento executivo a exequente juntou, além do contrato de cessão de créditos entre BPN e Parvalorem, documento intitulado “contrato de mútuo, celebrado em 12/08/2005, entre BPN e os executados, nele figurando respetivamente como primeiro outorgante (BPN) e segundos outorgantes (mutuários), com o seguinte teor:

“(…) ARTIGO TERCEIRO (Prazo)

1. O prazo do empréstimo é de 20 (VINTE) ANOS, a contar da data da primeira utilização de fundos. (…)

ARTIGO SÉTIMO (Reembolso do Capital e Pagamento dos Juros)

Salvo acordo diverso e sem prejuízo do direito de antecipação, previsto no anterior artigo terceiro, o empréstimo será reembolsado em prestações mensais, constantes e sucessivas de capital e juros, de acordo com o piano do conhecimento dos MUTUÁRIOS. (…)

ARTIGO DÉCIMO SEGUNDO (Garantias do Cumprimento)

1. Os valores que se mostrarem em dívida ao BPN ficam caucionados pela livrança em branco, subscrita pelos MUTUÁRIOS, destinada a garantir o pagamento de todas as responsabilidades, assumidas ou a assumir pelos MUTUÁRIOS perante o BPN, por crédito concedido ou a conceder e valores descontados e/ou adiantados até ao limite de trezentos e sessenta e dois mil, setecentos e seis euros e dezoito cêntimos, acrescido dos respectívos juros, despesas e encargos, incluindo, por isso, os valores emergentes deste contrato; além da livrança, os MUTUÁRIOS entregam ao BPN a correspondente autorização de preenchimento.

2. Os valores que se mostrarem em dívida ao BPN ficam ainda garantidos pela hipoteca constituída por escritura de hoje celebrada no Primeiro Cartório Notarial de Competência Especializada ... sobre o seguinte prédio de que são proprietários os MUTUÁRIOS: prédio urbano, composto de terreno para construção, sito em ..., lote vinte e nove, da freguesia da .../ concelho de ..., descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de ... sob o número nove mil novecentos e sessenta e oito, com registo de aquisição G-um, inscrito na matriz sob o artigo 17.433.

ARTIGO DÉCIMO TERCEIRO (Incumprimento)

1. Sem prejuízo doutros casos previstos na lei ou neste contrato, o BPN poderá denunciar o presente contrato, declarando vencidas todas as obrigações dele decorrentes e exigir o seu cumprimento imediato, por notificação escrita aos MUTUÁRIOS, sempre que se verifique alguma das seguintes situações:

a) No caso de incumprimento, no prazo concedido, de exigências efectuadas, consoante os casos, ao abrigo do disposto nos artigos 633º, 670°, alínea c), 701° e/ou 780°, todos do Código Civil;

b) Se os MUTUÁRIOS cessarem pagamentos, se requererem processo de recuperação de empresa ou de falência, ou algum deles for requerido por terceiros;

c) Se os MUTUÁRIOS deixarem protestar quaisquer títulos de crédito em que algum deles seja obrigado, se forem executados judicialmente, ou se, por qualquer forma, der azo à interrupção da sua actividade ou à diminuição considerável das suas garantias de solvabilidade;

d) Se os MUTUÁRIOS deixarem de cumprir pontualmente as obrigações decorrentes de outros empréstimos obtidos junto do BPN ou de outras instituições de crédito nacionais ou estrangeiras;

e) Se os MUTUÁRIOS não cumprirem a obrigação previstas no artigo décimo segundo deste Contrato;

f) Em geral, no caso de não cumprimento pontual pelos MUTUÁRIOS de qualquer das obrigações assumidas pelo presente contrato.

2. A denúncia deverá ser efectuada por carta registada, produzindo efeitos no oitavo dia posterior à sua expedição, se o vício ou falta que motivou a denúncia não for corrigido dentro dos cinco dias posteriores à mesma expedição.”

III) A executada/embargante foi citada em 31/10/2019.


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Da admissibilidade do recurso:

No Supremo Tribunal de Justiça, o relator determinou a notificação das partes para os efeitos do art. 655º do CPC.

Recorrente e Recorrida pronunciaram-se, a primeira no sentido da recorribilidade da decisão recorrida, ao abrigo do disposto no art. 629º, nº2, alínea d) do CPC, e a Recorrida no sentido de ser rejeitado o recurso.

Vejamos então.

Estando em causa uma decisão que, revogando a da 1ª instância que julgou procedente os embargos e extinta a execução, determinou o prosseguimento do processo, não é recorrível nos termos do art. 671º, nº1 do CPC uma vez que não conheceu do mérito da causa nem pôs termo ao processo.

Não sendo a decisão recorrível nos termos do art. 671º, nº1, importa ver se é recorrível nos termos do art. 629º, nº2, alínea d) do CPC, nos termos do qual “a independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso do acórdão da Relação que esteja em contradição com outro, dessa ou de diferente Relação, no domínio da mesma questão fundamental de direito, e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal salvo se tiver sido proferido acórdão uniformizador de jurisprudência com ele conforme.”

Como é sabido, esta norma tem suscitada controvérsia na doutrina e na jurisprudência, entre um entendimento mais restritivo que entende que a norma é apenas aplicável às decisões que ponham termo ao processo ou apreciem o mérito da causa, e outra mais ampla, que admite a aplicação conjunta do art. 629º, nº2, d) e 671º, nº2, b) do CPC, isto é, também a decisões interlocutórias. No sentido de uma interpretação restritiva, decidiram, entre outros, os acórdãos do STJ de 09.07.2020, P. 1023/13, de 10.12.2022, P. 3450/20, e de 28.02.2023, P. 1078/20; perfilharam uma interpretação ampla do art. 629º, nº2, d), os acórdãos de 08.09.2021, P. 12200/17, de 18.01.2022, P. 9317/18, sendo esta também a opinião do Conselheiro Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª edição, pag. 62 e ss.

A controvérsia está em vias de ser solucionada por AUJ que se encontra já agendado neste Tribunal.

Sendo questão duvidosa e controversa, entendemos dever admitir o recurso.

Para que um recurso de revista seja admitido abrigo do art. 629º, nº2, al. d), do CPC, é necessário que confrontando o acórdão recorrido e o acórdão fundamento, se comprove uma relação de incompatibilidade entre ambos que seja assente na mesma ratio decidendi. É necessário, pois, que as respostas assumidas em cada um dos arestos sejam inconciliáveis, traduzindo resultados diferentes a partir da mesma realidade substancial.

Ora, confrontando os dois acórdãos é patente que tal situação de incompatibilidade se verifica.

Com efeito, estamos perante embargos de executado deduzidos a execuções baseadas no mesmo contrato de mútuo, tendo os acórdãos em confronto decidido de forma oposta sobre a necessidade de interpelação judicial dos executados.

Enquanto o acórdão recorrido entendeu que “o contrato de mútuo junto com o requerimento inicial não carecia de prévia interpelação do devedor para constituir título executivo, tendo aquela operado com a citação do executado”, tendo julgado os embargos improcedentes;

O acórdão fundamento julgou procedentes os embargos, por falta de liquidez e exigibilidade do título dado à execução, tendo considerado:

“O contrato desacompanhado da interpelação dos executados nos termos sobreditos – previsto quer no art. 781º do CC quer contratualmente – poderia ser suficiente para o efeito da exigibilidade do pagamento das prestações vencidas e respectivos juros à data da execução. Porém, neste caso haverá que considerar que no decorrer do incumprimento a exequente recebeu o valor da venda do bem dado em garantia, pelo que tal valor ou era imputado nas prestações vencidas e respectivos juros (iniciando-se por estes – cf. art. 785º do CC), ou teria a exequente de fazer prova da interpelação dos executados do vencimento antecipado, sendo devidos juros moratórios a partir dessa data e sobre o valor total em causa, pois pretender que se considere a citação sempre os juros só seriam devidos desde a realização desta, o que afasta desde logo a liquidez e exigibilidade exigidos e sede de execução e determina ainda a desconformidade da imputação do valor recebido.”

Vejamos de que lado está a razão.

O título executivo é constituído por um documento particular, um contrato de mútuo, que ao tempo em que foi celebrado integrava a espécie de títulos executivos prevista na alínea c) do art. 46º do CPC anterior à reforma de 2013, reforma que, como é sabido, suprimiu a genérica exequibilidade dos documentos particulares, que mantém a sua exequibilidade por força do acórdão do TC nº 408/2015 de 14.10.2015.

A execução segue a forma ordinária em que a Executada, depois de citada, veio opor-se por embargos, arguindo a inexistência de título executivo, posição esta acolhida na sentença, mas revertida no acórdão recorrido que entendeu o que “o contrato de mútuo junto com o requerimento inicial não carecia de prévia interpelação do devedor para constituir título executivo, tendo aquela operado com a citação do executado.”

Dissentindo do assim decidido, a Executada reitera que o título dado à execução não reúne os requisitos de exigibilidade e liquidez, isto por não aceitar a quantia exequenda de €309.407,75, por ser superior ao valor do mútuo, quando a própria exequente reconhece que as prestações do empréstimo foram pagas durante 5 anos, e a exequente ter recebido, em 08/07/2013, a quantia de €214.179,97 do produto da venda de um imóvel dos executados que imputou no valor em dívida.

Diz o art. 10º, nº5, do CPC, que “toda a execução tem por base um título pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva.”

O título executivo, enquanto documento certificativo da obrigação exequenda assume uma função delimitadora (por ele se determinam o fim e os limites, objectivos e subjectivos), probatória e constitutiva, estando sujeito ao princípio da tipicidade.

A causa de pedir não se confunde com o título, sendo antes a obrigação exequenda (pressuposto material) nele certificada ou documentada, pelo que a desconformidade objectiva e absoluta entre pedido e o título situa-se ao nível da inviabilidade por inexistência de título, o que significa a ausência de direito à prestação e consequentemente absolvição, não da instância, mas do pedido.

Como afirmou o Ac. STJ de 19.07.2009, CJ/STJ, ano XVI, 2º, pag. 177, citando o Professor Miguel Teixeira de Sousa, “no âmbito da acção executiva há que distinguir entre a exequibilidade da pretensão incorporada ou materializada no título (exequibilidade extrínseca) e a validade ou eficácia do acto ou negócio nele titulado. O título executivo é autónomo, no sentido de que a sua inexequibilidade é independente da inexequibilidade da pretensão. Aquela deriva da falta de preenchimento dos requisitos para que um documento possa desempenhar essa função específica; esta baseia-se em qualquer facto impeditivo, modificativo ou extintivo do dever de prestar.”

Decorre dos artigos 713º, 724º, nº1, al. h), 725º, nº1, al. c) e 728º, al. e) do CPC, que a título executivo deve demonstrar uma obrigação que seja certa, líquida e exigível.

Obrigação certa é aquela que se encontra qualitativamente determinada (ainda que esteja por liquidar ou individualizar).

Quanto ao requisito de liquidez, dir-se-á que é ilíquida, para efeitos de execução, a obrigação cujo quantitativo não se encontra ainda determinado, ou o seu objecto é uma universalidade.

A prestação é exigível quando a obrigação se encontra vencida ou o seu vencimento depende, de acordo com a estipulação expressa ou com a norma geral supletiva do art. 777º/1 do CCivil, de simples interpelação ao devedor. (Lebre de Freitas, a Acção executiva, 7ª edição, pag. 100).

Ou, dizendo com Rui Pinto, A acção executiva, 2019, pag. 233, “a obrigação é exigível quando deva ser cumprida de modo imediato e incondicional após interpelação do devedor. Está nessas condições a obrigação que, à data da propositura da execução, se encontrar vencida ou se vença mediante interpelação, ainda que judicial, não estando dependente de contraprestação, nem estando o credor em mora.”

No mesmo sentido, Marco Carvalho Gonçalves, Lições de Processo Executivo, 2ª edição, pag.165, a propósito do requisito exigibilidade da obrigação:

A acção executiva poderá ser intentada quando o vencimento da obrigação dependa de simples interpelação do devedor (obrigação pura) e o devedor não tenha sido interpelado extrajudicialmente, situação em que as diligências executivas deverão ser precedidas pela citação do devedor, pois que a citação equivale a interpelação judicial (art. 805º, nº1 do CC).”

Tendo presentes estes princípio, podemos desde já avançar que a decisão recorrida deve ser confirmada.

Tendo sido instaurada para pagamento da quantia de €309.409,47 é manifesto que se verifica o requisito de liquidez.

Igualmente se verifica o requisito de exigibilidade com a citação para a execução, nos termos do art. 805º, nº1, do CCivil.

Assim decidiu o acórdão do STJ de 12.07.2018, P.10180/15.5T8CBRT-A.C1.S1:

“Seguindo a execução para pagamento de quantia certa a forma de processo ordinário – na qual a citação prévia constitui o procedimento-regra – a citação levada a efeito vale como interpelação judicial aos executados nos termos e para os efeitos do art. 805º, do CC, no caso, para cumprimento das prestações e acréscimos do contrato de mútuo considerados como estando em dívida (arts. 726º e 727º do CCivil).

Essa interpelação confere à obrigação exequenda o indispensável requisito de exigibilidade (…)”.

Os fundamentos de oposição invocados não contendem com a exequibilidade do título, o fundamento de embargos previsto no art. 729º, nº1, alínea a) do CPC, preenchendo sim o fundamento da alínea g), a saber “qualquer facto extintivo ou modificativo da obrigação, (…) e que se prove por documento.”

Na verdade, quando o devedor/executado alega que não deve a dívida reclamada na execução, seja por efeitos do pagamento de parte das prestações, seja porque a mesma foi amortizada com a imputação na dívida da quantia que o credor/exequente recebeu na execução fiscal onde foi reclamar o seu crédito sobre os executados, está a defender-se com o fundamento da alínea g) do nº1 do art. 729º.

Como referem Virgínio da Costa Ribeiro e Sérgio Rebelo, A acção executiva, anotada e comentada”, Almedina, pag.262, “Para o efeito previsto na alínea g), apenas poderão ser invocados factos (impeditivos, modificativos ou extintivos) da obrigação exequenda, cujo ónus de prova competirá ao executado, de harmonia com a regra prevista no art. 342º do CCivil).

Sendo as coisas assim, afigura-se-nos que a Relação decidiu bem ao considerar que “a decisão recorrida foi proferida em fase do saneador, não tendo apreciado as demais questões suscitadas, por ter ficado a sua apreciação prejudicada pela procedência dos embargos, com fundamento na falta de interpelação da executada. (…) impõe-se a revogação do saneador sentença, competindo à 1ª instância apreciar – com produção de prova, que nalguns casos se afigura necessária – as demais questões suscitadas nos embargos.”

Com o que improcedem as conclusões da Recorrente.

Decisão.

Pelo exposto, nega-se a revista e confirma-se a decisão recorrida.

Custas pela Recorrente.

Lisboa, 08.02.2024

José Ferreira Lopes (relator)

Sousa Lameira

Lino Ribeiro