Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05A2740
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: AZEVEDO RAMOS
Descritores: CONTRATO DE SOCIEDADE
SOCIEDADE
SOCIEDADE IRREGULAR
REQUISITOS
CONTA EM PARTICIPAÇÃO
ASSOCIAÇÃO EM PARTICIPAÇÃO
Nº do Documento: SJ200511080027406
Data do Acordão: 11/08/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 787/05
Data: 03/31/2005
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário : I - São elementos essenciais do contrato de sociedade: a obrigação de contribuição de todos os contraentes para um fundo comum ; o exercício, em comum, de uma actividade económica que não seja de mera fruição ; o objectivo de realização de lucros e a sua repartição.

II - Elemento específico de uma sociedade, ainda que irregular, é a chamada "affectio societatis".

III - Deve ser qualificado como contrato de sociedade ( e não como associação em participação), o contrato pelo qual duas pessoas puseram em comum bens e indústria para o exercício de uma actividade lucrativa, em espírito associativo e no propósito de lucro que entre si repartiriam.
IV - Na associação em participação, a actividade é apenas do associante, em cujos ganhos e perdas o associado participa.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


Em 19-10-01, A e mulher B instauraram a presente acção ordinária contra os réus C e mulher D, pedindo:
1- Se reconheça que entre o autor marido e o réu marido foi celebrado um contrato de sociedade ;
2- Que tal contrato é nulo, por falta de forma ;
3- Que todas as fracções autónomas, com excepção da fracção " I ", do prédio urbano sito na Avenida da Voltinha, nºs 138, 144, 146 e 156 , Pedroso, Vila Nova de Gaia, descrito na Conservatória sob o nº 1788 / 270488, e o terreno de mato, pinhal e eucaliptal, sito na Corga, Lobão, Santa Maria da feira, descrito na Conservatória sob o nº 76.455, integram o património comum dessa sociedade ;
4- Que o produto da venda da fracção " I " integra esse património comum ;
5- Se cancelem os registos de inscrição daquelas fracções e do imóvel, efectuados a favor dos réus.
Alegam, para tanto, que o autor marido e o réu marido acordaram no exercício em conjunto da actividade de construção civil, cabendo ao segundo contribuir com as quantias que se mostrassem necessárias para o efeito e ao primeiro contribuir com o seu trabalho, negociando e adquirindo terrenos, contratando e administrando as obras e vendendo o produto acabado, repartindo, a final, os respectivos proventos, deduzidos os custos.
No âmbito de tal acordo, foram adquiridos alguns prédios, onde foi efectuada construção, tendo o réu marido recusado a acordada distribuição.

Os réus contestaram, alegando que o réu marido constitui o autor marido como seu mandatário para prática de actos relativos à aquisição de prédios e construção de edifícios.

Houve réplica.

Realizado o julgamento e apurados os factos, foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente, decidindo:
1 - Entre o autor e o réu foi celebrado um contrato de sociedade ;
2 - O referido contrato é nulo, por falta de forma;
3 - o produto da venda, deduzidos os custos suportados pelo réu marido, das fracções designadas pelas letras A, B, C, D, E, F, G, H, I, J, L, M e O do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, sito na Avenida da Voltinha, nºs 138, 144, 146 e 156, em Pedroso, Vila Nova de Gaia, descrito sob o nº 01788/270488, na 2ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, e ainda do terreno de mato com pinhal e eucaliptal, sito na Corga, Lobão, Santa Maria da feira, descrito sob o nº 76.455, integram o património dessa sociedade ;
Na parte restante, a acção foi julgada improcedente.

Apelaram os autores e réus.
A Relação do Porto, através do seu Acórdão de 31-3-05, decidiu:

- julgar parcialmente procedente a apelação dos autores e, consequentemente, alterou a sentença da 1ª instância, declarando que todas as fracções autónomas, com excepção da fracção " I", do prédio urbano sito na Avenida da Voltinha, nºs 138, 144, 146 e 156, Pedroso, Vila Nova de Gaia, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o nº 01788 / 270488, e ainda o terreno de mato, pinhal e eucaliptal sito na Corga, Lobão, em Santa Maria da Feira, descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira sob o nº 76.455, integram o património (com o sentido de que foram adquiridos para o desenvolvimento do escopo social ) da sociedade irregular constituída entre autor e réu.

- julgar também parcialmente procedente a apelação dos réus, revogando a sentença recorrida na parte em que condenou em objecto diverso do pedido, ou seja, em que tinha declarado que o produto da venda, deduzidos os custos suportados pelo réu marido, das fracções designadas pelas letras A, B, C, D, E, F, G, H, J, L, M e O do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, sito na Avenida da Voltinha, nºs 138, 144, 146 e 156, em Pedroso, Vila Nova de Gaia, descrito sob o nº 011788/270488, e do terreno de mato, pinhal e eucaliptal, sito na Corga Lobão, Santa Maria da Feira, e descrito sob o nº 76.455, integram o património da referida sociedade, mas considerar prejudicada a eficácia desta procedência, em face do resultado da apelação dos autores.

- em tudo o mais, manter o decidido.

Continuando inconformados, os réus C e mulher recorreram de revista, onde resumidamente concluem:
1 - Há omissão de pronúncia, por a Relação se ter pronunciado pela sua improcedência, na fundamentação do Acórdão, quanto a algumas questões suscitadas, mas não o ter feito na parte decisória do mesmo Acórdão.
2 - As respostas dadas aos quesitos 9, 10, 11 e 13 devem ter-se por não escritas, por a respectiva matéria só poder ser provada por escritura pública.
3 - Os factos provados não preenchem os requisitos da existência de uma sociedade irregular.
4 - Não foram alegados ou provados factos que possam ser subsumidos na figura jurídica do mandato.
5 - O Acórdão recorrido, ao considerar que os réus agiram em nome próprio, como mandatários de uma sociedade, não poderia deixar de considerar que os réus adquiriram o direito de propriedade sobre os bens imóveis que identifica.
6 - A decisão recorrida fundamentou-se em factos que não foram alegados pelas partes, nem resultaram provados.
7 - Existe contradição entre a fundamentação e a decisão.
8 - Da matéria de facto provada resulta que entre o autor marido e os réus existiu um contrato de mandato oneroso, pelo qual aquele praticou, em nome e em representação dos segundos, certos actos jurídicos, mediante uma retribuição calculada em função dos lucros.
9 - Se assim não se entender, então resulta que o autor marido se associou a uma actividade exercida pelos réus, ficando a participar nos lucros que desse exercício resultaria para os segundos, o que configura um contrato de associação em participação, regulado pelo dec-lei 231/81, de 28 de Julho.

Os autores contra-alegaram em defesa do julgado.

Corridos os vistos, cumpre decidir.

A Relação considerou provados os factos seguintes:

1 - O autor marido, irmão do réu marido, emigrado na África do Sul com sua mulher, tratava, sem qualquer contrapartida, de todos os assuntos que os réus tinham pendentes em Portugal, recebendo as rendas de dois inquilinos de um imóvel dos réus e depositando, na conta destes, pagando despesas de condomínio, água, luz e prémios de seguro dos imóveis dos mesmos.

2 - No início da década de 80, o A. marido decidiu dedicar-se à actividade de construção civil, mas não dispunha de capital (resposta ao quesito. 1º ).

3 - O autor marido e o réu marido acordaram no exercício conjunto dessa actividade, em Portugal, repartindo entre ambos e em parte s iguais, no final, os resultados decorrentes de tal actividade, obrigando-se o réu marido a entrar com as quantias que, em cada momento, se revelassem necessárias a essa actividade e o autor marido a oferecer o seu trabalho, negociando e adquirindo terrenos, contratando e administrando a execução de obras nos mesmo e vendendo o produto acabado, repartindo-se entre ambos os respectivos proventos, depois de deduzidos os custos, tendo o autor marido tomado a iniciativa de encontrar no mercado terrenos disponíveis para venda, negociar o seu preço e demais condições de venda ( resp. conjunta aos quesitos 2 e 3 ).

4 - O autor marido também tomou a iniciativa de contactar arquitectos e engenheiros, tendo em vista a elaboração de projectos de construção de edifícios a implantar nos terrenos adquiridos, deslocar-se às Câmaras e Repartições de Finanças, tendo em vista tratar de questões relativas à aprovação de projectos e construções ( resp. ao quesito 4º).

5 - E ainda contactar empreiteiros para cada uma das fases de construção (fundações, pedreiro, trolha, carpinteiro, picheleiro, vidraceiro), negociar preços, condições e prazos de construção, escolher o tipo de materiais a implantar em cada uma das obras, controlar a sua execução e andamento (resp. ao quesito 5º).

6 - Bem como tratar de diligências , tendo em vista a obtenção da licença de utilização e, no final, proceder à comercialização das casas ou fracções autónomas (resp. quesito 6º).

7 - O réu marido passou a entrar com as quantias necessárias ao exercício daquela actividade e, no final da cada empreendimento, depois de deduzidos os custos, repartiam entre ambos e em partes iguais, os proventos dessa actividade resultantes da venda das fracções ou, se assim o entendessem, repartiam entre si as fracções não vendidas (resp. ao quesito 7º).

8 - Nesta actividade, o autor marido, ao longo de cerca de quinze anos, sem qualquer contrapartida paga pelos réus, despendeu parte do período normal de trabalho em dias úteis e várias horas ao fim de semana ( resp. ao quesito 8º).
9 - No âmbito de tal acordo, o autor marido adquiriu em 1983 ou 1984, em Estivada , Pedroso, Vila Nova de gaia, dois lotes de terreno, onde implantou duas moradias, tendo os custos sido suportados pelo réu marido e o produto da venda sido dividido, em partes iguais, por ambos ( resp. ao quesito 9º).

10 - Em todas as escrituras de transmissão dos imóveis construídos no âmbito do acordo celebrado entre o autor marido e o réu marido figuraram apenas os réus porque o referido acordo não foi objecto de escritura pública (resp. ao quesito 10º).

11 - Por iniciativa do autor, que foi procurando terrenos para continuar aquela actividade comum acordada com o réu marido, veio este a adquirir um lote para construção nos Carvalhos, Vila Nova de gaia, onde veio a ser implantado um edifício para destinado a habitação colectiva e comércio, composto por 14 fracções autónomas, sito na Avenida da Voltinha, nºs 138, 144, 146 e 156, descrito na Conservatória sob o nº 01788/270488, do qual foi alienada a fracção " I" (resp. ao quesito 11º).

12 - Em 1997, o autor marido e o réu marido acordaram que, no âmbito da repartição dos proventos desse empreendimento, o réu marido ficaria com as três lojas destinadas a comércio e quatro apartamentos T2 e o autor marido com o apartamento T3, correspondente ao rés do chão esquerdo, que passou a utilizar ( resp. ao quesito 12º).
13 - Em Outubro de 1982, na sequência do mesmo acordo e com a mesma finalidade, o autor marido, por sua iniciativa, negociou e adquiriu uma tapada sita na Corga, Lobão, Santa Maria da Feira, descrita na Conservatória sob o nº 76.455, e encetou diligências tendo em vista obter a viabilidade do imóvel para construção ( resp. ao quesito 13º).

Da escritura de compra e venda outorgada em 25-10-84, cuja fotocópia constitui documento de fls 34 e segs, resulta mais precisamente provado que o prédio referido na resposta ao quesito 13º foi adquirido pelo autor Hilário, outorgando na qualidade de gestor de negócios do réu marido, como aliás se mostra salientado e corrigido no Acórdão impugnado (fls 335).

Vejamos agora as questões postas no recurso:

1.

Omissão de pronúncia:

A Relação decidiu todas as questões que lhe foram suscitadas na apelação, como se constata pela leitura da fundamentação do Acórdão.
Não era necessário que, na sua parte final decisória, voltasse a repetir o sentido da decisão de cada uma delas, mas apenas que se reportasse aos pedidos da petição inicial, em crise nos recursos.
Não ocorre, pois, qualquer nulidade, por pretensa omissão de pronúncia.

2.

Respostas aos quesitos 9º, 10º, 11º e 13º:

Pretendem os recorrentes que estas respostas sejam consideradas não escritas, por versarem sobre matéria que apenas pode ser provada por documento (escritura pública) - art. 646, nº4, do C.P.C.
Que dizer ?
Sem dúvida que a prova da compra e venda de imóveis só pode ser feita por escritura pública - art. 875 do C.C..
Mas aqui não é esse o cerne da questão.
O que verdadeiramente importa averiguar é se tais compras e vendas foram feitas ao abrigo e em consequência do invocado acordo celebrado entre os autores e os réus.
Ora, a prova desse acordo não exige forma especial, podendo ser feita por testemunhas.
De resto, as aquisições, não impugnadas, dos imóveis constantes das respostas a estes quesitos, também resultam provadas em face da escritura de fls 34 e dos demais documentos juntos aos autos, atinentes aos competentes registos na Conservatória do Registo Predial.

3.

Qualificação jurídica do contrato:

A Relação qualificou o ajuizado contrato como sendo de sociedade comercial, que é nulo por não ter sido celebrado por escritura pública.
E acrescentou que as sociedades comerciais irregulares se convertem em sociedades civis.
Com razão, diga-se, desde já.
O contrato de sociedade é aquele em que duas ou mais pessoas se obrigam a contribuir com bens ou serviços para o exercício comum de certa actividade económica, que não seja de mera fruição, a fim de repartirem os lucros resultantes dessa actividade - art. 980 do C.C.
Assim, são três os elementos essenciais do contrato de sociedade:
a) - a obrigação de contribuição de todos os contraentes para um fundo comum;
b) - o exercício, em comum, de uma actividade económica, que não seja de simples fruição;
c) - o objectivo de realização de lucros e da sua repartição.
Mas elemento essencial e específico de uma sociedade, ainda que irregular, é a chamada " affectio societatis ", ou seja, a intenção de cada um se associar com outro ou outros, para formação de uma pessoa colectiva distinta da de cada um deles.
Deve ser qualificado como contrato de sociedade - e não como associação em participação - o contrato pelo qual duas pessoas puseram em comum bens e indústria para o exercício de certa actividade económica ou lucrativa, em espírito associativo e no propósito de lucro que entre si repartiriam (Ac. S.T.J. de 6-10-83, Bol. 330-486).
Na associação em participação, a actividade é apenas do associante, em cujos ganhos e perdas o associado participa.
Não é o caso.
Aqui, face aos factos provados, não podem restar dúvidas de que estamos antes em presença de um contrato de sociedade, por estar demonstrada a "affectio societatis" e todos os demais requisitos desse contrato, configurando-se a constituição de uma sociedade irregular entre o autor e o réu, por o respectivo contrato não ter sido reduzido a escritura pública, nem a sociedade estar registada ou matriculada.
Assim sendo, como é, não merece qualquer censura a decisão de julgar procedente a acção quanto ao pedido de que todas as fracções autónomas, com excepção da fracção " I ", do prédio urbano sito na Avenida da Voltinha nºs 138, 144, 146 e 156 , em Pedroso, Vila Nova de Gaia, bem como o terreno de mato, pinhal e eucaliptal sito na Corga, em Lobão, Santa Maria da Feira, integram o património da referida sociedade irregular constituída entre o autor e o réu, com o sentido de que tais bens foram adquiridos para o desenvolvimento do seu escopo social, tal como foi julgado pela Relação.
A matéria de facto apurada e resultante das respostas aos quesitos 2º a 13º é suficientemente elucidativa.
Falece razão aos recorrentes quando afirmam que a decisão se baseou em factos não alegados, nem provados, ou que a fundamentação está em contradição com a decisão.
Os recorrentes também carecem de fundamento para defender que entre as partes só existiu um mero contrato de mandato oneroso ou que os factos apurados apenas são susceptíveis de configurar um contrato de associação em participação.

Termos em que, não se mostrando violados os preceitos legais invocados nas conclusões, negam a revista.
Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 8 de Novembro de 2005
Azevedo Ramos,
Silva Salazar,
Ponce Leão.