Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07B1981
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SALVADOR DA COSTA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
PRIVAÇÃO DO USO DE VEICULO
ALUGUER DE AUTOMÓVEL SEM CONDUTOR
DANOS PATRIMONIAIS
MATÉRIA DE FACTO
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Nº do Documento: SJ20070705019817
Data do Acordão: 07/05/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
1. O Supremo Tribunal de Justiça não pode sindicar a afirmação de facto resultante de prova de livre apreciação da Relação de que o autor, logo que recuperou das lesões sofridas, alugou por determinado preço diário uma viatura sem condutor, por ele utilizada na sua vida profissional durante certo tempo e de que experimentou incapacidade absoluta para o trabalho em certo período de tempo.
2. Assentes os referidos factos, importa calcular a respectiva indemnização, de harmonia com as normas inspiradas pela ideia de diferença patrimonial temporalmente delimitada.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I
AA intentou, no dia 12 de Junho de 1992, contra a Companhia de Seguros BB SA, CC e DD, esta representada por aquela, acção declarativa de condenação, com processo sumário, pedindo a sua condenação a pagar-lhe 22 380 080$, a primeira até ao limite do capital do seguro, e juros de mora desde a citação.
Fundamentou a sua pretensão em danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos no embate ocorrido no dia 27 de Junho de 1989, cerca das 15.15 horas, entre o seu veículo automóvel com a matrícula nº MA-00-00, por si conduzido, na Estrada Nacional nº 0, Casa Moeda, Coimbra, e o veículo automóvel com a matrícula nº JG-00-00, pertencente à ré FF e a EE, por este conduzido, a este imputável a título de culpa exclusiva, e no contrato de seguro por ele celebrado com a ré Companhia de Seguros BB SA.
A ré BB SA, em contestação, aceitou a culpa na produção do acidente de EE, impugnou os montantes pedidos e a extensão dos danos afirmada pelo autor, e requereu a intervenção da GG-Grupo Segurador SA que peticionou a sua condenação, em via de regresso, a pagar-lhe as prestações que, no âmbito da cobertura de seguro laboral, prestou ao autor no montante de 1 527 437$ e as que viesse a pagar-lhe até ao trânsito em julgado da decisão.
As rés FF e DD, por seu turno, impugnaram a versão do acidente indicado pelo autor, a extensão dos danos por ele mencionados e os montantes pedidos, e foi-lhes concedido, no dia 28 de Janeiro de 1993, o apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de custas e demais encargos com o processo.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença no dia 4 de Novembro de 1997, por via da qual as rés foram condenadas a pagar ao autor 14 204 213$20, e à GG Grupo Segurador SA 1 717 339$50, com o limite 12 000 000$ em relação à a ré Companhia de Seguros BB SA, sem prejuízo das quantias pagas por via do sinistro, e juros de mora à taxa legal desde a citação.
Apelaram o autor e as rés FF e DD, o primeiro subordinadamente, e a Relação, por acórdão proferido no dia 20 de Março de 2000, condenou as rés a pagar ao autor 15 782 458$ e à GG Grupo Segurador SA 1 908 155$, com o limite de 12 000 000$ quanto à Companhia de Seguros BB SA, com juros de mora à taxa legal desde a citação.
As apelantes FF e DD interpuseram recurso de revista, e este Tribunal, por acórdão proferido no dia 30 de Novembro de 2000, absolveu-as do pedido de indemnização no montante de 3 500 000$ e devolveu o processo à Relação a fim de ser suprida a contradição no conhecimento da questão do pagamento das despesas relativas ao aluguer de veículo automóvel sem condutor.
A Relação, por acórdão proferido no dia 22 de Maio de 2001, anulou a decisão do tribunal da 1ª instância atinente àquela questão e os actos subsequentes dela dependentes, incluindo essa parte da sentença, e ordenou a repetição do julgamento, que ocorreu.
Na sua sequência, foi proferida nova sentença no dia 21 de Abril de 2006, por via da qual as rés foram condenadas a pagar ao autor seis mil trezentos e quarenta e quatro euros e setenta e um cêntimos, acrescidos dos juros de mora à taxa legal desde a citação, e a Companhia de Seguros BB SA até ao limite de € 59 855,75, sem prejuízo das quantias já pagas.
Apelaram FF e DD, e a Relação, por acórdão proferido no dia 19 de Dezembro de 2006, negou-lhes provimento ao recurso.

Interpuseram as referidas apelantes recurso de revista, formulando, em síntese útil, as seguintes conclusões de alegação:
- as graves lesões físicas sofridas pelo recorrido e a imobilização gessada do pé não lhe permitiam, segundo a experiência humana e as leis da vida, retomar a sua actividade um mês após o sinistro;
- dificilmente se percebe, segundo a lei da vida e a experiência humana que, sócio e gerente de cinco sociedades comerciais e empresário dinâmico, não dispusesse de viatura automóvel sem recurso ao mercado de aluguer;
- o recorrido não alegou ter recorrido à condução de terceiro para retomar a sua actividade diversificada, afirmou que a viatura era para ele próprio a conduzir, e as lesões que sofreu, o internamento e o tratamento ambulatório impossibilitaram-lhe a condução de veículo automóvel;
- foi indemnizado pelos prejuízos patrimoniais decorrentes da impossibilidade de exercer a sua actividade desde o acidente até à alta clínica, significando a atribuição do valor residual que vem decidido parcial duplicação indemnizatória;
- o aluguer da viatura nesse período para fins profissionais significa que laborou nesse período e fica em causa a indemnização que lhe foi arbitrada nesse período;
- o acórdão fez incorrecta interpretação e aplicação dos artigos 516º, 655º, 660º, 661º, 664º. 684º, 690º, 690º-A e 712º do Código de Processo Civil, 342º, nº 2, 550º, 562º, 563º, 564º e 566º do Código Civil;
- a correcta interpretação e aplicação daqueles normativos implica a absolvição das recorrentes do pedido atinente à quantia em causa, incluindo os juros.

II
É a seguinte a factualidade declarada provada no acórdão recorrido:
1. EE, por um lado, e representantes da Companhia de Seguros BB SA, por outro, declararam, por escrito consubstanciado na apólice nº 0000000, em data anterior a 27 de Junho de 1989, a última assumir, mediante prémio a pagar pelo primeiro, a responsabilidade civil por danos causados a terceiros com o veículo automóvel com a matrícula nº JG-00-00, até ao montante de 20 000 000$.
2. Representantes de HH Ldª, por um lado, e de GG Grupo Segurador SA, declararam por escrito, consubstanciado na apólice nº 1701.85, a última assumir a responsabilidade por acidentes de trabalho do autor como sócio-gerente da primeira, com a remuneração mensal de 69 333$.
3. No dia 27 de Junho de 1989, cerca das 14.45 horas, na Estrada Nacional nº 1, Casa Meada, concelho de Coimbra, ocorreu a colisão entre os veículos JG-00-00 e MA-00-00, este do autor, nascido no dia 12 de Fevereiro de 1947, por ele conduzido, e aquele conduzido pelo cônjuge da ré FF, EE, pertencentes a ambos, casados em comunhão geral de bens.
4. Os referidos veículos automóveis circulavam em sentido oposto, o de matrícula nº JG-00-00, numa subida, no sentido Pombal - Coimbra e o de matrícula nº MA-00-00, numa descida, no sentido Coimbra – Pombal, o condutor do primeiro, que rodava a não menos de 100 quilómetros por hora, invadiu a meia faixa de rodagem contrária, onde circulava, no momento, o último, pela sua mão de trânsito ea velocidade não superior a 80 quilómetros por hora.
5. O veículo automóvel com a matrícula nº MA-00-00 circulava a cerca de dois ou três metros da berma do lado direito, no sentido norte/sul, deixou no local rastos de travagem de 6 metros da roda esquerda e de 4 metros da direita, que se posicionaram a 2,80 metros da berma a 3,10 metros no fim.
6. Em consequência, o veículo automóvel com a matrícula nº JG-00-00 embateu violenta e frontalmente no referido veículo automóvel Mercedes Benz 300 D – Sedan de 1986, com a matrícula nº MA-00-00, cujo condutor, surpreendido com aquela manobra de ultrapassagem, nada pode fazer para evitar o embate.
7. O autor sofreu graves lesões corporais, apresentando de imediato politraumatismo, sobretudo no pé direito, dor e limitação funcional no pescoço, tórax, bacia, perna e pé direito, tonturas e cefaleias, fracturas de vários ossos do pé direito, traumatismo do crânio, tórax e bacia, equimoses cervico-tóracica E e crista ilíaca E, pelo que foi de imediato internado no Centro Hospital de Coimbra, no próprio dia do acidente, sendo transferido no dia imediato para a Casa de Saúde de Coimbra.
8. Durante o período de internamento e doença foi o autor sujeito a diversos tratamentos e observação, designadamente imobilização gessada do pé direito, radiografias, T AC ao crânio e ecografia ao pescoço, tendo estado internado até 3 de Julho de 1989 e passando a tratamento ambu1atório até 27 de Dezembro de 1989.
9. Foi dado como clinicamente curado em 7 de Janeiro de 1991, teve incapacidade absoluta para o trabalho durante os primeiros sessenta dias que se seguiram ao acidente e de 52% durante os restantes 502 dias.
10. Não obstante a cura clínica, o autor ficou a sofrer de sequelas permanentes, designadamente deformação no pé direito, que lhe prejudica a marcha, e torcicolo, e por cicatriz traumática do músculo externo-cleido-mastoideu, que lhe determina uma invalidez permanente de 25%.
11. Em consequência do embate referido sob 6, o veículo automóvel com a matrícula nº MA-00-00, foi matriculado em 12 de Novembro de 1986, com dois registos anteriores ao do autor, ficou praticamente destruído, com diversos extras, pintura metalizada, estofos especiais, leitor de cassetes, caixa de 5 velocidades, buzinas de estrada, fechadura central, alarme contra roubo, ar condicionado automático, comando eléctrico dos vidros, jantes de liga leve e kit aneb.
12. O seu valor como novo era de cerca de 14 000 000$, o seu valor venal à data do acidente era de 10 000 000$, não valendo os salvados mais 1 700 000$, tendo a ré Companhia de Seguros BB SA valorizado os mesmos em 2 000 000$, encontrando-se em poder do autor, já recuperados, o qual despendeu com o seu reboque, desde o local do acidente, a quantia de 6 786$, e, em recolhas na Auto Industrial, 3 672$.
13. O autor era empresário dinâmico, sendo sócio-gerente de diversas sociedades comerciais por quotas: Ribalva, Madeiras Ldª com sede em Lisboa, com o capital social de 9 000 000$, onde detinha uma quota no valor nominal de 8100 000$; Ribaliz Madeiras Ldª, com sede em Vale Gracioso, Azóia, Leiria, com o capital social de 30 000 000$, onde detinha uma quota no valor nominal de 12 336 000$; Tavares e Albuquerque Ldª, com sede em São João de Areias, Santa Comba Dão, com o capital de 600 000$, onde detinha uma quota nominal de 386 000$ ;Ribadão Indústrias de Madeira Ldª, com sede em Guarita, Santa Comba Dão, com o capital social de 30 000 000$ e onde detinha uma quota no valor nominal de 18 000 000$; e HH Sociedade de Representações Ldª, com sede em São João de Areias, Santa Comba Dão, com o capital social de 30 000 000$, onde detinha uma quota no valor nominal de 12 000 000$.
14. Na qualidade de sócio-gerente das referidas sociedades auferia as seguintes remunerações mensais: Ribalva Madeiras Ldª, 86 667$; Ribaliz Ldª, 95 384$; Tavares e Albuquerque Ldª, 43 333$00; Ribadão Ldª, 43 333$; e HH Ldª, 69 333$, e exercia a actividade de mediador de seguros, em que auferia, em média, cerca de 400 000$ anuais de comissões, mas nunca deixou de auferir tais rendimentos.
15. O autor sofreu danos morais, provenientes quer do período de enclausuramento, durante o período de internamento hospitalar, quer durante o período de tratamento ambulatório, dado que se podia locomover de canadianas, sofreu dores com os tratamentos e exames ministrados, teve preocupações por se sentir impedido de prestar a sua actividade como gerente nas diversas sociedades referidas sob 13, sentiu-se e sente-se desgostoso e amargurado com a limitação da sua capacidade profissional de que ficou afectado, desde logo até porque ficou limitado na sua capacidade de deslocação em automóvel, pois não pode fazer grandes deslocações sem sentir dores no pé direito.
16. Antes do acidente, o autor dedicava-se ao desporto automóvel, tendo participado em diversas provas, vulgo rallies, com boas classificações e prémios, do que ficou definitivamente impedido, em consequência da lesão no pé, o que lhe causa grande desgosto.
17. O autor participou o acidente como de trabalho, ao abrigo do contrato de seguro estabelecido entre HH Ldª e GG Grupo Segurador SA, e esta despendeu, até 28 de Fevereiro de 1993, 1 527 437$, tendo-lhe sido atribuída aí uma incapacidade permanente parcial de 28,39%, o que dá uma pensão anual vitalícia actual de 14 643$.
18. O autor, logo que recuperou das lesões sofridas, alugou uma viatura sem condutor, que utilizou entre 25 de Julho de 1989 e 31 de Dezembro de 1989, na sua vida profissional, ao preço de 8 000$00 diários.
19. EE faleceu em consequência da referida colisão, tendo-lhe sucedido, como seus únicos e universais herdeiros, as rés FF e DD.
20. A Ré Companhia de Seguros BB SA já entregou ao autor por conta da indemnização, a quantia de 7 000 000$, e ao Centro Hospitalar de Coimbra a quantia de 25 100$, relativa ao período de internamento por ele sofrido.

III
A questão essencial decidenda é a de saber se o recorrido Rogério Almeida tem ou não direito a exigir das recorrentes indemnização relativa ao aluguer de veículo automóvel sem condutor entre 25 de Julho e 31 de Dezembro de 1989.
Tendo em conta o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões de alegação das recorrentes, a resposta à referida questão pressupõe a análise da seguinte problemática:
- lei processual aplicável à acção e aos recursos;
- delimitação negativa do objecto do recurso;
- natureza da questão objecto do recurso;
- tem ou não este Tribunal competência funcional para dela conhecer?
- ocorre ou não contradição entre a matéria de facto declarada provada pelas instâncias?
- síntese da solução para o caso decorrente dos factos provados e da lei.

Vejamos, de per se, cada uma das referidas sub-questões.

1. Comecemos, no quadro da lei processual no tempo, por determinar qual é a aplicável na acção e nos recursos.
Como a acção foi intentada no dia 12 de Junho de 1992, são-lhe aplicáveis as pertinentes normas processuais anteriores às do Código de Processo Civil Revisto (artigo 16º do Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro).
Como a primeira sentença foi proferida no tribunal da 1ª instância no dia 4 de Novembro de 1997, aos recursos são aplicáveis as pertinentes normas do Código de Processo Civil Revisto (artigo 25º, nº 1, do Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro).

2. Delimitemos agora negativamente o objecto do recurso interposto por FF e DD.
O objecto do recurso em análise é delimitado pelo conteúdo das alegações das recorrentes (artigos 664º, nº 3, e 690º, nº 1, do Código de Processo Civil).
As recorrentes não põem em causa nas alegações do recurso a exclusiva imputabilidade do acidente a EE a título de culpa nem o nexo de causalidade entre a condução automóvel ilícita e culposa dele e as lesões sofridas pelo recorrido.
Também não está em causa no recurso o valor da indemnização pelos danos não patrimoniais e pelos danos patrimoniais sofridos pelo recorrido, salvo no que concerne à utilização de veículo automóvel de substituição.
Ademais, não está em causa no recurso a cobertura pelo contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel celebrado entre EE a Companhia de Seguros BB SA, nos termos dos artigos 427º do Código Comercial e 5º, alínea a) e 8º, nº 1, do Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro.
O que essencialmente está em causa no recurso, ao que limitaremos a nossa análise, é a indemnização concernente à utilização do veículo automóvel de substituição que as instâncias consideraram devida ao recorrido pelas recorrentes.

3. Atentemos agora na natureza da questão objecto do recurso.
Está em causa a afirmação constante de II 18, no sentido de que o autor, logo que recuperou das lesões sofridas, alugou, por 8 000$ diários, uma viatura sem condutor, que utilizou na sua vida profissional entre 25 de Julho de 1989 e 31 de Dezembro de 1989.
A mencionada afirmação significa que o autor despendeu, durante cento e cinquenta e nove dias, com a utilização de um veículo automóvel de substituição alugado, a quantia correspondente a € 6 344,71.
Os factos materiais são, grosso modo, os eventos materiais e concretos, nomeadamente os comportamentos de acção ou de omissão das pessoas em geral; e os factos jurídicos são os referidos factos materiais perspectivados à luz de normas e critérios de direito.
Os factos jurídicos são, assim, os acontecimentos da vida real conformados com as previsões normativas, como que vertentes do acontecer constante artificialmente recortadas de harmonia com as pertinentes previsões normativas.
As recorrentes impugnam, afinal, os factos que as instâncias consideraram provados, no âmbito do julgamento da matéria de facto, negando a possibilidade da sua existência.
A questão que é objecto do recurso é, por isso, essencialmente, de facto, ou seja, não é de direito.

4.Atentemos agora na subquestão de saber se este Tribunal tem ou não competência funcional para conhecer da referida questão.
Por virtude de este Tribunal, por acórdão proferido no dia 30 de Novembro de 2000, com fundamento no disposto no artigo 729º, nº 3, do Código de Processo Civil, ter remetido o processo à Relação a fim de suprir a contradição relativa ao pagamento das despesas de aluguer de veículo sem condutor, houve novo julgamento no tribunal da primeira instância com o acréscimo da formulação de novos quesitos, considerados pertinentes, e a concernente resposta.
Foi reformulado o quesito 27º, acrescentaram-se os quesitos 27º-A e 27º-B e repetiu-se o julgamento da matéria de facto constante dos quesitos 30º a 34º e 40º, que foram declarados provados, salvo o último, cuja resposta foi restritiva, no sentido de que o autor experimentou incapacidade absoluta para o trabalho durante os primeiros sessenta dias que se seguiram ao acidente e cinquenta e dois por cento durante os restantes quinhentos e dois dias.
O tribunal da primeira instância, na referida decisão da matéria de facto, considerou a cópia do contrato de aluguer do veículo, a identificação do autor como seu condutor, o depoimento de duas testemunhas e o concernente laudo pericial médico-forense.
A Relação, conhecendo da mencionada questão de facto, com base nos elementos constantes do processo, concluiu no sentido de que tais elementos não implicavam a alteração do decidido no tribunal da primeira instância.
Considerou, por um lado, ignorarem-se o concreto período em que o autor esteve com o pé engessado e imobilizado e a abrangência da repercussão da redução funcional no período em que passou a dispor do veículo alugado.
E, por outro, que a circunstância de ao autor, não obstante as lesões do pé direito e a sua imobilização com gesso, ter sido atribuída incapacidade absoluta para trabalho durante sessenta dias após o acidente era insusceptível de afastar o facto de ter alugado a viatura vinte e nove dias depois dele, logo que recuperou das lesões e que a tenha utilizado durante cento e cinquenta e nove dias.
E, finalmente, ser supérflua a abordagem quanto à condução do veículo automóvel por terceiro e à impossibilidade de utilização do veículo, e poder o autor, não obstante a limitação do seu estado de saúde, sendo empresário dinâmico, ter retomado a sua actividade, e, não raro, o período de imobilização atribuído por doença não corresponder na prática à sua observação pelo doente.
Além disso, considerou a Relação que não cabia a qualquer das empresas de que o autor era sócio proporcionar-lhe veiculo de substituição, pelo que não relevava a argumentação nesse sentido das recorrentes.
Estamos, portanto, perante um segmento de decisão da matéria de facto baseada em prova de livre apreciação e na ilação extraída de presunção judicial nos termos dos artigos 339º, segunda parte, e 351º, ambos do Código Civil.
Expressa a lei que, salvo casos excepcionais legalmente previstos, o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece de matéria de direito (artigo 26º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro -LOFTJ).
Assim, a regra é a de que cabe às instâncias apurar a factualidade relevante para a decisão da causa segundo as várias soluções plausíveis das questões de direito.
Nessa conformidade, como tribunal de revista, a regra é a de que o Supremo Tribunal de Justiça aplica definitivamente aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido o regime jurídico que julgue adequado (artigo 729º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
Excepcionalmente, pode sindicar o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa cometido pela Relação se houver ofensa de disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou fixe a força probatória de determinado meio de prova (artigos 722º, n.º 2 e 729º, n.º 2, do Código Civil).
Assim, só pode conhecer do juízo de prova sobre a matéria de facto formado pela Relação quando esta deu como provado um facto sem produção da prova por força da lei indispensável para demonstrar a sua existência, ou quando ocorrer desrespeito das normas reguladoras da força probatória dos meios de prova admitidos no nosso ordenamento jurídico de origem interna ou externa.
O erro na apreciação das provas e a consequente fixação dos factos materiais da causa, isto é, a decisão da matéria de facto baseada nos meios de prova livremente apreciáveis pelo julgador, excede o âmbito do recurso de revista.
Em consequência, não pode este Tribunal sindicar o juízo de prova formulado pela Relação ao abrigo do disposto na segunda parte da alínea a) do nº 1 do artigo 712º do Código de Processo Civil.

5. Vejamos agora se ocorre ou não contradição entre a matéria de facto declarada provada pelas instâncias.
Tendo em conta os novos factos declarados provados pelas instâncias, tal como a Relação justificou, deixou de existir a contradição considerada no primeiro acórdão deste Tribunal.
Por isso, deixou de existir fundamento para anulação do acórdão recorrido com vista ao suprimento da contradição a que se reporta o artigo 729º, nº 3, do Código de Processo Civil.
Assente o referido quadro de facto sem qualquer contradição, não há fundamento para a alteração da decisão de direito concernente ao direito de indemnização do recorrido pelo dano emergente da colisão de veículos que ocorreu, imputável ao antecessor das recorrentes.

6. Atentemos finalmente na síntese da solução para o caso espécie decorrente dos factos provados e da lei.
À acção é aplicável o regime processual anterior ao do Código de Processo Civil Revisto que entrou em vigor no dia 1 de Janeiro de 1997, e aos recursos este novo regime.
A questão objecto do recurso cinge-se à questão do direito de indemnização invocado pelo recorrido decorrente do dano emergente concernente ao uso de um veículo de aluguer de substituição.
A referida questão assume essencialmente natureza fáctica, decidida pelas instâncias com base em elementos de prova de livre apreciação, pelo que este Tribunal não tem competência funcional para a sindicar.
Não há contradição entre a matéria de facto declarada provada pelas instâncias, pelo que não há fundamento para a segunda aplicação do disposto no artigo 729º, nº 3, do Código de Processo Civil.
Os factos provados justificam o direito do recorrido à indemnização pelo dano emergente decorrente do aluguer de veículo de substituição, conforme foi considerado pela Relação.
Improcede, por isso, o recurso.
Vencidas, seriam as recorrentes responsáveis pelo pagamento das custas respectivas (artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
Todavia, como beneficiam do apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e dos demais encargos com o processo, inexiste fundamento para que sejam condenadas no pagamento das respectivas custas (artigos 15º, nº 1, 37º, nº 1 e 54º, nºs 1 a 3, do Decreto-Lei nºs 387-B/87, de 29 de Dezembro, 57º, nº 1, da Lei nº 30-E/2000, de 20 de Dezembro, e 51º, nº 2, da Lei nº 34/2004, de 29 de Julho).

IV
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso.

Lisboa, 5 de Julho de 2007.

Salvador da Costa ( relator)
Ferreira de Sousa
Armindo Luis