Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
283825/11.1YIPRT.C3.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: RIJO FERREIRA
Descritores: COMPRA E VENDA
ABUSO DO DIREITO
Data do Acordão: 01/12/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
O decurso do tempo, só por si e desacompanhado de qualquer outra circunstância significativa, é insuficiente para gerar confiança.
Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


NO RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO NOS AUTOS DE ACÇÃO DECLARATIVA


ENTRE

QUADRIFONIA Ldª

(aqui patrocinada por AA, adv.)

Autora / Apelante / Recorrida

CONTRA

BB

(aqui patrocinada por CC, adv.)

Ré / Apelada / Recorrente



EM QUE INTERVÊM

DD

E

EE

(ausente, aqui patrocinado pelo Ministério Público)

Intervenientes Principais



I – Relatório


 A Autora intentou a presente acção pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de 33.862,53 €, acrescida de juros moratórios desde a data do vencimento da factura, que ascendiam ao momento a 28.210,16 €, e demais acréscimos.

Para fundamentar a sua pretensão alegou que no âmbito da sua actividade de comércio de material e equipamentos de som, luz e imagem, forneceu à Ré (e a outros dois ‘sócios’ que com ela constituíram uma sociedade irregular com vista a explorar um estabelecimento de bar/discoteca) diverso material, nos termos constantes das facturas …71 e …70 de 03MAI2003, pelo preço de 47.751,13 €, dos quais apenas lhe foram pagos 13.989,12 €.

A Ré contestou alegando que o material em causa não lhe foi fornecido a si, mas a terceiro, nada tendo a ver com tal fornecimento e que segundo apurou não só este havia procedido ao pagamento de 34.073,00 € como o material fornecido havia sido entregue à Autora, ficando o negócio saldado. Mais invocou a prescrição dos juros. E deduziu reconvenção pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe 15.000 € e demais despesas que se vierem a apurar a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais.

Foi requerida e admitida a intervenção principal provocada dos dois ‘sócios’ da Ré.

O pedido reconvencional não foi admitido.

A final (e após várias vicissitudes) foi proferida sentença que, considerando que tendo a Autora aceitado a devolução dos bens e mantendo-se durante oito anos sem pedir o pagamento parcial em falta criou a expectativa da rescisão do contrato sem que nada mais fosse devido pelo que agia em abuso de direito, absolveu os Réus do pedido.

Inconformada apelou a Autora, impugnando a decisão de facto quanto à alínea e) dos factos provados e considerando que não só não actuou em abuso de direito como a recuperação dos equipamentos não teve qualquer efeito extintivo da dívida.

A Relação, depois de alterar a decisão de facto relativamente à supra referida alínea, e considerando não ocorrer abuso de direito, mas apenas mora do credor ao não proceder à liquidação do valor dos equipamentos recuperados, julgou parcialmente procedente a apelação e condenou solidariamente a Ré e os Intervenientes Principais a pagar à Autora a quantia resultante da dedução ao valor de 33.862,53 € do valor do material recuperado, a liquidar, e juros de mora a partir da obtenção daquele resultado.

Irresignada vem a Ré interpor recurso de revista, nos termos do art.º 671º do CPC, concluindo, em síntese, pela ocorrência de abuso de direito.

Houve contra-alegação onde se propugnou pela inadmissibilidade do recurso por não especificar os fundamentos e não caber na revista apreciação da matéria de facto; subsidiariamente, pela manutenção do decidido.

II – Da admissibilidade e objecto do recurso


A situação tributária mostra-se regularizada.

O requerimento de interposição do recurso mostra-se tempestivo (artigos 638º e 139º do CPC) e foi apresentado por quem tem legitimidade para o efeito (art.º 631º do CPC) e se encontra devidamente patrocinado (art.º 40º do CPC).

Tal requerimento está devidamente instruído com alegação e conclusões (art.º 639º do CPC).

O acórdão impugnado é, pela sua natureza, pelo seu conteúdo, pelo valor da causa e da respectiva sucumbência, recorrível (artigos 629º e 671º do CPC).

   Mostra-se, em função do disposto nos artigos 675º e 676º do CPC, correctamente fixado o seu modo de subida (nos próprios autos) e o seu efeito (meramente devolutivo).

     Destarte, o recurso merece conhecimento.

Vejamos se merece provimento.

           


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Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.

De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.

Por outro lado, ainda, o recurso não é uma reapreciação ‘ex novo’ do litígio (uma “segunda opinião” sobre o litígio), mas uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a ilegal fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito). Daí que não baste ao recorrente afirmar o seu descontentamento com a decisão recorrida e pedir a reapreciação do litígio (limitando-se a repetir o que já alegara nas instâncias), mas se lhe imponha o ónus de alegar, de indicar as razões por que entende que a decisão recorrida deve ser revertida ou modificada, de especificar as falhas ou incorrecções de que em seu entender ela padece.

 Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.

 Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, a questão a resolver por este tribunal é a de saber se a Autora age ou não em abuso de direito.


III – Os factos


Das instâncias vêm fixada a seguinte factualidade:

Provado:

a) A Autora, no âmbito da sua actividade de venda de equipamentos de som e instrumentos musicais, a que se dedica, entregou a BB, DD e EE equipamento no valor de 36 824, 55 euros, assinalados na fatura ..., a 7.05.2003 a pagar após 30 dias.

b) Os Réus constituíram sociedade em 1999 e a registaram nas finanças sob o n.º ...25.

c) Em 11.03.1999, outorgaram um contrato de locação de estabelecimento comercial pelo prazo de 4 anos do imóvel inscrito na matriz n.º ...53, ..., ....

d) Em junho de 2003, o R. EE outorgou novo contrato de locação do mesmo estabelecimento.

e) Em momento não certificado, mas nunca depois do final de 2004, a Autora foi às instalações em causa para retirar alguns dos equipamentos antes vendidos, nomeadamente colunas de som, equipamento do teto, robótica, amplificadores, mesa de mistura e 4 moving heads, cujo valor não foi certificado, para abate (redução) da dívida dos Réus. [alterado pela Relação; anteriormente: ‘A Autora, após a entrega dos equipamentos, foi retirar os equipamentos do estabelecimento’.]


Não provado:

a) Em janeiro de 2003 os Réus dissolveram a sociedade.

b) Os Réus pagaram 10 000 euros em 13.08.2003, 5 000 euros em 30.06.2003 e 20 000 euros a 12.09.2003.


IV – O direito


 Em abono do seu entendimento de que ocorre abuso de direito por parte da Autora a Ré vem invocar todo um conjunto circunstancial (inexistência de interpelação, acordo de devolução) cujo conhecimento está vedado ao Supremo Tribunal de Justiça, por constituir matéria de facto (art.º 674º, nº 3, do CPC).


 Competia à Ré, se entendia que aquele conjunto de circunstâncias de facto tinha sido mal apreciado pelo tribunal, ter requerido a ampliação do âmbito do recurso de apelação, para impugnação da decisão de facto quanto àquelas circunstâncias (art.º 636º, nº 2, do CPC). Não tendo feito ficou definitivamente assente o elenco factual relevante.

 Atendendo ao elenco factual fixado pelas instâncias é manifesto que dele se não pode retirar a ocorrência de uma situação de abuso de direito. Com efeito, e como a recorrente reconhece, é pressuposto essencial do abuso de direito a verificação de uma situação de confiança, sendo que, como judiciosamente de afirma no acórdão recorrido, «a inércia decorrente da passagem do tempo, só por si, é insuficiente para criar a confiança nos Réus de que aquela não cobrará a dívida», sendo as necessidades de segurança jurídica aí asseguradas pela figura da prescrição.

  É certo que se apurou que a Autora ‘recuperou’ alguns dos equipamentos vendidos, mas para fins de redução da dívida (pro solvendo e não pro soluto), o que inviabiliza a geração de qualquer confiança na não cobrança da dívida.

  Para que se concluísse pela ocorrência de abuso de direito necessário era que o parco elenco factual apurado tivesse sido no momento adequado enriquecido com um quadro circunstancial que incutisse essa confiança (como, aliás, a Recorrente reconhece ao vir agora invocar esse quadro circunstancial).


Donde se conclui, sem necessidade de mais considerações, pela improcedência do recurso.


V – Decisão

Termos em que se nega a revista.

Custas pela Ré.

                                                          

Lisboa, 12JAN2022


Rijo Ferreira (relator)

Cura Mariano

Fernando Baptista