Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1156/2002.L1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: JULGAMENTO DA MATÉRIA DE FACTO
RECURSO PARA A RELAÇÃO
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
PRINCÍPIO DA AQUISIÇÃO PROCESSUAL
Data do Acordão: 01/24/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário : I) Os Juízes da Relação podem sindicar a matéria de facto objecto do recurso que a vise impugnar com base na transcrição dos depoimentos, muito embora não seja esse o regime-regra.

II) Sem embargo de saber se a Relação, na reapreciação da matéria de facto, deve prosseguir em busca de uma nova convicção probatória, ou apenas controlar o julgamento da 1ª instância, visando corrigir erros de valoração, o certo é que, uma vez que apenas é chamada a reapreciar pontos concretos da matéria de facto, por regra, com base em certos depoimentos que são indicados pelo recorrente e pelo recorrido, não almejará uma convicção probatória plena, porque não fundada na totalidade da prova produzida no Tribunal recorrido.

III) O vigente sistema de julgamento da matéria de facto pelas Relações não se compagina com a regra fulcral do art. 515º do Código de Processo Civil – “princípio da aquisição processual das provas” – segundo o qual o Tribunal para formar a sua convicção acerca da prova – “ deve tomar em consideração todas as provas produzidas, tenham ou não emanado da parte que devia produzi-las, sem prejuízo das disposições que declarem irrelevante a alegação de um facto, quando não seja feita por certo interessado.”

IV) A convicção probatória não será cabalmente conseguida se a Relação apenas apreciar parte da prova – os concretos pontos considerados mal julgados, já que a convicção é um processo intuitivo que assenta na totalidade da prova, implicando a valoração de todo o acervo probatório que o Juiz da comarca ou o Colectivo teve ao seu dispor.

V) No caso em apreço, a Relação, não tendo procedido à audição dos suportes áudio, dispôs dos depoimentos transcritos pelos recorrentes que, como consta do corpo das alegações, são detalhados e ilustram de forma eloquente o teor dos questionados depoimentos.

VII) Não tendo os recorridos sequer indicado, ou transcrito, os depoimentos que poderiam infirmar aqueloutros indicados pelos recorrentes, mais favorável foi para os recorrentes a tarefa de evidenciarem, perante a Relação, a prova reduzida que indicaram com pormenor, tendo transcrito extensamente alguns dos depoimentos, por certo que não deixaram de citar o que de mais relevante consideraram para que a Relação alterasse as respostas aos quesitos.

VIII) A Relação, ao lançar mão da fundamentação dada pelo Juiz na 1ª Instância, e analisando os depoimentos questionados, mais facilmente aquilatou da existência ou não de erro de julgamento, pese embora a ausência de oralidade.

IX) Seria puramente formal anular o julgamento quando a Relação pôde analisar os depoimentos das testemunhas com base na transcrição dos respectivos depoimentos, feita pelo recorrente e sem contraditório dos recorridos (nesse contexto da transcrição), mantendo inalteradas as respostas, pelo que no caso sub judice, o julgamento na Relação não deve ser anulado.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


            AA, intentou, em 13.9.2002, pelo Tribunal Judicial da Comarca de Oeiras – 5º Juízo Cível – acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra:

 BB (cuja posição processual veio a ser ocupada por CC, em virtude de decisão proferida em processado incidental de habilitação de herdeiros cujos termos correram por apenso), e;

DD e mulher EE.

 Pedindo que fossem anulados ou declarados nulos todos os contratos de compra e venda de imóveis referenciados na petição inicial e cancelados os respectivos registos.

Alegou, para o efeito, o seguinte:

É filha do 1.º Réu; este foi casado com FF, já falecida à data da apresentação do primeiro articulado;

- A FF passou àquele Réu, no dia 1 de Outubro de 1992, uma procuração que lhe concedia poderes para vender e receber o preço da venda dos imóveis que lhe pertenciam; 

- tal Réu celebrou com os 2.º e 3.ª Demandados, contratos de compra e venda de imóveis, sendo que, à data da outorga das escrituras, a referida procuração já se encontrava caducada por força do prévio falecimento da sua subscritora;

- os 2.º e 3.ª Réus registaram em seu nome a aquisição dos ditos imóveis;

- tais Demandados são sogros do Réu CC, que pressionou BB a outorgar tais escrituras;

-  deste modo, o 1.º R., vendendo aqueles bens que foram da sua falecida mulher, não os herdava de facto e também não os deixava por morte à Autora.

Os 2.º e 3.ª Réus vieram contestar a acção, tendo-se defendido por excepção e por impugnação.

Em sede de excepção, arguiram a incompetência territorial do Tribunal e a ilegitimidade da Autora.

Referiram que:

- O 2.º réu havia acordado verbalmente com o Réu BB, no início do mês de Julho de 2001, a compra das identificadas fracções, tendo a outorga das escrituras ficado dependente do cancelamento de uma hipoteca que só veio ocorrer em Setembro de 2001, pelo que só em 17 e 18 desse mês foram outorgadas as escrituras.

Concluíram, pedindo que fossem julgadas procedentes as excepções que arguiram e a sua absolvição da instância ou que fosse julgado improcedente o pedido contra si deduzido.

A Autora respondeu a este articulado, sustentando a improcedência da matéria de excepção.

GG, em nome e representação da Herança Indivisa por óbito de FF, deduziu Incidente de Intervenção Principal Espontânea, invocando direito paralelo ao da Autora, formulando pedidos idênticos aos deduzidos por esta e adicionando o de condenação dos Réus no pagamento de uma indemnização a título de litigância de má fé, no valor de € 25.000,00.

Os Demandados deduziram oposição, alegando a inadmissibilidade do incidente.

Concluíram, pedindo a sua absolvição da pretensão de condenação por litigância de má-fé e solicitaram que fossem julgados improcedentes os pedidos do Requerente.

A Autora declarou não se opor à intervenção.

O Interveniente respondeu à oposição dos Réus, pugnando pela existência da legitimidade posta em crise.

Foi admitida a intervenção principal do aludido GG e de HH, II e JJ, por si e em representação da Herança Indivisa deixada por FF, tendo sido ordenada a sua citação.

Procedeu-se a julgamento com inteira observância das formalidades legais.

Na sessão da audiência de discussão e julgamento realizada em 13 de Março de 2009, o interveniente GG pediu a condenação de CC, a sua mulher, bem como do Ilustre Mandatário dos 2.º e 3.ºs Réus, como litigantes de má-fé, em multa e indemnização aos autores/intervenientes com fundamento em conduta dolosa e uso indevido do processo, o que mereceu oposição dos visados, sendo que, na sessão de 4 de Abril de 2010, tal interveniente desistiu do pedido que havia formulado relativamente ao referido Mandatário.


****

Foi proferida sentença que declarou “nulos os contratos de compra e venda celebrados entre BB, na qualidade de procurador de FF e os réus DD e mulher EE, outorgados pelas escrituras públicas celebradas em 17 e 18 de Setembro de 2001, no 15º Cartório Notarial de Lisboa”, e ordenou o cancelamento dos registos dessas fracções em nome dos mesmos réus e condenou os Réus DD e mulher EE como litigantes de má-fé.

***

Os RR. recorreram para o Tribunal da Relação e Lisboa, que, por Acórdão de 16.9.2010 – fls. 562 a 574 –, negou provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.

***

De novo, inconformados recorreram para este Supremo Tribunal de Justiça e, alegando, formularam as seguintes conclusões:

1. O Tribunal da Relação deve reapreciar as provas indicadas pelos ora recorrentes o que, no caso de gravação dos depoimentos, passa sempre pela audição destes, o que manifestamente não ocorreu no caso dos presentes autos;

2. O mecanismo legal que permite a reapreciação da prova pela segunda instância implica necessariamente que este Tribunal, a partir da análise critica das provas alcance a sua própria convicção, coincidente ou não com a formada pela primeira instância, sob pena de não se inviabilizar o controle da decisão proferida sobre a matéria de facto e em consequência transformar o segundo grau de jurisdição sobre a matéria de facto numa desnecessária garantia;

3. O Tribunal da Relação terá que formar a sua própria convicção, na utilização plena do princípio da livre apreciação das provas, tal como a primeira instância, sem ficar amarrado à convicção que serviu de base à decisão recorrida;

4. Os recorrentes impugnaram, no recurso de apelação, a decisão da primeira instância, na parte que considerou provados os factos dos artigos 1º a 4.° da Base Instrutória, por entenderem que os depoimentos efectuados em audiência conjugados com os documentos constantes do processo, imporiam respostas diferentes, como consta da fundamentação da apelação e resumidamente transcritas no ponto 3. deste recurso de Revista sob a epígrafe “Da fundamentação do recurso de apelação”;

5. O Tribunal de primeira instância julgou incorrectamente esta matéria de facto por ter fundado a sua convicção em depoimentos indirectos, como resulta da própria interpelação feita pela M.ma Juíza durante os depoimentos das testemunhas KK (CD-2090212160858_90930_64842. wma, desde 00:00:00 até 00:33:16) e LL (CD200902121 64606_90930_64842. wma, desde 00:00:00 até 00:17:29).

6. Como resulta também dos depoimentos das testemunhas da autora, MM (CD - 20090212170405_90930_64842. wma, desde 00:00:00 até 00:10:16) e NN (CD20090212172442_90930_64842.wma, desde 00:00:00: até 00:38:24), que estas não tinham conhecimento dos factos impugnados.

7. Efectivamente, os depoimentos das testemunhas KK, LL e NN foram feitos com contradições e hesitações, verificando-se pela audição da prova gravada, cujas partes relevantes para esta matéria se encontram transcritas, a existência de versões contraditórias.

8. Contudo, o Tribunal da Relação, expressando e sufragando o entendimento de que apenas em casos de manifestos ou notórios erros de julgamento do tribunal da primeira instância, entendeu não alterar a matéria factual impugnada, mantendo outrossim a decisão de facto, com total omissão do mecanismo legal que permite a reapreciação da prova;

9. O presente recurso versa sobre matéria de direito, por violação da lei substantiva, por erro na interpretação e aplicação das normas jurídicas, artigo 722. ° n.° 1 do Código de Processo Civil;

10. O acórdão recorrido, subvertendo o princípio da livre apreciação das provas consagrado no artigo 655.° do Código de Processo Civil, limitou-se a concordar com a sentença da primeira instância numa interpretação restritiva do mecanismo legal que informa o duplo grau de jurisdição, eximindo-se a examinar, por audição dos registos áudio/CD, a prova impugnada pelos apelantes;

11. Não tendo procedido à requerida reapreciação da prova gravada, o acórdão recorrido violou o disposto no artigo 690.°-A do Código de Processo Civil, pelo que deverá ser revogado, ordenando-se a baixa dos autos para o Tribunal da Relação reapreciar a prova produzida concernente à matéria factual impugnada e julgue, de novo, o recurso de apelação.

Não houve contra-alegações.


***

Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta que a Relação considerou (por remissão) provados os seguintes factos:

A) A Autora é filha de BB e de OO – (al. A) dos factos assentes e certidão do assento de nascimento junta a fls. 298 dos autos).

B) O lº réu, CC, é filho de BB e de OO – (al. B) dos factos assentes e certidão do assento de nascimento junta a fls. 299 dos autos).

C) Os intervenientes GG, HH, II e JJ são filhos de FF – (al. C) dos factos assentes).

D) BB faleceu em 22 de Julho de 2003, com 88 anos de idade, no estado de viúvo de FF – (al. D) dos factos assentes e certidão do assento de óbito junta a fls. 85 dos autos).

E) FF faleceu em 16 de Agosto de 2001 – (al. E) dos factos assentes).

F) BB e FF contraíram casamento civil, sob o regime imperativo da separação de bens, em 12 de Setembro de 1992 – (al. F) dos factos assentes).

G) Por procuração outorgada em 1 de Outubro de 1992, no Cartório Notarial do Seixal, FF constituiu seu bastante procurador BB, nos termos da qual lhe conferiu “poderes necessários para com livre e geral administração civil, reger e gerir todos os bens dele outorgante, e assim, para dar ou tomar de arrendamento quaisquer prédios de qualquer natureza, no todo ou em parte, pelos prazos, rendas e condições que entender convenientes, pagar ou receber rendas, passar e assinar recibos, despedir inquilinos, renovar, prorrogar ou rescindir os respectivos contratos; para receber quaisquer importâncias em dinheiro, valores ou rendimentos, certos ou eventuais, vencidos ou vincendos, que pertençam ou venham a pertencer ao outorgante por qualquer via ou título, passando recibos e dando quitações, depositar e levantar necessárias notificações, aceitar quaisquer doações puras, condicionais ou onerosas, com ou sem encargos, proceder a quaisquer actos de registo predial e comercial ou de propriedade automóvel, provisórios, definitivos, cancelamentos ou averbamentos; para proceder a quaisquer cessões de quotas em quaisquer sociedades, podendo receber os preços e deles dar quitação; representá-lo em juízo, usando para o efeito todos os poderes forenses em direito permitidos, os quais deverá substabelecer em advogado ou procurador habilitado sempre que deles tenha de usar, requerendo, praticando, e assinando tudo o mais que for necessário aos fins indicados” – (al. G) dos factos assentes).

H) Na Segunda Conservatória do Registo Predial de Oeiras encontra-se descrito, sob o n° … da freguesia de Carnaxide, a fracção autónoma designada pela letra “D”, destinada a habitação, correspondente ao primeiro andar direito do prédio urbano constituído em propriedade horizontal sito na Rua Eng. …, nos .. e .., tornejando para o Largo …, n° ., freguesia de Linda-a-Velha, concelho de Oeiras – (al. H) dos factos assentes).

I) Por escritura lavrada em 17 de Setembro de 2001, no Décimo Quinto Cartório Notarial de Lisboa, de fls. 30 a 31 do Livro de Notas para Escrituras Diversas 273-1, foi declarado por BB, na qualidade de procurador de FF, como primeiro outorgante, e aceite pelo 2° Réu, casado no regime da comunhão geral com a 3ª Ré, como segundo outorgante, vender a este, pelo preço global de sete milhões de escudos, já recebidos em nome da sua representada, o prédio descrito em H) – (al. 1) dos factos assentes).

J) Os prédio descrito em H) encontra-se inscrito a favor dos 2° e 3° Réus, mediante a apresentação n°5 de 26 de Setembro de 2001 – (al. J) dos factos assentes).

K) Na Primeira Conservatória do Registo Predial de Lisboa encontra-se descrito, sob o n° …, da freguesia de São Jorge de Arroios, o prédio urbano constituído em propriedade horizontal sito na Rua …, n°s .. a …, freguesia de São Jorge de Arroios, concelho de Lisboa – (al. K) dos factos assentes).

L) Na Primeira Conservatória do Registo Predial de Lisboa encontra-se descrita, sob o n° …-A da freguesia de São Jorge de Arroios, o a fracção autónoma designada pela letra “A”, correspondente ao Rés-do-chão, estabelecimento comercial, com acesso pelo n° .. do prédio descrito em K) – (al. L) dos factos assentes).

M) Na Primeira Conservatória do Registo Predial de Lisboa encontra-se descrita, sob o n°…-B da freguesia de São Jorge de Arroios, a fracção autónoma designada pela letra “B”, destinada a habitação, correspondente ao primeiro andar e quintal do prédio descrito em K) – (al. M) dos factos assentes).

N) Na Primeira Conservatória do Registo Predial de Lisboa encontra-se descrita, sob o n°…-C da freguesia de São Jorge de Arroios, a fracção autónoma designada pela letra “C”, destinada a habitação, correspondente ao segundo andar do prédio descrito em K) – (al. N) dos factos assentes).

O) Na Primeira Conservatória do Registo Predial de Lisboa encontra-se descrita, sob o n° …-D da freguesia de São Jorge de Arroios, a fracção autónoma designada pela letra “D”, destinada a habitação, correspondente ao terceiro andar do prédio descrito em K) – (al. O) dos factos assentes).

P) Na Primeira Conservatória do Registo Predial de Lisboa encontra-se descrita, sob o n° …-E da freguesia de São Jorge de Arroios, a fracção autónoma designada pela letra “E”, destinada a habitação, correspondente ao quarto andar do prédio descrito em K) – (al. P) dos factos assentes).

Q) Por escritura lavrada em 18 de Setembro de 2001, no Décimo Quinto Cartório Notarial de Lisboa, de fls. 49 a 51 do Livro de Notas para Escrituras Diversas 273-1, foi declarado por BB, na qualidade de procurador de FF, como primeiro outorgante, e aceite pelo 2° Réu, casado no regime da comunhão geral com a 3ª Ré, como segundo outorgante, vender a este, pelo preço global de quarenta milhões e quinhentos mil escudos, já recebidos em nome da sua representada, os prédios descritos em L), M), N), O) e P) – (al. Q) dos factos assentes).

R) Antes da constituição de propriedade horizontal, foi inscrita no prédio urbano descrito em K), mediante a apresentação n°9, de 21/02/1986, uma hipoteca voluntária – (al. R) dos factos assentes).

S) A hipoteca referida em R) foi inscrita nos prédios descritos em L), M), N), O) e P) após a constituição de propriedade horizontal do prédio descrito em K) – (al. S) dos factos assentes).

T) Foi inscrito no prédio descrito em K), mediante a apresentação n°10, de 18/09/2001, o cancelamento da hipoteca referida em R) – (al. T) dos factos assentes).

U) Os prédios descritos em L), M), N), O) e P) encontram-se inscritos a favor dos 2° e 3° Réus, mediante a apresentação nº3 de 26 de Setembro de 2001 – (al. U) dos factos assentes).

V) BB foi induzido e pressionado pelo 1° Réu a outorgar as escrituras referidas em 1) e Q), no interesse deste último – (al. V) dos factos assentes).

W) BB outorgou as escrituras referidas em 1) e Q) como forma de evitar receber os prédios descritos em L), M), N), O) e P), por via hereditária, mercê do óbito de FF, e assim não os deixar à Autora por sua morte – (al. W) dos factos assentes).

X) No início do mês de Julho de 2001, o 2° Réu e BB acordaram verbalmente em comprar e vender, respectivamente, os prédios referidos em L), M), N), O) e P) e, bem assim, que a outorga da correspondente escritura de compra e venda ficaria dependente do cancelamento de hipoteca incidente sobre os mesmos prédios – (al. X) dos factos assentes).

Y) Por razões de ordem económica, apenas em Setembro de 2001 pôde o 2° Réu levar a efeito o processo conducente ao cancelamento da hipoteca incidente sobre os prédios referidos em L), M), N), O) e P) (al. X) dos factos assentes) – (al. Y) dos factos assentes).

Z) BB não recebeu dos 2° e 3° Réus os preços referidos em 1) e Q) – (resposta ao art. 1º da base instrutória).

AA) Aquando da celebração das escrituras referidas em 1) e Q), os 2° e 3° Réus sabiam do óbito de FF – (resposta ao art. 2° da base instrutória).

BB) Aquando da celebração das escrituras referidas em 1) e Q), os Réus tinham conhecimento do referido em V) e W) – (resposta ao art. 3° da base instrutória).

CC) Ao outorgar as escrituras referidas em 1) e Q), os Réus pretenderam prejudicar os intervenientes GG, HH, II e JJ, na qualidade e enquanto herdeiros de FF – (resposta ao art. 4° da base instrutória).

DD) BB e FF viviam juntos há 30 anos – (resposta ao art. 5° da base instrutória).

EE) BB esteve internado, por diversas vezes, no Hospital Militar do Porto – (resposta ao art. 6° da base instrutória).

FF) Tendo tido alta hospitalar pouco tempo antes da data referida em E) – (resposta ao art. 7º da base instrutória).

GG) Aquando da alta hospitalar, BB ficou em casa e aos cuidados do interveniente GG – (resposta ao art. 8° da base instrutória).

HH) Após o funeral de FF, o 1° Réu deslocou-se casa do interveniente GG – (resposta ao art. 9° da base instrutória).

II) Levando BB consigo e para sua casa, sita em Linda-a-Velha – (resposta ao art. 10º da base instrutória).

JJ) O réu CC contraiu casamento civil, sem convenção antenupcial, com PP, filha de DD e de QQ, aqui 2° e 3° réus, no dia 10 de Outubro de 1970 – (certidão assento de casamento junta a fls. 297 dos autos).

Fundamentação:

Sendo pelo teor das conclusões das alegações que, em regra, se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – importa saber se a Relação reapreciou a matéria de facto questionada pelos também aqui recorrentes, com observância dos normativos legais aplicáveis.

Os recorrentes apelaram da sentença, pedindo que fosse reapreciada a matéria de facto com vista a alterar as respostas aos quesitos 1º a 4º, pedindo que as respostas fossem alteradas para “Não Provado” a cada um deles.

Como consta do despacho de fundamentação das respostas aos quesitos – fls. 464 a 467 – dez eram os quesitos que integravam a Base Instrutória e todos mereceram a resposta de “Provado” e, com isso, obteve a Autora ganho de causa.

Os quesitos foram assim formulados:

1º - BB não recebeu dos 2° e 3° Réus os preços referidos em I) e Q)?

2º - Aquando da celebração das escrituras referidas em I) e Q), os 2° e 3ºs Réus sabiam do óbito de FF?

3º - Aquando da celebração das escrituras referidas em I) e Q), os Réus tinham conhecimento do referido em V) e W)? 

4º- Ao outorgar as escrituras referidas em I) e Q), os Réus pretenderam prejudicar os intervenientes GG, HH, II e JJ, na qualidade e enquanto herdeiros de FF?

Na aprofundada fundamentação das respostas aos quesitos decorre que foi decisiva para a formação da convicção da Senhora Juíza a prova testemunhal e documental, indicada com minúcia nesse despacho.

Como consta da acta de audiência de discussão e julgamento – fls. 413 a 419 e 440 a 445 – foi gravada “em suporte digital” a prova produzida.

Nas alegações de recurso para a Relação – fls. 505 a 545 – na perspectiva de reapreciação da prova – art. 690º-A do Código de Processo Civil – os recorrentes pretendiam que as respostas aos quesitos 1º a 4º fossem alteradas, procedendo à transcrição de parte dos depoimentos das testemunhas que identificaram assim: Depoimento Gravado da Testemunha da Autora, KK (filha da Autora); Depoimento Gravado da Testemunha da Autora, LL (genro da Autora e marido da testemunha KK), Depoimento Gravado da Testemunha da Autora. MM, Depoimento Gravado da Testemunha da Autora, NN (marido da Autora), Depoimento Gravado da Testemunha dos Intervenientes Principais. RR (mulher do interveniente GG).

Mais indicaram a identificação dos referidos depoimentos nos suportes de gravação áudio /CD.s.

Sustentam os recorrentes que, na Relação de Lisboa, os Senhores Juízes Desembargadores não procederam à audição dos registos e, como tal, não reapreciaram os depoimentos gravados daquelas testemunhas aos quesitos em causa.

A fls. 568 do Acórdão recorrido, depois de se elencarem as questões substantivas objecto do recurso, pode ler-se:

Fundamentação de facto – Os recorrentes introduziram, nas suas alegações, a seguinte questão de relevo fáctico que cumpre avaliar nesta sede: Face às razões invocadas nas alegações de recurso, tem que se concluir que o Tribunal “a quo” julgou incorrectamente os factos constantes do arts. 1 ° a 4. ° da Base Instrutória, pelo que os mesmos não poderão ser considerados como provados?”.

No Acórdão pode ler-se:

 “A impugnação judicial incide, pois, também, sobre parte da matéria de facto.

Como não se ignorará, não estamos perante proposta de realização de um segundo julgamento, com ponderação das razões de simples divergência face ao decidido mas, antes, diante de um pedido que deve ser lido como pretensão de análise da eventual existência de erros na consideração do valor dos meios probatórios colocados à disposição do Tribunal, ou seja, de apreciação da adequação técnica e sensatez da formação da convicção probatória do órgão jurisdicional recorrido, designadamente considerando a eventual indiferença a determinados meios ou a sustentação da cristalização fáctica em meios inidóneos para o efeito.

A conclusão no sentido da existência de tais erros só se poderá atingir quando esses meios se revelem inequívocos no sentido pretendido pelo recorrente ou quando não sejam contrariados por outros de igual ou superior valor demonstrativo ou fidedignidade.

Na nova ponderação, deve ter-se presente que a avaliação de facto a realizar pela segunda instância deve assentar na noção de que a matéria dada como demonstrada só deverá ser alterada nos casos de patente e gritante falta de conformidade entre a mesma e os meios probatórios disponibilizados nos autos. Conforme, com acerto, se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 4.4.2005, JTRP00037900, do qual foi relator o Sr. Juiz Desembargador Ferreira da Costa, in http://www.dgsi.pt, nesta operação deve «dar-se prevalência aos princípios da oralidade, da livre apreciação da prova e da imediação».

Não se deverá olvidar, em tal intervenção, o que ensinavam, a propósito da imediação, o Prof. Antunes Varela e Outros in “Manual de Processo Civil2, 2.ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1985, pág. 657: "Esse contacto directo, imediato, principalmente entre o juiz e a testemunha, permite ao responsável pelo julgamento captar uma série valiosa de elementos (através do que pode perguntar, observar e depreender do depoimento, da pessoa e das reacções do inquirido) sobre a realidade dos factos que a mera leitura do relato escrito do depoimento não pode facultar".

Estas noções iluminarão todas as considerações que se seguem.

Está explicado com detalhe, capacidade de apelar à razão e suporte técnico o respondido no art. 1.º da aludida Base.

O Tribunal esteou-se em depoimentos de testemunhas, conforme declarou e explicou convenientemente (por exemplo, KK e NN patentearam claramente terem sido destinatários directos de declarações de BB nesse sentido), mas não só; mais do que isso, sustentou a sua convicção na omissão de fornecimento, pelos demandados (ao contrário do anunciado no processo), de dados pessoais relativos à movimentação das avultadas quantias em dinheiro correspondentes aos preços das vendas, tendo chamado a atenção para o facto que resulta da experiência comum de que é, usualmente, mais fácil localizar e patentear o percebimento de avultados montantes. Mais, atendeu, ainda, às declarações fiscais de rendimentos dos Demandados, que não apontam bens ou proventos dos quais pudessem ser extraídas tais quantias. Finalmente, atendeu ao saldo da conta bancária de BB, que não reflecte tais valores, e à modesta forma de vida nos seus tempos derradeiros.

É adequada a resposta do Tribunal a esta questão.

O mesmo ocorre quanto ao quesito 2.º.

As relações entre as pessoas envolvidas neste litígio e com o Réu BB e sua falecida esposa, associados aos depoimentos das testemunhas (veja-se o dito, na primeira pessoa e em termos peremptórios, sobre essa matéria, por NN) fornecem segura convicção de que, tendo PP falecido em 16 de Agosto de 2001, esse facto era já conhecido dos Réus em 17 e 18 de Setembro de 2001. Esta fundamentação foi convenientemente explanada a fl. 466 e tem sentido e adequação.

A ausência de pagamento dos preços, a preterição dos direitos hereditários necessariamente resultante de uma venda fictícia, ou seja, sem entrega de dinheiro, associado à prova colhida em audiência e documentada nos autos e as referidas relações (que foram também de proximidade após o funeral de PP), inculcam noção de que o Tribunal fez uma leitura adequada da factualidade vertida nos quesitos 3.º e 4.º.

Desde logo, é inevitável a conclusão de que, ao menos com dolo necessário, ao outorgarem as escrituras sem pagar os preços – ao contrário do nelas declarado – quiseram prejudicar os herdeiros da subscritora da procuração.

Em consequência, tal leitura não merece censura.”

Assim, decorre do texto que os registos áudio não foram ouvidos.

Vejamos:

 O assegurar de um duplo grau de jurisdição quanto à apreciação da matéria de facto foi tema de larga controvérsia no direito processual, havendo, até, quem nessa omissão, visse uma violação do direito a um julgamento justo, sabidas que eram as limitações legais existentes quanto à possibilidade da alteração pela Relação da matéria de facto – primitiva redacção do art. 712º do Código de Processo Civil.

            O DL. 39/95, de 15.2 inovou, estabelecendo a possibilidade de as audiências finais e os depoimentos, informações e esclarecimentos nelas prestados serem gravados, [documentação da prova], “pondo termo ao peso excessivo que a lei processual vigente confere ao princípio da oralidade e concretizando uma aspiração de sucessivas gerações de magistrados e advogados” – citámos do preâmbulo do citado DL.


            Esse diploma aditou ao Código de Processo Civil, então vigente, os arts. 522º-A, 522º-B, 522º-C, 684º-A e 690º-A, atinentes ao registo dos depoimentos, à forma de gravação e ao modo como se deveria proceder para impugnar a matéria de facto, em sede de recurso.

            Após a Revisão de 1995/96 do Código de Processo Civil o fulcral art. 690º-A passou a ter a seguinte redacção:

“Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão de facto:

1- Quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de regis­to ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.

2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios pro­batórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, proceder à transcrição, mediante escrito dactilografado, das passagens da gravação em que se funda.

3 - Na hipótese prevista no número anterior, incumbe à parte contrária, sem prejuízo dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, proceder, na contra-ale­gação que apresente, à transcrição dos depoimentos gravados que infirmem as con­clusões do recorrente.

                4- O disposto nos nºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso nos termos do nº2 do art. 684º-A”.

Dispõe o nº 2 deste artigo 712º do Código de Processo Civil:

“No caso a que se refere segunda parte da alínea a) do número anterior, a Relação reaprecia as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações de recorrente e de recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados”.


O normativo do art.690º-A do Código de Processo Civil, confere ao recorrente, impugnante da decisão de facto, o ónus, sob pena de rejeição do recurso, de indicar os concretos pontos de facto que considerava “mal” julgados; indicar quais os concretos elementos de prova constantes do processo ou da gravação, que impunham decisão diversa e, finalmente, a obrigação de transcrever, mediante escrito dactilografado, as passagens da gravação em que se fundava a discordância.

Por sua vez, nesta hipótese, a parte contrária, na contra-alegação que oferecesse, podia apresentar transcrição dos depoimentos que infirmassem as conclusões do recorrente.

            O DL.183/2000, de 10.8, introduziu nova regulamentação da documentação da prova, alterando a redacção dos nºs 2 e 3 do art. 690º-A do Código de Processo Civil, em consonância com a abolição do dever de transcrever os depoimentos, obrigando, agora, a parte impugnante da matéria de facto, a indicar com referência à gravação constante da acta, quais os depoimentos e elementos de prova (gravados) que pretende ver reapreciados.

            Assim, aditou ao art. 522º-C do Código de Processo Civil, um nº2 que estatui:


Quando haja lugar a registo áudio ou vídeo, deve ser assinalado na acta o início e o termo da gravação de cada depoimento, informação ou esclarecimento”.

            Do mesmo passo, alterou o nº2, parte final, do art. 690º, nº4, harmonizando-o com antes aludido nº2 do art. 522º-C, impondo ao recorrente da decisão sobre a matéria de facto, a indicação, sob pena de rejeição do recurso, dos depoimentos em que se funda a discordância, por referência ao assinalado na acta.

            O nº5 do art. 690º-A do Código de Processo Civil, na redacção do DL. 183/2000, de 10.8, prevê que o Relator, não obstante a prova dever ser contida em suporte áudio, pode ordenar a respectiva transcrição.

            Quer dizer, os Juízes da Relação podem sindicar a matéria de facto objecto do recurso que a vise impugnar com base na transcrição dos depoimentos, muito embora não seja esse o regime-regra.

Assim, sem embargo de saber se a Relação, na reapreciação da matéria de facto, deve prosseguir em busca de uma nova convicção, ou apenas controlar o julgamento da 1ª instância visando corrigir erros de julgamento, o certo é que, uma vez que apenas é chamada a reapreciar pontos concretos da matéria de facto com base nos depoimentos que são indicados pelo recorrente e pelo recorrido, pode não almejar uma convicção probatória em função da totalidade da prova produzida.

O vigente sistema não se compagina com a regra fulcral do art. 515º – princípio da aquisição processual das provas – segundo o qual – “O tribunal deve tomar em consideração todas as provas produzidas, tenham ou não emanado da parte que devia produzi-las, sem prejuízo das disposições que declarem irrelevante a alegação de um facto, quando não seja feita por certo interessado.

            A convicção probatória não será cabalmente conseguida se a Relação apenas apreciar parte da prova – os concretos pontos – considerados mal julgados já que a convicção é um processo intuitivo que assenta na totalidade da prova, implicando a valoração de todo o acervo probatório que o juiz da comarca ou o colectivo teve ao seu dispor.

           No caso em apreço, a Relação, não tendo procedido à audição dos suportes áudio, dispôs dos depoimentos transcritos pelos recorrentes que, como consta do corpo das alegações, são detalhados e ilustram de forma eloquente o teor dos questionados depoimentos.

Ademais, não tendo os recorridos sequer indicado ou transcrito os depoimentos que poderiam infirmar aqueloutros indicados pelos recorrentes, mais favorável foi para os recorrentes a tarefa de evidenciarem, perante a Relação, a prova reduzida a escrito e indicada com pormenor. Os recorrentes afirmaram que transcreviam em parte os depoimentos, mas, tendo transcrito extensamente alguns dos depoimentos, por certo que não deixaram de citar o que de mais relevante consideraram para que a Relação alterasse as respostas aos quesitos.

Por outro lado, a Relação, ao lançar mão da fundamentação dada pela Senhora Juíza e analisando os depoimentos, mais facilmente aquilatou da existência ou não de erro de julgamento, pese embora a ausência de oralidade, ainda que indirecta.

Seria puramente formal anular o julgamento quando a Relação pôde analisar os depoimentos das testemunhas com base na transcrição dos respectivos depoimentos feita pelo recorrente e sem contraditório dos recorridos (nesse contexto da transcrição), e manteve inalteradas as respostas.

Aqui chegados há que concluir que, no caso sub judice, o julgamento na Relação não deve ser anulado.

Não está em causa sequer que este Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista, possa apreciar o julgamento da prova testemunhal, face aos restritos poderes que lhe são conferidos pelos arts. 722º, nº2, e 729º, nº2, do Código de Processo Civil. Não está em causa no recurso de revista apreciar da eventual violação de regras de direito probatório material.

Mantendo-se inalterada matéria de facto e não sendo de anular o Acórdão recorrido, é manifesto que o recurso está votado ao insucesso, já que os recorrentes apenas visavam a revogação do Acórdão com fundamento na violação dos normativos que presidem à reapreciação da prova na Relação.

Decisão.

 

Nega-se a revista.

Custas pelos recorrentes.

Supremo Tribunal de Justiça, 24 de Janeiro de 2012.

Fonseca Ramos (Relator)

Salazar Casanova

Fernandes do Vale