Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
8086/23.3T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: AÇÃO POPULAR
INDEFERIMENTO LIMINAR
PETIÇÃO INICIAL
MANIFESTA IMPROCEDÊNCIA
CONTRATO DE ADESÃO
CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL
GARANTIA
DURAÇÃO
REDUÇÃO
REPARAÇÃO
COISA DEFEITUOSA
DEFESA DO CONSUMIDOR
INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 04/10/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário :
O indeferimento liminar da petição inicial de uma acção popular cível, ao abrigo do art.13 da Lei nº 38/95 de 31/8, com fundamento em que é “manifestamente improvável a procedência do pedido”, significa que improcedência da pretensão do autor é manifestamente inviável, ou seja, perante a alegação dos factos e razões de direito expostas na petição e a uma averiguação sumária, incide, desde logo, uma pronúncia valorativa antecipatória sobre o mérito, quanto a saber se a pretensão formulada se apresenta viável, com probabilidade de êxito, ou se está irremediavelmente condenada ao insucesso.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I – RELATÓRIO



1.1.- CITIZENS’ VOICE – CONSUMER ADVOCACY ASSOCIATION intentou a presente acção popular contra FNAC PORTUGAL – ACTIVIDADES CULTURAIS E DISTRIBUIÇÃO DE LIVROS, DISCOS, MULTIMÉDIA E PRODUTOS TÉCNICOS, LDA., formulando os seguintes pedidos:

“deve a presente ação ser julgada procedente, por provada, e ser declarado que a ré: A.teve o comportamento descrito no §3 supra;

B.violou qualquer uma das seguintes normas:

1. dos artigos 12 (1) e 13 (1), do decreto-lei 84/2021; 2. dos artigos 3 (a) (e) (f), 4 e 9 (1) da lei 24/96;

3. dos artigos 12 e 15, do decreto-lei 446/85; 4. dos artigos 473 e 483, do Código Civil (“CC”);

5. dos artigos 10 (1) e 11 (1), da diretiva (UE) 2019/771; 6. do artigo 3, da diretiva 93/13/CE.

C. teve o comportamento supra descrito em qualquer um dos pedidos anteriores e que o mesmo é ilícito e

1. doloso; ou, pelo menos,

2. grosseiramente negligente;

D. agiu com culpa e consciência da ilicitude no que respeita aos factos suprarreferidos, com os autores populares;

E. com a totalidade ou parte desses comportamentos lesou gravemente os interesses dos autores populares, nomeadamente os seus interesses económicos e sociais, designadamente os seus direitos enquanto consumidores;

F.causou danos aos interesses difusos de proteção do consumo de bens e serviços; e em consequência, deve a ré ser condenada a:

G.a indemnizar integralmente os autores populares pelos danos que lhes foram causados por estas práticas ilícitas, no que respeita à redução do prazo da garantia, em montante global:

1. a determinar nos termos do artigo 609 (2), do CPC;

2. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde 01.01.2022, data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas, até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar os autores populares pelo sobrepreço;

3. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal;

H. subsidiariamente ao ponto anterior, ser a ré condenada a indemnizar integralmente os autores populares pelos danos que lhes foram causados por estas práticas ilícitas, no que respeita à redução do prazo da garantia, em montante global:

1. a fixar por equidade, nos termos do artigo 496 (1) e (4) do CC, determinado em 20 % da sua faturação anual, desde 01.01.2022;

2. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar os autores populares pelo sobrepreço;

3. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal;

I. ser a ré condenada a indemnizar integralmente os autores populares pelos danos morais causado pelas práticas ilícitas, em montante global:

1. a fixar por equidade, nos termos do artigo 496 (1) e (4) do CC, mas nunca inferior a 10 euros por autor popular;

2. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar os autores populares pelos danos morais;

3. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal;

J. ser a ré condenada a indemnizar integralmente os autores populares, in casu, todos os consumidores em geral, medidos por agregados familiares privativos, pelos danos de distorção da equidade das condições de concorrência, e montante global:

1. nos termos do artigo 9 (2) da lei 23/2018 ou por outra medida, justa e equitativa, que o tribunal considere adequada, mas nunca menos que 1 euro por autor popular, in casu, agregados familiares privativos;

2. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar os autores populares pelos danos de distorção da equidade das condições de concorrência;

3. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal;

K. ser a ré condenada a pagar todos os encargos que a autora interveniente tiver ou venha ainda a ter com o processo e com eventual incidente de liquidação de sentença, nomeadamente, mas não exclusivamente, com os honorários advocatícios, pareceres jurídicos de professores universitários, pareceres e assessoria necessária à interpretação da vária matéria técnica [tanto ao abrigo do artigo 480 (3), do CPC, como fora do mesmo preceito], que compreende uma área de conhecimento jurídico-económico complexa e que importa traduzir e transmitir com a precisão de quem domina a especialidade em causa e em termos que sejam acessíveis para os autores e seu mandatário, de modo a que possam assim (e só assim) exercer eficazmente os seus direitos, nomeadamente de contraditório, e assim como os custos com o financiamento do litígio (litigation funding) que venha a ser obtido pela autora interveniente;

L. porque o artigo 22 (2), da lei 83/95, estatui, de forma inequívoca e taxativa, que deve ser fixada uma indemnização global pela violação de interesses dos titulares ao individualmente identificados, mas por outro lado é omissa sobre quem deve administrar a quantia a ser paga, nomeadamente quem deve proceder à sua distribuição pelos autores representados na ação popular, vêm os autores interveniente requerer que declare que CITIZENS’ VOICE – CONSUMER ADVOCACY ASSOCIATION, agindo como autora interveniente neste processo e em representação dos restantes autores populares, têm legitimidade para exigir o pagamento das supras aludidas indemnizações, incluindo requerer a liquidação judicial nos termos do artigo 609 (2), do CPC e, caso a sentença não seja voluntariamente cumprida, executar a mesma, sem prejuízo do requerido nos pontos seguintes.

subsidiariamente, e nos termos do §4 (j):

M. o comportamento da ré, tido com todos os autores populares e descritos no §3, subsidiariamente, para o caso de não se aplicar nenhum dos casos supra, deve ser considerado mediante o instituto do enriquecimento sem causa e os autores populares indemnizados pela redução do prazo da garantia, tal como sustentando em § 4 (j) supra.

em qualquer caso, deve:

N. o comportamento da ré, tido com todos os autores populares e descritos no §3, sempre deve ser considerado com abuso de direito e, em consequência, paralisado e os autores populares indemnizados por todos os danos que tal comportamento lhes causou em qualquer caso, deve

O. ser declarada nula a cláusula contratual que dispõe que todos os componentes fornecidos beneficiam de garantia de 3 anos, exceto bens de Consumo/Perecíveis (baterias, carregadores) com 6 (seis) meses de garantia, e de 90 dias nos serviços prestados pela Clínica FNAC, salvo se a avaria decorrer de um mau uso de utilização do equipamento por parte do cliente, na parte em que considera as baterias e carregadores como bens perecíveis e como tal reduz o prazo da garantia para seis meses.

requer-se ainda que Vossa Excelência:

P. decida relativamente à responsabilidade civil subjetiva conforme § 15, apesar de tal decorrer expressamente da lei 83/95, sem necessidade de entrar no pedido;

Q. decida relativamente ao recebimento e distribuição da indemnização global nos termos do § 16, apesar de tal decorrer expressamente da lei 83/95, sem necessidade de entrar no pedido;

R. seja publicada a decisão transitadas em julgado, a expensas da parte vencida e sob pena de desobediência, com menção do trânsito em julgado, em dois dos jornais presumivelmente lidos pelo universo dos interessados, apesar de tal decorrer expressamente do artigo 19 (2), da lei 83/95, sem necessidade de entrar no pedido, e com o aviso da cominação em multa de € 100.000 (cem mil euros) por dia de atraso no cumprimento da sentença a esse respeito;

S. declare que a autora interveniente tem legitimidade para representar os consumidores lesados na cobrança das quantias que a ré venha a ser condenada, nomeadamente, mas não exclusivamente, por intermédio da liquidação judicial das quantias e execução judicial de sentença;

T. declare, sem prejuízo do pedido imediatamente anterior, que a ré deve proceder ao pagamento da indemnização global a favor dos consumidores lesados diretamente à entidade designada pelo Tribunal para proceder à administração da mesma tal como requerido em infra em §16, fixando uma sanção pecuniária compulsória adequada, mas nunca inferior a € 100.000 (cem mil euros) por cada dia de incumprimento após o trânsito em julgado de sentença que condene a ré nesse pagamento;

U. declare uma remuneração, com uma taxa anual de 5% sobre o montante total da indemnização global administrada, mas nunca inferior a € 100.000 (cem mil euros) nos termos do requerido infra em §16, a favor da entidade que o tribunal designar para administrar as quantias que a ré for condenada a pagar;

V. declare que a autora interveniente tem direito a uma quantia a liquidar em execução de sentença, a título de procuradoria, relativamente a todos os custos que teve com a presente ação, incluindo honorários com todos os serviços prestados, tanto de advogados, como de técnicos especialistas, como com a obtenção e produção de documentação e custos de financiamento e respetivo imposto de valor acrescentado nos termos dos artigos 21 e 22 (5), da lei 83/95, sendo tais valores pagos exclusivamente daquilo que resultarem dos montantes prescritos nos termos do artigo 22 (4) e (5), da lei 83/95.

W. declare a autora interveniente isenta de custas;

X. condene a ré em custas.”

1.2. – O Ministério Público declarou nada ter a opor ao prosseguimento dos autos.

1.3. No Juízo Central Cível da Comarca de ... decidiu-se indeferir liminarmente a petição inicial, ao abrigo do art.13 da Lei nº 83/95 de 31/8.

1.4. Inconformados, os Autores recorreram de revista per saltum, com as seguintes conclusões:

1)Os recorrentes, autores populares, interpõe o presente recurso por entenderem que o tribunal a quo não fez a melhor e mais correta interpretação do direito ao indeferir a petição inicial por despacho liminar.

2)O presente recurso vem na modalidade da revista per saltum, por recair apenas sobre a matéria de direito, o que é feito nos termos e ao abrigo nos artigos 627, 629 (1), 631, 637, 639, 672, 675, 678 (1), aplicável ex vi, artigo 644 (1,a) e 678 (3), todos do CPC.

3) Os autores têm legitimidade para interpor o presente recurso acompanhado das respetivas alegações sob a matéria de direito (cf. artigo 631, do CPC) e estão em tempo de o fazer (cf. artigo 638, do CPC).

4)Os recorrentes, mui respeitosamente, discordam da douta sentença pelas razões de direito vertidas no §§ 6 e 7 supra, para onde se remete para uma completa compreensão e evitando aqui uma repetição fastidiosa e prolixa do que aí se encontra de forma resumida.

5)Mas que, resumindo, se estriba no facto do artigo 13, da lei 83/95, que tipifica o caso especial de indeferimento da petição inicial, não acarretar um poder discricionário do juiz – que, antes de se decidir pelo indeferimento liminar da petição inicial, deve fazer uma avaliação e ponderação objetivadas da prova constante dos autos e, se necessário for, recolher outras provas por iniciativa própria, mesmo sem vinculação à iniciativa das partes, como manda o artigo 17, da lei 83/95 – o tribunal a quo, salvo diferente entendimento, não o fez nos termos que deveria ter feito.

6) Isto porque, o tribunal a quo, salvo sempre o devido respeito, não apreciou cabal e corretamente os factos alegados na petição inicial, nem deles tirou as necessárias ilações legais, lançando logo mão do mecanismo do indeferimento liminar previsto no atrigo 13, da lei 83/95, de 31/08, para indeferir liminarmente a petição.

7) Para além do julgador poder/dever fazer as averiguações que considere por justificadas, também deve fazer aquelas que os autores ou o Ministério Público requeiram, antes de decidir pelo indeferimento liminar da petição.

8) Compulsados os autos, destes não consta que os autores tenham sido ouvidos relativamente ao documento que o tribunal a quo retirou da Internet e das interpretações que do mesmo extraiu, e também não foram ouvidas as testemunhas arroladas pelos autores na petição inicial – e cuja inquirição poderia fazer luz sobre os factos essenciais que os autores carregam para a petição inicial, designadamente: se a ré recusa o direito à garantia estabelecido por lei quando se tratem de baterias ou carregadores comprados há mais de seis meses e há menos de três anos.

9)Veja-se, ainda, que a ré tão pouco contestou, pois nem citada da ação foi – o indeferimento da petição foi liminar.

10) Ora, salvo o devido respeito e admitindo-se melhor opinião, parece-nos que o indeferimento liminar da petição inicial não se pode basear em factos que os autores não tiveram a hipótese de fazer prova ou, até mesmo, contradizer, porque não houve julgamento.

11)Note-se, que não se pretende aqui discutir questões de facto. Exige-se, porém, a articulação dos factos alegados na petição inicial para que se possa chegar à questão de direito que se julga ter sido incorretamente julgada.

12) Por isso, em nosso entender, e salvo o devido respeito, deveria o tribunal a quo, no mínimo, citar a ré, para que esta, querendo, contraditar os factos alegados pelos autores e proceder à inquirição das testemunhas arroladas pelos autores na petição inicial e respeitar o contraditório (cf. artigo 3, do CPC), antes de avançar logo para o indeferimento liminar da petição nos termos do artigo 13, da lei 83/95 – que, assim, foi violado.

13)Acresce que o tribunal a quo condenou os autores a pagarem as custas nos termos do artigo 20 (3), da lei 83/95, norma que se encontra revogada pelo artigo 25 (1) (norma revogatória) do decreto-lei 34/2008, pois o O regime atual de custas processuais na ação popular resulta da conjugação do artigo 4 (1, b) e (5) do decreto-lei 34/2008.


II – FUNDAMENTAÇÃO


2.1. – Problematiza-se no recurso a questão de saber se, perante a alegação da Autora e os elementos disponíveis, a procedência do pedido é “manifestamente improvável”, de modo a justificar o despacho de indeferimento liminar da petição inicial da presente acção popular cível.

Dispõe o Artigo 13.º (Regime especial de indeferimento da petição inicial) da Lei nº 83/95 de 31/8 - “A petição deve ser indeferida quando o julgador entenda que é manifestamente improvável a procedência do pedido, ouvido o Ministério Público e feitas preliminarmente as averiguações que o julgador tenha por justificadas ou que o autor ou o Ministério Público requeiram”.

A manifesta improcedência do pedido que legitima o indeferimento liminar, aferida casuisticamente, corresponde à evidente improcedência da pretensão do autor, à inviabilidade, o que contende com o próprio mérito da acção (questão de fundo) e já não de forma (por ex., falta de pressupostos processuais).

Ou seja, perante a alegação dos factos e razões de direito expostas na petição e uma averiguação sumária, incide, desde logo, uma pronúncia valorativa antecipatória sobre o mérito, quanto a saber se a pretensão formulada se apresenta viável, com probabilidade de êxito ou se está irremediavelmente condenada ao insucesso.

São também razões de economia processual que justificam o indeferimento liminar, pois se a pretensão é de tal modo inviável, não tendo qualquer probabilidade de êxito, será inútil o prosseguimento da acção, conduzindo a um desperdício da actividade judicial.

No âmbito dos casos em que a lei processual prevê a admissibilidade da rejeição liminar da petição inicial situam-se os de indeferimento liminar quando o pedido seja “manifestamente improcedente” (art.590 nº1 CPC). Este conceito aberto da manifesta improcedência abrange as situações de inviabilidade da pretensão, assente em juízo perfunctório, pelo que só quando o autor formula uma pretensão irremediavelmente condenada ao insucesso é que se pode afirmar que ela é manifestamente inviável.

2.2. – O caso, em concreto

A Associação Autora alegou, em síntese, conforme sumário no introito da petição inicial:

“1. a ré dedica-se comercialmente à venda ao público, no mercado nacional de distribuição retalhista, nomeadamente, de livros, discos multimédia e produtos técnicos, o que o faz quer nos seus estabelecimentos comerciais, como através do seu sítio na internet dedicado ao comércio eletrónico;

2. entre esses produtos comercializados pela ré, nomeadamente através do seu sítio da internet, encontram-se baterias e carregadores;

3. no seu sítio da internet dedicado ao comércio eletrónico, a ré informa sobre a existência e o prazo de garantia de conformidade dos bens constante no decreto-lei 84/2021, tal como imposto pelo artigo 4 (s), do decreto-lei 24/2014;

4. sendo no caso das baterias ou carregadores, a ré reduz o prazo de garantia previsto no artigo 10 (1), da diretiva (EU) 2019/771 e do artigo 12 (1), do decreto-lei 84/2021, de três anos para seis meses.

O comportamento da ré descrito no número anterior é aquele que esta adota para com todos os consumidores, seus clientes, os aqui autores populares, e que consubstancia numa violação dos direitos dos consumidores na compra de bens, e numa prática comercial desleal e restritiva da concorrência, as quais se entrecruzem, de modo secante, na defesa do consumidor.

Nos termos do artigo 51 (1), do decreto-lei 84/2021, é nulo o acordo, informação ou cláusula contratual pelo qual se reduza o prazo de garantia estabelecido no artigo 12 (1), do decreto lei 84/2021.

No ordenamento jurídico interno, o comportamento da ré é violador:

1. dos artigos 12 (1) e 13 (1), do decreto-lei 84/2021;

2. dos artigos 3 (a) (e) (f), 4 e 9 (1) da lei 24/96;

3. dos artigos 12 e 15, do decreto-lei 446/85;

4. dos artigos 473 e 483, do Código Civil (“CC”).

O comportamento da ré viola o seguinte direito da União Europeia:

1. artigos 10 (1) e 11 (1), da diretiva (UE) 2019/771;

2. artigo 3, da diretiva 93/13/CE;

3. diretiva 2014/104/UE – quanto às regras que regem às ações de indemnização por infração ado direito da concorrência;

Por sua vez, os autores populares têm direito à reparação integral dos danos sofridos por violações de tais regras quer nos termos das supra aludidas normas, como nos termos gerais do direito, designadamente, à luz dos artigos 227, 334, 5 / 68 483, 487, 496 e 798 do CC, do artigo 12 (1), da lei 24/96, e da diretiva 2014/104/UE.

Pelo que há a decidir é se:

1. as baterias e os carregadores estão sujeitos ou não ao disposto no artigo 10 (1), da diretiva (EU) 2019/771 e do artigo 12 (1), do decreto-lei 84/2021 e gozam, imperativamente, de um prazo de garantia de três anos, ou se esse prazo, pode ser reduzido para seis meses;

2. as baterias e os carregadores estão sujeitos ou não ao disposto no artigo 11 (1), da diretiva (EU) 2019/771 e do artigo 13 (1), do decreto-lei 84/2021 e gozam da presunção de que a falta de conformidade que se manifeste num prazo de dois anos era existente à data da entrega do bem, ou esse prazo presuntivo pode ser reduzido para seis meses, nomeadamente nos termos do artigo 13 (1), in fine, do decreto-lei 84/2021 e do artigo 11 (1), da diretiva (EU) 2019/771, na parte que diz que tal presunção seja incompatível com a natureza dos bens ou com a natureza da falta de conformidade;

3. se a cláusula contratual ou meramente informativa onde a ré anuncia essa redução de prazo de garantia e de presunção de dois anos para seis meses é proibida e, por conseguinte, nula, tanto nos termos do artigo 51 (1), do decreto-lei 84/2021, como dos artigos 12 e 15, do decreto-lei 446/85;

4. se o comportamento da ré foi doloso ou negligente;

5. se o comportamento da ré é suscetível de distorcer a equidade da concorrência;

6. se o comportamento da ré causou prejuízos aos autores populares e o seu quantum”.

No despacho de indeferimento liminar, o tribunal considerou ser manifestamente improvável a procedência do pedido, porquanto, analisando o documento nº3, junto com a petição inicial, e após pesquisa no sítio https://www.fnac.pt/condicoesvenda, concluiu que a Ré não reduz o prazo de garantia de três anos para seis meses, muito embora reconheça que a informação da Ré pode induzir em erro o consumidor.

O juízo de indeferimento baseou-se nos seguintes tópicos:

(i)Do documento nº3, junto com a petição inicial, não surge no primeiro parágrafo, com a epígrafe “Reparações de artigos”, a exclusão de bens de consumo/perecíveis (baterias, carregadores), constando apenas essa exclusão no capítulo das reparações de artigos fora de garantia.

(ii) Nele está expressamente referido o DL nº 84/2021 de 18/10, transpondo as directivas EU 2019/771 e EU 2019/770;

(iii) O documento nº3 é uma informação, não se podendo considerar um acordo ou uma cláusula contratual e o art.51 do DL nº 84/2021 refere expressamente “acordo ou cláusula geral”.

O documento nº3 junto com a petição, extraído da “Clínica FNAC” e no item “Reparações artigos fora da garantia”, estipula:

“Os artigos fora de garantia serão tratados pela Clínica FNAC.

1.Salvo indicação em contrário nas condições de garantia do fabricante, todos os componentes fornecidos beneficiam de garantia de 3 anos, exceto bens de Consumo/Perecíveis (baterias, carregadores) com 6 (seis) meses de garantia, e de 90 dias nos serviços prestados pela Clínica FNAC, salvo se a avaria decorrer de um mau uso de utilização do equipamento por parte do cliente”.

Confrontando o documento nº3, junto com a petição inicial, e o documento obtido pelo tribunal, verifica-se que o primeiro reporta-se aos produtos da Clínica Fnac e o segundo à Fnac online.

Sendo diferentes os canais, os produtos objecto de garantia na Clínica Fnac não são os que a Ré vende na sua loja, mas aqueles que a Ré utiliza na reparação dos equipamentos, e, portanto, impor-se-ia averiguar, após produção de prova, e de garantia do contraditório, se efectivamente a informação sobre a garantia está em conformidade com a legislação, adrede aplicável.

Ora, a este propósito, no próprio despacho reconhece-se que a informação prestada (no documento nº3) não é clara e inequívoca, podendo induzir o consumidor em erro, e esta circunstância, só por si, jamais poderia conduzir a um juízo de inviabilidade da pretensão da Autora.

Por outro lado, contrariamente ao pressuposto no despacho, o documento nº3 corporiza uma declaração vinculativa para o declarante, como sublinhou a recorrente, em conformidade com a directiva (EU) 2019/771, por consubstanciar publicidade conexa à garantia (art.3 nº1 do DL nº 330/90).

Acresce, como se enfatizou nas alegações de recurso, até de forma exemplificativa, a redução do prazo de garantia coloca-se para os produtos (componentes) utilizados pela Ré na reparação de equipamentos na sua Clínica Fnac tratando-se de um serviço da Ré onde os consumidores podem mandar reparar os seus equipamentos, tantos os comprados junto da Ré, como noutros vendedores, nomeadamente equipamentos que estejam já fora da garantia.

Como alega a recorrente – “Ora, acontece que muitos desses equipamentos, para serem reparados, necessitam de novos componentes. Esses novos componentes, obviamente, gozam da garantia prevista na lei para qualquer produto comprado novo. É aqui que a ré, ora recorrida, reduz o prazo de garantia de três anos para seis meses, no caso de baterias ou carregadores”.

Também aqui a informação prestada pela Ré é no mínimo ambígua, a implicar uma maior indagação que só com o prosseguimento da acção se logrará.

Neste contexto, os elementos disponíveis não justificam o juízo de manifesta improcedência, na acepção definida, quanto à pretensão da Autora, pelo que se impõe o prosseguimento da acção e a revogação do despacho recorrido.


III – DECISÃO


Pelo exposto, decidem:

1)


Julgar procedente a revista e revogar o despacho recorrido, determinando-se o prosseguimento da acção.

2)


Sem custas.


Lisboa, 10 de Abril de 2024

Jorge Arcanjo (Relator)

Nelson Borges Carneiro

Pedro de Lima Gonçalves