Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1608/20.3T8ALM.L1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: MARIA JOSÉ MOURO
Descritores: CASAMENTO
SEPARAÇÃO DE BENS
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
IMOVEL
CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
OBRIGAÇÃO DE RESTITUIÇÃO
CONTA CONJUNTA
ABUSO DO DIREITO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
NULIDADE DE ACÓRDÃO
EXCESSO DE PRONÚNCIA
Data do Acordão: 03/15/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REVISTA IMPROCEDENTE.
Sumário :

I - Havendo o Tribunal da Relação respeitado o objecto do recurso - delimitado pelo teor do requerimento de interposição, pelas conclusões e pelas questões de conhecimento oficioso – socorrendo-se dos factos provados e para isso se fundando nas disposições processuais atinentes, não se verifica a invocada nulidade por excesso de pronúncia.


II – Tendo A. e R. sido casados no regime da separação de bens e havendo um imóvel adquirido pela R., com registo a seu favor, sido pago com capitais do A. e da R., tais circunstâncias traduzem um enriquecimento obtido pela R. à custa do A..


III – Se a contribuição em dinheiro do A. para a aquisição do imóvel teve como causa a obtenção pelo casal, ambos emigrantes, de uma casa destinada à fruição comum, nela instalando a casa de morada de família regressados que foram a Portugal, com o posterior divórcio, desapareceu supervenientemente a causa da deslocação patrimonial a favor da R..


IV - Os valores pertencentes ao A. utilizados na compra da casa de que a R. é proprietária foram “recebidos” por virtude de uma causa que deixou de existir (condictio ob causam finitam) havendo lugar à obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa.


V- Pertencendo os valores em dinheiro utilizados na aquisição do imóvel ao A. e à R. sem que se apurasse qual a participação de um e de outro e havendo estado esses valores depositados em contas conjuntas do casal, presume-se a propriedade em comum com quotas iguais relativamente ao A. e à R..


VI - O direito do A. à restituição com fundamento no enriquecimento sem causa, exercido através desta acção, não excede manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

Decisão Texto Integral:

Proc. 1608-20.3T8ALM.L1.S1


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção):


*


IAA intentou acção declarativa com processo comum contra BB.


Alegou o A., em resumo:


O A. foi casado com a R., no regime da separação de bens, casamento que veio a cessar por divórcio.


Na pendência do casamento a R. comprou uma fracção autónoma, o que foi efectuado com capitais próprios do A., capitais que ele transferira para uma conta conjunta com a R.; o imóvel foi, depois, registado pela R. a seu favor.


O A. realizou, também, diversas benfeitorias no imóvel cujo valor foi pago por si.


Com o divórcio o A. deixou de poder usufruir da casa adquirida, anteriormente fruída em comum, não recebendo qualquer compensação.


Pediu o A. que a R. seja condenada a pagar-lhe a quantia de 165.000,00 €, acrescida de juros de mora à taxa legal, contados desde a citação até integral pagamento.


Citada, a R. contestou. Invocou a excepção do caso julgado, porque na sentença de divórcio se consignara que a casa de morada de família era bem próprio da ora R.. Apresentou diversa versão dos factos, alegando, designadamente, que o imóvel fora adquirido com dinheiro de ambos e que a razão da aquisição e do registo em nome da R. fora a de a casa vir a ficar para a filha do casal, uma vez que o A. tinha outros filhos.


Concluiu pela procedência da excepção e pela absolvição da R. do pedido, pedindo a condenação da A. como litigante de má fé.


O processo prosseguiu. No saneador foi julgada improcedente a excepção do caso julgado, vindo, a final, a ser proferida sentença que decidiu nos seguintes termos: «… o Tribunal decide julgar a ação parcialmente procedente, e em conformidade condena a R. BB a pagar ao A. AA a quantia de € 57.500,00, acrescida de juros de mora contados desde a data da citação até à presente data, à taxa de 4%, e desde a presente data até efetivo e integral pagamento, à taxa legal.


Mais decide absolver a R. do pedido de condenação por litigância de má fé».


Interposto recurso de apelação pela R., a Relação de Lisboa, em acórdão de 27-10-2022 (com um voto de vencido) deliberou:


«1) Rejeitar a impugnação da decisão de facto e aditar oficiosamente os factos assentes, nos termos indicados supra;


2) Julgar improcedente o recurso, mantendo a decisão recorrida».


Do acórdão interpôs a R. recurso de revista, apresentando as seguintes conclusões de recurso:


1.ª – A obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa pressupõe a verificação cumulativa de três requisitos, quais sejam, a existência de um enriquecimento; sem causa justificativa; e à custa de quem requer a restituição;


2.ª - O requisito da falta originária ou subsequente de causa justificativa do enriquecimento, porque assume a natureza de elemento constitutivo do direito à restituição, recai sobre o autor do pedido de restituição por enriquecimento sem causa;


3.ª – Não é de excluir a aplicação do regime do enriquecimento sem causa para obter a restituição de atribuições patrimoniais realizadas na constância do matrimónio, após a sua dissolução, ainda que vigore entre os cônjuges o regime da separação de bens.


4.ª – Não obstante o referido em 3., se não provou o autor que concreta prestação efectuada à cônjuge apenas ocorreu no pressuposto da continuidade da vida em comum que fazia enquanto casado com a ali Ré e ora Recorrente, forçosa é a improcedência do pedido do ali autor de condenação da ali ré com base no instituto do direito substantivo civil e do enriquecimento sem causa, e na situação/modalidade típica da condictio ob causam finitam.


5.ª - Provado que concreta prestação pecuniária atribuída a pretenso enriquecido foi efectuada para que um imóvel – adquirido parcialmente com tal prestação - ficasse, mais tarde, para a filha de ambos (enriquecido e empobrecido, que era filha única da empobrecida ), não se provando que este último desiderato se tornou juridicamente “impossível, não existe assim prova de um enriquecimento sem causa justificativa e na modalidade de condictio ob causa futuram.


6.ª – Em face do referido em 4. e 5. , não logrou em última análise o autor demonstrar a falta de causa justificativa de prestação pecuniária efectuada à Ré e, consequentemente, improcede o pedido de restituição que deduziu, com fundamento no enriquecimento sem causa , pois que, em rigor a falta de causa do enriquecimento não se basta com a cessação do vínculo conjugal, antes necessário é que o autor alegue e prove – que in casu não aconteceu - que a deslocação patrimonial se verificou no pressuposto – querido por ambos, em termos expressos ou tácitos -, entretanto desaparecido, da continuação e subsistência do referido vínculo


7.ª - Se o empobrecido não logrou provar em que medida contribuiu para a economia comum e em que medida e com que valores foram adquiridos determinados bens, jamais conseguirá demonstrar que existiu enriquecimento sem causa, por não preencher cabalmente o seu ónus probatório. Se a D. Sentença entendeu não dar como procedente o pedido de outros valores reclamados por obras, justamente por falta de cumprimento do ónus probatório e já admite, em face da mesma falta de preenchimento do ónus probatório, dar como parcialmente provado o pedido de enriquecimento sem causa, podemos até estar em face de nulidade da Sentença por contradição. Existindo assim oposição entre os fundamentos e a decisão.


8.ª – A opção livre por um determinado regime de bens no casamento, pela aquisição e registo de um imóvel em determinadas circunstâncias para proteger uma filha, de filhos de um anterior casamento, é uma opção possível e legal, e que constitui uma causa para justificar um enriquecimento. Com efeito, tal opção é perfeitamente admissível à luz dos princípios da autonomia privada refere o espaço de autodeterminação pessoal, abrangendo tudo o que cada pessoa pode fazer. Neste sentido, a autonomia privada é uma expressão do princípio da liberdade, permitindo tudo o que não for imposto ou proibido. Numa aceção mais restrita, o conceito de autonomia privada refere a permissão concedida pela ordem jurídica para que as pessoas possam determinar a produção de efeitos jurídicos. A autonomia privada manifesta-se através do exercício dos direitos subjetivos e da possibilidade de celebração de negócios jurídicos (unilaterais ou contratos). A autonomia privada é frequentemente identificada com uma das suas mais significativas expressões: a liberdade contratual, prevista no artigo 405º do Código Civil, abrangendo quer a possibilidade de celebrar ou não celebrar determinado contrato (liberdade de celebração), quer a possibilidade de fixação do conteúdo do contrato (liberdade de estipulação). O princípio da liberdade contratual encontra-se confinado pelas limitações estabelecidas pela ordem jurídica, decorrentes da aplicação de outros princípios como, por exemplo, a ordem pública ou a boa-fé. No essencial, é possível reconhecer três espécies de limitações: (i) a imposição de contratar; (ii) a proibição de contratar; (iii) a necessidade de obtenção de consentimento de terceiros. O princípio da autonomia privada enforma todo o Direito Privado, com especial incidência no Direito das Obrigações. A generalidade das regras jurídicas estabelecidas tende assim a assumir natureza supletiva, apenas se aplicando quando não forem afastadas pela vontade das partes. Nomeadamente a liberdade de escolher o seu regime de casamento e de escolher a forma como adquirem certos bens e os registam.


9.ª - Para se reconhecer a obrigação de restituir sustentada no enriquecimento, não é suficiente que se demonstre a obtenção duma vantagem patrimonial, à custa de outrem, sendo exigível ainda exigível mostrar que não exista uma causa justificativa para essa deslocação patrimonial, importando anotar que a falta originária ou subsequente de causa justificativa do enriquecimento assume a natureza de elemento constitutivo do direito à restituição, impondo-se, assim, ao demandante que reclama a restituição, por enriquecimento sem causa, o ónus da demonstração dos respetivos factos constitutivos que contém a falta de causa justificativa desse enriquecimento.


10.ª – A conduta de uma parte, no caso o empobrecido, ao longo de pelo menos 7 anos, num determinado sentido, quanto ao regime de bens de casamento escolhido, à forma de aquisição de um imóvel, ao seu registo, à declaração de que esse bem seria bem próprio da outra parte, sempre com o fito de proteger a filha do casal, gera na outra parte e até na própria filha do casal legitimas expectativas, juridicamente tuteladas, pelo que a inversão de posição daquela parte, num autêntico dando o dito pelo não dito, constitui abuso de direito, ou reserva mental de tal declarante com o intuito de enganar o declaratório, senão má fé – isto é matéria de Direito e não necessita de alegação especial de enquadramento fáctico.


11.ª – Se um facto oficiosamente aditado pelo TRL extravasa o pedido nas conclusões do recurso e não pode o Tribunal agora vir conhecer um facto que a parte não alegou como era seu ónus, substituindo-se a esta – artigos 3.º, 4.º, 5.º, 259.º, 260.º, 265.º, 265.º, 609.º, 613.º e 615.º, n.º 1 al. d) todos do CPC, e, logo tal facto, não deve ser admitido e ainda para mais se cotejada toda a PI, ele não está sequer alegado em lado algum, logo não pode ser agora inventado ex novo, ainda mais como algo alegado e acordado entre as partes, é assim nulo nesta parte o D. Acórdão por manifesto excesso de pronúncia.


12.ª - Impugnação da matéria de Direito, as Instâncias não aplicaram, ou interpretaram erroneamente pelo menos os artigos seguintes:


- 6.º, n.º 1 da CEDH;


- 7.º do Código do Registo Predial;


- 244.º, 334.º, 342.º, 344.º, 405.º, 473.º, n.º 2, 1618.º, 1634.º, 1698.º e 1735.º do Código Civil;


- 3.º, 4.º, 5.º, 259.º, 260.º, 265.º, 265.º, 609.º, 613.º e 615.º, n.º 1 al. d) todos do CPC, o que consigna os termos e para os efeitos do artigo 6 15.º, n.º 1 al. c) 639.º, n.º 2 do CPC.


O A. respondeu à alegação de recurso (Rfrª 44044600).


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II – Sendo as conclusões da alegação de recurso, no seu confronto com a decisão recorrida, que delimitam o objecto da revista (nº 4 do art. 635 do CPC), sem prejuízo de questões de conhecimento oficioso que possam ser decididas com base nos elementos constantes do processo, tendo em conta as conclusões apresentadas pela recorrente, emergem como questões a considerar: a da suscitada nulidade do acórdão recorrido, por excesso de pronúncia; estarem reunidos os pressupostos da obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa; medida da eventual obrigação de restituição; verificação do abuso de direito.


Esclarece-se, ainda, o seguinte:


De acordo com o nº 1 do art. 639 do CPC o recorrente deve apresentar a sua alegação na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão. Ou seja, expostas pelo recorrente, no corpo da alegação, as razões da sua discordância com a decisão impugnada, deverá ele, face à sua vinculação ao ónus de formular conclusões, terminar com a indicação resumida, através de proposições sintéticas, dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão. Por outro lado, consoante supra aludido, atento o disposto no nº 4 do art. 635 do CPC, nas conclusões da alegação de recurso o recorrente pode limitar, expressa ou tacitamente, o objecto do recurso.


Deste modo, as reflexões da recorrente constantes do corpo da alegação de recurso e que não transparecem nas conclusões respectivas não são de apreciar (aliás, algumas delas, referentes à factualidade provada que assim não deveria ter sido considerada, sempre excederiam o objecto do recurso de revista - nº 3 do art. 674 do CPC).


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III - As instâncias julgaram provada a seguinte matéria de facto:


1. No ano de 1982, o A. emigrou para o ..., Inglaterra.


2. O A. logo arranjou ocupação profissional, em áreas distintas, nunca lhe faltando serviço.


3. Entre 1994 e 1996, ainda em Inglaterra, o A. conheceu a R., encetando com esta uma relação amorosa.


4. Trabalhavam, então, ambos na restauração.


5. Na sequência dessa relação amorosa, o A. casou civilmente com a R., sob o regime imperativo de separação de bens, em ........2001 (1), em ..., Inglaterra.


6. Vindo o casal a ter uma filha a ........2002.


7. O A. depositou o produto da venda de um imóvel sito em ... numa conta sediada em ..., onde já haviam sido depositados valores de outras proveniências, como seja o fruto do seu trabalho.


8. Posteriormente, o A. transferiu a verba necessária para a Caixa Geral de Depósitos, em Portugal, onde tinha uma conta conjunta com a R..


9. Em 18.03.2013 foi celebrado contrato de compra e venda do imóvel descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de ..., sob o número 17076, da Freguesia de ..., sito na Rua ..., ..., inscrito na matriz sob o artigo 8577, da União de Freguesias de ..., no qual interveio a R. na qualidade de compradora.


10. A compra foi realizada pelo valor de € 115.000,00.


11. Tendo a R. registado a aquisição do imóvel a seu favor, pela Ap. 86, de 11.04.2013.


12. Por sentença de 28.01.2019, proferida no processo n.º 62/1..., que correu termos no Juízo de Família e Menores de ..., Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, transitada em julgado a 04.03.2019, A. e R. vieram a divorciar-se.


13. O A. efetuou diversas obras no imóvel, a saber, alteração de canalização integral, montagem de nova rede elétrica, pintura interior de todas as paredes, remoção e aplicação de novo mosaico, remoção e aplicação de novo azulejo, montagem de aplicação de móveis, instalação de novas loiças sanitárias, montagem de nova cozinha, com eletrodomésticos.


14. As quais foram realizadas pela mão do A., entre maio de 2013 e outubro do mesmo ano.


15. A R. voltou ao trabalho quatro meses após o nascimento da filha.


16. A R. trabalhava, então, no P..., Ltd., uma empresa de limpezas.


17. A filha do casal ia com a R. para o trabalho, com o conhecimento e o consentimento das entidades patronais.


18. O imóvel vendido era do casal e a conta onde foi depositado o dinheiro proveniente da venda da casa situada em ... era conjunta.


19. O dinheiro foi transferido para uma conta conjunta do casal sedeada em Portugal com a finalidade de comprarem aqui uma casa.


20. Com o dinheiro proveniente da venda da casa de ... foi comprada a casa em Portugal e o dinheiro que sobrou destinou-se, designadamente, a obras na casa de Portugal.


21. O imóvel ficou em nome da R. por vontade do A., o qual queria que o imóvel ficasse, mais tarde, para a filha de ambos, uma vez que o A. tem filhos de uma anterior relação e não queria que aqueles tivessem direito à casa, em virtude de estar de relações cortadas com eles.


22. A. e R. regressaram a Portugal em maio de 2013.


23. Na sentença de divórcio foi consignado que o imóvel em causa é bem próprio da R..


24. O casal viveu em economia comum, contribuindo ambos com os seus rendimentos para as despesas domésticas.


Havendo o Tribunal da Relação de Lisboa aditado oficiosamente o seguinte facto:


25. A aquisição da fracção em causa destinou-se à fruição comum da Ré e do Autor que nela instalaram a casa de morada de família.


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IV – 1 - O facto com o número 25. («A aquisição da fracção em causa destinou-se à fruição comum da Ré e do Autor que nela instalaram a casa de morada de família») foi aditado pelo Tribunal da Relação com os seguintes fundamentos:


A «matéria de facto alegada no artigo 37.º da petição inicial não foi impugnada expressa ou implicitamente pela Ré. Por outro lado, a Ré expressamente admitiu no artigo 41.º da contestação que a fracção em causa era a casa de morada de família do casal em Portugal.


Nos termos do artigo 663.º, n.º 2, com referência ao artigo 607.º, n.º 4, ambos do CPC, por se entender admitido por acordo das partes, nos termos do artigo 574.º, n.º 2, do CPC, deve aditar-se à matéria de facto assente» o ponto da matéria de facto em referência.


Nas conclusões da alegação de recurso invoca a apelante a nulidade por excesso de pronúncia, dizendo: «Se um facto oficiosamente aditado pelo TRL extravasa o pedido nas conclusões do recurso e não pode o Tribunal agora vir conhecer um facto que a parte não alegou como era seu ónus, substituindo-se a esta – artigos 3.º, 4.º, 5.º, 259.º, 260.º, 265.º, 265.º, 609.º, 613.º e 615.º, n.º 1 al. d) todos do CPC, e, logo tal facto, não deve ser admitido e ainda para mais se cotejada toda a PI, ele não está sequer alegado em lado algum, logo não pode ser agora inventado ex novo, ainda mais como algo alegado e acordado entre as partes, é assim nulo nesta parte o D. Acórdão por manifesto excesso de pronúncia».


A Relação, pronunciando-se sobre a nulidade invocada, considerou:


«A nulidade verifica-se quando o tribunal decide sobre questões de que lhe estava vedado conhecer, sendo que das próprias normas citadas decorre estar o juiz da Relação vinculado, nos mesmos termos do da primeira instância, a tomar oficiosamente em consideração na apreciação a que procede os factos admitidos por acordo.


Em tal caso, a decisão de considerar o facto admitido por acordo pode ser impugnada pela via do recurso, nos termos gerais, sendo legítima a discordância, mas improcedente a arguição de nulidade».


A nulidade por excesso de pronúncia está correlacionada com o nº 2 do art. 608 do CPC - devendo o juiz resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras. Em conformidade, o nº 1 – d) do art. 615 do CPC, dispõe ser nula a sentença quando o juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento - não podendo o juiz conhecer de causas de pedir não invocadas, nem de excepções na exclusiva disponibilidade das partes é nula a sentença em que o faça. Se o juiz conheceu de questão que nenhuma das partes lhe submeteu, procedendo assim apesar de nem a lei processual nem a lei substantiva lhe permitirem o poder de apreciação oficiosa, cometeu aquela nulidade, exercendo actividade exorbitante ou excessiva (2).


Face ao art. 666, nº 1, do CPC, tal é aplicável à 2ª instância, concretamente aos acórdãos proferidos pelos Tribunais da Relação.


Assim, nos acórdãos (tal como na decisão singular que seja proferida, ao abrigo do disposto no art. 656 do CPC) haverá que respeitar o objecto do recurso que é delimitado pelo teor do requerimento de interposição, pelas conclusões e pelas questões de conhecimento oficioso cujo conhecimento ainda se não encontre precludido, sob pena de se verificar a nulidade em causa.


Sucede, porém, que a Relação deverá ter em conta para efeitos de aplicação do direito, os factos que considere provados fazendo os necessários aditamentos quanto a factos alegados pelas partes e que se encontrem demonstrados (assim, assentes por acordo ou por confissão relevante ou, ainda, provados por documento) - aditamento que poderá ter lugar oficiosamente, sem que as partes o hajam reclamado. É o que decorre do disposto no nº 2 do art. 663 do CPC que remete para o art. 607 do mesmo Código, cujo nº 4 determina que na fundamentação da sentença (aqui, do acórdão) serão tomados, ainda, em consideração os factos que «estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito (3).


Lateralmente, sempre se acrescentará, que, consoante mencionado no acórdão recorrido, o facto aditado decorre do alegado pelo A. e não impugnado pela R. no artigo 37 da p.i., conjugado com o afirmado pela própria R. no artigo 41 da contestação.


Ora, havendo o Tribunal da Relação respeitado o objecto do recurso - delimitado pelo teor do requerimento de interposição, pelas conclusões e pelas questões de conhecimento oficioso – socorrendo-se dos factos provados e para isso se fundando nas disposições processuais atinentes, não se verifica a invocada nulidade por excesso de pronúncia.


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IV – 2 – Na fundamentação da decisão proferida, o Tribunal da Relação percorreu, designadamente, a seguinte senda:


- Verifica-se «um aumento do património da Ré (o qual passou a integrar a fracção) à custa do património do Autor (do qual saiu dinheiro utilizado para pagamento do preço da fracção)», concluindo-se pela existência de um enriquecimento, de um empobrecimento e de nexo causal entre um e o outro;


- O que suscita controvérsia nos autos é a existência ou não de causa justificativa da atribuição patrimonial que determinou o enriquecimento da Ré e o empobrecimento do Autor;


- Trata-se de situação reconduzível á situação de prestação por causa que deixou de existir (condictio ob causam finitam) já que a atribuição patrimonial teve como causa a aquisição de casa para A. e R. e respectiva família viverem, causa que deixou de existir com o divórcio;


Nomeadamente, sustenta a apelante (seguindo, aliás, de muito perto, o expresso no voto de vencido do acórdão da Relação):


- O requisito da falta originária ou subsequente de causa justificativa do enriquecimento, porque assume a natureza de elemento constitutivo do direito à restituição, recai sobre o autor do pedido de restituição por enriquecimento sem causa;


- Se o A. não provou que a concreta prestação efectuada à R apenas ocorreu no pressuposto da continuidade da vida em comum terá de improceder o peticionado com base no instituto do enriquecimento sem causa, e na situação/modalidade típica da condictio ob causam finitam;


- Provado que a concreta prestação pecuniária atribuída ao A., foi efectuada para que um imóvel – adquirido parcialmente com essa prestação – ficasse mais tarde, para a filha de A. e R. e não se provando que este último desiderato se tornou juridicamente “impossível”, não existe prova de um enriquecimento sem causa justificativa e na modalidade de condictio ob causa futuram.


- Pelo que o A. não demonstrou a falta de causa, como se impunha;


- Se o A. não logrou provar em que medida e com que valores foram adquiridos os bens não conseguirá demonstrar que existiu enriquecimento sem causa.


Vejamos, então.


Dispõe o art. 473 do CC:


«1. Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou.


2. A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou».


A referida obrigação de restituir e a correspondente pretensão à restituição constituem uma forma de compensação instituída pela lei para certas situações que, embora formalmente conformes aos seus preceitos conduzem a resultados – de injusto enriquecimento – substancialmente reprovados pelo direito (4).


A obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa, tal como emerge do nº 1 do art. 473, pressuporá a verificação cumulativa de três requisitos (5):


1 – Que haja um enriquecimento, consistindo este na obtenção de uma vantagem de carácter patrimonial, seja qual for a forma que essa vantagem revista – aumento do activo patrimonial, diminuição do passivo, uso ou consumo de direito alheio, ou exercício de direito alheio, poupança de despesas;


2 - Que aquele enriquecimento careça de causa justificativa, ou porque nunca a tenha tido, ou tendo-a inicialmente a haja depois perdido – o que se traduz na inexistência de uma relação ou de um facto que à luz dos princípios aceites no sistema legitime o enriquecimento (6);


3 - Que o enriquecimento tenha sido obtido à custa de quem requer a restituição.


O nº 2 do art. 473, a propósito da obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, menciona três condictiones (7): condictio indebiti – o que foi indevidamente recebido; condictio ob causam finitam – o recebido por virtude de uma causa que deixou de existir; condictio ob rem ou causa data causa non secuta – o recebido em vista de um efeito que não se verificou (8).


Menezes Leitão distingue, no âmbito do enriquecimento sem causa, quatro situações: o enriquecimento por prestação, o enriquecimento por intervenção, o enriquecimento resultante de despesas efectuadas por outrem e o enriquecimento por desconsideração de um património (9).


No enriquecimento por prestação alguém efectua uma prestação a outrem verificando-se uma ausência de causa que permita a recepção ou a manutenção da prestação em referência (10); modalidades do mesmo serão a repetição do indevido, a restituição por posterior desaparecimento da causa e a restituição por não verificação do efeito pretendido.


No que respeita à tradicional condictio ob causam finitam, mencionada no nº 2 do art. 473 (restituição da prestação por posterior desaparecimento da causa) refere dever «considerar-se aplicável esta disposição aos casos de extinção do casamento, quando um dos cônjuges realizou ao outro atribuições patrimoniais que excedam o cumprimento dos seus deveres conjugais e não revistam a natureza de uma doação» (11).


Diogo Costa Gonçalves (12) diz-nos que a jurisprudência tem usado o enriquecimento sem causa «para equilibrar o valor representado pela casa de morada de família, em caso de divórcio, ou de tornar mais justas situações que perderam a sua razão de ser, em face do divórcio».


Igualmente Júlio Gomes (13) menciona, a propósito da condictio ob causam finitam que uma das «hipóteses em que a nossa jurisprudência a tem utilizado é aquela em que um dos cônjuges realiza despesas para conservar ou melhorar bens que são propriedade que do outro membro do casal. (…) A cessação do casamento funcionaria como o desaparecimento subsequente da causa do enriquecimento do outro».


Tecidas estas considerações genéricas, com vista ao enquadramento da situação em estudo, observemos o concreto caso dos autos.


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IV – 3 - Provou-se que sendo A. e R. casados sob o regime de separação de bens, o A. depositou o produto da venda de um imóvel do casal, sito em ..., numa conta conjunta do casal, sediada em ..., onde já haviam sido depositados valores de outras proveniências (como seja o fruto do seu trabalho) e, posteriormente, transferiu a verba necessária para a Caixa Geral de Depósitos onde tinha uma conta conjunta com a R..


Provou-se, também, que em 18-3-2013 foi celebrado contrato de compra e venda do imóvel sito na Rua ..., ..., União de Freguesias de ..., no qual interveio a R. na qualidade de compradora, sendo a compra realizada pelo valor de € 115.000,00 e que a R. registou a aquisição do imóvel a seu favor - assim, o imóvel “ficou em nome da R.”. Vindo A. e R. a divorciar-se, na sentença de divórcio foi consignado que o imóvel em causa era bem próprio da R..


Temos, pois, um imóvel que é propriedade exclusiva da R., uma vez que a aquisição foi realizada apenas por si (e registada a seu favor), quando era casada com o A. no regime da separação de bens (art. 1735 do CC), mas que foi comprado com capitais pertencentes ao A. e à R., nos termos que melhor definiremos em IV -5) - foi utilizado para a compra dinheiro proveniente da venda de um imóvel que era do casal, dinheiro esse entretanto depositado sucessivamente em duas contas conjuntas do mesmo casal.


Sendo o imóvel propriedade exclusiva da R., mas havendo sido pago por A. e R., nos termos apontados, tais circunstância traduzem-se, objectivamente, num enriquecimento obtido pela R. à custa do A..


Ou seja, consoante considerado no acórdão recorrido, verifica-se «um aumento do património da Ré (o qual passou a integrar a fracção) à custa do património do Autor (do qual saiu dinheiro utilizado para pagamento do preço da fracção)» - logo, temos a existência de um enriquecimento, de um empobrecimento e do nexo causal entre um e o outro.


A propósito de situações similares alude Pereira Coelho (14) ao relacionamento económico que existe na relação «entre os cônjuges, mesmo que casados em regime de separação de bens – desobedecendo a regras precisas, com a normal “condescendência” e “despreocupação” própria de uma comunhão de vida assente numa confiança irrestrita entre os sujeitos».


A questão fundamental situa-se, todavia, em redor do elemento “ausência de causa”.


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IV – 4 – Não discordando em absoluto do sustentado pela recorrente nas suas 2ª e 9ª conclusões, afigura-se-nos que quem invoca o enriquecimento sem causa deve invocar e demonstrar os respectivos requisitos, designadamente a falta de causa, elemento constitutivo - não bastará que não se prove a existência de uma causa da atribuição, sendo necessária a demonstração da falta de causa (art. 342, nº 1 do CC).


É esse o entendimento da generalidade da jurisprudência portuguesa (15) (16).


Nas palavras de Antunes Varela (17) «é preciso convencer o tribunal da falta de causa».


Júlio Gomes (18) depois de referir que para a maior parte da jurisprudência nacional, a prova da ausência de causa, porque facto constitutivo do direito de restituição, deve ser alegado e provado por quem a pede, acrescenta que embora lhe pareça correcta tal posição de princípio, se lhe afigura «que importa atender igualmente ao ónus de contra-alegação e de impugnação do Réu».


Já Diogo Costa Gonçalves (19) menciona que sendo a falta de causa um elemento constitutivo, deve ser provado por quem se quer prevalecer do instituto, mas que haverá que «ser razoável» - «cada situação de enriquecimento, a ser legítima, tem causas típicas ou habituais: a sua ausência deve ser minimamente demonstrada. A partir daí o juiz deva agir com prudência e razoabilidade».


No caso que nos ocupa, no acórdão recorrido, foi considerado que a atribuição patrimonial teve como causa a aquisição de casa para A. e R. e respectiva família viverem, causa que deixou de existir com o divórcio - situação reconduzível á aludida condictio ob causam finitam.


Já a apelante considera que o A. não demonstrou a “falta de causa”, uma vez que não provou que a concreta prestação efectuada à R. apenas ocorreu no pressuposto da subsistência do vínculo conjugal e da continuidade da vida em comum, defendendo que provado que a concreta prestação pecuniária atribuída ao A., pretenso enriquecido, foi efectuada para que um imóvel, adquirido parcialmente com essa prestação, ficasse mais tarde, para a filha de A. e R. e não se provando que este último desiderato se tornou juridicamente “impossível”, não existe prova de um enriquecimento sem causa justificativa e na modalidade de condictio ob causa futuram (4ª a 6ª conclusões).


Assim, a divergência fundamental coloca-se relativamente ao desaparecimento da causa justificativa da atribuição patrimonial.


Atentemos aos factos provados. Sabemos que:


- O A. e a R. conheceram-se e encetaram uma relação amorosa entre 1994 e 1996, em Inglaterra, trabalhando, então, ambos na restauração, vindo a casar civilmente, sob o regime imperativo da separação de bens, em 17-2-2001, em Londres;


- O contrato de compra e venda do imóvel sito na Rua ..., ..., União de Freguesias de ..., em que a R. figura como compradora, foi celebrado em 18-3-2013, sendo registado o imóvel em nome da R., havendo o dinheiro para a compra sido transferido para uma conta conjunta do casal sedeada em Portugal, com a finalidade de comprarem aqui uma casa;


- A. e R. regressaram a Portugal em maio de 2013;


- O imóvel destinou-se à fruição comum da R. e do A. que nela instalaram a casa de morada de família;


- O imóvel ficou em nome da R. por vontade do A., o qual queria que o imóvel ficasse, mais tarde, para a filha de ambos, nascida em ...-...-2002, uma vez que o A. tem filhos de uma anterior relação e não queria que aqueles tivessem direito à casa, em virtude de estar de relações cortadas com eles;


- A. e R. vieram a divorciar-se por sentença de 28-1-2019, transitada em julgado a 4-3-2019.


Neste contexto, a contribuição em dinheiro do A. para a aquisição do imóvel (em contrato em que figurou apenas a R. como compradora, vindo a ser registado em seu nome e aumentando consequentemente o seu património) teve uma “causa”: a obtenção pelo casal, casados no regime da separação de bens, ambos emigrantes, de uma casa, em Portugal, destinado à fruição comum, nela instalando a casa de morada de família, regressados que foram a Portugal em Maio de 2013.


Com o ulterior divórcio, cerca de seis anos depois, desapareceu supervenientemente a causa da aludida deslocação patrimonial a favor da R.: cessou o casamento, deixou de haver a fruição comum do imóvel – como o A. refere (artigo 28 da p.i.) deixou de poder usufruir da casa adquirida. A cessação do casamento reconduz-se, aqui, ao desaparecimento subsequente da causa do enriquecimento - o que nos leva à condictio ob causam finitam referida no nº 2 do art. 473 do CC.


Consignou-se no acórdão do STJ de 22-6-2021 (20), a propósito de situação que não tem os mesmos precisos contornos, mas em que, no cerne, se coloca questão similar:


«De um lado, a ordem jurídica deve reagir quando alguém obtém uma vantagem que, segundo os princípios jurídicos e a distribuição de bens por estes preconizada, não lhe compete; de outro lado, deve tutelar-se o cônjuge “à custa” do qual o enriquecimento se verificou e que sofreu, assim, uma perda. Verificar-se-ia aqui um enriquecimento por prestação. O art. 473.º, n.º 2, do CC, inclui a situação de alguém ter realizado uma prestação em virtude de uma causa que deixou de existir, abrangendo assim a hipótese da condictio ob causam finitam. No momento da prestação (contribuição monetária para as obras de conservação e melhoramento do imóvel) existe uma causa jurídica (a comunhão de vida resultante do casamento; a escolha, de comum acordo, da residência da família; o acordo tácito sobre a orientação da vida familiar) que lhe está subjacente. Todavia, ulteriormente, com o divórcio, verifica-se o desaparecimento dessa mesma causa jurídica, a frustração do fim da prestação realizada, podendo afirmar-se o surgimento de uma pretensão restitutória. Os pressupostos são a aquisição de um enriquecimento, mediante a prestação de outrem, sem causa jurídica que legitime a manutenção desse enriquecimento. Exige-se a verificação da receção da prestação (enriquecimento) e a ausência de causa jurídica para essa receção; aqui, porque a causa que subjazia à prestação e justificava da retenção das vantagens por ela produzidas desaparece posteriormente. Um dos cônjuges efetua contribuições que geram benefícios patrimoniais duradouros para o outro cônjuge (a valorização do imóvel) que se prolongam para além da extinção da relação matrimonial, mas que, enquanto esta dura, têm o seu correspetivo na comunhão conjugal (pessoal e patrimonial). A cessação, em determinado momento, do casamento, conduz a que os respetivos benefícios patrimoniais, que eram proporcionados pelo matrimónio a ambos os cônjuges, sejam suscetíveis de reverter a favor de apenas um deles, gerando-se o correspondente desequilíbrio patrimonial».


Entendemos, pois, em contrário do defendido pela recorrente nas suas conclusões 4ª e 6ª, que a factualidade apurada permite concluir que os valores pertencentes ao A. utilizados na compra da casa de que a R. é proprietária foram “recebidos” por virtude de uma causa que deixou de existir, havendo lugar à obrigação de restituir (21).


No que respeita a esta matéria, apenas mais uma nota. Provou-se que o imóvel ficou em nome da R. por vontade do A., o qual queria que o imóvel ficasse, mais tarde, para a filha de ambos, uma vez que o A. tem filhos de uma anterior relação e não queria que aqueles viessem a ter direito à casa, por estar de relações cortadas com eles. Tal como no acórdão recorrido, cuidamos que a pretensão de exclusão dos filhos do A. de virem, por herança, a ter qualquer direito sobre a casa, não pode ser reconduzido à causa da atribuição patrimonial realizada pelo A., (que, aliás, teve como concreta destinatária a R. e não a filha do casal ); trata-se, tão só, das razões subjacentes que motivaram o A. a não querer figurar como proprietário do imóvel, de modo a que mais tarde o mesmo viesse a integrar a sua herança.


*


IV – 5 – Entendeu a Relação dever considerar-se como quantitativamente iguais a parte de cada um dos cônjuges (A. e R.) no montante utilizado para pagamento do preço, concluindo que estando assente que o preço da fracção foi pago com dinheiro depositado em conta bancária de A. e R. deve considerar-se que eram comproprietários dos valores depositados, presumindo-se iguais as quotas.


A recorrente, discorda, quando afirma que o A. não logrou provar em que medida contribuiu para a economia comum e em que medida e com que valores foram adquiridos os bens, não demonstrando que existiu enriquecimento sem causa (7ª conclusão).


O enriquecimento sem causa verifica-se, consoante acima explicado – a “medida” a que a apelante se reporta correlacionar-se-á, essencialmente, com o objecto e a medida da obrigação de restituição.


Sobre tal, dispõe o art. 479 do CC:


«1. A obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa compreende tudo quanto se tenha obtido à custa do empobrecido ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.


2. A obrigação de restituir não pode exceder a medida do locupletamento à data da verificação de algum dos factos referidos nas duas alíneas do artigo seguinte» (22).


A interpretação deste artigo não é pacífica (23). O nº 1 aponta, antes de mais, para a obrigação de restituição, em espécie, daquilo que foi adquirido (sem causa) à custa de outrem.


Nas palavras de Menezes Cordeiro (24) estando «em jogo uma coisa fungível, o enriquecido irá restituir, nos termos gerais, algo de equivalente: assim sucederá, designadamente, quando esteja em causa dinheiro».


No caso dos autos, sabemos que:


- Quando A. e R. se conheceram e encetaram uma relação amorosa, entre 1994 e 1996, em Inglaterra, trabalhavam ambos na restauração, vindo a casar, no regime da separação de bens, em ..., em 17-2-2001;


- A R. continuou a trabalhar, mesmo após o nascimento da filha comum;


- O casal viveu em economia comum, contribuindo ambos com os seus rendimentos para as despesas domésticas;


- O A. depositou o produto da venda de um imóvel sito em ..., imóvel que era do casal, numa conta conjunta sediada em ..., onde já haviam sido depositados valores de outras proveniências, como seja o fruto do seu trabalho;


- Posteriormente, o A. transferiu a verba necessária para a Caixa Geral de Depósitos, em Portugal, onde tinha uma conta conjunta com a R., com a finalidade de comprarem uma casa;


- Essa casa foi adquirida pela R. em 18-3-2013, sendo a compra realizada pelo valor de € 115.000,00, com o dinheiro proveniente da venda da casa de ....


Temos, assim, que os 115.000,00 € com os quais foi comprada a casa sita em Portugal eram provenientes da venda do imóvel pertencente ao A. e à R., sito em ..., havendo o dinheiro dessa venda passado, entretanto, por duas contas conjuntas de que A. e R. eram titulares.


Deste modo, de acordo com os factos provados, A. e R., casados no regime da separação de bens, eram contitulares, da casa de ..., logo, o dinheiro obtido com a venda desta, na falta de outras especificações, seria de ambos, presumindo-se que em igual proporção (nº 2 do art. 1403 do CC).


Aliás, o dinheiro é uma coisa móvel, fungível (arts. 205 e 207 do CC), havendo que ter em consideração a presunção de compropriedade de ambos os cônjuges quanto aos bens móveis, resultante do nº 2 do art. 1736 do CC (para além do disposto no nº 2 do art. 1403 e no art. 1404 do CC).


Temos, pois, que o dinheiro em referência se tem como compropriedade de ambos os cônjuges, em quotas iguais.


Por outro lado, esse dinheiro foi depositado em contas conjuntas do casal – independentemente de qual consideremos a natureza jurídica do contrato de depósito bancário (25), face ao teor dos arts. 1206 e 1144 do CC, o crédito sobre os estabelecimentos bancários decorrente dos depósitos nas contas conjuntas do casal era detido por A. e R., seus titulares, na mesma proporção, funcionando, de qualquer modo, a presunção de igualdade das participações na conta (arts. 534, 1403, nº 2 e 1404 do CC).


Nestes termos, o valor que a R. terá a restituir ao A. é o de 57,500,00 €, correspondente a metade do valor do preço do imóvel adquirido.


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IV – 6 – Na conclusão 10ª diz-nos a recorrente que a conduta do A. «ao longo de pelo menos 7 anos, num determinado sentido, quanto ao regime de bens de casamento escolhido, à forma de aquisição de um imóvel, ao seu registo, à declaração de que esse bem seria bem próprio da outra parte, sempre com o fito de proteger a filha do casal, gera na outra parte e até na própria filha do casal legitimas expectativas, juridicamente tuteladas, pelo que a inversão de posição daquela parte, num autêntico dando o dito pelo não dito, constitui abuso de direito, ou reserva mental de tal declarante com o intuito de enganar o declaratório, senão má fé – isto é matéria de Direito e não necessita de alegação especial de enquadramento fáctico».


No que concerne à reserva mental ela não foi alegada nos articulados, não constando dos autos factos conducentes à sua apreciação; porque não invocada, o Tribunal de 1ª instância sobre ela não se pronunciou e a Relação, qualificando-a de questão nova, não a apreciou.


Do mesmo modo, não temos quaisquer consequências a extrair da alusão agora feita pela recorrente a tal vício.


Atentemos, então, ao abuso de direito – questão de conhecimento oficioso.


Dispõe o art. 334 do CC que é ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.


O abuso de direito pressupõe a existência do direito – direito subjectivo ou mero poder legal – embora o titular se exceda no exercício dos seus poderes. A nota típica do abuso de direito reside «na utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de um interesse que exorbita do fim próprio do direito ou do contexto em que ele deve ser exercido» (26).


A argumentação da apelante é a de que a conduta do A. foi num certo sentido, gerando legítimas expectativas à R. e até à filha do casal, pelo que a inversão da sua posição constitui abuso de direito; aproxima-se, pois, do denominado “venire contra factum proprium”.


A proibição de «venire contra factum proprium», impedindo-se uma pretensão incompatível ou contraditória com a conduta anterior, cairá no âmbito do abuso de direito ao corresponder ao exercício de um direito excedendo o titular, manifestamente, os limites impostos pela boa-fé – tendo em vista a boa fé objectiva. Pressupõem-se aqui duas condutas da mesma pessoa, lícitas em si e diferidas no tempo em que a primeira, ou seja o factum proprium é contrariada pela segunda.


Sucede que no caso dos autos, os factos provados não permitem concluir pelo abuso de direito, seja na vertente do “venire contra factum proprium”, seja noutra perspectiva.


A primitiva posição do A. fundava-se num estado de coisas que antecedeu o divórcio, com a conjuntura que acima caracterizámos; a posição seguinte, com a pretensão de restituição, surge perante situação diversa, após o divórcio, quando, como afirma, deixou de poder fruir da casa adquirida.


Entendemos, assim, que o direito do A. à restituição com fundamento no enriquecimento sem causa, exercido através desta acção, não excede manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito, não se verificando o invocado abuso de direito.


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V – Face ao exposto, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção) em negar a revista, confirmando o acórdão recorrido.


Custas pelo recorrente.


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Lisboa, 15 de Março de 2023

Maria José Mouro (Relatora)

Amélia Alves Ribeiro

Graça Amaral




Sumário, art.º 663, n.º 7, do CPC.

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1. Trata-se da data constante da certidão de fls. 8, sendo lapso manifesto a data referida no acórdão recorrido de “17.02.2001”.↩︎

2. Alberto dos Reis, «Código de Processo Civil Anotado», vol. V, Coimbra Editora, 1981, pág.. 52.↩︎

3. Ver, a propósito, Abrantes Geraldes, «Recursos em Processo Civil», Almedina, 7ª edição, pág.. 370.↩︎

4. Antunes Varela, «Das Obrigações em Geral», Almedina, 4ª edição, vol. I, pág.. 397.↩︎

5. Pires de Lima e Antunes Varela, «Código Civil Anotado», vol. I, pág.. 427; Antunes Varela, obra citada, págs.. 401-418; igualmente abordando os três requisitos decorrentes do art. 473, Júlio Gomes, no «Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações – Das Obrigações em Geral», coordenação de Brandão Proença, Universidade Católica Editora, 2018, pág.. 250 e Ana Prata, «Código Civil Anotado», vol. I, Almedina, 2017, pág.. 613.↩︎

6. Nas palavras de Menezes Cordeiro - «Tratado de Direito Civil Português – II – Direito das Obrigações», vol. II, Almedina, 2010, pág.. 238 - «a falta de causa justificativa tanto abrange as hipóteses de ausência inicial de “causa” como de supressão ulterior da mesma causa».↩︎

7. Provenientes da sistematização existente no Direito Romano.↩︎

8. Ver, designadamente, Menezes Cordeiro, «Tratado de Direito Civil Português – II – Direito das Obrigações», vol. II, Almedina, 2010, págs.. 212-213.↩︎

9. «Direito das Obrigações», Almedina, 5ª edição, I vol. pág.. 413.↩︎

10. «Direito das Obrigações» citado, págs.. 414 e seguintes.↩︎

11. Do que a apelante não parece discordar inteiramente, atento o teor da 3ª conclusão da sua alegação de recurso.↩︎

12. Em «Código Civil Comentado – II Das Obrigações em Geral», coordenação de Menezes Cordeiro, Almedina 2021, pág.. 392.↩︎

13. No citado «Comentário ao Código Civil», págs.. 252-253.↩︎

14. Em «Dissolução da união de facto e enriquecimento sem causa, anotação ao Acórdão do STJ de 20-03-2014, RLJ, n.º 3995, ano 145, pág.. 115.↩︎

15. Ver o acórdão do STJ de 5-12-2019, proc. 5940/16.2T8GMR.G1.S2 e jurisprudência ali citada.↩︎

16. Numa perspectiva diferente, Pereira Coelho, a propósito da situação paralela em casos de união de facto, conclui que os valores despendidos na compra da casa que ficou “em nome” do outro, constituem «pagamentos de dívidas de terceiro em relação aos quais – por se tratar de pagamentos feitos no âmbito de uma relação convivencial – julgamos dever valer uma presunção de não definitividade, e por conseguinte, agora que a união de facto cessou, uma presunção (natural) de ausência de causa» - «Dissolução da união de facto e enriquecimento sem causa, anotação ao Acórdão do STJ de 20-03-2014, RLJ, n.º 3995, ano 145, pág.. 125.↩︎

17. «Das Obrigações em Geral», vol. I, Almedina, 4ª edição, pág.. 409.↩︎

18. No citado «Comentário ao Código Civil», pág.. 252.↩︎

19. Na obra e local citados.↩︎

20. Ao qual se pode aceder em www.dgsi.pt, proc.4158/17.1T8CBR.C1.S1.↩︎

21. Consoante referido por Diogo Costa Gonçalves, acima citado, na aquilatação da demonstração da falta de causa, haverá que «ser razoável», devendo-se agir com «prudência e razoabilidade».↩︎

22. Os factos referidos são, respectivamente, a citação judicial do enriquecido para a restituição e o seu conhecimento da falta de causa do enriquecimento ou da falta do efeito que se pretendia obter com a prestação.↩︎

23. Ver, a propósito, Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português – II – Direito das Obrigações», vol. II, Almedina, 2010, págs.. 241 e seguintes e Menezes Leitão, citado «Direito das Obrigações», Almedina, 5ª edição, I vol., págs.. 453 e seguintes.↩︎

24. Citado «Tratado de Direito Civil Português – II – Direito das Obrigações», vol. II, Almedina, 2010, pág.. 241.↩︎

25. A natureza jurídica do contrato de depósito bancário é controvertida, sendo qualificado umas vezes como depósito irregular, outras como mútuo e, ainda, outras como contrato bancário a se.↩︎

26. Pires de Lima e Antunes Varela, «Código Civil Anotado», vol. I, pág.. 297.↩︎