Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 6ª SECÇÃO | ||
Relator: | HENRIQUE ARAÚJO | ||
Descritores: | SOCIEDADE POR QUOTAS DELIBERAÇÃO SOCIAL ANULAÇÃO DE DELIBERAÇÃO SOCIAL GERENTE | ||
Data do Acordão: | 06/18/2019 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
Área Temática: | DIREITO DAS SOCIEDADES – DELIBERAÇÕES DOS SÓCIOS / DELIBERAÇÕES NULAS /DELIBERAÇÕES ANULÁVEIS – SOCIEDADES POR QUOTAS / GERÊNCIA E FISCALIZAÇÃO / DURAÇÃO DA GERÊNCIA / VINCULAÇÃO DA SOCIEDADE. | ||
Doutrina: | - Pinto Furtado, Comentário ao Código das Sociedades Comerciais - Deliberações dos Sócios, p. 374; - Raul Ventura, Comentário ao Código das Sociedades Comerciais – Sociedade por Quotas, Volume III, p. 81, 128, 172 e 173; - Ricardo Costa, Código das Sociedades Comerciais em Comentário, coordenado por Coutinho de Abre, Volume IV, 2.ª edição, p. 120 e 121. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS (CSC): - ARTIGOS 56.º, N.º 1, ALÍNEA D), 58.º, N.º 1, ALÍNEA A), 256.º E 260.º, N.º 1. | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: - DE 03-05-1995, RELATOR FIGUEIREDO DE SOUSA, IN WWW.DGSI.PT. -*- ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL: - DE 08-03-2018, PROCESSO N.º 282/11.2BEALM, IN WWW.DGSI.PT. | ||
Sumário : | I - Os gerentes das sociedades por quotas são designados sem indicação de prazo certo ou por tempo indeterminado e o exercício de funções apenas termina quando ocorra facto extintivo superveniente do título. II - A situação-regra referida em I pode ser derrogada, como decorre da parte final do art. 256.º do CSC, permitindo que a vigência do título de gerente possa estar sujeita a determinada duração, seja por efeito do contido no contrato de sociedade, seja por efeito do acto que designa o(s) gerente(s). III - Mostra-se contrária à lei, e como tal anulável nos termos do art. 58.º, n.º 1, al. a), do CSC, a deliberação que altere a duração do cargo de gerente sem que tenha havido acordo das partes nesse sentido. IV - No domínio das relações internas, os gerentes podem ter que respeitar as deliberações dos sócios relativamente ao seu modo de actuação; já no que tange aos actos externos de representação (na relação com terceiros) nenhuma limitação lhes pode ser imposta por essa via. V - Assim, é nula a deliberação, de acordo com o disposto no art. 56.º, n.º 1, al. d), do CSC, que viola a norma imperativa do art. 260.º, n.º 1, do mesmo diploma legal, cuja finalidade foi afastar o gerente de tal cargo, através do esvaziamento da sua esfera de actuação no seio da gerência, designadamente no processo de exteriorização da vontade da sociedade e na relação desta com terceiros. | ||
Decisão Texto Integral: | ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA I. RELATÓRIO AA instaurou acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra “BB Lda.”, pedindo que seja declarada a nulidade das Deliberações da Gerência de 06.07.2017 e 13.07.2017, que estabeleceram um limite temporal de 70 anos de idade para o cargo de gerente executivo da sociedade, retirando-lhe todos os poderes de gerência. Alega, em síntese, ter sido violado o contrato de sociedade e, bem assim, as normas imperativas do Código das Sociedade Comerciais, no que concerne ao direito de qualquer sócio exercer a gerência da sociedade.
A Ré deduziu oposição, alegando a excepção de caducidade do direito de acção e, impugnando os factos, alegou não ter ocorrido qualquer violação do contrato social ou do Código das Sociedades Comerciais, mantendo o Autor o cargo de gerente e de representação da sociedade, tendo havido apenas uma reestruturação organizativa e administrativa da sociedade, com distribuição de cargos pelos diversos gerentes, cuja gerência plural se manteve.
Após julgamento, foi proferida sentença, cuja parte dispositiva reza do seguinte modo: “Pelo exposto, julgando improcedentes, por não provados, os alegados vícios das deliberações da Gerência da Ré de 6-7-2017 e 13-7-2017, e julgando tais deliberações válidas, improcedem os pedidos de anulação das ditas deliberações de 6- -7-2017 e 13-7-2017”.
Não se conformando com a decisão, dela apelou o Autor. E fê-lo com êxito, já que a Relação de Lisboa decidiu como segue:
(…)[1] “os gerentes que já tenham alcançado aquela idade de 70 anos e ainda exerçam funções executivas, cessarão o exercício dessas funções, no final do presente mês”. “Os que venham a alcançar aquela idade no futuro, cessarão as suas funções executivas no final do mês em que perfaçam os 70 anos”. “A presente deliberação deve ter efeitos imediatos”. “Ponto único – “Discutir e deliberar sobre uma proposta de delegação de poderes de gestão da sociedade. Atribuição de pelouros, correspondentes às direções funcionais na gerência da Sociedade.” (doc. nº 8 ). Gerente FF: Comercial e Marketing, Automação, Engenharia e Manutenção, Logística, Sistemas de Informação Gerente CC: Financeira, Recursos Humanos e Serviços Administrativos, HSSE, Qualidade, Conformidade e Documentação. (…)
(…) a) A Ré, sociedade “BB, Lda.”, constituída em 12.02.1988, tem como gerentes, desde 30.11.2016, além do Autor, CC, FF e EE (cfr. ponto 19.). A deliberação de 06.07.2017 foi aprovada pelos gerentes FF, CC e EE, tendo o Autor votado contra (cfr. ponto 22.). À data dessa deliberação, o Autor tinha 74 anos de idade, uma vez que, conforme consta da certidão de fls. 24, nasceu em 01.10.1942.
Primeiras notas: O pacto social, junto a fls. 10 a 13, não prevê a cessação/caducidade do cargo de gerente por superação de limite de idade. E a lei também não. Mas tem razão a recorrida quando afirma que disso não se tratou: o limite de 70 anos de idade, definido na deliberação, apenas se reportou ao exercício de ‘funções executivas’[2] por parte do gerente. Portanto, é verdade que da mera formulação literal da deliberação não resulta que o Autor tenha sido afastado da gerência. Como se verá, porém, mais à frente, a deliberação foi construída em torno de um elaborado eufemismo, configurando, na prática, um ilegal afastamento do Autor da gerência. A análise que segue não pode distanciar-se dessa realidade.
Prosseguindo: Nos termos do artigo 256º do CSC, as funções dos gerentes subsistem enquanto não terminarem por destituição ou renúncia, sem prejuízo de o contrato de sociedade ou o acto de designação poder fixar a duração delas. A situação-regra é, portanto, a de que os gerentes de sociedades por quotas são designados sem indicação de prazo certo ou por tempo indeterminado e o exercício de funções apenas termina quando ocorra facto extintivo superveniente do título[3]. Todavia, a parte final da norma citada prevê a possibilidade de derrogação dessa situação-regra, permitindo que a vigência do título de gerente possa estar sujeita a determinada duração, seja por efeito do contido no contrato de sociedade, seja por efeito do acto que designa o(s) gerente(s). Sobre este tema refere Raul Ventura[4]: “A conjugação da regra legal supletiva e das convenções de prazo pode conduzir a que sejam diferentes os regimes dos vários gerentes duma sociedade, uns designados por tempo indeterminado e outros designados por prazos iguais ou diversos. Em cada caso, a duração determinada ou indeterminada das funções do gerente fixa-se por algum dos citados modos; tal duração só pode ulteriormente ser modificada com o acordo do gerente. Não pode a sociedade proceder a essa modificação unilateralmente, quer por acto isolado, quer por alteração do contrato de sociedade”. Ora, no caso presente, não tendo havido acordo das partes para a alteração da duração do cargo de gerente, nem se configurando – como parece óbvio – uma situação de destituição ou renúncia, é bom de ver que se mostra contrária à lei a deliberação de 06.07.2017. O acórdão recorrido foi certeiro nesse reconhecimento: “ao adoptarem a deliberação de 06.07.2017, os gerentes adicionaram um modo de cessação das funções de gerente que não está previsto, directa ou indirectamente no contrato de sociedade (…), inexistindo disposição legal que habilite os sócios/gerentes a fixar tal limite de idade ao exercício de funções executivas pelos gerentes, sendo que tal situação não está abrangida pelos casos de cessação da gerência previstos na lei, v.g. artigo 257º e 258º do CSC”, ou seja, os casos de destituição e renúncia. Também nos parece acertada a consequência jurídica daí extraída: a referida deliberação é anulável nos termos do artigo 58º, n.º 1, alínea a), do CSC, uma vez que o preceito legal violado – artigo 256º do CSC – não tem natureza imperativa, mas dispositiva. Isto porque, como se disse, a regra geral enunciada na 1ª parte do artigo 256º pode ser derrogada nos termos previstos na parte final dessa norma. Segundo defende Pinto Furtado[5], o afastamento de normas dispositivas (permissivas ou supletivas) pelo conteúdo de uma deliberação dos sócios implica, em princípio, a anulabilidade desta, só assim não ocorrendo se a própria norma admitir expressamente a sua derrogação por deliberação dos sócios (artigo 9º, n.º 3, do CSC).
b) Uma semana depois, foi aprovada nova deliberação pelos mesmos sócios, tendo o Autor votado contra – cfr. ponto 24. Nessa deliberação, foram distribuídos os vários pelouros da sociedade (Direcções Funcionais) pela seguinte forma: Gerente FF: Comercial e Marketing, Automação, Engenharia e Manutenção, Logística, Sistemas de Informação Gerente CC: Financeira, Recursos Humanos e Serviços Administrativos, HSSE, Qualidade, Conformidade e Documentação. – cfr. ponto 24. O acórdão recorrido declarou a nulidade desta outra deliberação e, em nosso entender, voltou a ajuizar correctamente. Vejamos: Diz a primeira parte do n.º 1 do artigo 252º que a sociedade é administrada e representada por um ou mais gerentes. No caso, como resulta do contrato da sociedade, a gerência era exercida conjuntamente pelos quatro sócios – cfr. ponto 5. e 19. A gerência é o órgão encarregado do funcionamento interno da sociedade, da gestão dos negócios e actividades sociais, e da representação da sociedade em face de terceiros. Os gerentes gozam, portanto, de poderes representativos e de poderes administrativos face à sociedade. Na lição de Raul Ventura[6], a distinção entre esses poderes é, aparentemente, muito simples: se o acto respeita às relações internas (entre a sociedade e quem a administra) situamo-nos no campo dos poderes administrativos; se o acto respeita às relações da sociedade com terceiros, estamos no campo dos poderes de representação. O acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 08.03.2018, replicando essa doutrina, concluiu: “Por outras palavras, se o acto em causa tem apenas eficácia interna, estamos perante poderes de administração ou gestão. Se o acto tem eficácia sobre terceiros, verifica-se o exercício de poderes de representação”[7]. É sabido que a lei não concretiza os termos em que se manifesta o exercício das competências da gerência (administração e representação), constando apenas do enunciado do artigo 259º do CSC que os gerentes devem praticar os actos que forem necessários ou convenientes para a realização do objecto social, com respeito pelas deliberações dos sócios. São, seguramente, actos típicos de gerência aqueles que se consubstanciam na representação da sociedade perante terceiros no desenvolvimento da actividade que forma o objecto social e aqueles através dos quais a sociedade fica juridicamente vinculada, de acordo com esse mesmo objecto. Avançando um pouco mais: É um facto que, como se disse mais acima, não há na deliberação de 06.07.2017 uma referência expressa ao afastamento do Autor da gerência. Talvez para evitar que, na presença de tal referência, ficasse mais clara a ilegalidade da deliberação, face ao que dispõe o artigo 256º do CSC. Mas, ao retirar ao Autor gerente a possibilidade de exercer ‘funções executivas’, por efeito do limite de idade nela imposto, a deliberação de 06.07.2017 provocou um esvaziamento total da funcionalidade do cargo de gerente que se viria a manifestar de forma mais clara na segunda deliberação, de 13.07.2017. Nesta última, foi atribuída a totalidade dos nove ‘pelouros’, definidos na reunião de gerência de 23.01.2017 (Comercial e Marketing, Automação, Engenharia e Manutenção, Logística, Sistemas de Informação, Financeira, Recursos Humanos e Serviços Administrativos, HSSE, Qualidade, Conformidade e Documentação), aos sócios FF e CC. Convém agora chamar à discussão o artigo 260º, n.º 1, do CSC, no qual se prescreve o seguinte: Os actos praticados pelos gerentes, em nome da sociedade e dentro dos poderes que a lei lhes confere, vinculam-na para com terceiros, não obstante as limitações constantes do contrato social ou resultantes de deliberações dos sócios[8]. Segundo Raul Ventura[9], “o sentido útil do artigo 260º, n.º 1, encontra-se na sua parte final; a primeira parte é óbvia, pois se a gerência é criada como o órgão externo da sociedade, destinado a actuar no comércio jurídico, os actos praticados pelos gerentes em nome da sociedade e dentro dos poderes que a lei lhes confere não poderiam deixar de vincular a sociedade. Dos princípios gerais não se deduziria, porém, que essa vinculação para com terceiros se produz não obstante as limitações constantes do contrato social ou resultantes de deliberações dos sócios (…)”. O mesmo autor acrescenta: “Por este preceito, os poderes representativos dos gerentes ficam imunes às restrições ou limitações que os sócios pretendam estabelecer, quer logo no contrato de sociedade, quer posteriormente por meio de deliberações. Dizer simplesmente que os poderes representativos dos gerentes não podem ser limitados pelos sócios por terem sido conferidos por lei, parece-me explicação insuficiente. É também a lei que confere aos gerentes os poderes internos de administração st. sensu. O facto de uns serem internos e outros poderes serem externos não faz divergir a fonte, que é a lei nos dois casos. Portanto, não pode ser a fonte legal dos poderes representativos que só por si justifica a sua ilimitação de terceiros. Enquanto a actuação dos gerentes não tem projecção externa, isto é, enquanto não contende com interesses de terceiros, os sócios – pelo contrato de sociedade ou por deliberações sociais – são donos e senhores da sociedade e como tais podem determinar o círculo dentro do qual os gerentes podem mover-se. Uma vez que os gerentes se apresentem perante terceiros como representantes da sociedade – que materialmente será a parte no negócio – evita-se, pela ilimitação dos poderes representativos, que aqueles fiquem sujeitos a restrições de representação, criados pelos sócios no seu próprio interesse e cujo conhecimento pelos terceiros não é seguro”. Significa isto que, se quanto aos actos puros de administração os gerentes podem ter de respeitar as deliberações dos sócios relativamente ao seu modo de actuação no domínio das relações internas[10], já quanto aos actos externos de representação, na relação com terceiros, nenhuma limitação lhes pode ser imposta por essa via. Subscrevemos, por isso, a seguinte passagem do acórdão recorrido: “Se olharmos à delimitação material de tais pelouros, verificamos que os pelouros ‘Comercial e Marketing’, ‘Financeira’, ‘Recursos Humanos e Serviços Administrativos’ têm um âmbito que excede as meras funções administrativas ou de gestão interna, projectando-se – necessariamente – nas relações da Ré com terceiros. Com efeito, sendo o objecto social da Ré o definido sob 4 dos factos provados, no desenvolvimento desse objecto social a Ré tem que estabelecer e firmar contactos e contratos com outros parceiros comerciais e clientes (‘Comercial’), tem de promover e divulgar a sua actividade e imagem (‘Marketing’), tem de contratar pessoal (‘Recursos Humanos e Serviços Administrativos’), bem como tem de firmar contratos com instituições bancárias (‘Financeira’). Ou seja, estes pelouros não se esgotam em funções internas de gestão, abarcando – pela natureza das coisas – funções representativas da Ré perante terceiros (…). Note-se que o cerceamento dos poderes de representação do autor ocorre, concomitantemente, por uma via directa (analisada no parágrafo anterior, designadamente), como por via indirecta. Isto, porquanto, caso o autor vincule a sociedade perante terceiros em tais matérias, fica o mesmo sujeito a ser responsabilizado e até destituído (cf. artigo 257º, n.º 4, do CSC), o que – na prática – significa um condicionamento/constrangimento da sua actuação perante terceiros”. Na prática, a finalidade prosseguida pela deliberação de 13.07.2017 (no seguimento da deliberação de 06.07.2017) foi afastar o Autor da gerência da sociedade, através do esvaziamento da sua esfera de actuação no seio desse órgão da sociedade, designadamente no processo de exteriorização da vontade da sociedade e na relação desta com terceiros.
Essa deliberação viola, por conseguinte, a norma imperativa do artigo 260º, n.º 1, do CSC, sendo nula, de acordo com o disposto no artigo 56º, n.º 1, alínea d), do mesmo diploma.
Conclui-se, assim, que deve ser mantido o decidido no acórdão recorrido.
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Custas pela recorrente.
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