Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06A2615
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: URBANO DIAS
Descritores: CAUSA DE PEDIR
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
Nº do Documento: SJ200609280026151
Data do Acordão: 09/28/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário : - O destino da acção fica determinado com a sua propositura – a forma do processo, o seu valor, a competência do tribunal, a legitimidade das partes, etc., é determinado pelo pedido.
- Quem configura a acção é o A. e não o R. (e muito menos o juiz).
- Não tendo o A. configurado a acção como sendo de anulação de deliberações sociais, não é lícito que o juiz a considere como tal e julgue a mesma tendo em conta a sua própria perspectiva.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I –
AA intentou, no Tribunal Judicial de Marco de Canaveses, acção ordinária contra
BB,
CC,
DD,
EE e mulher FF,
Pedindo que:
a) - Seja declarado que as contas, relatório de gestão, balanço, demonstração dos resultados e anexo apresentados pelos 2º, 3º e 4ºs RR. enfermam das irregularidades mencionadas nos arts. 18º, 19º, 20º, 21º, 22º, 23º, 24º, 25º, 26º, 27º, 28º, 29º, 30º e 31º da petição;
b) - Seja declarado que ele (A.) não pôde analisar devidamente as referidas contas, aquando da realização da assembleia-geral de sócios, em 13 de Março de 2001, por lhe não terem sido previamente fornecidos os elementos referidos no art. 11º da petição;
c) - Seja declarado que ele (A.), como sócio da 1ª R., sociedade comercial por quotas “BB.”, tem direito a obter dos 2º, 3º e 4ºs RR., como sócios gerentes daquela sociedade, informação verdadeira, completa e elucidativa sobre a gestão da sociedade, bem como a consultar a respectiva escrituração;
d) - Sejam os RR. condenados a assim ver declarado e a reconhecer estes direitos do A.;
e) - Os 2º, 3º e 4ºs RR. sejam condenados a apresentarem as contas respeitantes ao exercício da 1ª R. no ano de 2000, novo relatório de Gestão, balanço de demonstração de resultados e anexo, corrigidos das deficiências apontadas na al. a) do pedido.
Os RR. contestaram, arguindo a ilegitimidade dos 2º, 3º e 4ºs RR., invocando a excepção de caducidade do direito do A. em ver anulada a deliberação tomada em 13 de Março de 2001 e, por fim, impugnado parte da factualidade vertida na petição inicial e invocando o abuso de direito.
Na réplica, o A. contrariou a defesa excepcional invocada pela Defesa.
Em sede de audiência preliminar, o Mº juiz da 1ª instância, depois, de julgar procedente a invocação da excepção da ilegitimidade dos 1º, 2º 3º e 4ºs RR., acabou por julgar a acção improcedente por entender que já tinha caducado o direito do A. a ver declaradas nulas as deliberações tomadas no referido dia 13 de Março de 2001.
Com esta decisão não se conformou o A. que apelou para o Tribunal da Relação do Porto, mas sem êxito porquanto o julgado foi confirmado.
Daí que o A., continuando inconformado, tenha, ora, recorrido para este STJ, pedindo revista do acórdão proferido, para o que apresentou a respectiva minuta que fechou com as seguintes conclusões:
- A presente acção, tal como foi elaborada, delineada e configurada pelo A. na sua petição inicial, e como claramente resulta dos pedidos formulados, não é uma acção de anulação de deliberação social.
- Assim, todos os RR. são partes legítimas, pois todos têm interesse em contradizer - art° 26° n° 2, do Cód. Proc. Civil.
- Mesmo que se tratasse, mas não trata, de acção de anulação ou declaração de nulidade de deliberação social, desta circunstância também não resultaria a ilegitimidade dos 2°s, 3°s e 4°s RR., face ao preceituado pelo art° 61°, n° l, do Cód. das Sociedades Comerciais, que prevê a hipótese de os sócios serem partes e intervirem na acção.
- A presente acção também não é aplicável o disposto no art° 59°, n° 2, do Cód. das S. Comerciais, pelo que também não se verifica a excepção de caducidade.
- Pois não se trata de uma acção de anulação de deliberação social, como claramente resulta dos pedidos formulados pelo A..
- E o A. podia, com todo o direito e legitimidade formular e delinear a presente acção nos termos em que o fez, já que a mesma se destina a defender os direitos que invoca e "a todo o direito corresponde uma acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, nos termos do disposto no art°. 2°, n° 2, do Cód. de Proc. Civil.
- E, para defender os direitos que invoca e que insere nos pedidos que formula, o A. não tinha que pedir a anulação da deliberação social,

- Pelo que o relatório de contas não se tomou definitivo e continua a enfermar das irregularidades apontadas na petição inicial.

9°- O acórdão do Venerando Tribunal da Relação do Porto, ora em recurso, deveria revogar o despacho saneador-sentença proferido pela M° Juíza de 1ª instância, e ordenar o prosseguimento da acção com a fixação da matéria de facto assente e elaboração da base instrutória.

- Não o tendo feito, o acórdão em apreço violou, entre outros, por incorrecta interpretação, o disposto no art° 59°, n°s l e 2, art° 60° n° l e 61° n° l, do Cód. das S. Comerciais e art. 510°, nº l, alínea h) do Cód. Proc. Civil e ainda art°s 26°, n°s l e 2 e art° 2° n° 2, do mesmo Cód. Proc. Civil.

- Assim, não tanto pelo alegado como pelo doutamente suprido, deverá dar-se provimento ao recurso, revogando-se o acórdão do Tribunal da Relação do Porto em apreço, julgando-se todas as partes legítimas e improcedente a excepção de caducidade alegada pelos RR., e ordenando-se o prosseguimento da acção, com a fixação da matéria de facto assente e elaboração da base instrutória pela Sr.ª Juíza de 1ª instância.
Os recorridos contra-alegaram em defesa da manutenção do acórdão impugnado.
II
Com relevo para a sorte deste recurso, importa trazer à colação o seguinte:
O A. intentou a acção contra os RR., formulando os pedidos supra assinalados, alegando, em apoio do peticionado, que não lhe foram fornecidos em tempo elementos respeitantes ao relatório de gestão e relativos às contas, inclusive demonstrativos dos resultados e anexo, facto que não lhe permitiu uma análise cuidadosa antes da assembleia geral de 13 de Março de 2001, sendo que os documentos apresentados apresentam graves irregularidades e deficiências.
III
Como resulta da análise das conclusões do recorrente, duas questões são colocadas à nossa consideração: a primeira relativa à legitimidade dos 2º 3º, e 4ºs RR. – de natureza puramente adjectiva –, a segunda respeitante ao mérito da causa e relacionada com a procedência da excepção da caducidade arguida pelos RR..
É claro que, a priori, poder-se-ia pensar que a primeira questão colocada não encontraria aqui guarida, em sede de recurso de revista, atenta redacção do art. 721º do CPC.
Mas não é o caso, pois, o nº 1 do art. 722º do mesmo diploma adjectivo proclama a possibilidade de este STJ apreciar no recurso de revista eventual violação de regras processuais, desde que tal seja admitido pelo nº 3 do art. 754º.
Estamos seguros que este é um dos casos que a lei permite a apreciação de violação de norma processual no âmbito da revista: o processo, tal como foi decidido pelas instâncias acabou para os RR. que foram declarados partes ilegítimas, facto que nos conduz a integrar o caso como excepção à regra do nº 2 do art. 754º do CPC e a incluí-lo no nº 3 do mesmo artigo.
Nada obsta, pois, à apreciação da eventual violação da regra de direito adjectivo que rege sobre a legitimidade das partes no âmbito deste recurso de revista.
Dito isto, importa notar que, in casu, a questão de fundo está intimamente relacionada com a que à forma diz respeito.
É que ambas as questões foram abordadas pelas instâncias a partir de um pressuposto determinante no encaminhamento das posições adoptadas.
As instâncias partiram de uma ideia de base: em causa está uma acção de anulação de deliberações sociais.
A partir deste pressuposto partiram para a ilegitimidade dos 2º, 3º e 4ºs RR. e julgaram caduco o direito do A. a ver as deliberações anuladas.
A ser assim, sem dúvida que os 2º, 3º e 4ºs RR. tinham de ser julgados partes ilegítimas, atento o preceituado no art. 60º, nº 1 do CSC (“tanto a acção de declaração de nulidade como a de anulação são propostas contra a sociedade”).
E, atenta a temporalidade assinalada na petição e decorrente da data da referida assembleia-geral, também não nos restariam dúvidas sobre a bondade da decisão ora impugnada, confirmatória do sentenciado na 1ª instância.
Só que a acção não foi configurada como sendo de anulação de deliberações sociais, mas antes como mista de simples apreciação (de que os documentos apresentados ao A. enfermam de vícios) e condenação (no sentido de os RR. serem obrigados a fornecer ao A. os ditos documentos devidamente corrigidos).
Isto foi frisado pelo A. na réplica (“a presente acção foi definida e configurada pela forma como vem exposta na petição inicial e não pela forma como os Réus pretendem na sua contestação”), na apelação e ora no presente recurso de revista.
Como assim, sem mais delongas, diremos que a razão está do lado do A.: o destino da acção fica determinado com a sua propositura – a forma do processo, o seu valor, a competência do tribunal, a legitimidade das partes, etc., é determinado pelo pedido.
Quem configura a acção é o A. e não o R. (e muito menos o juiz).
Daí que não se possa concordar, ressalvado o sempre devido respeito por opiniões contrárias, com a asserção do Mº juiz – “…pelas razões apontadas entendeu-se configurar a presente acção uma acção de anulação de deliberação social”.
Não, o A. não configurou a presente acção como sendo de anulação de deliberações sociais, não podendo a parte contrária (e muito menos o juiz) alterar o sentido da declaração de vontade daquele.
Saber se a declaração produzida pelo A. e espelhada na sua petição está em conformidade com a realidade e com as regras de Direito é outra cousa: quod probandum.
Ou seja, aqui e agora, não importa saber se a razão está do lado do A., se da parte dos RR., mas sim se o peticionado por aquele obriga estes a tomarem posição – no fundo, se têm interesse directo em contradizer.
E, atenta a configuração dada pelo A. à acção, não podem restar dúvidas que os RR. têm todo o interesse em contradizer a versão trazida a pretório por aquele, nomeadamente no que tange às irregularidades invocadas nos documentos por eles produzidos e apresentados.
Em suma, pelo que ficou dito, temos de concluir pela legitimidade ad causam dos 2º, 3º e 4ºs RR. que, curiosamente, foram absolvidos do pedido em consequência da procedência da caducidade!
É altura de dizer algo sobre esta excepção.
Pouco mesmo.
Na verdade, já ficou dito que a acção não é de anulação de deliberações sociais, ou seja, com ela o A. não pretende ver anuladas as deliberações da assembleia-geral de 13 de Março de 2001.
Ora, isto é o suficiente para podermos concluir, sem dúvida alguma, pela não verificação da caducidade.
Se não foram postas em causa quaisquer deliberações, como se pode falar em caducidade do direito em ver as mesmas anuladas?!
Dito de outra forma: mesmo que a matéria de facto alegada pelo A. e impugnada pelos RR. venha a ser dada como provada, nunca se poderá declarar nesta sede que as deliberações tomadas estão feridas de qualquer vício.
Aqui chegados, uma outra questão importante se levanta e diz ela respeito a saber qual a base fáctica em que a decisão da 1ª instância assentou e que mereceu a concordância da Relação.
É que, percorrendo tudo o que consta da sentença, apenas um único ponto de facto foi fixado, qual seja:
“As contas e respectivos elementos cujas irregularidades se pretendem ver reconhecidos, a preterição do direito à informação ocorrida, bem como o pedido de apresentação de novas contas, reconduzem-se à deliberação da 1ª ré relativas ao exercício de 2000, com as já apontadas consequências, a qual teve lugar em 13 de Março de 2001”.
Enquanto tribunal de revista, não compete ao STJ exercer controle sobre o caminho que foi seguido para dar como provado este ponto de facto.
Mas já incumbe ao STJ dizer da insuficiência do mesmo para se poder concluir com segurança pela solução encontrada.
Razão de sobra para a Relação ter tomado a iniciativa de, com base do nº 4 do art. 712º do CPC, ter anulado a decisão da 1ª instância com vista à ampliação da matéria de facto.
Mas, nada disto foi feito.
Insistiu-se que a acção era de anulação de deliberações sociais e que o prazo para denúncia dos eventuais vícios já tinha decorrido!
Tal omissão da Relação tornaria inviável qualquer juízo por este STJ sobre a bondade da solução encontrada sobre o ponto de vista do direito, facto que, por si só, determinaria a baixa dos autos para a fixação da matéria de facto.
Em resumo e em conclusão:
- Os 2º, 3º e 4ºs RR. são partes legítimas;
- A “tese da caducidade” avançada pelas instâncias não pode proceder.
É evidente que a decisão a que ora se chegou não significa que o A. tenha, desde já, obtido ganho de causa, mas apenas que o tribunal de 1ª instância terá de apreciar a sua pretensão considerando o ponto de vista em que ele arquitectou a sua pretensão.
À luz desta e considerando os factos alegados, competirá ao tribunal aplicar as normas jurídicas pertinentes.
IV
Em conformidade com o que ficou dito, decide-se revogar a decisão impugnada, a fim de o Mº juiz da 1ª instância ter em devida conta a causa de pedir e o pedido, tais como o A. os projectou na sua petição, proferindo a decisão de direito em conformidade com esta perspectiva.
Custas pelos recorridos.

Lisboa, 28 de Setembro de 2006

Urbano Dias
Paulo Sá
Borges Soeiro