Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07B4403
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: JOÃO BERNARDO
Descritores: LIBERDADE DE IMPRENSA
RESTRIÇÃO DE DIREITOS
DIREITO AO BOM NOME
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
QUANTUM INDEMNIZATÓRIO
RESPONSABILIDADE DO DIRECTOR DE PUBLICAÇÃO
ABUSO DO DIREITO
Nº do Documento: SJ20080207044032
Data do Acordão: 02/07/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADAS AS REVISTAS
Sumário :
1 . No domínio do pensamento, da expressão e da informação, a regra é a liberdade.
2 . Esta ideia-base de liberdade encerra, porém, restrições.
3 . Na concretização da fronteira entre aquela e estas, deve ser tido em conta o artigo 10.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e, concomitantemente, deve ser acolhida a interpretação que dele faz o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.
4 . Da jurisprudência que vem sendo firmada por este, resulta uma imposição no modo de pensar: Não se justifica que se pense, logo à partida, sobre se determinada peça jornalística ofende alguém. Deverá, antes, partir-se da liberdade de que gozam o ou os respectivos autores. Só depois, se deve indagar se se justifica – atentos os critérios referenciais do mesmo tribunal, com inclusão duma margem de apreciação própria por parte dos órgãos internos de cada um dos Estados signatários da Convenção - a ingerência restritiva no campo dessa mesma liberdade e a consequente ida para as sanções legais.
5 . O que não significa que os casos de ingerência restritiva não assumam intensa relevância, na perspectiva dos valores essenciais ao ser humano.
6 . Sendo de considerar, na margem de liberdade que assiste aos órgãos de cada um dos Estados signatários da Convenção e, dentro dela, aos órgãos portugueses, as normas interessantes do Direito Penal, o artigo 484.º do Código Civil e, bem assim, além do mais que ao caso couber, o constante do Estatuto dos Jornalistas.
7 . Neste quadro, é de considerar ainda situada no campo da liberdade, a referência, em semanário, relativa a instituição que prossegue fins humanitários de luta contra uma doença, de que há irregularidades de gestão de cerca de 240 mil contos recebidos de dois ministérios, que relativamente aos donativos de particulares e empresas a situação é ainda mais complicada, que os donativos em espécie também são fonte geradora de polémica e que ainda hoje ninguém sabe do paradeiro de quadros doados à instituição, tudo numa altura em que se verificavam investigações das autoridades que colocaram diversas questões de procedimento e funcionamento da mesma instituição.
8 . Mas já se situam no campo das restrições à mesma liberdade, no capítulo da ofensa à honra na modalidade do bom nome, as notícias inseridas em duas edições desse semanário, com muita relevância e fotografia da directora de tal instituição, em que se imputou a esta vida luxuosa – com referência pormenorizada a propriedades, viagens e desaparecimento de obras de arte – à custa do património da instituição e à sombra da luta contra a doença por esta prosseguida, nada se tendo provado a respeito de tal vida, ou de desvio de fundos ou, ainda, de apropriação de obras de arte.
9 . Na determinação do quantum indemnizatório respectivo, há que atender aos critérios do artigo 494.º, por remissão do artigo 496.º, n.º3, ambos do Código Civil, com ressalva do relativo à situação económica da lesada que é afastado pelo artigo 13.º da Constituição da República.
10. Sendo ainda de considerar os valores que vêm sendo atribuídos noutros casos, por este tribunal, havendo, outrossim, vantagem em reparar nos montantes que vêm sendo fixados pelos tribunais dos países com os quais temos mais estreitas afinidades.
11 . É, assim, adequado o montante compensatório de € 12.500 relativo ao referido em 8.
12 . Se dos factos não resultar que o director da publicação teve conhecimento e não se opôs à publicação das notícias referidas em 8, não deve ele ser condenado.
13 . As suas funções poderiam levar a menor exigência de prova sobre o seu conhecimento prévio das notícias ou até levar a presunções judiciais que a tal conduzissem – estas, se não afastadas pela resposta negativa a pontos da BI em que se perguntasse tal matéria e se tivesse respondido não provado - mas tudo isso é alheio aos poderes deste Supremo Tribunal em recurso de revista.
14 . O abuso do direito, na modalidade da neutralização do direito, “supressio” ou “Verwirkung” tem os mesmos pressupostos do reportado ao “venire contra factum proprium”, substituindo-se o facto próprio pelo decurso do tempo.
15 . Não tem, então, lugar no caso de apenas se ter provado que a autora, até vir a juízo, quase esgotou o prazo de prescrição relativo ao seu direito.
16 . Ainda que o autor principal das notícias não seja o autor dos títulos, subtítulos, textos e aposição das fotografias das primeiras páginas e títulos e subtítulos das páginas interiores, não deve deixar de ser responsabilizado pela totalidade da indemnização.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I –
Associação BB e AA moveram a presente acção declarativa ordinária a:
CC Publicações Periódicas, SA; DD e EE.

Alegaram, em síntese, que:

O semanário da 1.ª R., tendo por director o 3.º R., publicou, em 2000, notícias falsas, da autoria principal do 2.º R., segundo as quais a 2.ª A., aproveitando-se do património da 1.ª A., tinha casas em vários locais e de preços elevados e fazia compras de montantes elevados, sendo ainda responsável pelo desvio de obras de arte doadas à 1.ª A., notícias que, pondo em causa a sua seriedade, causaram danos, ressentindo-se a 1.ª A. nos donativos que habitualmente recebia, enquanto a 2.ª A. sofreu uma crise do foro psíquico que afectou a sua vida pessoal e profissional.

Pediram, em conformidade:
A condenação solidária dos réus a pagar, a cada uma delas, € 45 000,00;
A condenação da 1.ª R. a publicar a decisão condenatória.

II –
A acção prosseguiu a sua normal tramitação e, na altura própria, foi proferida sentença em que:

Se condenou a 1.ª R. e o 2.º R., solidariamente, a pagarem à 1.ª e 2.ª AA., respectivamente, as quantias de € 5 000,00 e € 20 000,00, acrescidas dos juros de mora desde o seu trânsito em julgado e até integral pagamento e ainda a 1.ª R. a publicar, por extracto, após o trânsito, a decisão condenatória.
O 3.º Réu foi absolvido.

III –
Desta decisão apelaram as AA. e o 2.º R. e o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu nos seguintes termos:

“1) Negar provimento ao recurso das Autoras.
2) Conceder parcial provimento ao recurso do 2.º Réu, revogando, nessa parte, a sentença recorrida e, em consequência, absolvendo a 1.ª R. e o 2.º R. do pedido formulado pela 1.ª A. e condenando-os no pagamento, à 2.ª A., da quantia de € 12 500,00, e confirmando quanto demais.”

IV –
Ainda inconformados pedem revista:
As AA;
O réu DD.

Vamos conhecer primeiro do recurso daquelas.

V –
Concluem as alegações do seguinte modo:

ACERCA DO QUANTUM INDEMNIZATÓRIO ATRIBUÍDO À 2.ª A.

A) A indemnização fixada pelas instâncias a favor de AA - 20.000 € na 1.ª instância, reduzida a 12.500 € na Relação - é excessivamente modesta, quase insensível ao sofrimento causado, quando a ora Recorrente foi publicamente exposta, em duas semanas seguidas, à mais vil das acusações: a de que teria enriquecido, de forma extraordinária e chocante, à custa da instituição de solidariedade social que fundara, o que teria dissimulado através de "testas de ferro" e negócios simulados.
B) Toda a matéria factual em que assentou essa acusação de enriquecimento ilegítimo era falsa, não tendo qualquer espécie de suporte: AA não era proprietária de nenhuma das casas, quintas ou montes descritos no jornal AA não tinha os gastos absurdos aí relatados; AA nunca desviou obras de arte em proveito próprio; FOI TUDO UMA CALUNIA.
C) Tais notícias provocaram na Recorrente um intenso sofrimento moral e uma crise do foro psíquico, tendo lançado uma nuvem de suspeição acerca da sua seriedade e honorabilidade, tendo-se baseado em boatos e conjecturas que o jornal não testou com um mínimo de rigor.
D) No acórdão da Relação, escreve-se que a indemnização de 12.500 € assenta nos padrões médios seguidos pela jurisprudência nacional para casos idênticos, mas, S.M.O., tal proposição não é verdadeira - sendo arbitrária a sua formulação -, uma vez que, nos últimos anos, são significativamente mais altas as indemnizações atribuídas pela violação do bom nome de pessoas públicas, quando se está perante factos reveladores de negligência grave, que afectem de forma intensa a sua honorabilidade, como é o caso.
F) A Recorrente sustenta mesmo que não tem memória de uma acusação tão infame como a que lhe foi dirigida assente numa base factual tão falsa como aquela que os factos evidenciam, o que torna particularmente chocante a tese do acórdão recorrido de que se terá pautado por padrões médios.
F) O acórdão recorrido funda-se ainda na circunstância de se desconhecer que a publicação em causa fosse de expansão nacional, pelo que não seria possível atribuir aos danos uma grande extensão, que certamente teria, se a publicação tivesse a referida natureza.
G) Porém, a evidência não é essa, já que é facto público e notório que o "CC" - nunca tendo tido a projecção do "Expresso" ou, na sua fase áurea, do "Independente" - foi um semanário nacional, que era regularmente exposto nos escaparates dos postos de venda de todo o país, como sabe o homem comum médio.
H) A gravidade excepcional das ofensas em causa, a negligência grave com que foram produzidas e as devastadoras consequências desses actos justificam o pedido formulado na p.i.

O DIREITO DA 1.ª A. À INDEMNIZAÇÃO

1) O acórdão da Relação não reconhece à 1.ªA. o direito a qualquer indemnização porque as notícias em causa compreender-se-iam - no que a si respeitava – no exercício do direito à liberdade de imprensa o que excluiria a ilicitude.
J) Justificaria tal proposição a circunstância de, na materialidade provada, só ser susceptível de atentar contra o seu bom nome a atribuição de "irregularidades na gestão dos cerca de 2-10 mil contos" e que "em relação aos donativos de particulares e empresas, a situação ainda é mais complicada", sendo a primeira afirmação fundada num relatório de inspecção, enquanto a segunda seria vaga e não reportada a qualquer facto concreto.
K) Se, quanto à primeira imputação, se aceita a argumentação do acórdão, já, quanto à segunda, é manifesto que o juízo da Relação é erróneo. uma vez que - como resulta da leitura da parte final do facto assente sob o n° 6 - foi também dito o seguinte: "os donativos em espécie também selo fonte geradora de polémica. Ainda hoje, ninguém sabe dos paradeiros dos quadros que o grupo M... deu à associação".
L) Tal afirmação é perfeitamente concreta e é de uma enorme gravidade e leviandade, até porque era já então sabido que o responsável por tal facto se declarara culpado e fora condenado (cfr. facto assente sob o n° 8), pelo que, ao ignorar tal segmento de facto, o acórdão recorrido aplicou erroneamente aos factos o art. 484.º do CC.
M) Acresce que, tal como resulta dos factos assentes, o conjunto das notícias - incluindo as imputações feitas à presidente da BB - atingiu directamente a própria BB, como decorre da circunstância de tais imputações, visando a presidente da BB, revelarem afinal que a BB seria uma instituição onde "não há rei nem roque" e onde seria possível enriquecer à custa do seu património, o que teve concretas repercussões na credibilidade e nas receitas da BB (cfr. factos assentes n.ºs 37, 38 e 39).
N) É por isso que se tem de valorar o conjunto das notícias que lançaram uma nuvem de suspeição sobre a BB - respeitada por pessoas de todos os quadrantes, com uma missão social relevantíssima -, as quais afectaram os donativos recebidos e de que a instituição depende, julgando-se razoável o valor peticionado, nos termos do art. 484° do C.C., tendo particularmente em conta a negligência grave dos RR. e as consequências dos seus actos relativamente aos donativos instituídos a favor de pessoas doentes e carenciadas.

A ABSOLVIÇÃO DO 3.º R.

O) Nos termos do art. 20° da Lei da Imprensa (Lei n° 2/99), é ao Director do jornal que cabe orientar. superintender e determinar o conteúdo da publicação, pelo que lhe cabia impedir a publicação das notícias em causa, sendo certo que está assente que, no caso concreto, tal director não se opôs a essa publicação (cfr. facto assente sob o n° 29).
P) Não o fazendo, o Director violou os seus deveres legais, e também deontológicos, pelo que não pode deixar de ser responsabilizado pelos danos causados.
Q) Não convence o argumento da Relação de que as AA. não provaram o conhecimento do 3° R. relativamente ao conteúdo das notícias em apreço, já que essa seria uma prova diabólica ou mesmo impossível.
R) Caberia ao R. provar que não teve conhecimento das notícias ou que, tendo tido, não se pode opor à sua comunicação. Não o fez.
S) Dos factos provados – o 3° R. era o director do jornal e não se opôs à publicação das notícias - só pode nascer a presunção judicial de que omitiu o seu dever de diligência, donde emerge a sua responsabilidade neste processo.

Estas conclusões foram juntas já neste tribunal após despacho do relator nos termos do artigo 690.º, n.º4 do Código de Processo Civil e não foram objecto de resposta.
Mas as alegações a que se reportavam, anteriormente juntas, foram objecto de contra-alegação, quer do réu DD, quer do réu EE, rebatendo ambos e na parte que lhes diz respeito, a argumentação das recorrentes.

VI –
Ante as conclusões das alegações – que, com ressalvas que aqui não cabem, delimitam o âmbito do recurso – as questões que se nos deparam neste recurso consistem em saber se deve ser:
Majorado o quantum indemnizatório atribuído à 2.ª A;
Atribuída indemnização à 1.ª autora e, na hipótese afirmativa, em que montante;
Condenado o 3.º réu.

Para a resposta a dar à primeira das questões, respiga muito do que temos a dizer sobre a segunda, de sorte que vamos alterar a ordem que nos chega e começar por esta.

VII –
Vem provada a seguinte matéria de facto:

1. No ano de 2000, as Autoras foram objecto de várias notícias em órgãos de comunicação social que davam conta de uma denúncia efectuada por um antigo colaborador da 1.ª A., FF, que apontava para irregularidades na gestão da BB, que veio a determinar a realização de inquéritos no âmbito da Inspecção-Geral do Ministério do Trabalho e da Solidariedade e do Ministério Público.
2. A 1.ª Ré é dona do semanário CC.
3. O 3.º Réu era o director do CC, em 31 de Março de 2000 e 7 de Abril de 2000.
4. Na edição de 31 de Março de 2000 do CC, a manchete da 1.ª página tinha como título “Rico BB”, precedida do subtítulo “Investigação toda a história do enriquecimento ilícito de AA enquanto Presidente do BB, acompanhada da fotografia de AA e do seguinte texto: "A responsável pela BB mora numa casa de 80 mil contos, passa os fins-de-semana numa quinta em Sintra, possui um apartamento em Tavira e descansa num Monte alentejano de 150 mil contos. Uma vida que muitos consideram de luxo, à sombra da luta contra a sida. Uma investigação que não deixa de fora FR, que já tinha conhecimento de irregularidades desde Setembro e mesmo assim aprovou um subsídio. Conheça toda a história do enriquecimento ilícito ".
5. Na página 6, o semanário apresenta uma fotografia de uma casa e desenvolve uma notícia da autoria do 2.º R., com o título “A vida é bela”, e tendo como subtítulo “AA acumulou um invejável património imobiliário desde que é presidente da maior associação portuguesa de combate à sida”.
6. Nessa notícia, escreve-se, entre outras passagens, o seguinte: “Acusam-na de viver luxuosamente, à sombra da luta contra a sida. Chama-se AA e é Presidente da BB. Desde então (desde que fundou a BB), AA acumulou um património assinalável. Sobretudo se tivermos em linha de conta que a presidente da BB afirma auferir cerca de 300 contos mensais. Com as suas três centenas de contos mensais, AA vive num apartamento de 80 mil contos no centro de Lisboa, comprado em Março de 1997, trata-se de uma casa situada num condomínio fechado, apenas ao alcance de pessoas com elevados rendimentos. Mas as propriedades lisboetas não ficam por aqui. AA possui ainda uma outra casa, situada na Calçada ..., com valor de mercado de cerca de 25 mil contos (. . .). O património de AA extravasa, porém, as portas da capital. Os seus fins-de-semana são passados na Assafora, local onde afirmou publicamente possuir uma propriedade que está em nome de MIHF, amiga de AA. Tudo indica, no entanto, que a casa seja da propriedade da presidente da BB. A dirigente da BB não se fica, no entanto, por aqui. Estende os seus interesses no imobiliário no Alentejo, mais concretamente no concelho de Aljustrel, onde tudo indica possui um Monte imponente de 200 hectares, que, à imagem do que acontece com a sua casa de Assafora, não se encontra registada na conservatória em seu nome. Desta vez, o escolhido é o seu tio paterno, AM. O CC visitou a propriedade - que actualmente se encontra à venda por 250 mil contos - e pôde ver a sua piscina, o seu canil ou o interior, próprio de uma casa de luxo, com sete casas de banho. Na zona sul AA passa há muitos anos férias de verão em Tavira, onde terá recorrido a uma situação semelhante, ao colocar a casa em nome de uma amiga. "Ela sabe proteger-se. Tem a noção de que um dia pode ser investigada, por isso recorre a estes artifícios ", afirma ao CC um colaborador directo. Valor estimado da casa: entre 35 a 45 mil contos. Além de aproveitar as suas casas, AA ainda encontra tempo e disponibilidade financeira para viajar com grande frequência ao estrangeiro, para mandar fazer roupa por encomenda em Praga ou para gastar 1500 contos numa tarde a comprar tapetes para a sua casa nova. Quanto aos dinheiros provenientes do Estado, (…) o relatório da Inspecção-Geral do Ministério do Trabalho e da Solidariedade (…) já concluiu que há irregularidades na gestão dos cerca de 240 mil contos que a BB recebeu dos dois ministérios. Em relação aos donativos de particulares e empresas, a situação ainda é mais complicada. Os donativos em espécie também são fonte geradora de polémica. Ainda hoje, ninguém sabe do paradeiro dos quadros que o grupo M... deu à associação ".
7. Na página 7, o CC publica uma entrevista de M, da autoria do 2.º R.
8. Na edição de 7 de Abril de 2000, do CC, a manchete da 1.ª página é “AA acusada de desvio de arte”, acompanhada de uma fotografia de AA com o subtítulo “Pintores e Escultores afirmam que presidente da BB está na origem do desaparecimento das obras doadas”, seguindo-se o seguinte texto: "A Presidente da BB, AA, é acusada por vários artistas portugueses, entre os quais pintores e escultores, de estar na origem do desaparecimento de obras que doaram à associação BB. O caso já provocou a condenação de VF, um intermediário, nas vendas das obras, que se declarou culpado e foi condenado a quatro anos de prisão. Toda a história no Segundo Plano do Jornal. ”
9. Na página 11, aparece uma notícia da autoria do 2.º R., com o título “Onde param os quadros”, acompanhada de uma fotografia de AA, com o subtítulo "Artistas acusam AA de desvio de obras de arte ", a que se segue o texto: "Vários artistas portugueses acusam a presidente da direcção da BB, AA, de estar na origem do desaparecimento de obras que doaram à associação de luta contra a sida. Dizem-se "enganados ", "ofendidos" e "vilipendiados" ".
10. A “BB” foi fundada em 1992 e é uma prestigiada associação de solidariedade social, que se tem distinguido no combate à sida.
11. A Autora prestou declarações ao jornal Tal & Qual, na sua edição de 13 de Setembro de 1996, em que aquela diz que “Depois deste caso (de furto de obras de arte), todas as exposições são organizadas por mim ou por pessoas da minha confiança. Eu não podia adivinhar que o VF era um burlão.”
12. Numa entrevista concedida pela A. AA ao jornal Correio da Manhã, em 23 de Março de 1998, questionada sobre os gostos nos tempos livres, afirma que “gosto de ir para Assafora, uma terra muito simpática ao pé de Sintra, onde tenho um local chamado Cortesia, perto da praia da Samarra, onde vou passear a pé e receber amigos”.
13. A 2.ª A. concedeu uma entrevista ao jornal Tal & Qual, que foi publicada na edição de 20 de Junho de 1998, onde diz que “até já escolheu um local para testar as suas potencialidades eleitorais: a Aldeia de Cortesia, nos arredores de Sintra, onde possui uma casa de fim-de-semana e onde, queixa-se, os habitantes da aldeia não lhe dão descanso”.
14. Já em entrevista ao jornal Diário de Noticias, dada pela 2.ª A. após a publicação das notícias do CC, esta afirma: “a casa que tenho na Rua das Lages, Assafora, está arrendada há 14 anos ao Sr. Alfredo Neves”.
15. Na notícia de que existe cópia a fls. 97, a A. AA afirma: “percorro as ruas de Tavira todos os dias e vou à praia da Fábrica, em Cancela Velha”.
16. Em artigo publicado no jornal Público, na edição de 1 de Abril de 2000, a 2.ª A., que subscreve o mesmo, afirma: “Quando vou lá de férias (em Tavira), costumo alugar uma casinha simples que fica a meio da serra e que pertence a uns amigos”.
17. Na peça jornalística referida em 14., junta a fls. 96, afirma-se que a 2.ª A. forneceu ao Diário de Notícias fotocópias de recibos sobre uma casa arrendada em seu nome na Travessa ..., em Lisboa, no valor de 4 530$00.
18. O 2.º R. foi o principal autor do texto das notícias que visaram as AA.
19. Do património imobiliário que lhe é atribuído, a A. M apenas era dona, à época, em comum com outra pessoa, da fracção autónoma correspondente ao 4.º andar D, do prédio urbano designado pelo Lote 2, da Urbanização ...., adquirido por 29 mil contos, com recurso integral ao crédito bancário.
20. A casa da Bica era um pequeno apartamento, arrendado pela 2.ª A., em 1980, pela renda mensal de 2 000$00, onde já não habitava e que cedera para utilização de pessoas ligadas à BB e no interesse desta.
21. A casa de Sintra era também arrendada, desde a década de 80.
22. O monte do Alentejo não pertencia à 2.ª A. e o direito de propriedade sobre esse imóvel encontrava-se à data das notícias referidas registado a favor de A., SA.
23. A A. não tinha, à data das mesmas notícias, qualquer casa no Algarve.
24. Por vezes, a A. M utilizava, em férias, um apartamento sito no Algarve, de um amigo.
25. A 2.ª A. nunca fez compras por encomenda, em Praga, nem gastou numa tarde 1 500 contos em tapetes.
26. A 2.ª A. nunca desviou obras de arte doadas à “BB” em seu proveito, designadamente de TF, do grupo M....
27. A BB tem um registo das obras de arte que lhe são doadas.
28. A Inspecção-Geral do Ministério do Trabalho e da Solidariedade, em 22 de Dezembro de 1999, elaborou o relatório junto a fls. 424-473, onde constam 139 conclusões.
29. Os escritos e imagens foram publicados sem a oposição do director.
30. O 2.º R. é autor dos textos que assina.
31. A BB é respeitada por pessoas de todos os quadrantes sociais, políticos, económicos e sociais.
32. A BB, à época, geria programas de prevenção da transmissão do vírus VIH e de luta contra a discriminação dos seus portadores, assegurava núcleos de atendimento e encaminhamento de doentes em Lisboa, Funchal e Vila Nova de Gaia, bem como serviços de apoio domiciliário no Porto e em Laveiras, detinha um centro de documentação de grande procura, garantia uma acção de consultas telefónicas, desenvolvia um programa específico de apoio ás crianças e mantinha uma intensa cooperação com outras ONG’s nacionais e estrangeiras, tudo no âmbito do combate à sida.
33. Para muitos sectores da população portuguesa, a BB é a grande referência do combate à sida.
34. A 2.ª A. era a presidente da direcção da BB, tendo sido sua fundadora.
35. A 2.ª A. sempre se devotou à BB de forma empenhada.
36. Para muitos sectores da população portuguesa, a 2.ª A. é uma grande referência individual do combate à sida.
37. Os escritos em causa contribuíram para abalar a credibilidade das Autoras, lançando uma nuvem de suspeição acerca da sua seriedade e honorabilidade (resposta ao quesito 24.º).
38. Muitas pessoas, por causa desses escritos, duvidaram dessa seriedade e honorabilidade (resposta ao quesito 25.º).
39. Em consequência da publicação das notícias referidas, bem como de outras semelhantes que, na mesma altura, foram objecto de divulgação por parte de outros órgãos de comunicação social, a A. A recebeu durante o ano de 2000 menos donativos do que aqueles que habitualmente recebia (resposta ao quesito 26.º).
40. À época, as notícias referidas e outras semelhantes noutros órgãos de comunicação social geraram em muitos sectores a convicção de que a 2.ª A. tinha enriquecido à conta da BB.
41. A publicação e divulgação das notícias referidas e de outras semelhantes noutros órgãos de comunicação social causaram sofrimento moral à 2.ª A.
42. A publicação das notícias dos autos, em conjunto com a divulgação de outras notícias semelhantes por parte de outros órgãos de comunicação social, causou à 2.ª A. uma crise do foro psíquico, que afectou a sua vida pessoal, social e profissional.
43. Além da sua projecção mediática, a BB recebia subsídios estatais.
44. No início de 2000, veio a público, através de diversos órgãos de comunicação social, que a BB estava a ser alvo de uma investigação por parte da Inspecção-Geral do Ministério do Trabalho e da Solidariedade (IGMTS).
45. Foi ainda noticiado que, no âmbito desse inquérito, a IGMTS produzira um relatório que apontava a existência de irregularidades nas contas e actividades da associação.
46. A utilização errada de subsídios públicos, as elevadas retribuições dos seus dirigentes e o desvio de obras de arte doadas à associação foram publicamente veiculadas como irregularidades detectadas pela IGMTS.
47. Foi também noticiado que o resultado dessa inspecção fora enviado à Polícia Judiciária.
48. O 2.º R., em colaboração com outros jornalistas, desenvolveu uma investigação, no sentido de apurar qual o património da 2.ª A.
49. No âmbito dessa investigação, ouviu algumas pessoas das áreas da prevenção, tratamento e apoio a pessoas com sida, designadamente médicos, enfermeiros, artistas e doentes.
50. E ainda pessoas que trabalharam na BB com a 2.ª A.
51. As pessoas ouvidas transmitiram ao 2.º R. suspeitas de que a 2.ª A., depois da fundação BB, tinha adquirido um grande património imobiliário (…).
52. O 2.º R., na companhia de outro colega, deslocou-se a Aljustrel, onde falou com um empregado do “monte” referido na notícia identificada em 4. e este afirmou-lhe que a dona do mesmo era AA.
53. A A. assumiu em entrevistas possuir e utilizar uma casa na Assafora, e que a ligação telefónica estava em seu nome.
54. A 2.ª A. também já afirmara publicamente que passava férias em Tavira.
55. Algumas das pessoas referidas em 49. disseram ao 2.º R. que a 2.ª A. viajava para o estrangeiro com grande frequência, mandava fazer roupa por encomenda e tinha disponibilidade financeira para fazer compras.
56. As transcrições referidas em 6. são da autoria do 2.º R. (de que foi o principal autor) e dos colegas (…) e, em parte, referem-se ao inquérito da IGMTS e à reprodução de declarações prestadas por J… e outros.
57. Já o título, subtítulo, textos e fotografias (e respectiva inserção) da 1.ª página, da edição de 31 de Março de 2000, não são da autoria do 2.º R.
58. O título, subtítulo, textos e fotografia (e respectiva inserção) da página 6 não são da autoria do 2.º R.
59. O título, subtítulo, textos e fotografia (e respectiva inserção) da 1.ª página, da edição de 7 de Abril de 2000, não são da autoria do 2.º R.
60. Os títulos e subtítulos da capa das edições de 31 de Março de 2000 e de 7 de Abril de 2000 foram elaborados pelo chefe de redacção, (que também fez o editorial da página 6), enquanto os títulos e subtítulos das páginas interiores foram efectuados pelo editor da sociedade.
61. A entrevista realizada pelo 2.º R. à 2.ª A., inserida na edição de 31 de Março de 2000 do CC, terminou por iniciativa da 2.ª A., no momento em que o R. lhe colocou uma questão sobre o seu património.
62. O objectivo da entrevista era a audição da A. para informar sobre a verdade das imputações que eram feitas por outras pessoas relativamente ao seu património e que foram objecto das notícias.
63. Desde 1997, foram publicadas várias notícias sobre ambas as Autoras e que questionaram, particularmente, a gestão da associação BB e dos subsídios governamentais que recebe.
64. Nesse sentido, e no âmbito das alegadas irregularidades, veio a BB a ser alvo de medidas inspectivas, quer através das respectivas inspecções gerais do Ministério do Trabalho e da Segurança Social e do Ministério da Saúde, quer da Polícia Judiciária.
65. A Inspecção-Geral do Ministério do Trabalho e Segurança Social suscitou diversas questões de procedimento e funcionamento da 1.ª A.
66. O imóvel na Assafora não estava registado na Conservatória do Registo Predial em nome do mencionado Alfredo.
67. As receitas da 1.ª A. aumentaram nos anos de 2002 e 2003.
68. Nos anos de 2001, 2002 e 2003, aumentou o montante dos subsídios estatais recebidos pela 1.ª A.

VIII -
A liberdade de pensamento, expressão e informação encerra direitos humanos fundamentais, que – como o comum dos outros – vieram ganhando particular e crescente relevância a partir do fim da Segunda Guerra Mundial.
Surgem tutelados nos artigos 18.º e 19.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, proclamada pela Assembleia Geral da ONU a 10.12.1948 e vêm sendo reiterados em vários normativos de cariz transnacional, com relevo especial para o artigo 19.º do Pacto Internacional Sobre os Direitos Civis e Políticos, aberto à assinatura, ratificação e adesão pela Resolução 2200-A (XXI) da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 16.12.1966, com entrada em vigor na ordem jurídica portuguesa, com a Lei n.º 28/78, de 12.6, em 15.09.1978 e para os artigos 9.º e 10.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (doravante, apenas referida como Convenção) que Portugal assinou a 22.11.1976, a Assembleia da República ratificou pela Lei n.º 65/78, de 13.10, tendo, a 9.11. seguinte, o instrumento de ratificação sido depositado (Diário da República I Série de 2.1.1979), de sorte que, nos termos do artigo 8.º, n.º2 da Constituição da República Portuguesa, conjugado com o, então, artigo 66.º, n.º3, da própria Convenção, a partir de tal data, passou a vigorar entre nós.
O acatamento destes normativos está assegurado, não só pela vinculação aludida do nosso país, mas também pelo que dispõe o artigo 16.º da Constituição da República. E a nossa Constituição não se fica por este preceito, integrando, ela própria, o texto dos artigos 37.º e 38.º confirmando a ideia de liberdade, quer de pensamento, quer de expressão, quer de informação. Ideia que é reiterada, em plano normativo inferior, por muitas outras disposições, com realce para os artigos 1.º e 2.º da Lei de Imprensa (n.º2/99, de 13.11).
Todo este conjunto normativo e no que aqui nos interessa não conflitua intrinsecamente. Pelo contrário, a reiteração das concepções revela, antes, a intensidade valorativa com que elas devem ser encaradas nas sociedades abrangidas.
Temos, então, uma ideia-base:
No domínio do pensamento, da expressão e da informação, a regra é a liberdade.

IX –
Mas, logo numa primeira abordagem, se constata que esta liberdade pode conflituar com outros direitos fundamentais. E até que aquele direito fundamental de expressão e de informação está vocacionado para, com frequência, frontalmente conflituar.
Por isso, o n.º3 do apontado preceito do Pacto Internacional Sobre os Direitos Civis e Políticos, assim como o seu artigo 20.º e, bem assim, o n.º2 do artigo 10.º da Convenção logo determinam limites ao exercício da liberdade de expressão. E, se a nossa Constituição não seguiu este modo de redigir, não deixou, nos n.º3 e 4 do artigo 37.º, de aludir às “infracções cometidas no exercício destes direitos” e ao “direito a indemnização pelos danos sofridos”. Referindo-se, já no plano da lei ordinária, o artigo 3.º da LI aos “limites à liberdade de imprensa.”
Aquela ideia-base de liberdade encerra, pois, restrições.

X –
Se encerra restrições, vem ao de cima a questão da fronteira entre aquela e estas. Concretizando, o mencionado artigo 10.º, n.º2 da Convenção, alude a “deveres e responsabilidades” e à submissão do exercício daquele direito à liberdade “a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas na lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a protecção da saúde ou da moral, a protecção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e imparcialidade do poder judicial.”
Está aqui a pormenorização, até onde pôde chegar o legislador, sobre a mencionada fronteira.
A partir daqui, terão de ser os órgãos judiciais a, caso a caso, recolher e lançar ideias em ordem a melhor se ajuizar da prevalência da liberdade ou das suas restrições.


XI – 1
No nosso caso, só nos interessa a limitação referente à honra e bom nome analisada em sede de publicação jornalística.
A este respeito, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem vem firmando jurisprudência que, directamente ou por referência a decisões anteriores – entre elas a de Lopes Gomes da Silva contra Portugal, de 28.9.2000 - está plasmada no Acórdão de 29.11.2005 que levou à condenação do Estado Português (1)
Este acórdão tornou-se definitivo nos termos do n.º2 do artigo 44.º da Convenção e tem o valor do artigo 46.º: As Altas Partes Contratantes obrigam-se a respeitar as sentenças definitivas do Tribunal nos litígios em que forem partes. Mas, como refere Ireneu Barreto, em anotação a este artigo, “Convirá, no entanto, a todas as autoridades, mesmo àquelas que não pertencem ao Estado em causa e entre elas os tribunais, acolher a doutrina que deles (acórdãos) deriva para evitar futuras condenações por violação da Convenção.”
Cremos, então, por bem acolher o que o próprio acórdão chama “princípios fundamentais que decorrem da sua jurisprudência relativa ao artigo 10.º” e até o demais constante da fundamentação, em ordem a clarificar, tanto quanto possível, a fronteira de que falámos entre a liberdade e as restrições a esta.
No que, então, nos importa, o tribunal, começa por referir:
“Sob reserva do n.º2, esta [a liberdade de expressão] é válida não só para as “informações” ou “ideias” recebidas livremente ou consideradas como inofensivas ou indiferentes, mas também para as que contradizem, chocam ou ofendem. Assim o querem o pluralismo, a tolerância e o espírito de abertura sem os quais não há sociedade democrática. Tal como estabelece o artigo 10.º, o exercício desta liberdade está sujeito a formalidades, condições, restrições e sanções que todavia devem interpretar-se estritamente, devendo a sua necessidade ser estabelecida de forma convincente.”
E continua:
“Estes princípios revestem uma importância particular para a imprensa. Se esta não deve ultrapassar os limites fixados em vista, em particular, da “protecção e reputação de outrem”, incumbe-lhe no entanto comunicar informações e ideias sobre questões políticas bem como sobre os outros temas de interesse geral. A garantia que o artigo 10.º oferece aos jornalistas no que respeita às contas que prestam sobre as questões de interesse geral é subordinada à condição que os interessados agem de boa fé de forma a fornecer informações exactas e dignas de crédito no respeito da deontologia jornalística... a mesma regra deve aplicar-se às outras pessoas que se empenham no debate público, tendo o Tribunal reconhecido que “a liberdade jornalística compreende também os possível recurso a uma determinada dose de exagero, mesmo de provocação.” (2)
“Uma ingerência [no direito à liberdade de expressão] é contrária à Convenção quando não respeita as exigências previstas no n.º2 do artigo 10.º. É, pois, necessário determinar se estava prevista na lei, se visava um ou vários interesses legítimos referidos neste número e se era “necessária numa sociedade democrática”.
“A verificação do carácter “necessário numa sociedade democrática”da ingerência litigiosa impõe ao Tribunal averiguar se esta correspondia a uma “necessidade social imperiosa”, se esta era proporcional aos fins legítimos prosseguidos e se os fundamentos apresentados pelas autoridades nacionais para a justificarem são pertinentes e suficientes…Para determinar se existe tal necessidade e que medidas devem ser adoptadas para lhe dar resposta, as autoridades nacionais gozam de uma certa margem de apreciação. Porém esta não é ilimitada mas anda a par com um controlo europeu exercido pelo Tribunal, que deve decidir em última instância se uma restrição se concilia com a liberdade de expressão tal como decorre do artigo 10.º.”
Desta posição do TEDH, parece-nos resultar uma imposição no modo de pensar. Não se justifica que se pense, logo à partida, sobre se determinada peça jornalística ofende alguém. Deverá, antes, partir-se da liberdade de que gozam o ou os respectivos autores. Só, depois, se deve indagar se se justifica – atentos os critérios referenciais acabados de referir, com inclusão duma margem de apreciação própria por parte dos órgãos internos de cada um dos Estados signatários da Convenção - a ingerência restritiva no campo dessa mesma liberdade e a consequente ida para as sanções legais.
Isto não significa, todavia – a nosso ver – que não assumam intensa relevância os casos em que se justifica tal ingerência restritiva. Basta ler-se esse n.º2 do artigo 10.º e ponderar-se o que ele contém em termos de valores essenciais ao ser humano. Devendo ainda ponderar-se que o TEDH – depois de aludir às informações exactas e dignas de crédito e à deontologia jornalística - reconhece e respeita a existência de uma margem de liberdade de apreciação a cada Estado. Dentro da qual hão-de caber para o caso português - ainda que em interpretação que tenha em conta o que se referiu – as estatuições internas sobre o direito ao bom nome e reputação, mormente as interessantes no domínio do Direito Penal, o artigo 484.º do Código Civil e, bem assim, além do mais que ao caso couber, o constante do Estatuto dos Jornalistas.


XI – 2
No nosso caso e no que concerne à 1.ª A., temos a referência jornalística a que:
“Há irregularidades na gestão dos cerca de 240 mil contos que a BB recebeu dos dois ministérios. Em relação aos donativos de particulares e empresas, a situação ainda é mais complicada. Os donativos em espécie também são fonte geradora de polémica. Ainda hoje, ninguém sabe do paradeiro dos quadros que o grupo M... deu à associação” (ponto 6.º da enumeração factual).
Trata-se de referências vagas, mais insinuantes que explícitas, deixando apenas um clima de nebulosidade sobre o comportamento da primeira das autoras. “Irregularidades”, “situação complicada” ou desconhecimento do “paradeiro dos quadros”, tanto pode encerrar condutas muito graves como um negligenciar só censurável enquanto tal. Acresce que as notícias surgiram num quadro de investigação por parte do Ministério do Trabalho, do Ministério da Saúde e da Polícia Judiciária, sendo certo que o órgão daquele primeiro dos ministérios suscitou diversas questões de procedimento e funcionamento desta autora (pontos 63 e 64) e sendo ainda certo que foi noticiado (por outros órgãos de comunicação) que tal órgão produzira um relatório que apontava a existência de irregularidades nas contas e actividades da associação e que o resultado da inspecção fora enviado à Polícia Judiciária (ponto 44).
Cremos, então, não estar preenchida por aqui qualquer das restrições ao regime de liberdade de que falámos.
É de acolher a decisão da Relação em não condenar em indemnização por aqui.


XII –
No que respeita à outra autora, não se duvida que se está além, e bem além, da fronteira que, de dentro para fora, demarca a liberdade. Estamos em pleno campo da sua restrição, com referência à ofensa à honra, na modalidade do bom nome. Nem isso vem discutido.
A defesa pretende o afastamento da indemnização por abuso do direito, mas temos de deixar essa questão para o recurso respectivo, indo agora para o “quantum” indemnizatório, na pressuposição de que não tem pertinência aquela argumentação.
A primeira instância fixou a indemnização de € 20.000 e a Relação reduziu-a para € 12.500. A recorrente pretende € 45.000.

Neste domínio, já repousamos na lei ordinária. O artigo 496.º, n.º3 do Código Civil impõe a fixação equitativa pelo tribunal, tendo em atenção as circunstâncias referidas no artigo 494.º.
Este refere o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso.
O grau de culpabilidade do agente releva aqui contra os réus condenados, porque foi muito intensa a ofensa, com inserção da notícia na primeira página e consequentemente acessível a muitos que não abriram o jornal. Os que acreditaram na notícia ou em parte dela, tiveram a 2.ª autora como negativizada em duas vertentes. Para eles, não só desviava dinheiro duma associação, como, sob a capa duma actividade de luta contra um flagelo tremendo, tirava meios a esta mesma luta, enveredando por uma vida faustosa. Do mesmo passo que desviava dinheiro para tal, atingia profundamente a dignidade dos doentes que dizia pretender ajudar. Ora, nada disto se provou, tendo-se antes provado o que consta dos pontos 10.º, 17.º, 19.º a 26.º, 31.º e 32.º a 36.º. Na verdade, uma vida simples no plano económico e dedicada a uma causa que merece de todos respeito e consideração.

A referência à situação económica da lesada, como critério de fixação do “quantum” indemnizatório, parece-nos que não resiste ao artigo 13.º da Constituição da República. No caso da indemnização por danos não patrimoniais a componente da dignidade humana é de tal modo forte (3) que choca a ideia de alguém ser mais ou menos indemnizado por tal tipo de danos, de acordo com a sua situação económica. Aliás, a lei ordinária não é clara e fica sem se perceber se, aplicando-se, o rico receberia mais ou menos que o pobre. (4)

O critério da situação económica do lesante, se escapar à inconstitucionalidade, não nos serve por nada se ter apurado em tal domínio.
Ficam-nos as “demais circunstâncias do caso”, mas vertida que foi, na culpabilidade do agente, a intensidade que, a tal propósito, se referiu, não temos circunstâncias especiais a atender.

Noutro modo de ver esta questão do “quantum” indemnizatório, cremos dever atentar no que vem sendo fixado peles tribunais – mormente por este tribunal – em ordem a não perder de vista o comando do artigo 8.º, n.º3 do Código Civil.
Este atentar deve ser feito por dois prismas:
Um relativamente às situações com estreitas afinidades;
Outro, em cotejo com montantes indemnizatórios que vêm sendo fixados a propósito de danos não patrimoniais de outra ordem em especial dos mais, ou manifestamente mais, graves. (5).

Quanto às situações com afinidades, temos a enumeração de Menezes Cordeiro que se pode consultar a folhas 153 do seu Tratado de Direito Civil, I, Parte Geral, Tomo III.
As indemnizações ali referidas não estão já em consonância com as actuais, tendo a jurisprudência evoluído no sentido da elevação dos montantes, defendida, aliás, ali, pelo mesmo Professor.
Com procura fácil em “jurisprudência temática” no sítio do Supremo Tribunal de Justiça, podem-se ver muitos acórdãos em que se manifesta essa subida dos montantes.
Assim como se podem ver também muitos acórdãos em que se fixam indemnizações por danos não patrimoniais de outra origem – principalmente emergentes de acidentes de viação – e reportados a outro tipo de sequelas, de sorte que, de tudo, se pode ficar com uma ideia mais nítida sobre a indemnização a fixar para o presente caso.
Aliás, este tema do “quantum” indemnizatório por danos, quer patrimoniais, quer não patrimoniais, pode agora ser objecto de comparação com os países que nos estão mais próximos. No nosso caso, temos a enumeração constante da “jurisprudência temática” constante do nosso sítio, já supra aludida. Para a Espanha, pode-se consultar Miguel Mateos, Elena Orquín, Marta Goñi e Ainhoa Vigil, Responsabilidad Civil Danos Personales Quantum Indemnizatorio, para o caso francês, Jean Gaston Moore, Indemnisation du Dommage Corporel e para o caso alemão, Schmerzensgeldbeträge de Hacks, Ring e Böhm e, bem assim, Schmerzensgeld-Tabelle de Andeas Slizyk. E, numa consulta mesmo rápida, vemos que nós, portugueses, não temos motivo para qualquer complexo de pequenez relativamente aos montantes. Em muitos casos, pelo contrário.
Muito exemplificativamente e pensando já em casos com afinidades com o nosso, temos, para os tribunais alemães, decisões indemnizatórias de:
15.000 DM, cerca de 7.500 € - divulgação, em revista de notícias de pessoa indicada pelo nome, como suspeita em investigação oficial, de fazer parte de um grupo terrorista, não se tendo tal suspeita confirmado - Oberlandesgericht (6) de Hamburgo, 3.2.1994;
20.000 DM, cerca de 10.000 € - Divulgação em programa televisivo de assuntos da esfera privada, nomeadamente de ligações financeiras, de homem de negócios – Landgericht (7);
20.000 DM, cerca de 10.000 € - fotografia dum padre católico de comportamento irrepreensível aposta, por troca grosseiramente negligente, num artigo sobre abusos sexuais de menores por parte de padres católicos, em revista com tiragem de 1,5 milhões de exemplares - Oberlandesgericht de Koblenz, 20.12.1996;
35.000 DM, cerca de 17.500 € - publicação em livro, com a fotografia do visado, da afirmação falsa de que ele era o segundo raptor num caso de tomada de reféns em avião com morte do piloto – Landgericht de Stuttgart, 31.8.2000 (8)
Podendo ver-se a referência a todos em Schmerzensgeldbeträge citada, edição de 2007, páginas 271, 288, 302 e 365, respectivamente.

Fazendo, então, um apanhado de tudo o que vimos referindo neste capítulo, temos que a quantia que nos chega da Relação é adequada.

XIII – 1
Passemos agora à questão da condenação ou não do 3.º réu, director do CC.
Passa ela pela análise de três vertentes distintas.
A primeira consiste em saber se os factos provados, sem mais, conduzem à condenação;
A segunda – que pressupõe a resposta negativa à primeira - diz respeito à invocação de que o ónus de prova da desresponsabilização caberia ao réu;
A terceira – que pressupõe a resposta negativa às duas anteriores – gira em torno da convicção própria de quem julga e das presunções judiciais.


XIII - 2
Provou-se que o réu era o director do CC e que os escritos e as imagens foram publicados sem a oposição do director.
O artigo 29.º, n.º1 da Lei de Imprensa (2/99, de 13.1) dispõe que:
Na determinação das formas de efectivação da responsabilidade civil emergente de factos cometidos por meio da imprensa observam-se os princípios gerais.
Há, portanto, que indagar se se verificam, no nosso caso, os pressupostos da responsabilidade civil (acto ilícito, culpa, nexo de causalidade e nexo de imputação) resultantes do artigo 483.º n.º1 do Código Civil.

Nos termos do artigo 20.º, n.º1 a) da mencionada Lei de Imprensa, ao director compete superintender e determinar o conteúdo da publicação. Dispondo o artigo 31.º, n.º3 que o director que não se oponha à comissão de crime através da imprensa, podendo fazê-lo, é punido nos termos ali referidos.

Aquela expressão dos factos provados “sem a oposição do director” pode ter dois sentidos:
No primeiro, o director teve conhecimento e possibilidade de se opor;
No segundo, o director não foi “tido nem achado” relativamente a tal publicação.

Este segundo sentido não corresponde ao normal que resulta daquela alínea a) do n.º1 artigo 20.º, mas pode corresponder à realidade, podendo dar-se o caso – que admitimos em raciocínio – de o director estar ausente por qualquer motivo da decisão que levou às publicações em causa.
Em princípio, à falta de demonstração, as expressões devem ser entendidas no seu sentido normal, vulgar.
Mas, no presente caso, havia matéria constante da base instrutória que, conjugada com as respectivas respostas, faz luz sobre como deve entender-se tal expressão. No ponto 17.º perguntava-se se o réu é o responsável pelos textos, imagens e títulos não assinados e respondeu-se “provado apenas o que consta das alíneas C) a I) dos factos assentes e na resposta ao quesito 15.º.”No ponto 65.º, perguntava-se se o 3.º réu não é responsável pelos textos, imagens e títulos não assinados e respondeu-se “não provado”. E deu-se como provado o constante dos pontos 18.º, 30.º e 60.º. Embora a palavra “responsável” não seja a mais adequada para integrar perguntas factuais, cremos, justificadamente, que se se tivesse tratado de conhecimento e possibilidade de oposição por parte do director, o Sr. Juiz não responderia, como respondeu, a estes pontos da BI. Verdadeiramente, então, aquela expressão “sem a oposição” corresponde à ausência de tomada de posição, ao vazio absoluto em tal domínio.
Falece, por isso, o requisito traduzido pelas palavras “podendo fazê-lo” daquele n.º3 do artigo 31.º - passando nós, assim, à margem da questão da repercussão do ilícito criminal na vertente civil – e, independentemente deste tipo legal, os factos não alcançam os requisitos da responsabilidade civil relativamente ao 3.º réu.
Repare-se, até, que, ainda que a propósito da responsabilização das empresas jornalísticas, o n.º2 do artigo 29.º da LI alude a “conhecimento e sem oposição do director”.


XIII – 3
Mas, se os factos não alcançam tais requisitos pode dar-se o caso de neles se poderem estribar regras de ónus de prova em ordem a chegar-se a tal responsabilização. Perante eles, já caberia, neste entendimento, ao director provar que não teve conhecimento ou que não se pôde opor às publicações.
Quanto às regras do ónus de prova, vale também o regime geral que resulta, fundamentalmente, dos artigos 342.º e seguintes do Código Civil e do artigo 516.º do Código de Processo Civil e para o qual se deve entender também a remissão da parte final do artigo 29.º daquela lei. Àquele que invoca um direito cabe a prova dos factos que o integram.
Cabia, então, à autora AA a prova de que o terceiro réu, com director do jornal, soube antecipadamente das notícias e a elas não se opôs. Prova que não foi feita.
Esta prova não era “diabólica”, como lhe chamam as recorrentes, mas extremamente difícil, por versar sobre factos passados no foro interno do jornal, deparando-se ela com uma situação, à partida, de inacessibilidade. Só que, esta extrema dificuldade não conduz a inversão do ónus probatório, como acentuam, Manuel de Andrade (NEPC, 203) e A. Varela e Outros (Manual de Processo Civil, 2.ª ed., 467, nota de pé de página).


XIII – IV
Esta situação releva – ou, mais precisamente, poderia ter relevado – em dois prismas.
Um, respeitante à convicção de quem julga a matéria de facto. A decisão sobre a prova ou não de determinado facto – e abstraindo agora dos casos de prova vinculada – assenta num regime de liberdade. Sem a atingir, contudo, é de constatar que a realidade das coisas não determina que seja necessária a mesma solidez de prova para todos os factos. Uns, pela sua vulgaridade ou normalidade, exigirão uma prova menos intensa. Outros, pelo contrário, por se afastarem dessa vulgaridade ou normalidade, exigirão uma prova mais sólida.
Ora, sendo o terceiro réu director do jornal, não se exigiria uma prova particularmente sólida de que teve conhecimento das publicações e de que se pôde a elas opor.
Tal situa-se, porém, no plano teórico. O que se passou, quanto a prova, no presente caso, não nos está, nem tinha que estar, presente. Tudo esteve, numa primeira fase, nas mãos do Sr. Juiz da 1.ª instância e, numa segunda, já com as limitações que a lei encerra, nas mãos dos Senhores Desembargadores. Se os pontos da BI foram respondidos como se referiu, poderia ter-se dado o caso de a prova produzida levar a que o que era vulgar ou normal, no plano teórico, não se pudesse afirmar para o caso presente. Nós, enquanto tribunal de revista, mais não temos que recolher a convicção formulada por aqueles Magistrados.


Já fora do domínio da convicção, permite o artigo 351.º do Código Civil que se extraiam as, ali chamadas, presunções judiciais, a elas se reportando a recorrente na alínea S) das conclusões das alegações. Aos factos apurados acrescentar-se-iam outros, daqueles derivados, atentas as máximas da experiência assentes no normal fluir da vida ou no natural evoluir da realidade das coisas. Como presunções que são e vista a definição do artigo 349.º do mesmo código, pressupõem um facto desconhecido. Este requisito não é compatível, a nosso ver, com a situação consistente em se ter levado à B.I. tal facto e se ter respondido a ele negativamente, porquanto tal resposta negativa pode ter assentado em contraprova que a presunção, extraída “a posteriori”, iria menosprezar ou mesmo ignorar.
De qualquer modo, o recurso ou não a presunções judiciais, assim como o seu sentido no caso de a elas se recorrer, está também fora do âmbito de conhecimento deste Supremo Tribunal, atentos os limites que derivam, no plano geral, do artigo 26.º da LOFTJ e, já especificamente quanto ao recurso de revista, dos artigos 721.º, n.ºs 2 e 3, 722.º, n.ºs 1 e 2 e 729.º do Código de Processo Civil. Assim, tem sido entendido aqui com frequência, como se pode ver dos Ac.s de 9.3.95, no BMJ 445, 424, de 20.5.2004, 7.12.2005, 26.1.2006, 6.7.2006, 7.11.2006, 14.11.2006, 5.12.2006, 19.12.2006, 1.3.2007 e 24.5.2007, estes em www.dgsi.pt.


Do que vimos expondo, resulta que nos ficam apenas os factos tal como a Relação os fixou, acolhendo o que lhe chegava da 1.ª instância e que, atentos eles, o 3.º réu foi bem absolvido.


Vejamos agora o recurso do réu DD.


XIV -
Conclui ele as alegações do seguinte modo:

1. O acórdão recorrido deve ser revogado na parte em que condena o Recorrente no pagamento à Recorrida de uma indemnização por danos morais, porquanto a reclamação de tal ressarcimento consubstancia uma situação de abuso do direito e o montante fixado se afigura excessivo;
2. Efectivamente, a pretensão da Recorrida constitui um manifesto abuso de direito, nas suas várias vertentes (venire contra factum proprio, renúncia ao direito e neutralização do mesmo), pelo que deve improceder totalmente, sob pena de violação do disposto no artigo 334.º do CC;
3. Não pode proceder a insuficiência da materialidade para tipificar o abuso do direito na situação sub judice arguida pelo Venerando Tribunal recorrido, essencialmente sustentada no facto de não estar comprovada a ilicitude da conduta dos demais órgãos de comunicação social que publicitaram a situação em causa e na desvalorização do decurso do tempo entre a produção do dano e a reacção da Recorrida;
4. A ilicitude da conduta dos demais órgãos de comunicação social decorre do respectivo teor, bem como do facto de terem sido provados quer o nexo de causalidade entre os danos alegados, quer a semelhança entre as notícias veiculadas por todos os órgãos de comunicação social;
5. A consideração do Venerando Tribunal recorrido de que o mero decurso do tempo não confere qualquer expectativa que mereça protecção jurídica, à margem dos demais institutos jurídicos, como o da prescrição, está em manifesta contradição com o conteúdo e a própria natureza do instituto do abuso do direito, pois tal poderá desembocar numa renúncia ao exercício do direito ainda que não atinja o limite do prazo prescricional;
6. Vários meios de comunicação social contribuíram para a produção dos danos reclamados, não tendo sido possível discernir qual a exacta medida pela qual cada um é responsável (sendo certo que os demais têm mais divulgação e impacto do que o 1° R.), tendo apenas o CC sido demandado, o que configura um comportamento meramente vingativo e atentatório do princípio da boa fé com o qual o nosso ordenamento jurídico não é compatível, nos termos do disposto nos artigos 1° do CPC e 115.º, n.º 2, e 116.º, n.º 3, do Código Penal;
7. Verifica-se in casu que: (i) o titular do direito deixou passar longo tempo sem o exercer, (ii) com base numa particular conduta do titular, a contra parte criou a convicção justificada de que o direito já não seria exercido, tendo orientado em conformidade a sua vida, (iii) tendo o exercício tardio e inesperado do direito acarretado uma desvantagem maior do que o seu exercício atempado;
8. Com efeito, a Recorrida apenas intentou a presente acção nas vésperas do término do prazo de prescrição do seu alegado direito de indemnização, não tendo antes (em período anterior ao decurso do prazo prescricional) demandado criminalmente o CC ou qualquer outro órgão de comunicação social que tenha divulgado notícias semelhantes, levando o Recorrente a formar e a consolidar, à medida de que o tempo decorria, uma falsa sensação de que tal não iria ocorrer;
9. Criada esta convicção, o Recorrente não cuidou de preservar registos nem o contacto com as fontes, pelo que ficou impedido de demonstrar a sustentabilidade das informações transmitidas;
10. O decurso do tempo originou também a extinção do "CC", ficando os riscos da profissão de jornalista (normalmente assegurados pela pessoa colectiva que beneficia dos seus serviços) a cargo dos mesmos;
11. Atento o efectivo contributo do Recorrente para a produção dos danos sofridos pela Recorrida e tomando em conta os padrões adoptados pelos nossos Tribunais superiores relativamente ao ressarcimento de danos semelhantes, a indemnização em que foi condenado é manifestamente excessiva, devendo o acórdão prolatado ser revogado e substituído por outro que condene o Recorrente no pagamento de uma indemnização francamente inferior, senão meramente simbólica, sob pena de violação dos princípios da justiça relativa e da proporcionalidade;
12. É que o acórdão sob censura não valora devidamente o contributo da Recorrida para a produção dos danos cujo ressarcimento reclama, cuja conduta é causa adequada para a produção de parte dos danos advenientes da publicação daquelas informações, que não teriam sido divulgadas se desmentidas pela Recorrida;
13. Através de declarações efectuadas durante diversas entrevistas anteriores à publicação dos artigos da autoria do Recorrido (onde referia que "possuía" uma casa em Assafora e outra em Tavira) e da sua recusa em responder às questões que este lhe colocou a respeito dos factos em causa, sabendo que o objectivo das questões era clarificar a sua situação patrimonial face a imputações que lhe eram feitas por terceiros, a Recorrida contribuiu de forma evidente para levar a opinião pública a acreditar na veracidade dos factos constantes dos escritos em causa;
14. Sendo os títulos, subtítulos, textos e fotografias das primeiras páginas das edições em causa e os títulos e subtítulos das páginas interiores da autoria de terceiros que não o Recorrente, sendo os mesmos os factores que mais impressionaram os destinatários das notícias, até pelo exagero que fazem do conteúdo dos textos escritos pelo Recorrente, retratando estes textos factos parcialmente verdadeiros, tendo o Recorrente sido induzido em erro por fontes que considerou credíveis, tendo os danos sofridos resultado também de notícias de outros órgãos de comunicação social, com maior projecção e credibilidade junto do público, há que restringir a responsabilidade que lhe é assacada à estrita medida do que lhe é imputável, restringindo-se a indemnização em conformidade;
15. O Recorrente não agiu dolosamente, mas tão somente com mera culpa, pelo que lhe foi assacada responsabilidade excessiva em face do que foi efectivamente praticado pelo mesmo;
16. Sob pena de se sustentar uma flagrante violação do disposto nos artigos 494.º e 570.º do CC, é forçoso concluir que o acórdão sob censura deverá ser revogado e substituído por outro que elimine ou reduza, em consequência, a quantia a pagar pelo Recorrente à Recorrida.
Nestes termos e nos demais de direito, que V. Ex.as doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso de Revista e consequentemente ser revogado o douto acórdão na parte sob censura, substituindo-o por outro que julgue em conformidade com o alegado.


Contra-alegaram as autoras, rebatendo, ponto por ponto, a alegação deste réu.


XV –
Perante as conclusões das alegações – que, como já referimos, delimitam o âmbito do recurso, com ressalvas que aqui também não interessam – temos que tomar posição sobre se:

1. A condenação deste réu encerra um caso de abuso do direito por:
A publicitação, segundo o recorrente, ter sido levada a cabo por vários meios de comunicação social e só terem sido demandados os réus;
As autoras só terem demandado quando o prazo prescricional estava prestes a esgotar-se;
2 . O montante indemnizatório fixado é excessivo, considerando, por um lado, que a própria autora AA contribuiu para a credibilidade das notícias e, por outro, que os títulos, subtítulos, textos e fotografias são da autoria de terceiros que não do recorrente.


XVI –
No presente recurso, vêm logo ao de cima os limites de conhecimento de facto, precisados supra.
Assim, tendo este tribunal de acolher a matéria de facto que lhe chega e de julgar apenas com base nela, não pode ter como certo que apenas estes réus tenham sido demandados ou que as notícias vindas a lume em outros meios de comunicação social tenham tido conteúdo e alcance para além do que resulta dos pontos 1, 39 a 42 e 44 da enumeração factual que se transcreveu a propósito do outro recurso e que aqui,“brevitatis causa”, se dá como reproduzida.
Outrossim e tendo em conta o que acaba de se dizer, não se pode inferir que as autoras tenham agido vingativamente e com desrespeito pelo princípio da boa fé, nem que as entrevistas da autora AA tivessem legitimamente gerado a convicção da veracidade do que veio a ser afirmado pelo jornal.

Expurgadas, então, estas realidades constantes das alegações do recorrente, logo vemos que fica sem substrato factual quase toda a construção que faz sobre o abuso do direito. Estamos longe da verificação dos requisitos do artigo 334.º do Código Civil.



XVII –
E dizemos “quase toda a construção” porque de fora destas considerações fica a relativa à demora das autoras em demandar. O que não significa que aqui tenha lugar a verificação da apontada figura.
A invocação do abuso de direito, por parte da recorrente, neste ponto, é reportada à figura que vem sendo designada de “neutralização do direito”, “supressio” ou “Verwirkung”.

Casos há, efectivamente, em que, independentemente do decurso de prazos de caducidade ou até de prescrição, o decurso do tempo pode constituir um elemento essencial que, pelo caminho desta figura, conduza ao abuso do direito.
Mas para que assim aconteça, hão-de ter-se por verificados – substituindo-se o “factum proprium” pelo decurso do tempo - os requisitos da outra figura relativa ao abuso do direito que é o “venire contra factum proprium”. Reconduzem-se, na verdade, ambas as figuras à tutela da confiança e à boa-fé.
A propósito da “Verwirkung”, Batista Machado (RLJ 118, 228) enumera os seguintes requisitos, que a jurisprudência tem recebido sem conhecidas divergências :
Que o titular do direito deixe passar longo tempo sem o exercer;
Que com base nesse decurso do tempo e com base ainda numa particular conduta do dito titular ou noutras circunstâncias, a contraparte chegue à convicção justificada de que o direito já não será exercido;
Que, movida por essa confiança, essa contraparte tenha orientado em conformidade a sua vida, tenha tomado medidas ou adoptado programas de acção na base daquela confiança, pelo que o exercício tardio e inesperado do direito em causa lhe acarretaria agora uma desvantagem maior do que o seu exercício atempado.
Do mesmo modo, Menezes Cordeiro (Tratado de Direito Civil Português, IV, 324) alude a:
Um não exercício prolongado;
Uma situação de confiança;
Uma justificação para essa confiança;
A imputação da confiança ao não-exercente.

Logo se vê, então, que os factos provados, claramente, não conduzem a esta figura.
O não exercício do direito não podia ter sido prolongado porque curto é o prazo prescricional e não se alude sequer a confiança no não exercício, ficando prejudicado qualquer juízo de valor sobre a justificação para esta ou sobre comportamento das autoras que levasse a contraparte a confiar.



XVIII –
Insurge-se ainda o recorrente sobre o “quantum” indemnizatório.
Sobre ele – ainda que na vertente da sua majoração – já discorremos a propósito do outro recurso.
O que ali ficou dito vale, todavia, aqui também para justificar o afastamento de minoração. Nomeadamente, importa ter sempre presente que as notícias atingiram um grau de gravidade grande, tiveram destaque e não tinham na sua base factos verdadeiros.
Nem contra o montante fixado, se pode argumentar procedentemente, em nosso entender, com o facto de algumas das notícias e respectivo contexto não serem da autoria do recorrente. Ele tomou para si o grosso duma realidade que deve ser encarada como um todo para o qual contribuíram, numa relação de interligação essencial, actuações de outros elementos do jornal. Não se pode cindir a actuação de cada um e responsabilizá-lo apenas como se a parte que directamente criou fosse independente das demais. Quem escreve, para um jornal, o que consta dos pontos 5, 6 e 11, não pode deixar de se considerar integrado em todo um contexto de peça jornalística, pensando que a sua responsabilidade se esgota no que, directamente, escreveu. Segundo as regras da experiência, a sua actuação foi causa adequada de todo o dano causado, sendo, então, de ter em conta, mesmo que falecesse a mencionada interligação, o - aqui também aplicável por força do já mencionado artigo 29.º, n.º1 da Lei de Imprensa – artigo 490.º do Código Civil.


XIX –
Face a todo o exposto, negam-se ambas as revistas.
Custas de cada uma por cada recorrente.

Lisboa, 7 de Fevereiro de 2008

João Bernardo(relator)
Oliveira Rocha
Oliveira Vasconcelos

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(1) A condenação do Estado Português, que também teve lugar no caso de Lopes Gomes da Silva, que referimos, não permite, contudo, inferir que a nossa jurisprudência esteja desfasada relativamente à de outros países mais desenvolvidos. Basta ver-se, no sítio do respectivo tribunal, a variedade de países particularmente desenvolvidos que ali já foram condenados em casos com muitas afinidades, alguns reiteradamente, para se afastar tal ideia.
(2)Estas posições do TEDH não têm sido ignoradas entre nós: vejam-se a recolha de Henriques Gaspar relativa ao caso Karhuvaara e Iltalehti contra a Finlândia, na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 2004, 654 e seg.s (de que existe separata), as anotações ao Ac. de 28.9.2000 na mesma Revista, Ano 11.º, fasc. 1.º, 131 a 155 e, bem assim, o Acórdão deste Supremo Tribunal, de 13.1.05 (revista n.º 3924/04, da 2.ª secção) e das Relações de Guimarães de 30.10.2006, de Lisboa de 25.10.2007 e do Porto de 22.11.2006, 19.9.2007 e 31.10.2007, estes (da 2.ª instância) em www.dgsi.pt.
(3) Tradicionalmente, o ressarcimento pelos danos não patrimoniais é visto como um proporcionar de prazeres à pessoa visada, de modo a compensar o seu sofrimento. Este entendimento, contudo, deixa de fora os casos em que o lesado se encontra em coma profundo e irreversível, de sorte que não poderá obter prazeres. Perante a questão, o Supremo Tribunal Alemão afastou aquela conceptualização passando a aludir, como objectivo do ressarcimento, ao “Acentuar simbólico da dignidade e da liberdade do ser humano” - Ac. do VI Senado Civil de 13.10.1992, citado por Heinrich Löwe, Der Gedanken der Prävention im deutschen Schadenersatzrecht, 250. A este propósito, não deverá ainda perder-se de vista – não obstante, por razões manifestas, nos não vincular – a 2.ª parte do 12.º Princípio da Resolução do Conselho da Europa n.º 7/75, de 14.3, segundo a qual o cálculo da indemnização por dano corporal (físico ou psíquico) “deve ser independente da situação económica da vítima.” (Podendo ver-se o texto da Resolução em Armando Braga, A Reparação do Dano Corporal na Responsabilidade Civil Extracontratual, 295 e seguintes).
(4) Veja-se, sobre esta questão, Maria Veloso, Comemorações dos 35 Anos do Código Civil, III, 542.
(5) Este segundo ponto de referência é, aliás, salientado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem no acórdão de 16.11.2004, de Karhuvaara e outro contra a Finlândia, que já citámos em nota de pé de página, em que se ponderou que a indemnização, pedida, de € 24.400, podia ser considerada muito substancial e desproporcionada quando comparada com outros tipos de crime.
(6)Correspondente, grosso modo, ao nosso Tribunal da Relação.
(7)Correspondente muito grosso modo, ao nosso tribunal de círculo. A extrema raridade com que se vêem decisões do Supremo Tribunal sobre os montantes indemnizatórios radicam-se no entendimento deste de que, por regra, tal fixação é da competência do “juiz de facto” (veja-se o Ac. do VI Senado n.º 182/97, de 12.5.1998).
(8) De fora do âmbito destes montantes, superando-os manifestamente, temos os casos de Carolina do Mónaco que marcaram muito a jurisprudência alemã e internacional. Levantaram, no essencial, problemas de fronteira entre a vida privada e a que pode vir ao conhecimento público e, especificamente, onde deve ser situada tal fronteira no caso de figuras públicas, levando a que o TEDH também se pronunciasse. Problemáticas que não nos importam no presente recurso.
Quanto aos montantes, num caso, uma conhecida revista alemã publicou uma entrevista falsa da princesa. Depois de uma primeira fixação de 30.000 DM, revogada pelo Supremo Tribunal, foi fixada a indemnização de 180.000 DM, cerca revogada pelo Supremo Tribunal, foi fixada a indemnização de 180.000 DM, cerca de 90.000 €. Noutro caso, uma revista publicou, em nove artigos, sem autorização, fotografias do filho recém-nascido de Carolina. Indemnização de 150.000 DM, cerca de 75.000 € a este. Cremos, no entanto, que neste tipo de casos, existem razões ponderosas para se elevar as indemnizações sem que se viole o princípio da igualdade. Centradas, nomeadamente, na perseguição jornalística que frequentemente intranquiliza as pessoas visadas. Estamos, pois, longe do nosso caso.