Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
01A1008
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: PINTO MONTEIRO
Descritores: RESPONSABILIDADE MÉDICA
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL DO ESTADO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
DIREITO À VIDA
DIREITO À NÃO EXISTÊNCIA
Data do Acordão: 06/19/2001
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: RLJ, 134º ANO, 2001-2002, Nº 3933, P.371, ANOT. ANTÓNIO PINTO MONTEIRO
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Doutrina:
MONTEIRO, Fernando Pinto, Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da reforma de 1977, vol. II, Coimbra, 2006, p.131, ss

MONTEIRO, António Pinto, anotação ao Acórdão STJ, RLJ, 134º ANO, 2001-2002, Nº 3933

CORDEIRO, António Menezes, Tratado de Direito Civil Português, I Parte Geral, Tomo III, Pessoas, Coimbra, 2004, p. 281, ss.

PEREIRA, André Dias, O consentimento informado na relação médico-paciente, Estudo de direito civil, Coimbra, 2004, p. 375, ss.
Jurisprudência Estrangeira: ARRÊT PERRUCHE, COUR DE CASSATION, FRANCE, 17.11.2000
Sumário :
I - A nossa lei não prevê, no que toca à responsabilidade médica, casos de responsabilidade objectiva, nem casos de responsabilidade civil por factos lícitos danosos - tal responsabilidade assenta na culpa.
II - Na actuação do médico, o não cumprimento pelo mesmo dos deveres de cuidado e protecção a que está obrigado, pode ser causa de responsabilidade contratual, na medida em que viola deveres laterais
a que contratualmente está obrigado, mas também de responsabilidade delitual, na medida em que a referida violação represente igualmente um facto ilícito extracontratual.
III - Embora com limitações (desde logo as que resultarem de eventuais acordos das partes, dentro do princípio da liberdade contratual), tem-se entendido que o lesado poderá optar pela tutela contratual ou extracontratual, consoante a que julgue mais favorável em concreto.
IV - Ocorrendo a violação ilícita de um direito de personalidade (à vida ou à integridade física) na execução de um contrato, os danos daí decorrentes assumem natureza contratual, mas a admissibilidade da reparação de tais danos terá que sofrer restrições, sob pena de se poder gerar incerteza no comércio jurídico; um dos possíveis critérios limitativos poderá ser o de atender à especial natureza da prestação e às circunstâncias que acompanharam a violação do contrato, e terá que estar em causa uma lesão de bens ou valores não patrimoniais de gravidade relevante.
V - No contrato de prestação de serviços que o médico celebra (contrato médico), existe como obrigação contratual principal por parte daquele a obrigação de tratamento, que se pode desdobrar em diversas prestações, tais como: de observação, de diagnóstico, de terapêutica, de vigilância, de informação; trata-se, por regra, de uma obrigação de meios, e não de resultado, devendo o «resultado» a que se refere o art.º 1154 do CC ser interpretado como cuidados de saúde.
VI - Não há conformidade entre o pedido e a causa de pedir se o autor pede que os réus - médico e clínica privada - sejam condenados a pagar-lhe uma indemnização pelos danos que lhe advêm do facto de ter nascido com malformações nas duas pernas e na mão direita, com fundamento na conduta negligente daqueles, por não terem detectado, durante a gravidez, tais anomalias, motivo pelo qual os pais não puderam optar entre a interrupção da gravidez ou o prosseguimento da mesma - o pedido de indemnização deveria ter sido formulado pelos pais e não pelo filho, já que o direito ou faculdade alegadamente violado se encontra na esfera jurídica dos primeiros.
VII - O direito à vida, integrado no direito geral de personalidade, exige que o próprio titular do direito o respeite, não lhe reconhecendo a ordem jurídica qualquer direito dirigido à eliminação da sua vida.
VIII - O direito à não existência não encontra consagração na nossa lei e, mesmo que tal direito existisse, não poderia ser exercido pelos pais em nome do filho menor.
Decisão Texto Integral:


Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:

I - AA, menor, representado pelos seus pais. BB e CC, intentou acção com processo ordinário contra, pedindo que os réus Dr. DD e Gabinete de Radiologia de A..., Lda sejam condenados a pagar as quantias que se apurarem em execução de sentença, pelos danos que a conduta dos mesmos acarretou ao autor.

Alegou que os réus, que assistiram à sua mãe durante a gravidez, não actuaram com a diligência necessária, não a informando das malformações do feto, retirando-lhe assim a possibilidade de optar pela interrupção da gravidez.
Contestando, os réus sustentaram que não têm qualquer dever de indemnizar o autor.
O processo prosseguiu termos, sendo proferido saneador-sentença onde os réus foram absolvidos do pedido.

Apelou o autor.
O Tribunal da Relação confirmou o decidido.
Inconformado, recorre o autor para este Tribunal.

Formula as seguintes conclusões:
- Sobre os recorridos impende uma especial obrigação de cuidado, diligência, zelo e profissionalismo, face à especialidade, conhecimentos e preparação técnica que os mesmos possuem, ou devem possuir, bem como aos concretos conhecimentos da gravidez e da grávida;
-Por força do contrato de prestação de serviços, ao existir incumprimento dos recorridos, como alegado pelo recorrente, existe uma presunção de culpa daqueles (artigo 799° do C. Civil), que têm de a afastar de forma cabal;
- Os recorridos têm um dever de agir, o que não fizeram, violando assim grosseiramente a legis artis, por omissão;
- A omissão dos recorridos tem relevância jurídica, pois era-lhes exigido terem actuado com muito mais diligência, cuidado e profissionalismo, face aos conhecimentos possuídos (quer técnicos quer da situação concreta) e à praxis médica, que ao tempo já recomendava e exigia outra actuação, como demonstram os documentos juntos pelo recorrente;
- O nexo causal tem que ver não só com os danos directos, mas também com os indirectos, ou seja, com os danos que resultam mediata e remotamente de um dano directo (que no caso foi a omissão do dever de cuidado e assistência diligente da gravidez);
- O dano existente na saúde do recorrente, podia ser evitado com a actuação devida e esperada dos recorridos;
- O dano podia resultar de um "assumir" da responsabilidade pelos pais do recorrente, no nascimento deste;
- Causa adequada do dano são todas as consequências (directas ou indirectas) que constituem uma consequência normal, típica e provável deste; há um nexo causal indirecto (como no caso concreto) que a lei quer salvaguardar:
- Se existem malformações, e há o dever legal ou contratual de serem diagnosticadas e não o são necessária e normalmente não se pode afastar esse resultado em virtude da omissão de diagnóstico correcto;
- Tal facto (omissão) ainda que não provoque directamente o dano, possibilita-o como consequência indirecta, normal e previsível;
- O direito, face ao fim ou etimologia inerentes, visa salvaguardar questões que estejam no seu espírito e no âmbito do pensamento legislativo, na unidade do sistema jurídico e no evoluir da "manta" de responsabilização social e profissional;
- O caso em apreço, tem pleno cabimento no texto e no espírito do disposto no artigo 483° do C. Civil, sob pena de se excluir do preceito uma situação gravosa, quando no mesmo se pretendem incluir situações de muito menor gravidade;
- Os recorridos têm o dever jurídico de dar conselhos, recomendações e informações sérias, credíveis e responsáveis e ao não o fazerem incorrem em responsabilidade indemnizatória, como decorre do n° 2 do artigo 485° do C. Civil;
-A não ser o mau serviço ou acompanhamento clínico prestado pelos recorridos, os danos do recorrente não existiam, e os mesmos só daquele mau serviço decorrem. A omissão de cuidados dos recorridos é condição do resultado danoso;
-Muitos factos essenciais e preponderantes para a decisão do mérito da causa, estão controvertidos, mais impendendo sobre os recorridos uma presunção de culpa pelo incumprimento que os mesmos ou os factos não conseguiram ilidir;
- Estão verificados todos os pressupostos exigíveis para actuar o instituto da responsabilidade civil;
-A actuação dos recorridos, está manifestamente a coberto da obrigação de indemnizar, quer por força da responsabilidade civil aquiliana, quer da responsabilidade civil contratual;
- O despacho saneador-sentença violou o disposto nos artigos 9º, 483°, 485° n° 2, 799° e 1154° do C. Civil e artigo 510° n° 1, alínea b) do CP Civil.
Contra-alegando, os réus defendem a manutenção do decidido.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

XXX
II - Vem referida a seguinte matéria fáctica como fundamento da pretensão deduzida:
Em dia não concretamente apurado, mas por certo no início de Fevereiro de 1996, a mãe do autor ficou grávida do mesmo, tendo o seu nascimento ocorrido no dia 29.10.96, no Hospital Dr. ..., em Ovar;
Os pais do autor deslocaram-se ao consultório do 1º réu, que exerce a profissão de médico, em Ovar, no dia 16.04.96, onde foi dada a 1a consulta, tendo sido dito por aquele que a gestação tinha cerca de 11 semanas e que tudo estava bem, face a uma ecografia e relatório feito na 2a ré, que a mãe do autor entregou ao 1º réu;
O 1º réu sabia que a mãe do autor tinha o útero septado, por já a ter assistido na anterior gravidez;
Por proposta do 1º réu, que não estava satisfeito com a 1ª ecografia, a mãe do autor dirigiu-se à 2ª ré, com vista a fazer nova ecografia para apurar o estado evolutivo da gestação, o que foi feito;
O 1º réu sabia que estava perante uma gravidez de risco, tendo afirmado textualmente que a gravidez da mãe do autor era de risco pelo facto de ter uma cesariana anterior e uma malformação uterina e referido que o volume uterino parecia ser ligeiramente inferior à idade gestacional determinada ecograficamente;
Apesar de tal afirmação e conhecimentos, o 1º réu não actuou com a diligência necessária, não respeitando a praxis clínica, uma vez que deveria ter solicitado a realização de outros exames mais específicos para aferir, nomeadamente, das medições embrionárias, mediante medição do comprimento do fémur, o que desde logo revelaria as malformações do autor;
A gravidez da mãe do autor prosseguiu a sua marcha, tendo sido feitas, por ordem do 1º réu, mais 4 ecografias, a 1ª das quais, em 17.06.96, efectuada nas instalações da 2ª ré, laboratório da confiança do 1º réu, constando do respectivo relatório que não são aparentes anomalias fetais evidentes;
O autor veio a nascer com graves e irreversíveis malformações nas duas pernas e ainda na mão direita;
A mãe do autor, se tivesse sido devidamente informada da existência de graves malformações no feto, poderia ter abortado, mas os pais referidas malformações do seu corpo;
A gravidez de risco da mãe do autor era uma situação que exigia um cuidado, dedicação, preocupação e diligência muito superiores às que foram despendidas pelos réus;
Não fosse a má praxis profissional do 1º réu e do comissário da 2ª ré e ter-se-ia evitado o nascimento de uma pessoa marcada e inferiorizada para o resto da sua vida;
A locomoção do autor está para sempre dependente de terceiros assim como a funcionalidade da sua mão direita é residual.
XXX

III - O menor, representado por seus pais, pede uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais que a conduta dos réus - médico e clínica privada que assistiram a sua mãe durante a gravidez - lhe terão causado.
Na primeira instância os réus foram absolvidos em saneador-sentença, decisão que a Relação confirmou.
Daí o recurso.
A questão a resolver consiste em saber se os réus respondem civilmente perante o autor pelos danos por este sofridos. Sendo a resposta afirmativa, a acção deverá prosseguir para apuramento da matéria de facto relevante e controvertida.
Importa, antes de mais, salientar um aspecto essencial para a delimitação da revista.
O autor em parte alguma dos articulados invoca factos ou sequer alega que as malformações com que nasceu tenham sido consequência da negligência que imputa aos réus.
Na fundamentada decisão da 1ª instância concluiu-se, por isso, correctamente, que os actos cuja prática alegadamente foi omitida pelos réus não foram causa nem condição adequada e típica das malformações com que o autor nasceu.
Mesmo que os réus tivessem praticado os actos que o autor diz terem sido omitidos, sempre se verificariam exactamente as mesmas malformações.
Não pode assim, em via de recurso, suscitar o autor (embora de forma vaga) a problemática de que o dano existente na saúde do recorrente poderia talvez ter sido evitado com outra actuação dos recorridos.
Não só se trata de uma questão nova e os recursos visam, em princípio, reapreciar as questões suscitadas e decididas nas instâncias, como não foi alegada qualquer factualidade que possa sustentar tal inovatória tese.
Vejamos então o problema de fundo tal como foi desenhado nos articulados e apreciado nas instâncias.
Está em causa a responsabilidade médica, abrangendo-se na expressão a responsabilidade de todos os profissionais de saúde (médicos, paramédicos e restante pessoal hospitalar), uma vez que o evento danoso é, frequentemente, resultado de uma complexa actividade de uma equipa médica - Dr. Álvaro Rodrigues - "Reflexões em Torno da Responsabilidade Civil dos Médicos" - "Direito e Justiça", pág. 171.
Como é sabido, tal responsabilidade pode ser civil, criminal ou disciplinar, podendo esta última situar-se num plano de tutela de autoridade médica pública ou num plano disciplinar laboral privado.
No caso concreto discute-se a responsabilidade civil.
Tal responsabilidade consiste na necessidade imposta por lei a quem causa danos a outrem de colocar o ofendido na situação em que estaria sem a lesão. Actua pois através do surgimento da obrigação de indemnização, tendo esta por fim tornar sem dano o lesado.
No nosso ordenamento jurídico civil a responsabilidade assenta, em princípio, na culpa, só existindo obrigação de indemnizar, independentemente de culpa, nos casos especificados na lei (artigo 483° n° 1 e 2 do C. Civil).
Não obstante se assistir hoje a um incremento dos casos dê responsabilidade objectiva ou pelo risco, em parte devido aos progressos técnicos e riscos acrescentados, certo é que não prevê a nossa lei casos de responsabilidade objectiva no que toca à responsabilidade médica.
Igualmente não estão previstos na lei casos de responsabilidade civil por factos lícitos danosos, no que respeita à responsabilidade médica. Não estão assim contempladas situações em que, apesar do carácter conforme ao direito da actuação do sujeito, parece injusto não dar à pessoa sacrificada uma reparação.
A responsabilidade civil médica admite a responsabilidade contratual, ou seja, a que deriva da violação de uma obrigação em sentido técnico e a extracontratual ou aquiliana que resulta da violação de um dever geral de abstenção contraposto a um direito absoluto (no caso direito de personalidade).
Na actuação do médico, o não cumprimento pelo mesmo dos deveres de cuidado e protecção a que está obrigado, podem ser causa de responsabilidade contratual, na medida em que viola deveres laterais a que contratualmente está obrigado, mas também causa de responsabilidade delitual, na medida em que a referida violação represente igualmente um facto ilícito extracontratual.
Não é pacífica a questão de saber qual das responsabilidades prevalece nem a de saber se é admitido o recurso a qualquer uma delas por parte do lesado.
Não se justificando aqui grandes desenvolvimentos, dir-se-á que, maioritariamente, a doutrina e jurisprudência têm entendido que gozando o lesado da tutela contratual e da tutela que deriva da responsabilidade extracontratual, poderá o mesmo optar pelo regime que lhe for mais favorável.
O Prof. Vaz Serra nos trabalhos preparatórios colocou o problema em termos de ser admitido o concurso de responsabilidades, podendo o credor optar por um ou outro regime e até de acumular regras de uma e outra forma de responsabilidade - BMJ n° 85, pág. 15 e segs.
A verdade é que tal regime não foi consagrado, falando-se hoje, por esse motivo, de uma lacuna voluntária a preencher dentro do quadro valorativo do sistema.
Embora com limitações (desde logo as que resultarem de eventuais acordos das partes, dentro do princípio da liberdade contratual, da autonomia privada), tem-se entendido que o lesado poderá optar pela tutela contratual ou extracontratual consoante a que julgue mais favorável em concreto - sobre o tema o Prof. Rui Alarcão - "Direito das Obrigações", pág. 209; Prof. Almeida Costa - "Direito das Obrigações", 4a ed., pág. 356 e segs; Prof. Mota Pinto - "Cessão da Posição Contratual", pág. 411; Prof. António Pinto Monteiro - "Cláusulas Limitativas e Exclusão de Responsabilidade Civil", pág. 425/437, Prof. Miguel Teixeira de Sousa - "O Concurso dos Títulos de Aquisição da Prestação", pág. 136, entre outros.
No caso em apreço o autor, embora começando por fazer apelo a princípios da responsabilidade delitual, acaba por recorrer, designadamente nas alegações do recurso, à tutela da responsabilidade contratual, sustentando que por força do contrato de prestação de serviços celebrado com os réus, existe uma presunção de culpa daqueles (artigo 799° do C. Civil).
Pede o autor a condenação dos réus no pagamento de uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos.
Socorrendo-se o autor dos princípios da responsabilidade contratual, não é igualmente unânime a posição da doutrina e da jurisprudência sobre a admissibilidade da indemnização por danos morais no campo da referida responsabilidade obrigacional.
É, contudo, jurisprudência largamente maioritária a que admite a reparação dos danos não patrimoniais, quando a ofensa de tais bens ocorre no cumprimento de um contrato.
Estando aqui em causa a eventual violação ilícita de um direito de personalidade (a vida ou a integridade física) sempre tal ilícito geraria responsabilidade extracontratual.
Ocorrendo, contudo, essa violação na execução de um"'(ou dois) contratos, os danos dai decorrentes assumem natureza contratual, já que o "genérico dever de neminen laedere é absorvido, sempre que estão em causa comportamentos ligados ao fim contratual, nos quadros da responsabilidade ex contracta - Prof. Mota Pinto - "Cessão da Posição Contratual", pág. 341, nota.
A admissibilidade da reparação de tais danos terá, contudo, que sofrer restrições sob pena de poder gerar uma certa incerteza no comércio jurídico. Daí que conceituados autores circunscrevam a reparação dos danos não patrimoniais ao domínio da responsabilidade extracontratual - Prof. Antunes Varela - "Das Obrigações em Geral" 1, pág. 575 e n, 3ª ed., pág. 103.
Um dos possíveis critérios limitativos poderá ser o de atender à especial natureza da prestação e às circunstâncias que acompanharam a violação do contrato. Terá que estar em causa uma lesão de bens ou valores não patrimoniais de gravidade relevante - Prof. António Pinto Monteiro -"Cláusula Penal e Indemnização", págs. 32/35.
Dúvidas não subsistem sobre a especial gravidade dos danos invocados.
O pedido, situando-se no campo da responsabilidade contratual e abrangendo danos não patrimoniais, é assim admissível.
Delineados em termos muito gerais os princípios, importa analisar o pedido em concreto.
Deve desde já dizer-se que, em bom rigor processual-formal, não há conformidade entre o pedido e a causa de pedir. Efectivamente, o autor pede que os réus sejam condenados a pagar-lhe uma indemnização pelos danos que lhe advém do facto de ter nascido com malformações nas duas pernas e ainda na mão direita e fundamenta o pedido na conduta negligente dos réus que não detectaram, durante a gravidez da mãe, as referidas anomalias físicas. Por esse motivo, diz, os pais não puderam optar entre a interrupção da gravidez ou o prosseguimento da mesma.
Isto é, o autor invoca danos por si sofridos, mas assenta o seu eventual direito à indemnização na supressão de uma faculdade que seria concedida à mãe (ou aos pais).
Dentro da lógica da argumentação do autor, o pedido de indemnização deveria ser formulado pelos pais e não por ele, já que o direito ou a faculdade que poderá ter sido violado não se encontra na órbita da sua esfera jurídica, mas sim de seus pais.
Se os réus tivessem informado os pais do autor das deficiências físicas existentes, uma de duas soluções se podiam configurar: ou a gravidez era mantida e o autor tinha nascido exactamente com as malformações de que é portador, ou a gravidez era interrompida e o autor não tinha nascido.
Situada a factualidade constante dos articulados neste campo, o direito à indemnização, que se poderá discutir, situar-se-á sempre na titularidade dos pais, que não do autor.
Podemos, contudo, ultrapassar este aspecto para penetrar no cerne da questão.
No contrato de prestação de serviços que o médico celebra, ou no contrato médico como também se pode chamar, existe como obrigação contratual principal por parte daquele a obrigação de tratamento. Obrigação essa que se pode desdobrar em diversas prestações tais como: de observação, de diagnóstico, de terapêutica, de vigilância, de informação - Dr. Álvaro Rodrigues, obra citada, pág. 181.
Trata-se, por regra, de uma obrigação de meios já que o médico (e a clínica ré) apenas se pode comprometer na assistência a uma gravidez, a desenvolver prudente e diligentemente a actividade, a diligência e cuidados necessários para a obtenção de determinado efeito, mas sem assegurar, obviamente, que o mesmo se produzirá. O "resultado" a que se refere o artigo 1154° do C. Civil deve ser assim interpretado como cuidados de saúde.
Não existe uma obrigação de resultado, já que nem da lei nem do negócio jurídico se pode concluir que o médico está vinculado a um certo efeito, que no caso concreto seria um nascimento normal de uma criança normal.
O autor imputa aos réus omissão de acção de cuidado, zelo e profissionalismo.
Sendo, na tese do autor, detectável, desde cedo, a malformação, os réus não só não recorreram aos exames e cuidados que se justificavam, como não informaram os pais do autor.
Ora, o dever de informação sobre o prognóstico, diagnóstico e riscos envolventes fez parte dos chamados deveres laterais do contrato médico, consagrados, aliás, no Código Deontológico.
Os réus, ora recorridos, não terão assim respeitado a legis artis, a praxis clínica e, por isso, os pais do menor só terão tido conhecimento da malformação aquando do nascimento do mesmo. Tendo a mãe consultado o médico desde o início da gravidez e tendo feito os exames que lhe foram determinados, teria sido possível saber do estado do feto muito tempo antes.
Acresce, na tese do autor, que se trataria de uma gravidez de risco o que impunha especiais cuidados.
Do que já está dito tem que se concluir que a culpa dos réus assentaria não em não terem conseguido a cura, mas sim no facto de não terem usado todos os conhecimentos, diligências e cuidados que a profissão necessariamente impõe e com os quais seria possível dar a conhecer aos pais do autor as malformações do agora filho.
O nexo de causalidade estabelece-se assim entre o comportamento do médico e a faculdade que os pais teriam de interromper a gravidez.
Na réplica (artigo 1º) escreve-se textualmente que o pedido se baseia no facto de "não ter havido possibilidade de opção por parte dos pais em poderem optar ou pelo prosseguimento da gravidez ou na sua interrupção". E no n° 2 diz-se que "De facto o médico assistente tem a responsabilidade de informar e acompanhar a gravidez adequada, com diligência, esclarecendo qual o concreto estado daquela".
Significa isto que relativamente aos pais terá sido violada a praxis clínica no que toca à informação, por não terem sido respeitados os cuidados que o acompanhamento médico impunha.
Relativamente ao autor, que é quem formula o pedido, tem que se concluir que aquilo que está em causa é o direito à não existência.
O nosso ordenamento jurídico reconhece e tutela o direito à vida, bem como outros direitos de personalidade (artigo 24° da Constituição da República, artigo 70° e segs. do C. Civil).
O direito à vida, integrado no direito geral de personalidade, exige que o próprio titular de direito o respeite e dado o carácter supremo que a nossa ordem jurídica atribui ao bem da vida humana, não reconhece ao próprio titular qualquer direito dirigido à eliminação da sua vida, embora admita em certos termos a possibilidade de a pôr em risco. "Daí que seja inválido o consentimento autorizante ou tolerante e mesmo o pedido instante da vítima para outrem lhe causar a morte, bem como qualquer renúncia à própria vida e que não seja lícito o suicídio" - Prof. Capelo de Sousa - "O Direito Geral de Personalidade", pág. 205/206; Prof. Leite de Campos -"Lições de Direito de Personalidade", pág. 59.
Mas mesmo que se admita o direito à não vida, como será o caso do suicídio ou da eutanásia, ainda assim sempre o caso concreto ultrapassará esses limites.
O que se questiona, repete-se, é o direito à não existência, no que respeita ao autor.
Os pais teriam, eventualmente, o direito à interrupção da gravidez, mas não é esse direito ou faculdade que aqui se discute, já que o autor é o próprio filho. Este, nos termos em que a problemática é colocada, pode dizer: não queria existir, logo tenho direito a uma indemnização por isso acontecer.
Tal direito, que não encontra consagração na nossa lei, mesmo que exista, não poderá ser exercido pelos pais em nome do filho.
Só este, quando maior, poderá, eventualmente, concluir se devia ou não existir e só então poderá ser avaliado se tal é merecedor de tutela jurídica e de possível indemnização.
Os poderes deveres que constituem o poder paternal, bem como a representação legal dos pais para suprir a incapacidade de exercício dos filhos, a incapacidade judiciária ou, até onde for possível, a própria incapacidade de gozo, não são bastantes para os pais, em nome do filho, decidirem sobre o direito que este possa, eventualmente, ter à não existência.
Refere o Prof. Guilherme de Oliveira - "Temas de Direito de Medicina" - 1, pág. 175, que decidindo a mãe procriar, apesar de conhecer a certeza da deficiência durante a gravidez, os pedidos de indemnização formulados pelos filhos contra os pais não têm sido acolhidos pela jurisprudência estrangeira.
Considera-se que existe um direito fundamental de procriar que não pode ser ameaçado pela coerção indirecta à interrupção da gravidez.
Acresce, escreve-se, que "o dano é o prejuízo de viver com a deficiência, comparado com a vantagem de não viver de todo", declarando-se os Tribunais incapazes de fazer tais cálculos.
Embora a problemática aqui colocada diga respeito ao direito que o filho possa ter contra o médico e clínica por errado diagnóstico pré-natal, as considerações continuam a ter valor.
O que pode, refere o mesmo autor - obra citada, pág. 217, é colocar-se o problema de condutas culposas do médico levarem a grávida a acreditar erradamente que o feto está bem e, deste modo, a grávida ficar impedida de exercer a pretensão da interrupção da gravidez. Mas não é isso que aqui está em causa, como já mencionado.
Diga-se, como nota final, que não são conhecidos casos semelhantes na doutrina ou na jurisprudência portuguesa, encontrando-se referência na citada obra de Guilherme de Oliveira, pág. 215, a decisões de Tribunais dos EUA sobre acções intentadas pelos filhos pelo "dano de ter nascido".
Certo é, porém, que tais acções, afigura-se-nos, só poderão ser intentadas pelos filhos quando a lei vigente lhe conceder o poder de pleitarem por si próprios, o que não é o caso.
Conclui-se assim que a acção, tal como está delineada, não poderia de facto proceder.
Pelo exposto, nega-se a revista.
Custas pelo recorrente.

Supremo Tribunal de Justiça, 19 de Junho de 2001

Pinto Monteiro (Relator)
Lemos Triunfante
Reis Figueira