Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
6089/03.3TBLRA.C2.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: NUNES RIBEIRO
Descritores: MATÉRIA DE FACTO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
VALOR EXTRAPROCESSUAL DAS PROVAS
CASO JULGADO
PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 07/06/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO / INSTRUÇÃO / PRODUÇÃO DA PROVA - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / RECURSOS.
Doutrina:
- RODRIGUES BASTOS, Notas ao Código de Processo Civil, 3.ª ed. vol. III, 278.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 421.º, 607.º, N.º 5, 674.º, N.º 3, 682.º, N.º 1.
LEI N.º 62/2013, DE 26-8 (LEI DA ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO): - ARTIGO 46.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 1-10-2002, C.J./S.T.J., TOMO III, 65 E DE 11-4-2013, ACESSÍVEL IN WWW.DGSI.PT .
-DE 5.3.2013, PROC. N.º 3247/06, ACESSÍVEL IN WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I - Mesmo nos casos excepcionais em que é consentido ao STJ a modificação do acervo factual confina-se à legalidade no apuramento dos factos – não abarcando directamente a existência/inexistência dos mesmos nem censurando a convicção firmada pelas instâncias –, limitando-se a constatar um obstáculo legal à formação da convicção.

II - Não tendo as instâncias conferido à matéria de facto fixada num outro processo o valor de caso julgado – tendo antes se limitado a valorar os depoimentos prestados pelos recorrentes nessoutro processo conjuntamente com outros elementos probatórios livremente avaliáveis pelo juiz –, acha-se vedada a intervenção do STJ.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça[1]:




AA, Lda., com sede em …, M…, instaurou, em 19/09/2003, no Tribunal Judicial de L…, acção declarativa ordinária contra BB e CC, residentes em …, freguesia da …, L…, pedindo:

- Se declare a nulidade do contrato de compra e venda celebrado em 10 de Abril de 1995, entre ela, Autora, e os Réus;

- Se condenem os Réus a restituir-lhe a quantia de € 22.445,91, paga aquando da celebração da escritura de compra e venda, acrescida de juros já vencidos até à data da instauração da acção, no montante de € 17.058,88, e dos que se vencerem até efectivo e integral pagamento.

Alegou, para tanto, em resumo, que adquiriu aos Réus, por escritura pública outorgada em 10 de Abril de 1995, a propriedade de um prédio, descrito na Conservatória do Registo Predial de A… sob o n.º 19…; que os Réus haviam adquirido esse prédio a DD e mulher, em 7/09/90, data em que estes, através de escritura de justificação notarial onde invocaram a usucapião, adquiriram a propriedade de tal imóvel; que os Réus, aquando da venda que fizeram à ora Autora, não eram os proprietários do referido prédio, já que também não o eram os aludidos DD e mulher, de quem estes, supostamente, tinham adquirido esse direito de propriedade; que os verdadeiros proprietários do prédio eram, desde há mais de 70 anos, EE e FF e os seus antepossuidores, pelo que o prédio que os Réus lhe venderam, embora esteja inscrito sob diferente artigo matricial, é exactamente o mesmo que pertence aos referidos EE e FF; que o prédio vendido pelos Réus à Autora está inscrito, desde 1990, na matriz predial rústica da freguesia de …, sítio do C…, concelho de Al…, tendo sido inscrito na Conservatória do Registo Predial de Alcobaça em 30 de Outubro de 1990, enquanto o prédio pertencente a EE e FF está inscrito, desde 1957, sob o n.º 5.1… da matriz rústica da freguesia de …, tendo sido inscrito na Conservatória do Registo Predial de Al…, em 19 de Outubro de 1990; que quando ela, ora Autora, pretendeu dar aproveitamento ao prédio que os Réus lhe haviam vendido, deparou-se com o terreno vedado e com a resistência de EE, que impediu a sua entrada, pelo que teve de interpor uma acção de reivindicação contra ele, acção essa que foi já objecto de sentença, proferida nos autos nºs 249/99 do Tribunal Judicial de Al…, em 23 de Janeiro de 2003, transitada em julgado, na qual se julgou improcedente a reivindicação, por nela se ter dado como provado que o prédio vendido pelos Réus à Autora era exactamente o mesmo de que o EE e sua irmã FF eram, desde há muito, legítimos proprietários, e que tal prédio havia sido objecto de duas inscrições na Conservatória do Registo Predial de Al…, sendo a inscrição a favor de EE e FF anterior à dos Réus; que, deste modo, uma vez que a venda do dito prédio, que lhe foi efectuada pelos Réus, é nula, nos termos dos art.ºs 280º e 892º do Código Civil, tem o direito de exigir-lhes a restituição integral do preço que pagou, acrescido de juros de mora vencidos, no montante de € 17.058,88 e vincendos até integral pagamento.

Os Réus contestaram alegando, em síntese, que adquiriram o prédio, que depois venderam à Autora, na convicção, que ainda têm, de que as pessoas a quem o haviam adquirido eram os seus legítimos possuidores, tendo, antes de o comprar, procedido com cautela, visitando, o Réu, o prédio em causa, por várias vezes, com o DD, sem que em nenhuma dessas vezes tenha sido impedido por quem quer que fosse; que não aceitam que EE e FF sejam os possuidores desse prédio há mais de 70 anos, sendo que também foi esta a posição que a ora Autora assumiu, enquanto Ré, no processo n.º 609/1999, que corre termos pelo 2º Juízo do Tribunal Judicial de Al…, em que EE e FF reivindicam o prédio e pedem a anulação da escritura de justificação por parte de DD e mulher; que a sentença referida pela Autora na petição inicial apenas vincula as partes em litígio nessa acção, não impedindo, assim, que o Tribunal de Al… aprecie o pedido de EE e FF na acção n° 609/1999; que não se acham obrigados a restituir o que quer que seja à Autora, já que se encontra por decidir a acção n.º 609/1999; que, de qualquer modo, a Autora nunca teria direito a exigir a quantia que pede a título de juros, já que eles, R.R., nunca se colocaram em mora para com ela; que pretendendo a Autora a declaração de nulidade do negócio jurídico celebrado entre ela e eles, ora Réus, apenas terão que restituir o que receberam e na medida do que receberam, já que não actuaram de má fé nem com culpa.

E concluíram pela improcedência da acção.

Por despacho de fls. 107 e segs foi determinada a suspensão da instância, por se ter entendido que a acção nº 609/1999, do 2º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Al…, constituía causa prejudicial relativamente aos presentes autos.

No despacho saneador, proferido em 21/5/2013, considerando-se que os autos forneciam já os elementos que habilitavam a conhecer do mérito, sem necessidade de produção de prova, julgou-se a acção parcialmente procedente, decidindo-se:

«- Declarar a nulidade do contrato de compra e venda celebrado em 10 de Janeiro entre a A. e os RR.

- Condenar os RR a restituir à A. a quantia de €22.445,91, acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos à taxa legal nos termos da Portaria nº 291/03, de 8/04 desde 29/09/03 (data de citação dos RR) e até efectivo e integral pagamento».

Inconformados com o assim decidido, os R.R. apelaram para o Tribunal da Relação de …, que, por Acórdão de 18/02/2014 (fls. 274 a fls. 290), dando procedência ao recurso, revogou o saneador-sentença recorrido e determinou que o Tribunal “a quo” substituísse tal despacho por um outro que, caso nenhuma outra razão a isso obstasse, fizesse prosseguir os ulteriores termos do processo, nos termos que então se assinalaram.

Regressados os autos à 1ª instância, aí foi proferido despacho a identificar o objecto do litígio e a elencar os temas de prova.

Após a realização da audiência final, foi proferida nova sentença, em 11/01/2016 (fls. 349 e ss.), que, na parcial procedência da acção, decidiu:

«[…] 1- Declarar a nulidade do contrato de compra e venda celebrado em 10 de Abril de 1995 (melhor identificado em 2 dos factos provados) entre a A. e os RR.

2 - Condenar os RR BB e CC a restituir à A. AA, Lda. a quantia de €22.445,91, acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos à taxa legal nos termos da Portaria nº 291/03, de 8/04 desde a data de citação dos RR e até efectivo e integral pagamento […]».

Os R.R. voltaram a interpor recurso para aquela Relação de …, que, por acórdão de 24-01-2017, julgou a apelação improcedente, e confirmou a sentença recorrida.

Inconformados de novo, os R.R. interpuseram agora recurso de revista para este Supremo Tribunal, cujas alegações rematam com as seguintes conclusões:

1° - O acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de …, ao acolher a decisão tomada pelo Tribunal Judicial de L… viola o disposto no n° 1 do artº 421° do CPC., na medida em que continua a julgar provados os factos insertos nos nºs 12 a 17 da motivação porque os mesmos já o haviam sido noutra acção anterior em que os Recorrentes tinham sido partes, sem que fossem apresentados quaisquer meios de prova, designadamente depoimentos prestados naquela lide, conferindo assim, à decisão acerca da matéria de facto um valor de caso julgado.

2° - O acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de …, ao acolher a decisão tomada pelo Tribunal Judicial de L… viola o disposto no artº 892° do CC., já que julga provados os factos que lhe servem de fundamento, em clara violação dos princípios probatórios formais por aplicação ilegal e indevida do n° 1 do art. 421° do CPC.

Razão porque deverá ser substituído por outro que atenda a pretensão dos Recorrentes já que, só assim, se fará Justiça.

A A. respondeu, pugnando pelo improvimento da revista e confirmação do acórdão recorrido.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


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Objecto do recurso

Como é sabido, são as conclusões da alegação que delimitam o objecto do recurso [art.ºs 635º n.º 4, 639º n.ºs 1 e 3 e 641º nº 2 al. b) todos do novo C.P. Civil], não podendo o tribunal conhecer de questões nelas não compreendidas, salvo tratando-se de questões de conhecimento oficioso.

Assim, é uma única a questão a apreciar e decidir: saber se a Relação ofendeu o estatuído no artº 421º nº 1 do C. P. Civil, ao confirmar, em sede de reapreciação da prova, a decisão de facto da 1ª instância quanto à matéria provada sob os nºs 12 a 17 da fundamentação de facto infra.


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Fundamentação

1)  De facto:

 As instâncias deram como provados os seguintes factos:

1 - No dia 7 de Setembro de 1990 compareceram no Cartório Notarial da …, perante Notário, DD e mulher GG, casados sob o regime de comunhão geral de bens, na qualidade de primeiros outorgantes, BB, casado com CC, sob o regime de comunhão de bens adquiridos, na qualidade de segundo outorgante, HH, II e JJ, na qualidade de terceiros outorgantes, tendo declarado por escrito os primeiros que com exclusão de outrem, são donos e possuidores de um prédio rústico constituído por pinhal, mato e eucaliptos, com a área de 6.800m2, sito no lugar de C…, na freguesia de P…, concelho de Al…, a confrontar do Norte com KK, do Sul com LL, do Nascente com serventia pública e do Poente com Estrada municipal, inscrito na respectiva matriz em nome dele marido sob o artigo 12.3…. com o valor patrimonial de 40.000$00 e atribuído de 700.000$00, omisso no Registo Predial. Que o referido prédio lhes ficou a pertencer por ocupação há mais de quarenta e seis anos e, desde essa data, que o possuem em nome próprio, sem a menor oposição de quem quer que seja, desde o seu início, posse que sempre exerceram sem qualquer suspensão ou interrupção e ostensivamente, com conhecimento de toda a gente e plena convicção de não lesar terceiros, e com a prática reiterada dos actos normais de fruição e conservação da propriedade, tais como amanho da terra, tratamento das árvores, recolha dos frutos, pagando as respectivas contribuições recolha de resinas, sendo por isso uma posse pacifica, contínua e pública, pelo que adquiriram o prédio por usucapião, não tendo, todavia, dado o modo de aquisição, documento que lhes permita fazer a prova do seu direito de propriedade, tendo os terceiros declarado nesse acto que confirmam as declarações que antecedem por serem inteiramente verdadeiras, e tendo ainda os primeiros outorgantes declarado, no mesmo acto, que, pelo preço já recebido de 700.000$00, vendem ao segundo outorgante, livre de qualquer ónus ou encargo, o referido prédio, declarando o segundo que aceita essa venda.

2 - No dia 10 de Abril de 1995 no primeiro cartório notarial de L…, perante notário, compareceram como outorgantes: “Primeiros - BB e mulher CC…Segundos - MM … e NN…., que outorgam em representação de AA…da qual são os únicos sócios.…Pelos primeiros outorgantes foi dito: Que pelo preço de quatro mil e quinhentos contos, que já receberam vendem à representada dos segundos outorgantes, livre de quaisquer ónus e encargos, o seguinte imóvel: Pinhal de mato e eucaliptos, com a área de seis mil e oitocentos metros quadrados, sito em C…, freguesia de P…, Concelho de Al…, inscrito na matriz rústica da respectiva freguesia sob o artigo 12…, com o valor tributável de dois mil escudos, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Al… sob o número mil novecentos e dezoito/Pataias com a inscrição G- dois de aquisição a favor do vendedor. Pelos segundos outorgantes foi dito: Que aceitam para a sua representada a presente venda nos termos exarados e a mesma destina este imóvel a revenda…”

3 - Encontra-se inscrita no registo (pela inscrição G-1 - Ap. 10/191090) a aquisição, a favor de EE, casado com OO, sob o regime de comunhão de bens adquiridos, e de FF, casada com PP, sob o regime de comunhão de bens adquiridos, do prédio rústico denominado “B…’ ou “C…’, sito na freguesia de P… e no concelho de Al…, com a área de 6.800 m2, composto de pinhal e mato, que confronta do Norte com KK, do Sul com LL, do Nascente com QQ e do Poente com estrada e RR, descrito na Conservatória do Registo Predial de Al… sob o n° 018…/19… da Freguesia de P…, e inscrito na respectiva matriz cadastral rústica sob o artigo 5.512, com o valor patrimonial de 1.997$00, por sucessão hereditária e partilha judicial, por óbito de SS, casada que foi com TT, no regime de comunhão geral de bens.

4 - Encontra-se descrito no registo, na Conservatória do Registo Predial de Al…, sob o nº 019…/901…, da freguesia de P…, o prédio rústico denominado “C…”, sito na freguesia de P… e no concelho de Al…, com a área de 6.800,00 m2, composto de pinhal, mato e eucaliptos, que confronta do Norte com KK, do Nascente com serventia pública, do Sul com LL e do Poente com estrada municipal, inscrito na respectiva matriz cadastral rústica sob o artigo 12.363, com o valor patrimonial de 40.000$00.

5 - Pela inscrição G-1 - Ap. 25/901030 o prédio indicado em 4 consta como pertencente a DD e mulher GG, casados sob o regime de comunhão geral de bens, por o terem adquirido por usucapião.

6 - Pela inscrição G-2 - Ap. 2…/901… o prédio indicado em 4 consta como pertencente a BB casado com CC sob o regime de comunhão de bens adquiridos, tendo como causa compra.

7 - Pela inscrição G3 - Ap. 0…/140… o prédio indicado em 4 consta como pertencente à AA, tendo como causa compra.

8 - A aqui A. intentou em data não apurada de 1999 contra EE e mulher FF, acção com processo ordinário que correu termos sob o nº 249/99 no Tribunal Judicial de Comarca de A…, requerendo fosse declarada proprietária do prédio indicado em 4, sendo tal prédio restituído à A. e abstendo-se os RR da prática de quaisquer actos que afectassem o uso e livre fruição do prédio.

9 - Em 23 de Janeiro de 2003 foi proferida a decisão que consta de fls. 26 e seguintes e cujo seu integral conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido, tendo tal acção sido julgada improcedente.

10 - EE e mulher FF intentaram no Tribunal Judicial da Comarca de A… uma acção ordinária com o nº 609/99, contra BB e mulher CC e (aqui RR) AA, Lda. (aqui A.) e outros, pedindo que: i - “fosse declarada nula a justificação notarial, através da escritura lavrada no cartório Notarial da Marinha Grande de 7 de Outubro de 1990, porque outorgada com base em declarações falsas; ii - serem cancelados todos os registos eventualmente feitos ou a fazer com base na referida escritura, disso se comunicando à Conservatória do Registo Predial de Al…; iii - serem os RR condenados a reconhecer o direito de propriedade dos AA sobre o prédio identificado no art. 1º da petição e anulada também a inscrição matricial referida no art. 6º da mesma petição;

11 - Por sentença transitada em julgado após recurso que a confirmou, sentença essa cujo seu integral conteúdo se dá aqui por reproduzido na parte não expressamente abaixo indicada, decidiu-se: i - “Declarar anulada a escritura de justificação notarial realizada no dia 7 de Setembro de 1990 no Cartório Notarial da Marinha Grande, exarada a fls. 15 vº a fls. 17 do livro de notas para escrituras diversas número 60 - C, em que são justificantes da sua posse e à aquisição por usucapião da propriedade do prédio inscrito na matriz predial rústica da freguesia de Pataias sob o nº 12.363. ii - determinar o cancelamento de todos os registos realizados com base na mesmo escritura e subsequentes. Iii - absolver os RR do demais peticionado pelos AA.

12 - O prédio indicado em 3 e o prédio indicado em 4 são o mesmo e único prédio.

13 - Os antepossuidores de EE e FF e depois estes, sempre se assumiram como donos do prédio indicado em 3.

14 - Amanhavam-no, colhiam matos e lenha, cortavam e semeavam pinheiros.

15 - O que vem fazendo há mais de 20, 30, 40 e 50 anos sem interrupção e continuamente

16 - À vista de todos e sem oposição de ninguém.

17 - Com a convicção de serem os seus legítimos proprietários.

18 - Em data não concretizada e quando a A. pretendeu dar aproveitamento ao prédio indicado em 4, já que sempre pensou que o mesmo lhe pertencia, deparou com aquele vedado e com resistência de EE o qual impediu a entrada dos representantes da A.



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2) De Direito:

Como acima se disse, é uma só a questão suscitada no recurso: saber se a Relação violou o artº 421º nº 1 do C. P. Civil, ao confirmar, em sede de reapreciação da prova, a decisão de facto da 1ª instância quanto à matéria provada sob os nºs 12 a 17 da fundamentação de facto que antecede.

É sabido, e decorre especificamente dos art.ºs 46º da Lei nº 62/2013, de 26/8 (Lei da Organização do Sistema Judiciário) e 682º nº 1 do C. P. Civil, que o Supremo Tribunal de Justiça é um tribunal de revista, conhecendo, por isso, em regra, exclusivamente de questões de direito. Só excepcionalmente funciona como tribunal de 1ª ou 2ª instância incumbido de julgar, tanto matéria de direito, como matéria de facto. E os casos excepcionais em que tal acontece estão previstos no nº 3 do artº 674º do mesmo C. P. Civil: «ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto»; ou ofensa de preceito expresso de lei «que fixe a força de determinado meio de prova».

Por outras palavras, o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa só pode ser objecto de recurso de revista, quando o tribunal recorrido tenha dado como provado um facto sem que se tenha produzido a prova que, de acordo com a lei, seja indispensável para a demonstração da sua existência; ou quando tenha desrespeitado normas reguladoras da força probatória dos diversos meios de prova admitidos no nosso sistema jurídico.

Em qualquer dos casos, a censura do Supremo Tribunal de Justiça confina-se à legalidade do apuramento dos factos - e não respeita directamente à existência ou inexistência destes. O Supremo não faz a censura da convicção formada pelas instâncias quanto à prova, limita-se a reconhecer e a declarar a existência de obstáculo legal a que tal convicção se tivesse formado (RODRIGUES BASTOS, in Notas ao Código de Processo Civil, 3ª ed. vol. III, pag. 278).

É também o que invariavelmente tem vindo a proclamar este STJ em diversos arestos. Vejam-se, a título de exemplo, os seguintes:

- O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não é, por regra, objecto do recurso de revista, só o sendo se houver violação expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto, ou que fixe a força de determinado meio de prova. Tendo a Relação, na fixação e reapreciação da matéria de facto, agido tendo em conta os poderes de que dispunha face ao princípio da livre apreciação da prova, está vedado ao Supremo Tribunal de Justiça o uso, nesse âmbito, dos seus poderes de censura (Ac. STJ, de 5.3.2013, proc. 3247/06, acessível in www.dgsi.pt);

- O erro na apreciação das provas e fixação dos factos materiais da causa não pode, em princípio, ser sindicado pelo STJ; apenas o poderá ser se houver ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força a determinado meio de prova (Ac. de 1-10-02, CJSTJ, tomo III, pág. 65 e o Ac. de 11-4-13, acessível in www.dgsi.pt).

Na tese dos recorrentes teria havido violação do art.º 421º nº 1 do C. P. Civil na medida em que o tribunal recorrido continua a julgar provados os factos insertos nos nºs 12 a 17 da motivação apenas por os mesmos já o terem sido noutra acção anterior em que os Recorrentes tinham sido partes, sem que tivessem sido apresentados quaisquer meios de prova, designadamente depoimentos prestados naquela lide, conferindo assim, à decisão acerca da matéria de facto um valor de «caso julgado».

Ora, dispõe o artº 421.º do C. P. Civil vigente (correspondente ao anterior artº 522º), que:

«1 - Os depoimentos e perícias produzidos num processo com audiência contraditória da parte podem ser invocados noutro processo contra a mesma parte, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 355.º do Código Civil; se, porém, o regime de produção da prova do primeiro processo oferecer às partes garantias inferiores às do segundo, os depoimentos e perícias produzidos no primeiro só valem no segundo como princípio de prova».

Consagra, pois, este preceito o princípio do valor ou da eficácia extracontratual das provas, ou seja, a possibilidade de as provas produzidas num processo serem invocadas em processo diferente, concretamente os depoimentos de parte, os depoimentos das testemunhas, e a prova pericial.

No caso, o Tribunal da Relação decidiu confirmar a decisão da 1ª instância quanto á matéria de facto, que os ora recorrentes haviam impugnado, mantendo assim o juízo de provado a todos aqueles referidos números. E fê-lo ponderando, essencialmente, o seguinte:

«…Particularizando o acima dito, cumpre recordar que, não tendo tido, os aqui RR e ora Apelantes, qualquer intervenção nesses autos nºs 249/99, não estão os mesmos vinculados àquilo que aí foi decidido, “rectius”, à resolução de qualquer questão aí suscitada e que tenha sido determinante para a decisão de improcedência dessa acção. Já o mesmo não ocorrerá no que respeita à acção nº 609/1999, em que os ora RR intervieram, também como RR, estando abrangidos pelo caso julgado aí formado.

Não obstante, como já se explicitou no Acórdão de 18/02/2014, o caso julgado não abarca os factos dados como provados nessa anterior acção nº 609/1999, não habilitando a que, invocando a sua autoridade, se dê como provada nos presentes autos, factualidade que ali assim foi julgada.

E, como igualmente já se referiu no Acórdão anteriormente proferido nos presentes autos, não é também à sombra do valor extraprocessual das provas que se podem aqui dar como provados os factos que assim foram considerados na aludida acção nº 609/1999.

Relembre-se o que se disse nesse Acórdão de 18/02/2014:

«[…] se mesmo o caso julgado não abrange a factualidade provada, também com a eficácia extraprocessual das provas, consignada no art.º 522º, n.º 1, do CPC, não se confundem os factos que se consideraram assentes em anterior decisão.

O que significa, afinal, que, não obstante os aqui litigantes estarem vinculados ao caso julgado formado naqueles autos n.ºs 609/1999 em que também foram partes, essa circunstância não habilita a que, para a presente acção, sejam transpostos, como matéria assente e não assente, os factos que naqueles autos foram julgados provados e não provados.

Na verdade, como se diz no Acórdão do STJ de 05-05-2005, Revista n.º 691/05: “1. O princípio da eficácia extraprocessual das provas, consagrado no art. 522º, nº 1, do Código de Processo Civil, significa que a prova produzida (depoimentos e arbitramentos) num processo pode ser utilizada contra a mesma pessoa num outro processo, para fundamentar uma nova pretensão, seja da pessoa que requereu a prova, seja de pessoa diferente, mas apoiada no mesmo facto.

2. Não pode é confundir-se o valor extraprocessual das provas produzidas (que podem ser sempre objecto de apreciação noutro processo) com os factos que no primeiro foram tidos como assentes, já que estes fundamentos de facto não adquirem valor de caso julgado quando são autonomizados da respectiva decisão judicial.

3. Transpor os factos provados numa acção para a outra constituiria, pura e simplesmente, conferir à decisão acerca da matéria de facto um valor de caso julgado que não tem, ou conceder ao princípio da eficácia extraprocessual das provas uma amplitude que manifestamente não possui.[…]»(…).

Justifica-se, assim, que não se haja aceite no anterior Acórdão, que, no saneador-sentença aí em causa, se haja decidido a acção tendo por base factualidade que se deu como provada, apenas porque ela assim tinha sido considerada na aludida acção nº 609/1999.

Mas a situação que se nos depara agora, produzida que foi prova testemunhal, não é a mesma, havendo que esclarecer que, embora não abarcados pelo caso julgado aí formado e também não podendo ser aqui considerados com apelo ao artº 421º, nº 1, do NCPC, a circunstância de se terem provado, na aludida acção nº 609/1999, determinados factos que aqui estão em discussão, pode ter préstimo na presente acção.

Neste sentido, em sede de art. 712º CPC foi declarado pelo STJ 3-Nov-2009/3931/03.2TVPRT.S1 (MOREIRA ALVES) que se o autor/recorrente se limitou a oferecer como meio de prova as certidões das decisões proferidas numa primeira acção, “as ditas decisões judiciais, apenas constituem documentos cuja força provatória se limita a um princípio de prova, a valorar livremente pelo julgador, em conjugação com a demais prova directamente produzida perante ele”.[…]»….

Significa tudo isto, no presente caso, que a certidão da sentença (e do subsequente Acórdão), transitada em julgado, proferida na acção nº 609/1999, para além dos limites em que o caso julgado vincula os aqui litigantes, v.g., os aí RR e ora Apelantes – limites esses que não abarcam, designadamente, como se viu, os factos aí dados como provados -, é objecto da livre apreciação do tribunal, valendo, nos presentes autos, os factos ali dados como provados, como «[…] um princípio de prova, a valorar livremente pelo julgador, em conjugação com a demais prova directamente produzida perante ele. […]».

Deste modo, não é correcto, salvo o devido respeito, fazer, nas presentes circunstâncias, “tábua rasa” dos factos provados na aludida nº 609/1999, para afirmar, como fazem os Apelantes, que os factos constantes dos artigos 12º a 18º da motivação, «[…] apenas poderiam ser julgados provados com base nos depoimentos das testemunhas que a Apelada arrolou […]»(…).

São, pois, os factos que na sentença se elencam como provados sob os nºs 12, 13, 14, 15, 16, 17 e 18, que os Apelantes defendem dever ser julgados como não provados.

Vejamos, adiantando já, que não se vê como não confirmar tais respostas afirmativas.

Na verdade, a testemunha NN, em audiência, referindo que esteve presente no acto da escritura de compra e venda celebrada entre A. e R enquanto sócio daquela, afirmou ter-se apercebido, em ocasião posterior à outorga desse contrato, que o terreno comprado era o mesmo que era reivindicado por EE, e que seria este - e não os RR -, afinal, o dono desse terreno. Esclareceu, ainda que, aquando da compra feita aos ora RR estava convicto de que o prédio era destes - de outro modo não teriam feito o negócio - até porque anteriormente, fora o Réu BB, que havia proposto o negócio e mostrado o prédio.

Contudo, adiantou a testemunha, depois de o negócio se realizado e ante a posição assumida pelo Sr. EE, quer pessoalmente - impedindo o acesso ao terreno, dizendo que o prédio era dele, que vinha da herança do pai -, quer na acção (a nº 249/1999), que foi intentada, sem sucesso, contra ele e a esposa, ficara convencido, face áquilo que o tribunal de … concluíra nessa acção, que o Sr. EE era o verdadeiro dono do prédio e que, portanto, como não fora com ele que o negócio fora feito, a compra não fora feita pela A., afinal, a quem era o dono do imóvel em causa.

Esta prova que poderia ser insuficiente, noutras circunstâncias, é a bastante, para, conjugada com a factualidade assente na aludida acção nº 609/1999, dar como provada a matéria elencada nos nºs 12 a 18.

Repare-se que uma das defesas dos RR, ora Apelantes, na mencionada acção, consistiu, precisamente, em colocar em dúvida a identidade entre o prédio que os aí AA diziam pertencer-lhes e aquele cuja justificação notarial aí se impugnava e foi depois vendido pelos aí justificantes aos RR BB e mulher CC, que, subsequentemente, o venderam à ora Autora.

Ora, quanto a esta questão, claramente afrontada na aludida acção 609/1999, concluiu-se aí que o prédio reivindicado e cuja venda era objecto de justificação, era o prédio que os RR BB e mulher CC adquiriram dos justificantes e que, depois, venderam à ora Autora. E outra conclusão seria incompatível com a defesa que os referidos BB e mulher também assumiram nessa acção - e que o Tribunal veio também a refutar - no sentido de a nulidade do registo da aquisição do direito de propriedade sobre o prédio a favor dos justificantes não lhes ser oponível, por terem de ser considerados terceiros de boa-fé para efeitos do artº 17º, nº 2 do CRPredial e do art. 291° do Código Civil (…)

Por isso, tendo em conta tudo o que mais acima ficou exposto, conjugado este depoimento com o complexo fáctico apurado na acção nº 609/1999 e que atrás se transcreveu é de entender como correcto considerar provada a matéria de facto assim elencada nos nºs 12 a 18 da sentença ora recorrida, para tal irrelevando o depoimento de UU, relativamente ao qual não se entende a razão que levou os Recorrentes a chamá-lo à colação, para sustentar que o mesmo não contribuía para a prova de tal matéria, já que, como lembra a Apelada, esse depoimento não foi utilizado pelo Tribunal “a quo” para dar como provados os factos em causa.

Acresce que as testemunhas VV e XX prestaram depoimentos sem afirmações seguras e circunstanciadas, que pudessem, minimamente, sustentar uma resposta negativa relativamente aos referidos factos dados como provados, ou uma resposta afirmativa relativamente à matéria que foi dada como não provada nas alíneas a) e b) da sentença.

Em nenhum dos respectivos depoimentos, as testemunhas VV (que disse não ter acompanhado o negócio) e XX, fazem qualquer afirmação, minimamente sustentada, de onde possa resultar que os justificantes sempre hajam dito aos RR, ou ao Réu marido, que vinham possuindo o prédio desde há cerca de 50 anos.

E o mesmo se diga quanto ao facto de os RR, aquando da compra que fizeram, se encontrarem convencidos de que estavam a adquiri-lo de quem era dono do prédio.

Diga-se que em grande parte dos casos as respostas destas testemunhas estavam já contidas nas perguntas que lhes efectuou o Exmo. Mandatário dos Apelantes, limitando-se, tais testemunhas, a confirmar, por monossílabos, ou, pouco mais, o assim perguntado, como se exemplifica com a reprodução dos seguintes trechos extraídos das próprias transcrições constantes da Apelação dos Recorrentes:(…)

Concluindo, dir-se-á pois, que, examinados os elementos de prova pertinentes, a convicção desta Relação coincide com a da 1ª Instância no que respeita à matéria de facto provada e não provada posta em causa pelos Apelantes, pelo que a factualidade - provada e não provada - que se tem como fixada é aquela que assim foi considerada na sentença e que mais acima se discriminou.»

Não é, assim, verdade que o Tribunal recorrido tenha - como dizem os recorrentes - julgado provados os factos insertos nos nºs 12 a 17 da fundamentação de facto supra apenas «porque os mesmos já o haviam sido noutra acção anterior em que os Recorrentes tinham sido partes, sem que fossem apresentados quaisquer meios de prova, designadamente depoimentos prestados naquela lide, conferindo assim, à decisão acerca da matéria de facto um valor de caso julgado».

Como decorre da transcrição acima extractada o tribunal recorrido, do mesmo modo que a 1ª instância, para darem como provados aqueles referidos pontos da matéria de facto, atenderam a outros elementos probatórios, para além do acórdão proferido naquela acção nº 609/1999 (sopesado aqui tão-somente, como «um princípio de prova, a valorar livremente pelo julgador, em conjugação com a demais prova directamente produzida»), designadamente ao depoimento da testemunha NN.

E no sistema da prova livre, como é o nosso, consagrado no nº 5 do artº 607º do C. P. Civil, nada obstava sequer que o julgador se determinasse, na formação da sua convicção, por um único testemunho.

De modo que, não se estando perante nenhum dos casos previstos no nº 3 do citado art.º 674º, obviamente que este Supremo está impedido de sindicar o julgamento que o Tribunal da Relação fez sobre os assinalados pontos da matéria de facto.

Decisão

Nos termos expostos, acordam em negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.

Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 06 de Julho de 2017

Nunes Ribeiro (Relator)

Maria dos Prazeres Beleza

Salazar Casanova

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[1] Relator: Nunes Ribeiro
Conselheiros Adjuntos: Dra Maria dos Prazeres Beleza e Dr. Salazar Casanova