Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1952/08.8TBFIG.C1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: DESENHOS E MODELOS COMUNITÁRIOS
CONTRAFACÇÃO
RESPONSABILIDADE CIVIL
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 02/05/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS /NÃO CUMPRIMENTO DOS CONTRATOS / IMPOSSIBILIDADE DO CUMPRIMENTO / MORA DO DEVEDOR.
DIREITO EUROPEU - PROPRIEDADE INDUSTRIAL / TUTELA DE DESENHOS E MODELOS COMUNITÁRIOS NÃO REGISTADOS.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 436.º, 801.º, 808.º.
Legislação Comunitária:
REGULAMENTO (CE) Nº 6/2002, DE 21-12-2001.
Jurisprudência Internacional:
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA (TJUE): - PROC. Nº C-479/12.
Sumário :
1. Na falta de convenção das partes, a resolução de um contrato de fornecimento pressupõe a verificação de uma situação de incumprimento definitivo decorrente da falta de interesse objectivo na prestação, do decurso de um prazo inderrogável, da transformação de uma situação de mora em incumprimento definitivo ou de uma actuação que traduza uma antecipada recusa de cumprimento.

2. Os desenhos e modelos comunitários não registados conferem ao titular o direito de exclusivo, no espaço da União Europeia, pelo período de 3 anos, nos termos do Regulamento (CE) nº 6/2002, de 21-12-2001.

3. A tutela dos desenhos comunitários não registados depende da sua novidade e da sua divulgação pública, considerando-se esta verificada designadamente se foram inseridos num catálogo da empresa titular, para efeitos de apresentação a potenciais clientes.

4. Verifica-se uma situação de contrafacção de desenhos comunitários não registados se, depois da celebração do contrato de fornecimento de tecidos bordados com tais desenhos, a compradora solicitou a outra empresa o fornecimento de tecidos bordados com desenhos similares.

Decisão Texto Integral:
I - AA, S.A. (AA), intentou acção declarativa contra BB, S.A., pedindo a sua condenação a pagar-lhe o montante de € 55.083,29 (acrescido dos juros de mora, à taxa legal, desde 5-7-08 sobre € 52.206,50) e a quantia correspondente (a liquidar em execução de sentença) aos demais prejuízos patrimoniais que a actuação (ilícita e abusiva) da R. lhe causou.

Alegou, para tal, em resumo que celebrou com a R. um contrato de fornecimento de bordados com desenhos por si produzidos para confecção de lingerie, contrato esse que foi resolvido pela R. sem que para tal tivesse justificação, o que determinou a ocorrência de danos na esfera jurídica da A. correspondentes à despesa com a aquisição de produtos e à despesa que foi originada pela produção dos tecidos que a R. acabou por recusar.

Além disso, a R. apoderou-se dos desenhos que tinham sido produzidos pela A. e facultou-os a uma outra entidade para efeitos de proceder à mesma produção que anteriormente encomendara à A., incorrendo em responsabilidade civil, na medida em que os desenhos produzidos pela R. beneficiam de protecção conferida pelo regime jurídico comunitário.

A R. contestou e alegou que a resolução do contrato foi operada com fundamento no incumprimento do prazo que fora acordado com a A. e considerando que esta procedeu unilateralmente a um aumento do preço combinado.

Quando ao mais, negou ter violado qualquer direito de exclusivo da A., tendo-se limitado a recorrer a outra empresa que lhe forneceu as rendas com desenhos não coincidentes com os produzidos pela A.

A A. replicou e requereu a intervenção principal provocada passiva da empresa CC, que com a R. contratou a produção dos bordados, pretendendo a sua condenação solidária no pagamento da quantia de € 33.205,50 e restante montante a liquidar em execução de sentença.

A interveniente contestou e impugnou que tenha existido cópia dos padrões invocados pela A., tendo sido contactada pela R. para que criasse desenhos da sua autoria, o que fez a partir dos seus trabalhos anteriores.

Foi proferido despacho saneador e depois de ter sido realizado o julgamento foi proferida sentença que condenou solidariamente a R. BB e a interveniente CC no pagamento à A. da quantia a liquidar em sede de execução de sentença referente aos prejuízos pecuniários sofridos em consequência da utilização abusiva dos desenhos da demandante.

Apelaram quer a A., a R. BB e a Interveniente CC e a Relação julgou parcialmente procedente a apelação da A. e improcedentes as apelações da R. BB e da Interveniente, condenando:

- A R. BB a pagar à A. a quantia de € 13.010,10, acrescida de juros desde a citação e a quantia indemnizatória, a liquidar, decorrente dos danos (não incluídos nos referidos € 13.010,00) correspondentes aos custos da obra já executada pela A. (e a que se referem os factos 30 e 31 deste acórdão);

- A R. e a Interveniente, em regime de solidariedade, no pagamento da quantia a liquidar referente aos prejuízos pecuniários da A. em consequência da utilização abusiva dos seus desenhos referidos no ponto 2 dos factos provados deste acórdão.

A R. BB interpôs recurso de revista a que a Interveniente veio aderir, questionando o acórdão recorrido na medida em que considerou ilegítima a resolução do contrato operada pela R., entendendo que se verificavam as condições para o efeito. Questionam ainda a condenação de ambas no pagamento da indemnização reportada ao uso dos desenhos não registados.

Cumpre decidir.

II - Factos provados:

1 – A A. é uma sociedade comercial que, no exercício da sua actividade, comercializa tecidos para confecção de vestuário e aplicação em vestuário, girando comercialmente sob a designação de “AA”;

2 – Da sua colecção de produtos referente ao ano de 2006 constavam os seguintes desenhos, aplicados em tecido: o junto a fls. 28, com a referência nº 17506; a fls. 28, com a referência nº 17507; e a fls. 29, com a referência n.º 17508;

3 – A A criou, em Agosto de 2005, os desenhos referidos em 2.;

4 – Fê-lo originariamente através do seu departamento criativo, com desenhadores por si contratados;

5 – A divulgação comercial dos desenhos aludidos em 2. ocorreu em Novembro de 2005;

6 – A partir de tal data, tais desenhos passaram a fazer parte do seu catálogo de vendas (portfólio), onde a A. inclui os padrões para venda aos seus clientes;

7 – A colecção de produtos da A. referente ao ano de 2006 foi apresentada à R. BB, por DD, comercial da A.;

8 – A R. solicitou à A., em 27-2-06, 2 metros de cada uma das referências indicadas em 2.;

9 – A A. forneceu de imediato à R. o solicitado em 8.;

10 – Em 16-3-06, a R. dirigiu à A. um pedido de 10 metros de cada uma das referências indicadas em 2., a título de amostra;

11 – A A. forneceu de imediato à R. o solicitado em 10.;

12 – No dia 31-3-06 a R. solicitou à A. que bordasse os desenhos com as referências nos 17507 e 17508, ambos mencionados em 2., sobre um tecido proposto pela primeira, o que a A. aceitou e executou;

13 – Em 10-5-06, a R. solicitou à A. que realizasse um conjunto de modificações nas cores dos desenhos aludidos em 12., o que a A. executou, enviando à R., em 25-5-06, amostras dos desenhos com novas cores;

14 – No dia 5-7-06, a R. solicitou à A. alterações ao desenho aludido em 2., com a referência n.º 17508, alterações que a A. executou nos termos solicitados;

15 – Em 20-6-06, a R. solicitou à A. o fornecimento de:

- 119,20 m do desenho com a referência n.º 17507, mencionado em 2., ao preço de € 5,68/m;

- 119,20 m do desenho com a referência n.º 17508, aludido em 2., ao preço de € 5,68/m;

- e ainda 148 m do desenho com a referência n.º 17506, dito em 2., ao preço de € 1,81/m;

- a tudo acrescendo a quantia de € 28,24 pelo transporte, suportada pela R.;

16 – No dia 31-8-06 a A. enviou à R., que as recebeu, as mercadorias referidas em 15., juntamente com uma factura nº …, no valor de € 1.650,24;

17 – O valor da factura mencionada em 16. vencia-se a 60 dias da emissão da mesma;

18 – No dia 23-10-06, a R. dirigiu à A. um pedido de produção de:

- 2.500 m do desenho com a referência n.º 17507, mencionado em 2., ao preço de € 5,68/m;

- 2.500 m do desenho com a referência n.º 17508, aludido em 2., ao preço de € 5,68/m;

e ainda

- 3.000 m do desenho com a referência n.º 17506, dito em 2., ao preço de € 1,81/m;

19 – A entrega dos produtos aludidos em 18. foi ajustada entre A. e R. para a 1ª semana de Janeiro de 2007;

20 – A A. enviou à R., em 25-10-06, um doc. com o nº 24353, com o teor de fls. 32, comprovativo do pedido de produção mencionado em 18., indicando um total de 8.059,20 m de desenhos das referências nos 17506, 17507 e 17508, o preço de € 34.026,92, e como data de expedição a 1ª semana de 2007;

21 – A A. referiu algumas vezes à R., entre Outubro e Dezembro de 2006, por escrito (via e-mail) e por telefone, não ter ainda recebido o valor da factura aludida em 16.;

22 – Em alguns casos, a prática comercial da A. é no sentido de não dar início à produção sem que o cliente tenha liquidado as facturas passadas e já vencidas;

23 - Em momento não apurado, mas situado entre Novembro e Dezembro de 2006, a A. (através da EE) disse à R. que o pedido de produção referido em 18. se ia atrasar por a factura referida em 16. não estar paga;

24 – Em 20-12-06 a R., através de uma sua funcionária de nome FF, enviou um mail à testemunha EE , funcionária da demandante, com o seguinte teor:

«Srª EE:

A amostra de cor que recebemos está O.K., podem avançar com a produção.

Cumprimentos

FF»;

25 – A A. adquiriu a matéria-prima necessária à satisfação da encomenda aludida em 18., aquisição em que gastou a quantia de € 13.010,00;

 26 – A R. enviou à A. um cheque para o pagamento da factura mencionada em 16. em dia não concretamente apurado do mês de Dezembro de 2006, mas após o dia 20, tendo sido o dinheiro de tal cheque disponibilizado para a A. na instituição bancária pertinente no dia 2-1-07;

27 – Imediatamente após o pagamento da factura referida em 16., a R. iniciou a produção da encomenda aludida em 18.;

28 – A A. enviou à R., em 15-1-07, um segundo documento comprovativo de pedido de produção, com o n.º 24353, indicando um total de 8.059,20 metros de desenhos das referências nos 17506, 17507 e 17508, o preço de € 35.032,68, como data de expedição a 6ª semana de 2007, e como condições de pagamento 60 dias;

29 – A R. anulou a nota de encomenda de 23-10-06, por fax remetido à A. em 16-1-07, o qual continha o comprovativo do pedido de produção mencionado em 20., ao qual se encontrava aposta a seguinte menção:

«No seguimento da conversa do Sr. DD com o Sr. GG no dia 09/01, o Sr. GG tomou a decisão de anular a encomenda» (conf. doc. de fls. 34);

30 – Quando a R. anulou a encomenda referida em 18., através do fax mencionado em 29., a A. já havia fabricado, em execução daquela encomenda, quantidade não concretamente apurada de tecido;

31 – A produção aludida em 30. implicou para a A. custos em montante não concretamente apurado;

32 – A A. enviou à R., em Janeiro de 2007, uma factura emitida em 18-1-07, com o valor de € 19.111,00 e data de vencimento de 18-2-07, factura que a R. devolveu depois à A., por entender não estar obrigada a pagar o respectivo montante;

33 – A factura referida em 32. tinha o n.º 700033 e era composta pelos seguintes valores de matéria-prima: hilo, € 3.500,00; canilla, € 2.200,00; tulle, € 7.310,00; e pela produção de 1043 metros das referências n.os 17507 e 17508, € 6.101, num total de € 19.111,00  (tudo conf. doc. de fls. 35);

34 – A A. enviou à R., através do seu mandatário, por carta e fax, um escrito datado de 19-1-07, com o teor constante de fls. 37 e 38, reclamando a exclusividade dos direitos sobre os desenhos referidos em 2. e instando a R. a abster-se de os reproduzir;

35 – Do catálogo de roupa interior produzido pela sociedade GG Lingerie, S.L., constam artigos com as referências nos A0739, A0740, A0741, A071679 e 1500679, retratados de fls. 40 a 44 dos presentes autos;

36 – A A. enviou à GG Lingerie, S.L., uma carta, datada de 18-7-07, na qual invocou estar esta última entidade a comercializar produtos onde se encontravam reproduzidos desenhos da autoria da A. (nos termos constantes do doc. de fls. 45 a 48);

37 – Os desenhos dos artigos mencionados em 35. são reproduções dos referidos em 2.;

38 – A GG Lingerie, S.L., comprava os artigos referidos em 35. à R., para os vender aos seus clientes, em Espanha;

39 – A A. dispõe de um departamento que se dedica exclusivamente à criação de desenhos-bordados para posterior venda aos seus clientes;

40 – Suportou em custos de pessoal do departamento referido em 39., no ano de exercício de 2006, o valor de € 253.811,05 em salários e encargos com a Segurança Social;

41 – Suportou, no ano de exercício de 2006, o valor de € 8.248,67 com o imobilizado das máquinas de amostras do departamento aludido em 39.;

42 – Suportou, no ano de exercício de 2006, um valor não concretamente apurado com o custo de produção e fabricação de amostras;

43 – Suportou, no ano de exercício de 2006, um valor não concretamente apurado com o custo da matéria-prima para amostras;

44 – Suportou, no ano de exercício de 2006, o valor de € 27.163,83 em picado de desenhos externo;

45 – A A. vende, em média, por ano, 10 desenhos, os quais são vendidos em termos exclusivos aos respectivos compradores, deixando, por esse motivo, uma vez vendidos, de integrar o catálogo da A.;

46 – Cada peça do catálogo da R. necessita, para a sua confecção, em média, de 75 cm de bordado;

47 – A A. aceitou a encomenda referida em 18. sem lhe apor condições expressas;

48 - Na 1ª semana de Janeiro de 2007, a R. não recebeu a encomenda referida em 23.;

49 - E fez saber à A. (na pessoa do DD e quando este, em 9-1-07, esteve nas instalações da R.) que tinha necessidade de receber depressa os “bordados/referências” da encomenda, uma vez que tinha programado para a 2ª semana daquele mês a produção de artigos confeccionados com os bordados referidos em 18.

50 - A R. não teria confirmado a encomenda referida em 18., caso o prazo da entrega da mercadoria fosse o mencionado em 38.

51 – Com base nos elementos constantes da encomenda referida em 18. e respectiva confirmação, aludida em 20., a R. já havia fixado com os seus próprios clientes preços finais e prazos de entrega de produtos fabricados por si com os bordados encomendados à A., os quais não poderiam ser cumpridos se as condições de entrega fossem as referidas em 28.;

52 – A R. adquiriu, mediante o pagamento de preço, os bordados à Interveniente CC;

53 – A Interveniente CC fez os desenhos retratados a fls. 925 e nos objectos 1, 2, 3 e 4 (peças de lingerie) anexos aos autos a partir dos desenhos da A. referidos em 2., mantendo os desenhos de fls. 925 dos autos e constantes dos objectos 1, 2, 3 e 4 (peças de lingerie) as mesmas cores aplicadas nos mesmos elementos dos desenhos mencionados em 2., e sendo semelhantes no tipo de ponto utilizado e no espaço que medeia entre as flores (mesmo rapport 12/4, com três agulhas disponíveis, uma a cor fixa e as outras duas a cores alternadas, de duas cores cada uma), bem assim como na altura e largura, forma e tipo de flores (com 5 pétalas) e folhas usados, e respectivos preenchimento, textura e acabamentos;

54 – Os desenhos retratados a fls. 925 e nos objectos 1, 2, 3 e 4 (peças de lingerie) anexos aos autos correspondem aos artigos referidos em 35.;

55 – A Interveniente CC vendeu à R. os desenhos retratados a fls. 925 e nos objectos 1, 2, 3 e 4 (peças de lingerie) anexos aos autos.

IV – Decidindo:

1. No recurso de revista interposto pela R. BB e a que a Interveniente CC deu a sua adesão são suscitadas duas questões essenciais:

a) Com interesse exclusivo para a R., discutir a legitimidade da resolução do contrato de fornecimento de rendas operada pela R.

Sustentando o acórdão recorrido que não se verificava uma perda de interesse objectivo no cumprimento do contrato nem uma situação de incumprimento definitivo, contrapõe a R. que a resolução se justificava em face do incumprimento do prazo estipulado, dos reflexos que o atraso implicava nos compromissos assumidos com terceiros e da alteração unilateral do preço e da data de entrega dos produtos anteriormente acordados.

b) Com interesse para ambas as recorrentes, apreciar se a produção pela Interveniente dos bordados que a R. encomendara à A. com os desenhos que esta criou implica ou não a violação de regras comunitárias que tutelam os desenhos industriais não registados no espaço da União Europeia.

A uma resposta positiva dada pelo acórdão recorrido, contrapõem as recorrentes que os desenhos que serviram de base à produção dos bordados por parte da Interveniente para entrega à R. não beneficiavam da referida tutela, por falta do requisito da sua publicidade, e que a sua actuação não implica qualquer obrigação de indemnização por usurpação de direitos conexos com tais desenhos.

2. Quanto à questão da resolução:

2.1. O acórdão recorrido reflectiu com inegável desenvolvimento e clareza a apreciação dos pressupostos abstractos da resolução extrajudicial de contratos e a sua concretização na situação discutida nos autos.

O acerto das considerações gerais e o facto de as mesmas nem sequer serem questionadas pelas recorrentes explica por que razão não se insistirá nessa matéria.

Basta enunciar, em traços muito gerais, que, na falta de convenção das partes, a resolução contratual por via extrajudicial (art. 436º do CC) pressupõe uma das seguintes condições: verificação de perda de interesse objectivo no cumprimento do contrato, inadimplemento definitivo revelado pelo decurso de um prazo inderrogável estabelecido pelas partes ou pelo decurso de um prazo adicional concedido ao devedor constituído em mora. Para o mesmo efeito pode relevar ainda uma actuação do devedor que seja de qualificar como recusa definitiva e antecipada de cumprimento do contrato, reveladora da desnecessidade de o contraente aguardar pelo decurso do prazo ou emitir uma interpelação admonitória (arts. 801º e 808º do CC).

Este é, em resumo, o resultado que se obtém a partir dos normativos que regulam o exercício do direito potestativo de resolução e que foram densificados tanto pela doutrina (em termos de maior abstracção), como pelos tribunais que quotidianamente são confrontados com alguma daquelas situações-tipo.

2.2. Posto que concordemos também inteiramente com os argumentos que no acórdão recorrido foram aduzidos em torno da apreciação do caso concreto, justificar-se-ão, ainda assim, considerações adicionais que satisfaçam a necessidade de responder aos argumentos apresentados pela R. nas suas alegações.

Porém, tal como já ocorrera aquando da apresentação do antecedente recurso de apelação pela mesma R., é mister que se afirme, dando nota antecipada do que será a conclusão final, que não parece correcto que se reconstrua a “história” da resolução que foi declarada a partir dos factos que só posteriormente se verificaram ou com base em argumentos que apenas ulteriormente foram “descobertos”, sendo a actuação da R. seja apreciada essencialmente em função da forma como foi exteriorizada e das circunstâncias de tempo e de modo que a rodearam.

A este respeito a matéria de facto revela-nos que, após uma ronda inicial de contactos estabelecidos entre a A. e a R., com pragmatismo e a informalidade que normalmente envolvem as relações comerciais correntes, as mesmas estabelecerem, em Outubro de 2006, um acordo mediante o qual a A., a partir de desenhos por si criados, produziria para a R. uma determinada quantidade de bordados que posteriormente seriam aplicados na produção de peças lingerie. Foi fixado o respectivo preço, assim como a data de entrega da encomenda, a qual foi marcada para a 1ª semana de Janeiro de 2007.

No entanto, em Dezembro de 2006 ainda eram trocadas comunicações entre as partes a respeito das características do produto final. Por outro lado, encontrando-se pendente de pagamento, desde o final de Outubro de 2006, uma factura respeitante a um anterior fornecimento, a A., para além de insistir com a R. para que esta efectuasse o pagamento de tal factura, informou-a que, tendo em conta a mora em que a R. se encontrava, iria atrasar-se a entrega da encomenda.

No quadro das relações estabelecidas, nem a A. recusou antecipadamente a execução da encomenda – limitando-se a comunicar à R. o seu diferimento – nem a R. alguma vez confrontou a A. com a necessidade de ser cumprida a entrega da encomenda na data acordada, evoluindo o processo com aparente tranquilidade que se traduziu no facto de a A. ter procedido à aquisição dos tecidos necessários à satisfação da encomenda e de, no final de Dezembro de 2006, a R. ter procedido à liquidação da factura vencida, a que se seguiu o início da produção da encomenda por parte da A.

No dia 9-1-07 houve uma reunião entre um representante da R. e outro da A. no âmbito da qual aquele informou este que tinha necessidade de receber depressa os “bordados/referências” da encomenda, uma vez que tinha programado para a 2ª semana de Janeiro a produção de artigos confeccionados com os bordados.

Em 15-1-07, a A. enviou à R. um documento relativo à mesma encomenda, com duas modificações: indicando como data de entrega a 6ª semana de 2007 e um preço mais elevado do que aquele que fora acordado.

Foi neste contexto – embora sem expressa alusão a tais factores ou a quaisquer outros – que foi emitida pela R. a declaração de resolução do contrato em 16-1-07, a qual foi aposta à margem do anterior documento emitido pela A. e que tinha o seguinte teor:

«No seguimento da conversa do Sr. DD com o Sr. GG no dia 09/01, o Sr. GG tomou a decisão de anular a encomenda».

2.3. Numa determinada perspectiva, poder-se-ia concluir que o novo documento emitido pela A., na medida em que revelava o diferimento do prazo de entrega e um aumento do preço anteriormente acordado, traduzia uma nova proposta contratual, a qual, implicando a sua desvinculação relativamente ao negócio primitivo, careceria de aceitação por parte da R.

Porém, a apreciação global dos elementos circunstanciais e das declarações emitidas pelas partes não permite que se extraia tal conclusão.

Devendo as partes relacionar-se negocialmente segundo as regras da boa fé, as circunstâncias que rodearam o contrato de fornecimento a que os autos se reportam e o concreto relacionamento que entre as parte se estabeleceu e se foi consolidando implicaria, no mínimo, que, com a devida antecedência, a A. fosse confrontada com pela R. com as razões que, segundo esta, justificavam o cumprimento rigoroso dos termos do contrato que fora celebrado, dando àquela a possibilidade de se justificar e de acelerar a produção da encomenda a fim de ser respeitado o prazo acordado.

2.4. Não foi isso que sucedeu. Contra o que as regras negociais exigiam e numa altura em que a A. já tinha procedido à aquisição dos tecidos, tendo dado início à produção da encomenda, a R. optou abruptamente por uma declaração de resolução contratual.

É verdade que a R. havia assumido compromissos com terceiros cujo integral cumprimento poderia ser afectado quer com o diferimento da entrega da encomenda pela A., quer com o novo preço que fora indicado.

Porém, sem descurar esses aspectos, a matéria de facto apurada não revela a existência de elementos que justificassem a imediata declaração de resolução emitida pela R., quer por perda de interesse objectivo na prestação acordada, quer pela natureza peremptória do prazo acordado.

Em primeiro lugar, tal declaração resolutiva não foi acompanhada ou precedida da apresentação das razões – necessariamente ponderosas – que, na perspectiva da R., justificariam o rompimento do relacionamento contratual numa ocasião em que a A. já adquirira produtos para satisfazer a encomenda e até já dera início à sua produção. Era nessa ocasião que deveriam ser apresentadas as razões que efectivamente revelassem a perda objectiva do interesse na prestação.

Em segundo lugar, ainda que se admita a existência de uma situação de mora da A. no cumprimento da sua prestação – conclusão que a conjugação de factos não permite afirmar com total segurança – justificar-se-ia que a declaração resolutiva fosse reservada para o fim de um prazo suplementar que razoavelmente fosse fixado á A., dando-lhe a possibilidade de efectuar a entrega da encomenda dentro desse prazo.

Tudo leva a concluir que a declaração de resolução traduziu a desvinculação da R. sem motivos substanciais relativamente ao contrato que fora celebrado com a A. Na verdade, na mesma ocasião em que assim reagia de forma abrupta relativamente ao compromisso negocial firmado com a A., avançava com as negociações com a Interveniente no sentido de esta realizar a mesma encomenda a partir de desenhos similares aos que a A. criara e cujas provas tinham sido aprovadas pela R.

É verdade que, por si só, a transferência da mesma encomenda que fora feita à A. para uma terceira entidade não permitiria afirmar a manutenção do interesse objectivo no cumprimento do contrato que fora celebrado com a A.

Porém, nas circunstâncias em que tal ocorreu e sem que a A. tivesse sido confrontada com os motivos que levaram à cessação do contrato, pode seguramente afirmar-se que, em termos objectivos, não se justificava a reacção da R.

Por conseguinte, confirma-se a resposta que foi dada pelo acórdão recorrido quanto à falta de justificação para a declaração de resolução.

3. Quanto à usurpação dos desenhos não registados:

3.1. A fundamentação expendida no acórdão recorrido é irrebatível, sendo manifestamente temerários os argumentos que em sentido inverso foram apresentados por ambas as recorrentes, depois de numa primeira fase terem argumentado contra a existência de uma relação de identidade entre os desenhos produzidos pela Interveniente e os desenhos criados pela A.

Decorre da matéria de facto que a A. criou, em 2005, para o seu portfólio, os desenhos a que os autos se reportam e pelos quais a R. se interessou para aplicação em produtos de lingerie que pretendia produzir.

Rompida pela R. a relação comercial, a A., por comunicação de 19-1-07, procurou precaver-se contra a eventual usurpação dos referidos desenhos, tornando aquela ciente da exclusividade relativamente a tais desenhos e instando-a a abster-se de os reproduzir.

Tal não surtiu efeito, pois que os desenhos acabaram por ser reproduzidos pela Interveniente, sendo usados para o mesmo destino que a R. inicialmente projectara.

3.2. A actuação da R. e da Interveniente desrespeitou o regime que está previsto no Regulamento (CE) nº 6/2002, de 12-12-01, sobre os desenhos e modelos comunitários não registados.

O art. 3º desse Regulamento define o desenho ou modelo como a “aparência da totalidade ou de uma parte de um produto resultante das suas características, nomeadamente, das linhas, contornos, cores, forma, textura e/ou materiais do próprio produto e/ou da sua ornamentação”, sendo assegurada a sua protecção no espaço comunitário “na medida em que seja novo e possua carácter singular” (art. 4º, nº 1).

A tutela desses elementos, justificada pela sua novidade, além de proteger os direitos de natureza intelectual, garante os interesses de ordem patrimonial associados ao seu uso e aplicação, durante o período de 3 anos, defendendo o seu titular contra a usurpação. Dentro do referido período, o titular do direito industrial sobre os desenhos e modelos comunitários não registados tem o direito exclusivo de os utilizar e de proibir que um terceiro os utilize sem o seu consentimento, designadamente para efeitos de proceder ao fabrico, oferta, colocação no mercado, importação, exportação ou utilização dos produtos que com base nos desenhos e modelos venham a ser fabricados ou neles incorporados (art. 19º).

3.3. Argumentam as recorrentes, impugnando os pressupostos da responsabilidade civil, que não se verificou a ilicitude, uma vez que não houve divulgação pública dos desenhos não registados, não lhes sendo dada a publicidade necessária para que se considerassem protegidos. Aduzem ainda que, de qualquer modo, a utilização que foi feita dos desenhos não se traduziu numa cópia sistemática de que dependeria a responsabilidade civil.

Os factos são eloquentes quanto ao desacerto de qualquer dos argumentos.

É pressuposto da tutela do direito de exclusivo relativo a desenhos industriais, para além da sua novidade, a publicidade associada à sua divulgação.

No caso concreto, os desenhos resultaram de uma criação do departamento da A. (art. 5º do Regulamento), não havendo motivos para questionar o pressuposto da novidade e da originalidade. Tais desenhos foram inseridos no meio comummente utilizado para a sua divulgação pelos interessados potenciais: o catálogo de produtos da A. que seria apresentado aos potenciais clientes, entre os quais a própria R.

Este factor integra suficientemente o pressuposto da publicidade, permitindo que, de um modo pragmático e menos oneroso para os interessados, se obtenha a tutela de desenhos e modelos não registados dentro dos limites territoriais da União Europeia.

Nenhum argumento em sentido diverso pode ser extraído do Ac. do Tribunal de Justiça que é citado pelas recorrentes e que foi proferido no âmbito de reenvio prejudicial (Proc. nº C-479/12), no qual se concluiu que “o art- 11º, nº 2, do Regulamento (CE) nº 6/2002, de 12-12-01, relativo aos desenhos ou modelos comunitários, deve ser interpretado no sentido de que se pode considerar que um desenho ou um modelo não registado pode razoavelmente ter chegado ao conhecimento dos meios especializados do sector em causa que operam na União, no decurso da actividade comercial corrente, quando tiverem sido difundidas representações gráficas do referido desenho ou modelo entre os comerciantes desse sector …”.

Ora, foi precisamente o que ocorreu no caso concreto, tendo em consideração que a A. inseriu o desenho no catálogo de produtos para apresentação aos clientes e que foi a partir do mesmo que dos desenhos foi dado conhecimento à R.

3.4. Depois de a R. ter declarado a resolução do contrato que celebrara com a A., aproveitou os elementos então recolhidos para solicitar à Interveniente a produção do mesmo tipo de desenhos aplicados em tecidos semelhantes para fabrico de lingerie.

Sendo patente a similitude relativamente aos desenhos que foram elaborados pela Interveniente e transmitidos à R. (art. 6º), dentro do período de protecção - 3 anos - previsto no art. 11º, nº 1, estão presentes todos os elementos que permitem concluir pela ilegitimidade da actuação das recorrentes traduzida na usurpação dos desenhos comunitários.

Contra o alegado pelas recorrentes, o Regulamento referente à protecção intracomunitária de desenhos não registados não faz depender a tutela do interessado da verificação de uma cópia sistemática. Mas ainda que outra fosse a conclusão, não existiria a menor dúvida quanto à utilização industrial que foi feita pelas RR. do labor intelectual desenvolvido pelo Departamento criativo da A., tornando ilegítima a actuação de ambas as recorrentes e a integração dessa actuação numa prática usurpativa ilegítima.

3.5. A usurpação ou contrafacção de desenhos e modelos implica, entre outras consequências legais, a obrigação de indemnizar (arts. 88º e 89º do Regulamento), cujos contornos são definidos pelo regime jurídico interno de cada Estado, o que nos remete para o Cód. da Propriedade Industrial.

Não se mostra, contudo, necessário desenvolver este tema, uma vez que, tendo a Relação condenado as RR. numa indemnização por danos patrimoniais a liquidar posteriormente, as partes limitaram-se a questionar os pressupostos dessa condenação, já anteriormente analisados, não suscitando qualquer outra questão a esse respeito.

IV – Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso de revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas a cargo das recorrentes. Notifique.

Lisboa, 5-2-15

Abrantes Geraldes (Relator)

Tomé Gomes

Bettencourt de Faria